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Meek’s Cutoff (Kelly Reichardt, 2010)

Um personagem lê em voz alta a história da expulsão do Éden: é essa a primeira fala que ouvimos em Meek’s Cutoff, um movimento que logo de início trata de relembrar o tipo de narrativa que animou os pioneiros durante a colonização da América, que lhes forneceu uma identidade segundo a qual buscavam reconquistar o paraíso na Terra. Mas a caravana guiada por Stephen Meek, depois de tomar um atalho que os levou para uma região hostil, não está na melhor das situações, com pouca água restando e sem boas perspectivas de chegar tão logo ao seu destino. Conforme a necessidade de água se torna mais urgente, os personagens têm menos oportunidade de se dar ao luxo de fazer longas pausas — a jornada precisa seguir, a qualquer custo, inclusive o de abandonar pelo caminho o peso desnecessário trazido por velhos objetos da família. Isso também define a estrutura narrativa adotada por Kelly Reichardt: vários pontos de partida típicos de faroestes são levantados, mas todos ficam pelo caminho, todos são abortados, seja o ataque indígena, a corrida do ouro, a traição cometida por um membro do grupo que pode levar à morte dos demais, até mesmo um duelo que se ensaia mas termina sem que tiros sejam disparados — todas essas situações são sugeridas, sobretudo a que envolve a possível fuga de Stephen Meek, receio que os personagens carregam durante toda a primeira metade do filme, mas nenhuma se concretiza, porque é preciso seguir em frente, encontrar água, chegar ao destino, ao Éden redescoberto, o mais rápido possível.

A jornada, em Meek’s Cutoff, é inexorável, mas o é apenas para seus personagens, que só admitem como objetivo, como ponto final, a ideia de paraíso que carregam consigo, e que certamente não corresponde ao lugar árido em que estão presos. A escolha da diretora pelo formato de tela de 1,33:1 acentua, na imagem quase quadrada, a distância inimaginável do horizonte, a paisagem que os pioneiros não compreendem, pela qual não nutrem sentimento algum de pertencimento, da qual querem se afastar o quanto antes, mas que parece se estender ao infinito em todas as direções. Porém, se no começo do filme vemos os atores em primeiro plano com a terra se estendendo por quilômetros para além deles, logo vemos também tomadas em que eles aparecem mais distantes, mais integrados à paisagem — é como Reichardt nos ensina que, por mais que não tenha ainda essa percepção, a caravana já faz, a seu modo, parte do ambiente. O uso do som é outro indício: os ruídos do cascalho, do vento, das rodas das carruagens, o crepitar das fogueiras são pervasivos, fortes, nunca discretos, sempre reclamando seu lugar e por vezes até mesmo encobrindo as vozes; e estas também têm suas particularidades, são dotadas de uma materialidade e presença incomum, roucas, ásperas, dissonantes. Uma materialidade que engloba e integra a paisagem, as pessoas, os objetos, tudo que está em cena, numa unidade. Não se trata mais de um não-lugar entre o ponto de partida e o ponto de chegada, a ser atravessado e esquecido, sem deixar qualquer marca naquelas pessoas: elas, mesmo que contra a própria vontade, encontraram algum tipo de identificação com a terra, são parte dela agora.

Nada disso elimina a seriedade e urgência da luta que eles engendram para encontrar água e sobreviver, nem estabelece a possibilidade de uma convivência “pacífica” com a natureza ou qualquer coisa do gênero; mas exige dos personagens o reconhecimento da concretude da situação que vivem para além do passageiro, de um interlúdio particularmente difícil — mas interlúdio — da jornada, ao fim da qual aguarda o paraíso terrestre. É preciso, talvez, abandonar a ideia de jornada, ainda que temporariamente, em mais uma virada narrativa nesse filme em que tantas coisas são deixadas pelo caminho à medida que os personagens entendem mais o lugar, a conjuntura, a si mesmos. Assim como na narrativa do Éden, é uma mulher que toma a iniciativa dessa mudança, Emily, que, com seu “sangue índio” real ou metafórico, é a primeira a perceber que seguir com uma mentalidade que coloque o mundo — porque o lugar onde se encontram, nas circunstâncias limítrofes em que se encontram, é agora para eles o mundo em sua totalidade — em uma esfera e eles em outra não levará a nada. A personagem é o maior trunfo de Meek’s Cutoff: o espectador do século XXI está preparado para lançar-lhe um olhar condescendente por conta de sua posição numa sociedade patriarcal etc., mas ela repele esse olhar, mantendo uma relação de igual para igual com o marido e, mais tarde, assumindo muito literalmente o comando da situação — e mais, mantendo-o, primeiramente através da ameaça de força (uma atitude que Stephen Meek definiria como muito masculina, em sua teoria que estabelece as mulheres como agente do caos e da criação e os homens, da destruição), mas depois ganhando a confiança dos demais (ainda que por não lhes restar escolha àquela altura).

Essa aceitação da terra se materializa na aceitação de um novo integrante na caravana, o índio capturado por Meek e pelo marido de Emily, Soloman, e que pode tanto levá-los a onde há água quanto a uma emboscada armada pelos outros de seu grupo. Uma aliança é improvisada, mas não há concessões por parte de Reichardt: assim como não entendem a terra mas precisam aceitá-la, não entendem — e nós também não — o que o indígena fala, e não têm como saber se ele, por sua vez, os compreendeu. A tensão central de Meek’s Cutoff — que também, é claro, criou e abandonou outras tensões e conflitos ao longo da projeção — se mostra: não é propriamente se a aliança incerta entre os que chegam à terra e um dos que correm o risco de ser expulsos dela se manterá até o fim, ou se os protagonistas estão sendo levados à água ou à morte, mas quão profundos e duradouros são esses gestos de identificação que levam (ou que não levam, pois, apesar de sugerir o contrário, o filme não toma uma posição definitiva) à formação de um grupo como o que temos na segunda metade, e gradualmente à distensão das relações — mesmo que pela exaustão — e a um aumento da confiança — que no entanto segue incerta, pois não existe um esforço em se criar uma circunstância utópica ou necessariamente bem sucedida (Meek’s Cutoff termina antes de descobrirmos como, afinal, as coisas se desenrolaram), e sim em examinar a pequena comunidade formada e lançar questões. Se o filme de Reichardt é, em muitos aspectos, principalmente formais, um western revisionista, em espírito ele se mantém fiel a um tema caro ao gênero, a identificação de pessoas com o espaço em que vivem, hostil ou não, e entre si mesmas, e as tensões subjacentes, na gênese de uma comunidade. É o que dá força ao potente campo-contracampo que encerra o filme, um olhar que carrega toda essa rede de confianças, tensões e expectativas, trocado por entre os ramos de uma árvore que pode ser o sinal em que os personagens depositam suas últimas esperanças.

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Melhores filmes de 2011

As retrospectivas de final de ano nos ajudam a fazer uma leitura geral do circuito cinematográfico no Brasil — tanto para pontuarmos as obras mais interessantes que passaram por aqui quanto para detectarmos os equívocos de distribuição de nosso limitado circuito. Para esta seleção de 10 grandes destaques entre os filmes exibidos no país em 2011, optamos por validar apenas obras que tiveram sua estreia comercial oficial este ano, o que impossibilitou a presença de filmes que participaram da programações de festivais e mostras de cinema e também os que aportaram por aqui direto para as prateleiras das locadoras. A lista está em ordem alfabética.

