Bush Mama (Haile Gerima, 1979): assimetrias da carne e do corpo

Por Kênia Freitas

I

No enquadramento o olhar de Dorothy. Olhar frontal para a câmera, mas não endereçado ao espectador. Dorothy olha com intensidade para além da câmera, que o contraplano logo nos revela como os detalhes de um pôster. Na imagem observada a mulher angolana que segura o filho em um braço e a arma com o outro. Indo de um lado para o outro do cômodo e colocando-se na frente da imagem, Dorothy parece querer desvendá-la – e, pela frontalidade do olhar da guerrilheira, ser simultaneamente desvendada.

Na montagem do filme de Haile Gerima plano e contraplano, no entanto, não se equivalem. Dorothy não quer ser fixada. A agência do transe e da identificação é sua. Depois do plano fechado no olhar fixo, a câmera se afasta para o plano americano que situa Dorothy em sua casa e na sua possibilidade de questionar a imagem andando de um lado para o outro. Mais do que um contraplano, a câmera torna-se uma subjetiva da personagem. A imagem colada na parede é então mais uma vez recortada pela investigação de Dorothy: da lágrima nos olhos para a arma e de volta aos olhos.

Close nos olhos fixos de DorothyAo lado, detalhes do pôster

Close nos olhos fixos de Dorothy. Ao lado, detalhes do pôster.

A investigação da imagem é interrompida por sons que vem de fora do apartamento. Dorothy corre então para observar pela janela o que se passa na rua. A câmera assume mais uma vez o olhar subjetivo de Dorothy para a cena: um homem negro algemado é conduzido por um policial branco que o empurra. O homem grita para que o policial pare, enquanto tenta afastar-se do policial. Sem hesitação, o policial atira e mata o homem algemado. Dorothy fecha os olhos em desespero e chora.

A montagem mais uma vez joga com uma falsa equivalência entre Dorothy, que observa, e a cena observada. Mas dessa vez, Dorothy quem não terá agência diante do testemunho da violência policial.

II

Além da mãe guerrilheira angolana (a Bush Mama que intitula o filme), outro pôster está colado na parede do apartamento. As imagens foram levadas por Angi, a adolescente que frequenta as manifestações do movimento negro e amiga de Luann (filha de Dorothy). O outro cartaz é de um homem negro morto pela polícia de Los Angeles alvejado com 25 tiros. Ao mostrar o pôster para Luann, Angi conta as marcas de tiro no cadáver. A contagem, o pôster e a violência sofrida pela comunidade negra e pobre de Los Angeles oscilam entre o insuportável e o natural no tratamento do filme.

Pôster do homem assassinado com 25 tiros pela polícia de Los Angeles.Pôster do homem assassinado com 25 tiros pela polícia de Los Angeles.

Não há gratuidade na violência representada e construída por Gerima. Da não linearidade da narrativa ao papel fundamental do som sobre as imagens (reiterando essa não linearidade pela repetição e sobreposição de vozes, ruídos urbanos e a trilha sonora), passando pelas elipses entre os acontecimentos, o filme não se esquiva da representação da violência sistêmica sobre a carne negra.

II.A

Frank B. Wilderson III defende uma diferença entre carne (flesh) e corpo (body) ao falar do tratamento da violência em Bush Mama. O corpo diz respeito apenas aos policiais brancos, a carne às pessoas negras. O primeiro ocupa uma posição de sujeito e o segundo de objeto. Considerando a experiência negra diaspórica pós-escravização a partir do prisma de uma morte social (Orlando Patterson), a posicionalidade negra em sociedades de supremacia branca e de racismo estrutural é a da não humanidade – a de objeto.

Isso não significa que a carne (os personagens negros) não possam ter eventualmente agência da violência no filme. A sequência final de Dorothy assassinando o policial branco após encontrá-lo estuprando Luann, representaria uma ação da carne sobre o corpo. O que a diferença dos termos coloca é uma assimetria irreparável (dentro e fora da representação) entre carne e corpo no domínio da violência.

