Biopolítica e cyberpunk: as máquinas desejantes

Por Zoë Masan

“O corpo sob a pele é uma fábrica superaquecida, e por fora, o doente brilha, reluz, em todos os seus poros, estourados”

– Antonin Artaud

“Se não se montar uma máquina revolucionária capaz de se fazer cargo do desejo e dos fenômenos de desejo, o desejo continuará sendo manipulado pelas forças de opressão e repressão, ameaçando, mesmo por dentro, as máquinas revolucionárias”

– Gilles Deleuze

 

Um fetichista por metal, um assalariado e uma prostituta. Os arquétipos base de Tetsuo: The Iron Man (1989), ironicamente, mostram protótipos nos quais os cidadãos das grandes capitais super-industrializadas do final do século XX se estruturam: a obsessão pela máquina, o homem médio executivo e as vontades carnais do sexo. Esses três pilares da narrativos de Tetsuo, encontram um lugar comum para acontecerem: o corpo.

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Enquanto muitas obras de cyberpunk e outros subgêneros da ficção científica são construídas sob uma cidade distópica estruturada por um Estado controlador, Tetsuo: The Iron Man (1989), trabalha o cyberpunk fundado no corpo. Com uma visão pós-estruturalista da significação da tecnologia, máquina, industrialização e tensões corpóreas. O corpo em Tsukamoto ressignifica o próprio cyberpunk, enquanto gênero, e assume o corpo como uma estrutura onde todas as possibilidades estão abertas, até mesmo da carne ser dominada pelo metal.

Cercado por metal, O Fetichista implanta em sua carne um pedaço da pilha de metais que o cercam. O experimento não ocorre como o esperado, e como uma doença, o metal se multiplica e se alastra por sua carne, o dominando gradativamente. Não há estatização da máquina, tampouco uma indústria, apenas o desejo pulsante pela modificação e potencialização das capacidades do corpo humano, um pós-humano micropolítico que abriga poder em suas moléculas de metal. Como uma doença, o metal toma conta do corpo do Fetichista, assim como acontece com o Assalariado, quando esse, atropela o Fetichista. Uma espécie de epidemia maquinaria se alastra transformando deformando corpos, com uma força de poder incontrolável.

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Em Tetsuo (1989) o metal toma uma forma autoconsciente, ele vive, como um parasita que necessita do corpo para suprir suas necessidades de dominação e sobrevivência. O metal produz uma espécie de adestramento, reeduca o corpo para transformá-lo. Não existe máquina antes do corpo, apenas metal. A máquina é a fornicação entre o metal e a carne. O organismo de poder representado pelo metal, exerce a castração das vontades humanas e impõe uma utilidade belicista para esses corpos. Quando o Assalariado está com parte do seu corpo transformado em máquina, e tenta ter relações sexuais com uma prostituta (que também começa a ter seu corpo dominado pelo metal), as vontades humanas (sexuais) entram em conflito com as da máquina (destrutivas), transformando o sexo entre os dois em uma cena tragicômica em que o pênis se torna uma broca de metal, fazendo dessa uma das cenas de sexo mais grotescas e intensas do cinema.

A biopolítica pode ser definida como uma nova dimensão de poder que visa controlar a vida humana no campo biológico dos saberes. Para estabelecer controle sobre homem enquanto espécie é necessário entender, analisar e estudar esse corpo. Em Tetsuo (1989) a biopolítica é exercida através da máquina de uma maneira prática e bem mais crua. O corpo humano é assimilado gradativamente pelo metal que o domina, criando uma tecnologia própria de controle: a epidemia. Fetichista, Assalariado e prostituta se fundem em uma grande maquina constituída de metal e carne com o objetivo desejante da dominação bélica e aniquilação. Esses novos humanos tiveram seus desejos carnais suprimidos e substituídos pela vontade latente da maquina de se alastrar e disciplinar corpos humanos ao redor do mundo e transformar carne em metal. É uma nova fase de evolução da espécie, um novo passo em um mundo regido pela biopolítica do homem, as maquinas instalaram sua própria biopolítica, muito mais poderosa, que coloca em prática um controle em níveis moleculares.

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Quando o experimento inicial do Fetichista acaba o transformando em uma máquina sub-humana, é possível entender o experimento como uma tentativa de subversão e descentralização do domínio maquinário-industrial, bem como, do poder biopolítico exercido pelo Estado (controle de natalidade, políticas de controle populacional, etc.) Mas no universo de Shinya Tsukamoto, o metal vive, e a máquina emana um poder epidêmico por si só. Esse maquinario biológico e desejante, se coloca aberto a qualquer tipo de possibilidade vida. Um desejo pulsante de se expandir e criar. Recusa-se quaisquer interpretações, sejam elas de natural moral ou política. A biopolítica torna a vida humana um ato político por si só, mas a máquina aniquila o controle biológico estatal sobre o corpo, destrói a biopolítica humana e cria uma biopolítica pós-humana, a maquina controla sua própria e nova estrutura, o corpo humano.

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As maquinas desejantes do Anti-Édipo de Deleuze e Guattari, são os organismos que se conectam e formam o corpo humano, que é por sua vez, outra máquina inserida dentro de uma máquina social. Pode-se dizer que “o que define precisamente as máquinas desejantes é o seu poder de conexão ao infinito em todos os sentidos e em todas as direções.” Deleuze & Guattari.

A máquina se conecta, mantém fluxo e produz. Como uma super estrutura de uma indústria, a produção não cessa. Tudo o que se cria e se expande é através do desejo. As maquinas desejantes são sistematicamente organizadas para se encaixar na máquina social, através de papéis e funções sociais bem definidas. Em uma interpretação menos psicanalítica possível, o homem-maquina de Tsukamoto, que antes era um Fetichista e um Assalariado, é o resultado mais genuíno possível da libertação da maquina social. É uma maquina desejante anti-social e anti-sociedade, um grande abolicionista dos desejos sociais, um herói que alcançou a revolução em nível celular, rejeitando a carne e abraçando as possibilidades do metal.

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