Além da Vida (Clint Eastwood, 2010) 

Há muito firmado e reconhecido como um autor, Clint Eastwood segue ainda assim com filmes mal vistos ou incompreendidos. Encerradas as suas atividades como intérprete e a trajetória de sua persona cinematográfica de durão com a bela retirada de cena que tivemos em Gran Torino, Clint continua na entrega do que há anos vem fazendo de melhor: dirigir. O Clint cineasta que pega questões importantes pelo mundo para fazer não filmes de teses ou didáticos, mas fábulas humanas com uma sensibilidade e olhar cinematográfico cada vez mais escasso em seu métier: a superação da segregação racial no belo e tão discutido Invictus, e agora esse Hereafter, um filme não sobre os mortos, mas sobre o apego dos vivos a eles (como um dos irmãos preservando em si próprio o antigo chapéu de sua metade que partiu). Bem possível que tenha sido encarado com a expectativa errada, a de filme espírita e sobre o além, quando em realidade o seu maior trunfo é se manter o tempo todo no plano terreno e materialista, com os seus eixos girando mais em torno da vida antes da morte, e da relação dos personagens com ela. Um grande filme sobre encontros, perdas, procuras e reencontros. Sobre a vida. (Vlademir Lazo)

As Canções (Eduardo Coutinho, 2011)

Todo artista tenta se expressar no limite de suas capacidades, sendo que os melhores, vez ou outra, chegam em um ponto tão extremo de seus limites que acabam inventando uma linguagem. O que dizer então de alguém como Eduardo Coutinho, que desafiou paradigmas em Jogo de Cena, depois de anos em estudos variados no documentário nacional, formando a mais diversificada carreira de um cineasta brasileiro? Que levou a um patamar ainda mais radical o dispositivo de construção de uma obra artística em Moscou? O que dizer sobre Eduardo Coutinho, que volta à base de tudo em As Canções, um filme que ao mesmo tempo é síntese e testamento de sua obra tão contundente? As Canções, que simplesmente nos convida a ouvir anônimos cantarolando músicas que são caras às suas trajetórias individuais, montando um painel sentimental sobre a entrega dos seres humanos, é a prova catártica e definitiva de que os grandes artistas são aqueles que, acima de qualquer coisa, sabem que a maturidade pode significar, também, simplicidade. (Thiago Macêdo Correia)

As Praias de Agnès (Agnès Varda, 2008)

O apanhado geral de uma vida de imagens: da fotografia à nouvelle vague, dos documentários às instalações, da infância a um último filme. Esse é o projeto ambicioso, e ainda assim muito divertido, de Agnès Varda em suas praias. Mais do que um documentário autobiográfico comum, Varda parece pegar emprestado o gesto compulsivo de colecionar dos seus Catadores e tornar-se, assim, ela também uma acumuladora de imagens, de pessoas, de lugares que atravessaram sua trajetória. Varda e suas imagens se indiscernem a ponto de não haver acanhamento para a diretora em se fantasiar como uma enorme batata ou para o seu filme esconder Chris Marker atrás da animação de um grande gato laranja. Em um filme que flerta em muitos momentos com a pieguice e o ridículo, a bricolagem quase caduca desses momentos é um ato de coragem — e puro cinema. (Kênia Freitas)

Caminho Para o Nada (Monte Hellman, 2010) 

Neste retorno de Monte Hellman após 20 anos longe das câmeras, acompanhamos um jogo metalinguístico fascinante em torno de uma equipe de cinema que produz um filme de uma história real, sobre um crime real. Mas não é tão simples assim: há o passado, há o presente e há o futuro do fato, e as três camadas narrativas se diluem umas nas outras até chegarmos a um nível de abstração tão feérico que só nos resta aceitar Caminho Para o Nada como um exercício visceral sobre sua própria encenação. A imagem aqui é recebida não como produto final, mas como um processo das informações ali contidas; uma extensa via a ser percorrida pelo olhar para chegarmos a uma possível veracidade daquilo que é filmado — e que pode não estar na imagem, ou, no caso do cinema, sequer existir. Confrontamos uma verdade particular pertencente a cada uma das cenas; uma verdade que é somente delas, e que na tela, enquanto processo de si mesma, é suficiente para que o filme nos fascine. (Daniel Dalpizzolo)

Cópia Fiel (Abbas Kiarostami, 2010) 

Ponto culminante não só para a carreira de seu diretor, que há um bom número de anos vem assinando uma sucessão ininterrupta de obras-primas, Cópia Fiel ergue-se como a redefinição de toda uma necessidade dramática para a contemporaneidade. Representar para viver, interpretar para que se chegue ao essencial, temos neste filme uma das operações estéticas mais significativas do presente século, de importância que ultrapassa o interesse cinematográfico para alcançar um domínio comum a toda expressão humana. Na implosão do romance gozado pelo casal de protagonistas, o nascer e o morrer de um impulso narrativo, o abismo entre a realidade e a ficção, tudo aquilo que alimenta o relacionamento de dois amantes, mas também o que motiva o contato entre o homem e a arte. Filme que justifica o cinema. (Fernando Mendonça)

O Garoto da Bicicleta (Jean-Pierre e Luc Dardenne, 2011) 

O garoto do título do filme mais recente dos irmãos Dardenne é um corpo arredio, lutando contra um mundo que não lhe acolhe. Na verdade, mesmo quando as coisas passam a aparentemente seguir um caminho de redenção para este personagem, o garoto permanece incontrolável. Não é somente o mundo que não lhe cabe, mas sua essência que não permite que ele ceda ao universo que o rodeia. Ele luta contra a mulher que lhe dá a mão, luta contra a porta de um carro, luta contra a ideia do pai, para posteriormente acatar que a idealização do pai é justamente o que não corresponde à realidade. O corpo que não para de se debater, em determinado momento, se torna imóvel. É então acontece algo que pode ser tido como divino, quando a vida prevalece diante da morte. Para além de um discurso cinematográfico, a conclusão de O Garoto da Bicicleta é uma declaração de amor dos Dardenne à vida, à continuidade e, principalmente, à mudança. Neste filme, um corpo arredio pode encontrar a paz. E isso só pode ser visto como um verdadeiro milagre. (Thiago Macêdo Correia)

Singularidades de uma Rapariga Loura (Manoel de Oliveira, 2009)

A paixão é um sentimento engraçado à medida que se cria consciência de que aquilo que se sente não é exatamente por uma pessoa, mas por uma falsa imagem gerada a partir dela. Com este espírito, temos em Singularidades de uma Rapariga Loura uma obra concisa e eficiente em que o centenário Manoel de Oliveira adapta um conto de Eça de Queirós para tratar justamente da tolice na qual um homem se afunda a partir de uma imagem equivocada criada sobre uma mulher. Ricardo Trêpa observa Catarina Wallenstein emoldurada pela janela e parcialmente tapada por seu leque (e posteriormente pelo véu da cortina) e é esta cena emblemática e bela que sustentará para ele uma mentira que acobertará momentaneamente o pequeno desvio moral da moça. Quando descobrimos onde enfim o filme vai chegar, próximo ao final dos pouco mais de 60 minutos, tudo desaba sobre os ombros — nos de Trêpa e nos nossos. Oliveira prega uma peça tão deliciosa e encantadora que se torna impossível resistir ao filme. (Daniel Dalpizzolo)

Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (Apichatpong Weerasethakul, 2010) 

Conhecemos Apichatpong Weerasethakul por filmes que se sustentam em quebras narrativas embasbacantes (como Síndromes e um Século e, especialmente, Mal dos Trópicos), e o que torna Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas ainda mais impressionante é como este aguardado choque surge logo nos primeiros planos e se mantém não na narrativa, mas dentro de cada uma das imagens subsequentes. Situações cotidianas banais dividem espaço organicamente nos planos com elementos sobrenaturais, e na diluição de camadas existenciais, da realidade e do imaginário, o diretor cria um universo exímio em que explora o potencial fantástico das lendas e crenças da Tailândia para filmar um belo conto sobre a morte, com situações que nos conduzem constamentemente ao sublime. Pode parecer de difícil assimilação a quem não está habituado à linguagem de Apichatpong, mas não encontramos em qualquer filme ocidental lançado no Brasil em 2011 um conjunto de cenas tão poderosas. (Daniel Dalpizzolo)

Trabalhar Cansa (Marco Dutra e Juliana Rojas, 2011)

Trabalhar Cansa é um filme tecido em uma operação delicada: conjugar na mesma obra uma crítica social e de costumes com uma fábula sobrenatural sobre o mal-estar contemporâneo. Nos perguntamos durante quase todo o filme do que se trata: das relações de trabalho/poder que perpassam as familiares/afetivas? Ou da necessidade de enfrentar o monstro que se esconde dentro de cada um? Alívio podermos sair do filme sem saber, com um final que filmando uma dinâmica de grupo das mais clichês de uma agência de empregos consegue trazer o grito e a libertação mais engasgados. Os diretores, Marco Dutra e Juliana Rojas, nos mostram que filmar as relações sociais no Brasil não é fazer apenas um drama ou uma sátira, mas também um filme de horror. (Kênia Freitas)

Um Lugar Qualquer (Sofia Coppola, 2010)

Assim como seu colega Jim Jarmusch (a quem já homenageou em Encontros e Desencontros), Sofia Coppola gosta de extrair do tédio o desenvolvimento do caráter de suas personagens. Não é um comentário jocoso: Um Lugar Qualquer é bastante exemplar nesse sentido, pois extrai do vazio todo o conjunto de motivações e peculiaridades que movem as personagens e as fazem se relacionar entre si. No caso, um pai e uma filha passam um tempo juntos e vão com isso se conhecendo e se aproximando; nada faz sentido fora desse quadro, e é portanto por esses momentos de interação que pulsa o sentido da obra, ela respira e é fresca e calorosamente humana. Aos poucos vamos compreendendo que o “lugar qualquer” é onde estão nossos sentimentos. (Filipe Chamy)

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De mestres do filme B para a tela pequena

“Eu notei, e tenho notado desde então,
como a
maioria das pessoas não se importam
com coisas
autênticas.
Elas preferem misturas e maquiagem”.

(Jean Renoir)

Num período de pouco mais de seis meses entre o final de 2010 e meados do ano que termina agora, tivemos a chegada no Brasil de três filmes de autores que já foram (relativamente) melhor recebidos por estas bandas. São eles: A Ilha dos Mortos (George A. Romero), The Hole 3D (Joe Dante) e Aterrorizada (John Carpenter), lançados não nos cinemas, mas vindos direto para DVD, ocupando uma fatia menos nobre no mercado (e provavelmente vistos mais por downloads na internet do que por vias comerciais). O que de certa forma não nos surpreende, pois se nos detivermos na lista de filmes que há anos povoam o nosso circuito exibidor, vamos nos deparar não somente com centenas de títulos insignificantes que figuram somente para cumprir a meta de um determinado número de estreias que se julga o suficiente para o circuito, como também, entre os lançamentos de maior repercussão, com produtos híbridos que misturam a linguagem cinematográfica com a publicitária, televisiva, dos videogames e videoclipes, etc. Ou com muita perfumaria, produtos de centenas de milhões de dólares maquiados com efeitos fáceis de superfície, repletos de decoração, de lugar comum, de ornamentos, e não com um trabalho sensível por parte do cineasta sobre o seu material, e menos ainda com mise en scène.

Nesse panorama, já não há mais lugar para Carpenter, Romero e Dante, alijados da preferência de um público amplo que certamente não desconfia que um plano do último filme de Romero (podemos pensar aqui na mulher cavalgando em disparada, ou a imagem final dos zumbis no horizonte) vale mais que carreiras inteiras de cineastas que prezam pelo “bom cinema”. Sexto filme de zumbis de Romero, A Ilha dos Mortos coloca a temática num outro contexto (o do campo nos limites de uma ilha de refugiados), com pitadas de romance gótico literário do século XIX misturados com elementos políticos e da tecnologia moderna, retomando o personagem de Alan Sprang, do anterior
Diário dos Mortos, como o líder de um pequeno grupo de soldados perdidos, enchendo seu filme de atores de TV canadenses que ninguém conhece e filmando em scope com as novas câmeras digitais disponíveis. Não que A Ilha dos Mortos e os mais recentes de Carpenter e Dante sejam dotados de absoluta perfeição, ou que não possam ter suas qualidades devidamente questionadas e, além do que, é preciso que se evite que o entusiasmo de assistir a esses filmes de autores tão especiais provoque um deslumbramento que não parta dos filmes em si, mas da simples assinatura do nome deles nos créditos de direção. Mas são todos eles parte de um cinema com maior ou menor grau de selvagerias, um cinema ainda não domesticado, e sempre existindo em torno da necessidade de uma expressão concreta, sem subterfúgios, frontal, direta e sem firulas.