O filme de Gerima aponta para essa impossibilidade de simetria ao inverter a sequência dos acontecimentos finais. Vemos primeiro Dorothy presa, apanhando brutalmente ao não assinar a confissão deturpada do assassinato do policial. O sangue no chão denuncia que o aborto tão reivindicado pelo estado via assistência social, foi concretizado pela violência policial. E, só depois, veremos o momento em que Dorothy chega no apartamento para encontrar Luann sendo atacada, reagindo furiosa contra o policial e o matando no local. A desordem importa.

III

Além da não linearidade entre as sequências, opera na montagem do filme as elipses entre os acontecimentos. Isso reforça a assimetria e também quebra o efeito imediato entre causa e consequência da ações das carnes e dos corpos.

O momento mais emblemático dessa descontinuidade acontece quando TC, o companheiro de Dorothy, arranja um emprego. Em uma cena acompanhamos Dorothy e Luann orgulhosas na janela o observando partir para o trabalho. Na próxima, vemos TC sendo conduzido por um guarda dentro de uma penitenciária até a sua cela.

Dorothy e Luann observam TC pela janelaTC é conduzido pelo guarda na penitenciária

Dorothy e Luann observam TC pela janela. TC é conduzido pelo guarda na penitenciária.

Neste momento não trata-se mais de uma assimetria de agência entre Dorothy e o que ela vê (como na sequência do pôster da Bush Mama). Mas de uma inequivalência entre o que ela teria visto e a continuidade do filme. E em um filme que não se esquiva das imagens traumáticas, essa elipse desmonta uma expectativa na narratividade e na representação como reorganizadoras das assimetrias (dos olhares, da carne e dos corpos, da distribuição da violência).

IV

Essa estratégia de montagem (não linear e fragmentada) alinha-se com uma recusa de Gerima de construir o filme como espetáculo ou como uma narratividade ilusionista. O filme pode então falar diretamente para a câmera e interpelar os espectadores.

Um desses momentos é a leitura da carta enviada por TC para Dorothy de dentro do presídio. A carta começa a ser lida em voz alta por Angi dentro do apartamento de Dorothy. Logo o filme se desloca da casa para a penitenciária, da voz de Angi para a do próprio TC, que fala encarando a câmera. A câmera no entanto logo inicia um travelling lateral percorrendo as selas de outros homens negros presos ao lado dele, enquanto continuamos a ouvir a sua voz em off falando pela carta.

TC atrás das grades fala pela carta com DorothyAo lado, os vizinhos de cela 1Ao lado, os vizinhos de cela 2Ao lado, os vizinhos de cela 3Ao lado, os vizinhos de cela 4

TC atrás das grades fala pela carta com Dorothy. Ao lado, os vizinhos de cela.

Nessa cena a centralidade da violência do encarceramento sobre a carne de TC é reconfigurada. O seu discurso militante sobre a tomada de consciência sublinha uma ideia de coletividade imageticamente construída pelo travelling entre as celas.

Essa coletividade atravessa o filme como um todo. Assim, se violência estrutural sobre todos os aspectos da vida e da carne de Dorothy (moradia, filhos nascidos e não nascidos, cabelo, emprego, relacionamento amoroso, amizades…) é um ponto focal de Bush Mama, a personagem é situada continuamente em uma coletividade não individualizante (de vizinhas, amigas, pessoas ao seu redor na fila dos atendimentos públicos).

O plano final do filme de Dorothy, não mais investigando o cartaz da mãe guerrilheira mas enquadrada ao seu lado, desfaz a assimetria construída anteriormente de plano (Dorothy) e contraplano (pôster). O que essa escolha de posicionamentos e deslocamentos da câmera constrói é uma possibilidade de aliança dos personagens negros como carne. O que não desfaz as assimetrias dadas entre carne e corpo na sociedade (fora ou dentro do filme), mas aposta em um realinhamento subversivo dos elementos.

Bush Mama e Dorothy alinhadasBush Mama e Dorothy alinhadas.

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