São todos eles filmes B, algo que nos parece tão distante e pelo qual o grande público já não nutre grande interesse. Filmes B já não cabem mais na tela de um cinema com plateias viciadas nos multiplex ou IMAX, e que descartam como trash um outro legítimo representante do filme B que foi Piranha 3D (2010), que a despeito de duas ou três cenas patéticas constituía uma interessantíssima releitura de alguns conceitos do cinema exploitation (como foi Machete, de Roberto Rodriguez), abraçando justamente o que, de acordo com o bom gosto institucionalizado da visão de cinema do público contemporâneo, deveria se evitar por se considerado deficiências de um filme, quando na verdade é a razão de ser em qualquer exploitation. Daí não espanta que a maioria dos blockbusters assimile uma ou outra ideia dos filmes B apenas como ponto de partida para fazer valer a sua grandiloquência, quase sempre preocupados que algo grande esteja por ocorrer ou já acontecendo. Carpenter, Dante e Romero são cineastas que lidam com gêneros, e não com filmes-eventos que sejam por si só grandes acontecimentos. Dessa “despretensão” (que nada mais é que uma pretensão com finalidades distintas) surge uma incompreensão ou indiferença, que leva espectadores a equívocos como o de reduzir o recente trabalho de Carpenter como “telefilme” (o que parece a sina de todo filme B contemporâneo que se preza, o que justifica a existência de uma série como Masters of Horror, lançada há poucos anos). Vendo The Ward em algum momento é possível lembrar de Arraste-me para o Inferno, de Sam Raimi (este sim um filme domesticado que dilui todo um gênero para um público de shopping center que dificilmente perderia seu tempo assistindo a um autêntico filme B [como The Ward]): conceitualmente, ambos parecem versões esticadas de um episódio de série de horror de TV, porém o de Carpenter é superior (e mais bem pensado que o de Raimi), esculpindo visões do inferno no seu passeio ao horror de um hospital psiquiátrico e lidando muito bem com espaços claustrofóbicos típicos de algumas de suas melhores obras (O Enigma de Outro Mundo, Príncipe das Sombras, Fantasmas de Marte, entre outros).

Quando soube que o seu Piranha original, dos anos setenta, estava sendo refilmado em 3-D, o velho Joe Dante decidiu também experimentar com a tecnologia nesse formato (os novos projetos de Dario Argento e do próprio George A. Romero também trilharão esse caminho). The Hole é um raro filme de fantasia contemporâneo verdadeiramente imbuído de um espírito de curiosidade e aventura, desde Dane (Chris Massoglia) espiando a sua nova vizinha (Haley Bennett) na abertura (ou as tentativas de aproximação) até os percalços para resolver os conflitos surgidos com a descoberta do misterioso buraco no porão na casa de subúrbio para onde os protagonistas se mudam. O terror no cotidiano, o perigo que ronda na vizinhança, brinquedos como figuras ameaçadoras, todo o cinema de Joe Dante condensado na história dos dois irmãos que vão ao inferno e retornam para superar seus temores pessoais. Um dos poucos filmes recentes a de fato constituir uma fábula, não com lição, mas um sentido moral: a de que os medos e preocupações que alimentamos nos encarceram em grades que erguemos ao nosso redor. The Hole é a materialização desse pavor, dos fantasmas que residem tão somente em nossas mentes (e de onde se libertam e criam vida), seja o trauma decorrente da ausência — ou ameaça — da figura paterna, ou simplesmente o horror ocasionado pelo desconhecido.

Vale lembrar que os três últimos filmes de Dario Argento, mesmo contando com elencos encabeçados por atores de prestigio entre o público, também tiveram no Brasil, onde foram lançados exclusivamente em DVD, o mesmo destino de A Ilha dos Mortos, The Hole e Aterrorizada. São todos trabalhos de autores que cultivam o cinema fantástico, não o do show de técnica e de efeitos especiais (que são utilizados minimamente, não por insuficiência, mas o necessário para dar conta das intenções dos seus autores). Suas estéticas são as decorrentes dos filmes de baixo orçamento, e tampouco aspiram fazer um filme bem feitinho, ou expor uma suposta excelência do roteiro e das interpretações, como se estas virtudes por si só garantissem um produto de qualidade, quando muitas vezes resultam mesmo é em filmes quadradinhos e não raro esquemáticos, e que por si sós geralmente não levam a lugar nenhum. Tudo é feito em um tom pequeno e discreto, numa oposição ao modelo cada vez mais reinante nos blockbusters. Podem até ser considerados trabalhos de final de carreira, porém mesmo que lhes falte algo para incluí-los entre as grandes obras de seus respectivos cineastas, há muito a se aproveitar nesses filmes.

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O Garoto da Bicicleta (Jean-Pierre e Luc Dardenne, 2011)

O que mais me interessa em O garoto da bicicleta é sua clareza. Este último (até agora) longa dos irmãos Dardennes é extremamente transparente nas intenções e na abordagem. Não varre a sujeira para debaixo do tapete e não se omite às fraquezas das personagens, às torturas cotidianas que implicam certa exposição dos caracteres das pessoas — não tipos, o que seria frustrante —, naquela maneira de nos fazer ficar com raiva dos impulsos que elas tomam e depois, consternados, percebermos: elas agiram de modo totalmente natural. O contraponto (ou culpa) da eficácia seria uma moralidade forçada, então, pois outras decisões talvez descambassem não para a encenação, mas para a imitação, a idealização hipócrita.

Não que o naturalismo seja um pressuposto para as coisas funcionarem: longe disso, aliás, pois o naturalismo de O garoto da bicicleta é meio estilizado de acordo com seus propósitos — o que serve bem a seu desenvolvimento, aliás. Um exemplo: o jovem traficante, com aquele charme de Huckleberry Finn, um pária desgarrado das convenções sociais, à margem da respeitabilidade burguesa, não será esse mesmo jovem um exemplo desse naturalismo “forçado” que, ao mesmo tempo em que expõe sua crueldade (o rapaz é um aliciador), demonstra seu lado humano (o rapaz cuida dos avós idosos)? Fugindo da caricatura, os Dardennes encontram o que há de mais humano e caloroso.

Então seguimos o pequeno protagonista (um Calvin sem Hobbes/Haroldo) em sua desolação (porque a infância também tem suas agruras), rumo ao completo contrário do que esperava: no lugar do pai sumido, o amor; no lugar do conflito, a paz; no lugar da amizade de barro, o conforto da segurança. Não é um moralismo de fachada, um dedo inquisidor a apontar o bom caminho. Aqui não há essas representações dogmáticas de oposições maldade versus bondade, ou moralidade versus libertinagem. É uma história simples sobre um garoto em descompasso com sua vida, e nisso está a nobreza da jornada.

Não faltou quem incompreendesse os conflitos do menino e sua rebeldia superficial, e no entanto esse é o grande trunfo de O garoto da bicicleta: com seu rosto de indefiníveis reações, fechado, mudo como um monge, a criança possui toda a verdade do mundo para desacreditar qualquer crítica nesse sentido; é fácil de entender seu desconforto e suas dores, compadecer-se de seus problemas. Seus gestos de violência e egoísmos não são condenáveis, errado está quem os demoniza. Sacralizar uma imagem absurda da infância é não querer reconhecer as falhas de um mundo onde existe o abandono, a miséria e a negligência. Se os Dardennes expõem essas chagas, não se pode, em absoluto, acusá-los de “vazios”, a crítica mais comum a seu cinema.

Impressionantes sequências de ação (sim, ação, como correr num bosque ou fugir de um internato) e embates corporais de uma fluidez tão rítmica quanto sagaz (e nem disso o garoto foi poupado) tornam o relato ainda mais forte e vivo, mais pulsante e doloroso, num torpor quase de delírio, de correr sem fôlego, de se extenuar e chegar ao ápice do esgotamento físico e nervoso. Nessa sucessão de imagens e planos claros, com uma fotografia (luz natural?) que não esconde o sofrimento ou a redenção, os Dardennes constroem meticulosamente um mosaico de louvável e fresca beleza, a beleza que comporta a tristeza (o chagrin dos franceses, apesar de os irmãos serem belgas), o risco, o erro e a estupefação, o remorso mais profundo e a melancolia mais pura.

Filme que respeita a infância e dá a ela a dimensão devida do dramático — e eventualmente do trágico —, O garoto da bicicleta, com ciclos que alternam furor e calma, é como a respiração inquieta de seu personagem-título, na angústia de suas inquietações.

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Monsieur Verdoux (Charles Chaplin, 1947)

Monsieur Verdoux, todos sabem, foi um caso de problemas sérios para Charles Chaplin. Sua segunda pátria (os Estados Unidos) nunca viu com simpatia seus ideais sociais, jogados na laia comum da subversão comunista, da ameaça vermelha. São rótulos por si só já desmoralizantes a seus empregadores, mas é um capítulo da história macarthista que não pode evidentemente ser apagado dos quadros da História dos filmes americanos.

Aqui vemos Chaplin arriscando-se de uma maneira bastante notável; após O grande ditador, que assegura um novo bloco temático em sua obra — a disputa agora é entre Homem e Modernidade, e os novos tempos afinal se insurgem nessas manifestações de política e controle das massas —, novamente o artista resolve manifestar seu apreço pela liberdade e pela compreensão entre as pessoas, mas deslocando o eixo de sua crítica: não se trata mais de um fenômeno “isolado” (a Alemanha em guerra, grosso modo), o fascismo que ainda pode ser podado e as técnicas de manipulação de propaganda etc. Agora o embate é mais perigoso, pois menos transparentemente percebido: os problemas são de ordem moral, e o dedo é apontado indistintamente a todos.

Chaplin é hipócrita? Certamente não. Sua decisão de se pôr a prova como um controverso Barba Azul moderno é inclusive uma prova dessa coragem, de dar a cara a tapa e o nome a ofensas. O virtualmente homem mais famoso do mundo (na década de quarenta, possivelmente rivalizado apenas por gente como Walt Disney) despe-se de sua confortável roupagem de vagabundo e tece considerações sobre os caracteres de seus espectadores, de sua sociedade, de seu mundo. Dá a sua contribuição ao debate, e, crime dos crimes, é apedrejado por esse esforço de consciência. Seu filme fracassa com o público, e a crítica acovardada não o ajuda, antes o repreende e censura. Por que a coisa chegou nesse ponto?

Incomoda quando Chaplin materializa o escapismo a que sua audiência se acostumara. Nesse voo por novos ares, faz mal dar um salto sem checar o equipamento de segurança, e Chaplin esbarra no próprio otimismo, minimizando a violência que seu filme provocante fatalmente despertaria. Ainda que não seja um catequizador, a impor com a truculência da acusação uma ordem “dogmática” ou “adequada”, não se pode ignorar que Monsieur Verdoux é um filme de denúncia, de postura hostil frente às incoerências humanas no lidar com os reflexos de sua vida cotidiana, a saber: as leis, os códigos de comportamento, as amarras familiares, as vidas sentimentais, a imprensa e a informação, a cultura, a automatização forçada (que Chaplin tão bem desenha em Tempos modernos), que na época da grande crise de 1929 significavam uma necessária mudança de rumo, de parâmetro. Em Heróis esquecidos, de Raoul Walsh, não é um dos tantos Messieurs Verdoux que, na pele de James Cagney, se volta ao gangsterismo? Pois o ex-banqueiro feito por Chaplin aqui também não é apenas um vilão dos costumes, mas uma vítima da burocratização de uma mentalidade que oferece riscos sem certezas, de estruturas frágeis e imprecisas. Então Verdoux pode ser também visto como um anti-herói, o inconformismo personificado, e tanto faz se na metáfora delirante de Chaplin (influenciado por Welles, influenciado por Landru) o homicídio é um meio torpe de aproximar a rebeldia de seu destino, ácida constatação de uma ordem reacionária que incomoda tanto mais porque é verdadeira — e, pior, retratada de maneira honesta, sem pedantismo didático ou falsa condescendência.

Aí temos que Monsieur Verdoux é um triunfo tanto cinematográfico quanto pessoal de Charles Chaplin, e um filme intenso na medida que revela o real por trás da encenação, porém sem se igualar aos perseguidores de Chaplin/Verdoux; portanto, sem condenar os erros perpetrados por um sistema defeituoso que justamente permite as falhas da imperfeição humana.

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A Vida Íntima de uma Mulher (Nicholas Ray, 1949)

Um corpo nos filmes de Nicholas Ray é aquele que é narrado (pela luz, pelos movimentos que descreve, pelo aprisionamento ou não à história) ou é aquele que tenta se libertar da narrativa (quebrá-la, devolvê-la aos pedaços que são as folhas do roteiro — dois personagens que assim operam: Jim Stark e Ed Avery) por sua vez narrando coisa diversa, aquilo que pensa ou que lhe parece uma verdade suprema (dos fatos, da vida). A Vida Íntima de uma Mulher, segundo longa-metragem de Nicholas Ray, possui um corpo no seu centro, que apenas é narrado, mas que faz um outro narrar. Um corpo supostamente vazio, a princípio. Ou melhor, preenchido por uma personalidade julgada nula pelos outros corpos-personagens que a circundam e, em certo ponto (ou porque não, no ponto central) a manipulam: o Luke Jordan de Melvyn Douglas — o que narrará o que acredita ser a verdade; a Marian Washburn de Maureen O’Hara — o corpo que será libertado por esta verdade. “Nova educação”, simplesmente, covardemente, até. Este corpo preenchido com uma personalidade que não é a mais indicada (no sentido do intelecto ser desenvolvido, claro. Por isso, ele, este corpo, é o indicado perfeito: por não se ter desenvolvido intelectualmente, só corporalmente) às pretensões de Luke e Marian é o de Susan Caldwell, conhecida por Estrellita (Gloria Grahame), o poço, desta vez sim, de um conhecimento pouco desenvolvido, de uma facilidade de condução pelos outros, corpo onde a arte insistiu em habitar. O corpo de Susan, à revelia do “ser-Susan”, é um corpo que canta e é também um corpo bonito, da sexualidade velada da Hollywood do final dos anos 40. É o grande problema que Marian haverá de solucionar: o corpo fala, e Susan, sua personalidade, tem que ser a da outra, tem que emprestar o seu corpo a um modus operandi social, de escalada social. Grande parte do filme não seria, em palavras gerais, uma tentativa cruel de preencher o corpo do outro com o que se supõe o melhor de si? Talvez. O que se sabe, entretanto, e saltando aos olhos, é que o “corpo-Susan” é um corpo a ser educado. Não é de se admirar, portanto, que o corpo ferido (e jamais mostrado dessa forma durante todo o filme — perto do final vemos Susan se recuperando em seu quarto de hospital e nada mais do que isso) de Susan seja o centro gravitacional (em Ray, sempre se tem um personagem-gravidade) e irônico que força à narrativa uma série de flashbacks para salvar um outro corpo ainda mais doente: o de Marian.

Puro processo de transferência. Em A Vida Íntima de uma Mulher, Nicholas Ray consegue antever este processo de passagem de duas formas (Susan e Marian) a uma só forma perfeita que é a conjugação única das duas anteriores, apenas na enunciada fusão presente no começo do filme, aquela em que a imagem de Susan cantando no estúdio de rádio é sobreposta, bem rapidamente, à de Marian em casa, ouvindo-a no seu aparelho radiofônico. Não há nesta cena, claro, uma distinção do som. Marian ouve Susan como se ela estivesse cantando ali dentro da sala, ou como se ela mesma estivesse cantando. Não é uma supressão dos dois espaços (estúdio de rádio e sala de estar), mas um grande amálgama. Amálgama este que anuncia o que sugere um suposto simples jogo de campo/contracampo no momento seguinte, ainda na mesma cena, quando Susan chega em casa e discute com Marian na escada que dá para o primeiro andar. Algo no campo/contracampo funciona anomalamente, porque a cada corte vê-se o rosto que “responde” como se fosse um rosto que pergunta. Já aí, a primeira conclusão, a coisa que se destaca na relação de dependência das duas mulheres. Isso porque este jogo de planos (e a interpretação de O’Hara e Grahame) é quem ajuda a construir uma densidade a mais durante o diálogo exasperado: vemos duas criaturas intrincadamente ligadas, algo parasiticamente. Deixa-se de lado a simples parasitologia do “sobreviver às custas do outro” para se chegar à impossibilidade visível de ser sem o outro (numa cena, Marian se defende do crime ao dizer que seria um suicídio atirar em Susan). Marian se transfere para Susan (e é interessante, outra vez, a relação ambígua entre o trio central, como será em outro filme de Ray, Paixão de Bravo) como quem muda de corpo. Entretanto, acima de qualquer esquema de produção, Nicholas Ray dá a si mesmo a ambiguidade. Ambiguidade de estilos, sobretudo porque A Vida Íntima de uma Mulher é um produto “de estúdio” da RKO (Paixão de Bravo, mesmo sendo da mesma RKO, parece ser um filme sem estúdio, como um filho bastardo rejeitado e sem casa) que recorre à constante compreensão do que levou ao crime (o tiro que atingiu Susan), mas também está como uma experiência “a mais” de Nicholas Ray, onde fica muito clara aquela insistência pesada e dupla de dois olhares para os personagens: o da RKO, exigindo um filme “certinho” e o de Ray, algo como o da relação futura de Mario Bava com os roteiros que filmava, mas sem parecer que Ray “se aproveita da máquina”, como Bava, brava e arriscadamente, o fazia.

Este quesito de “dois olhares” é questão velha, clássica, porque o realizador dos grandes estúdios, à época de Nicholas Ray, usaria de perspicácia para contrapor o seu olhar ao menos subliminarmente. Se para a RKO e meio-mundo de pessoas “de cinema” interessava, talvez, a verdade e o confronto final de observações sobre os fatos (sempre, a coisa eterna: os finais frágeis de Nicholas Ray, filmados como algo independente do todo de que fazem parte), para Ray interessa um aprofundamento maior nos jogos amálgamos dos personagens. A cena mais emblemática a este respeito em A Vida Íntima de uma Mulher é uma pequena, quase que “de passagem” tamanha a pequena forma não tão frontal que Ray dá a ela em sua importância de informar a proximidade de um indício da revelação final que o roteiro pede: aquela em que Luke está com Lee Crenshaw (Bill Willams) nas caldeiras do hospital aparentemente depois de um longo confronto físico (os rostos dos dois estão sujos, como se tivessem brigado por um tempo) e há uma pequena confusão na conversa, quando os nomes de Susan e Marian passam a ser confundidos em ações realizadas por elas. Trata-se de uma pequena cena muito importante e significativa para se descobrir o que de fato aconteceu (quem disparou o tiro que quase acabou com a vida de Susan, logo no começo do filme) e para o enunciado mais importante, o jogo de Marian ao se (re)construir em Susan.

Se o começo de A Vida Íntima de uma Mulher (e também o deste texto) já insinuava para em seguida expor uma inocente (se partirmos do olhar de Marian) “tomada de corpo”, fica bastante visível (porque em Nicholas Ray o que não é visível é apenas o que o “the end” oculta — mas isso, claro, Ray oferece a uma possibilidade imagética da imaginação) que há também uma ocultação deste corpo. Mas não só. Porque a narrativa de A Vida Íntima de uma Mulher serve, primordialmente, para salvar um corpo do obscurantismo do cárcere e também ao embate da verdade dos personagens. Susan e Marian concordam a respeito da autoria do disparo sem nem mesmo conversarem sobre isso (as duas mal se veem durante o tempo presente do filme, só nos flashbacks) entre si, já que depois do tiro, cada corpo terá o seu tempo particular, sua separação do outro e, mais profundamente, a sua suspensão e ocultamento da narrativa. Se é uma ironia que Susan, a inocente, a dona de um corpo a ser preenchido por outras idéias, salve Marian, é principalmente não porque ela lhe dê uma nova liberdade ou, sobretudo, um novo corpo (Marian sofre de uma doença). A proeza que vemos no velho final falso de Ray, proeza de Susan, é a de fazer um verdadeiro contra-ataque a Marian, dando-lhe um novo modo de pensar a sua nova vida e as coisas. E não era exatamente essa a vontade e o objetivo de Marian contra o corpo supostamente “não-habitado” de Susan? Pura ironia. Puro cinema.

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O Crime Não Compensa (Nicholas Ray, 1949)

O logo da Columbia antes da abertura de O Crime Não Compensa (1949), de Nicholas Ray, serve para esconder uma grande falsidade. O primeiro nome que aparece depois do logo é o de Humphrey Bogart e a falsidade é bem simples: ao eleger o nome do ator antes do título (aliás, o título original, o “bata em qualquer porta”, é proferido por Bogart já perto do final num discurso vindo de dentro, propositadamente muito penetrante e, por isso mesmo, algo engessado, banal e belo), talvez se pense ser ele a figura central de um drama “de tribunal” que, como em tantos outros filmes do gênero, projeta-se para além do júri, da corte e da própria sala do julgamento. Não é. Bogart é, como o será Melvyn Douglas em A Vida Íntima de uma Mulher, aquele que acionará a narrativa principal do filme, que a puxará para trás. Nicholas Ray era um cineasta querido pelos nomes mais famosos da Nouvelle Vague francesa (Truffaut, Godard…), que, fincando um olhar mais cuidadoso sobre sua obra, certamente encontraram este “poder” do personagem ao controlar um corpo narrativo a qualquer momento do filme. Em Godard isto se radicalizaria (ou melhor: tornar-se-ia talvez a questão fundamental ao menos na sua filmografia dos anos 60) ao ponto da digressão. Em O Crime Não Compensa, Ray dirige também uma digressão, porém calculada, ao gosto de Hollywood (os filmes de Ray sempre são interessantes justamente no ponto em que conseguem sublevar esta influência com uma naturalidade quase invisível). A falsidade do nome de Bogart acima do título, em letras garrafais como o de Robert Mitchum em Paixão de Bravo, tem muito a ver com o cálculo da falsidade que, em se tratando de Ray e de O Crime Não Compensa, é o que verdadeiramente importa. Principalmente porque Bogart será uma espécie de pai (ou de “mãe”, como ele mesmo diz numa cena) para o verdadeiro protagonista, o pequeno delinquente Nick Romano (John Derek). Um pai para acionar a digressão calculada. Ou seja, o flashback para resgatar uma vida da sujeira que lhe é cara.

Mais uma vez, o falso: um ano depois de O Crime Não Compensa, Alfred Hitchcock faria Pavor nos Bastidores, com Marlene Dietrich no elenco. O filme é famoso pelo uso de um flashback falso (e também pela câmera que “atravessa” uma porta) que, em primeira análise, é mais uma das crueldades do diretor britânico ao potencializar aquilo que usualmente é a reconstrução da verdade de um real (o flashback) com a enorme construção de uma mentira (o flashback como recurso imagético da construção de um falso álibi). No filme de Nicholas Ray não temos a construção do falso, mas sim o percorrer de um caminho correto, que se situa, muito bem, numa retórica, numa função cada vez mais explícita: salvar alguém. Salvar duas vezes. É que Bogart, ao acionar pelo menos duas grandes voltas no tempo dentro de O Crime Não Compensa, além de ceder o seu lugar de ator-protagonista (o grande contraste com a garrafa da letra nos créditos) a Nick Romano, ao mesmo tempo ele o retoma (o salva) pela sua “bondade” que está mais ligada à sua vontade de agradar a namorada. É nisto que se constrói mais um final “apressado” aos filmes de Ray. Se o flashback de Hitchcock destruía a própria pureza do recurso, o de Ray é o recurso em vão. Não no sentido da gratuidade, mas de sua ineficácia ao se dirigir justamente ao júri, como peça de convencimento — a grande pérola de Ray neste filme: desfuncionalizar o flashback, ao menos como peça de convencimento dentro do filme. Mas aí, é uma desconstrução no último minuto. De fato, a defesa de Bogart ao seu protegido nada mais é do que a de sua posição de narrador-personagem dentro da trama. O esquema, sempre utilizado pelo advogado de cinema, é sempre este: dentro do filme construir uma narrativa (poder do verbo, poder da imagem) para convencer o veredito ao favorável, porque não poderia haver, no centro de tudo, um culpado como peça fundamental do nascimento de uma narrativa dentro de outra narrativa. É o esquema que Hitchcock quebra em Pavor nos Bastidores e é o que Nicholas Ray destrói, mais cruelmente, em O Crime Não Compensa, que é, como as obras de Fuller, um pequeno grande filme.

É uma questão, outra vez, simples, de campo e contracampo godardiano (aquele que encontra no oposto a resposta da pergunta do outro, um diferente). O mais básico é que a acusação no grande julgamento que acontece no filme é personificada por um homem notadamente “feio”. Se o apelido de Nick Romano (um brigão e também um frágil, como o próprio Nick Ray) é Pretty Face é para acentuar o contracampo presente no rosto da acusação: uma cicatriz. Em seguida, vemos que não se pode chamar a derrota do flashback de uma incursão do “anticinema”, porque a acusação recorre, também, ao uso e ao acionamento de imagens — as mesmas imagens que Bogart evoca ao júri e aos espectadores. Em todo caso, como em A Vida Íntima de uma Mulher há um personagem (Susan Caldwell; aqui, ele é Nick Romano) que é capaz de fazer os outros rememorarem e mexerem com as imagens nas quais participou (a sua vida: os assaltos, o trágico fim do casamento etc.). É através da recordação que temos o momento decisivo de O Crime Não Compensa, aquele em que Romano finalmente se pronuncia. E este pronunciamento é sobretudo pela ação das imagens que lhe incutem e mexem na sua cabeça — pela função des-narrativa que o acusador lhe dá e Bogart não. Bem por isso, sabemos, Bogart consegue transformar e reverter, ainda dentro da tradição, aqueles finais apressados em concluir presentes nos filmes de Nicholas Ray. Ele instaura um novo modo de pressa — que talvez em Juventude Transviada encontre o ápice. Sim, porque O Crime Não Compensa está a todo momento nos fazendo acreditar na força de convencimento do flashback, para, em seguida, usar este mesmo recurso contra todos (personagens e espectadores).

O falso, mais uma vez, está presente. Não no flashback falso, nem na falsidade, nem na falsidade dentro do flashback. É, antes, ao flashback ineficaz que daremos mais atenção e adoração e é esse o mais incisivo golpe que Nicholas Ray consegue desferir no filme: fingir que esquece o contracampo para fazê-lo retornar com uma força violenta e devastadora (quando a câmera filma Bogart e Derek do alto, é quando vemos o poder do contracampo escondido até então: e ele é ameaçador, porque está bem no alto, na altura da câmera). Quando se diz que Bogart, através do uso do flashback, consegue inserir dentro da tradição dos finais de Ray uma outra perspectiva amarga é porque aquilo que é amargo, por exemplo em Paixão de Bravo, é transformado em uma abertura para um falso final feliz. Aqui não. Em O Crime Não Compensa a porta que se abre é cheia de uma luz estourada e falsa, ilusória (seria o paraíso para uma vida sofrida que vimos durante todo o filme?), que consegue ultrapassar ainda mais a pressa do the end prematuro (como aquele de O Casamento de Maria Braun), para acabar com a possibilidade feliz e instaurar a imobilidade. Luz cruel do estatuto do flashback falido, claro.

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Inquietos (Gus Van Sant, 2011)

Falar sobre Inquietos é antes de tudo falar sobre mais um filme de Gus Van Sant. Se muitos diretores contemporâneos ainda carregam consigo a alcunha da autoria — Terrence Malick, Pedro Almodóvar, Lars Von Trier, para ficarmos nos exemplos óbvios dos que lançaram filmes este ano —, nenhum deles carrega o estigma de forma tão dúbia quanto Van Sant. Fãs e detratores parecem distinguir facilmente entre os projetos mais autorais do diretor (Elefante, Last Days, Paranoid Park) e o cinema sob encomenda (Encontrando Forester, Gênio Indomável, Milk). Ainda que nem sempre essa distinção signifique necessariamente uma superioridade de um Van Sant sobre o outro.

Nessa divisão, Inquietos pertenceria ao segundo grupo — dos filmes de Van Sant com roteiros de outras pessoas, em que o diretor empresta seu modo de filmar e construir uma mise en scène à realização. Vemos, assim, sua forma de acompanhar os personagens muito proximamente, os tons do ambiente que parecem contaminar a fotografia do filme e uma relação imprescindível com a trilha sonora. Inquietos traz inclusive um dos temas caros ao diretor, essa espécie de angústia da juventude, a inconformidade dos corpos à necessidade de serem docilizados pela sociedade, pela vida adulta.

No filme, Enoch é um jovem atormentado pela repentina morte dos pais em um acidente de carro. O seu passatempo, além de jogar batalha naval com seu amigo imaginário, é o de frequentar funerais de pessoas que não conhece. É exatamente em um desses que Enoch conhece Annabel, uma doente terminal de câncer. Aos poucos ambos desenvolvem uma paixão fofamente mórbida.

Assim, com um pouco mais do que 15 minutos de filme, o roteiro nos instala em uma armadilha dramática: sabe-se de saída o futuro do romance e dos personagens e, ainda assim, empatiza-se com o encontro improvável. Da trilha sonora indie bonitinha aos figurinos com o ar vintage descolado, passando pelos personagens disfuncionais porém adoráveis, tudo se encaixa perfeitamente — irritantemente, perfeitamente. Quase não há brechas para respiros ou ambiguidades, cada peculiaridade dos personagens precisa ser didaticamente explicada. Não é possível que os jovens se apaixonem sem o clipe clichê de música romântica e imagens de momentos felizes passados juntos. Não é dado ao espectador a menor dúvida, é preciso que Enoch diga com todas as palavras que sua maior frustração é a de não ter podido se despedir dos pais em seu funeral, pois o garoto encontrava-se em coma.

Em suma, não há inquietude em Inquietos, apenas certezas e caminhos bem definidos — mesmo que pouco ortodoxos ou convencionais. Não há justamente lugar para o cinema de Van Sant — ou para o que há de melhor no cinema de Van Sant. A superfície da imagem do diretor é contradita pela psicologização adolescente da narrativa. A empatia da forma como Van Sant filma seus personagens é esmagada pela esquematização do roteiro.

A exceção mágica do filme fica nas costas de Hiroshi — o fantasma (ou seria um amigo imaginário?) de Enoch, que foi um piloto kamikaze da II Guerra Mundial. A princípio, a relação com o personagem parece não superar a obviedade funcional de garoto deprimido com problemas de sociabilidade que inventa para si um amigo inseparável. Aos poucos, embora nunca de forma definitiva, essa relação torna-se mais incerta. Diante de um roteiro tão autoexplicativo, a presença (e as ausências também) de Hiroshi estremece os padrões estabelecidos. Por alguns segundos, não sabemos ao certo o que vimos ou como aquela peça se encaixa em um quebra-cabeça tão fechado. Mas apenas por alguns segundos.

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George Harrison – Living in the Material World (Martin Scorsese, 2011)

Em paralelo aos seus trabalhos de ficção, Martin Scorsese vem dando continuidade há longo tempo a uma interessante série de documentários, sejam em suas viagens cinematográficas pela Hollywood do passado ou pela Itália, ou em No Direction Home, sobre Bob Dylan, isso para não falarmos no registro que fez de uma das turnês do Rolling Stones que também lançou em filme. Uma atividade que constitui um recorte cultural bastante rico do mundo no pós-guerra, que o diretor ítalo-americano, bom stoniano que é, vale lembrar, dedica agora aos Beatles, mas não centrado em sua parceria mais famosa (a de Lennon-McCartney), e sim na figura também mitificada de outro de seus integrantes, o personagem-título de George Harrison – Living in the Material World.

Felizmente, Scorsese em nenhum momento arrisca se lançar no discurso de Beatle negligenciado ou esquecido, o que não corresponderia a realidade. Em um dos depoimentos do filme, Paul McCartney ressalta que não existia melhor ou pior no conjunto, e que os integrantes formavam os quatro cantos de um quadrado em qual todas as partes eram essenciais. A beatlemania, por sinal, ocupa um grande espaço da Parte 1, numa primorosa reconstituição das origens e trajetória do grupo. Até Harrison, aos poucos, ter sua individualidade se sobressaindo no filme de Scorsese. Poucos anos separam momentos como o que Paul relata que uma das canções que ele compusera numa manhã George a melhorou muito (tocando-a de um jeito diferente do que fora originalmente pensando) e de um outro em que Georgesugeriu riffs de guitarra para “Hey, Jude” que Paul recusou, invocando que a música era dele, e cada um decidia a respeito de suas próprias composições. Todos haviam evoluído espantosamente naquele espaço de poucos anos, e a banda se tornara imensa demais e paradoxalmente pequena para conter as personalidades de seus quatro integrantes.

A evolução de Harrison coincide com a sua descoberta da cultura místico-indiana, que o influenciaram espiritual e artisticamente. Gurus e mantras passam a se tornar recorrentes no documentário (infelizmente Scorsese sequer menciona o conhecido episódio em que um dos lideres espirituais amigos de George teria dado em cima de Mia Farrow, que acompanhava o grupo). Era difícil ceder um espaço mais amplo nas faixas dos discos de uma banda que possuía dois dos melhores compositores de todos os tempos (Paul e John). Num primeiro momento, a influência indiana foi responsável por uma fase esquisita de George, que lançou um irregular disco solo, Wonderwall (cuja existência os fãs do cantor preferem simplesmente ignorar) e compôs as possivelmente piores músicas dos Beatles: “The Inner Light” e “Within’ You Without You” (que está justamente no Sgt. Peppers). Assimilada a influência, como sentido espiritual e melódico, mas incorporada ao estilo ocidental de canções pops nas quais George e os Beatles eram mestres (sem o peso de cítaras e outros instrumentos indianos), o biografado atingiu o seu amadurecimento como compositor que logo chegaria a sua plenitude.

A Parte 2 começa não com a dissolução dos Beatles, mas com o surgimento de “While My Guitar Gently Weeps” (tocada com a participação de Eric Clapton), quando George passa a compor em pé de igualdade próxima da de seus colegas de banda. Com a carreira solo, o documentário confere destaque ao ótimo All Things Must Pass, o disco triplo do compositor lançado em 1970, e ao Concerto de Bangladesh que ele organizou no ano seguinte, porém Scorsese dali em diante prefere se concentrar mais no homem e menos no artista. George substitui as drogas pela meditação (chegando a perder sua esposa para o amigo Eric Clapton), Ravi Shankar e Maharishi se tornam seus parceiros mais próximos, cultiva a paixão pelas pistas de automobilismo, a companhia dos krishnas, além de sua carreira de produtor de cinema (especialmente dos trabalhos da turma do Monty Python), que ocupa um longo segmento perto do final. Mas acima de tudo o misticismo e obsessões espirituais do cantor (que numa entrevista chega a chamar os descrentes de ignorante), numa tentativa de Scorsese de compreender a persona particular de George. Alguns discos poderiam ter sido um pouco abordados (como o de 1979, talvez o melhor dele), porém Scorsese prefere pular logo para o Traveling Wilburys, banda que formou com outras celebridades no final dos anos oitenta (o que infelizmente parece coincidir com a atitude de vários dos ditos fãs de Harrison que não ouvem mais que o All Things Must Pass). Nem mesmo são mencionados no documentário os problemas com a autoria do gospel “My Sweet Lord” (seu maior hit na carreira solo), que lhe custou trinta anos de processo por plágio até relançar a canção numa versão descaracterizada em 2000.

Scorsese prefere um recorte na figura simpática do sujeito que pregava um desapego ao “mundo material”, através de um volumoso material de filmagens caseiras ou de suas turnês. Acaba por impressionar o depoimento de sua viúva relatando a luta de ambos contra um jovem maluco que invadira a residência do casal para assassinar o compositor, e que ressoa a trágica morte de John Lennon mostrada anteriormente (ao som de uma bela canção de George dedicada ao amigo morto). Mesmo tendo sobrevivido ao ataque, George Harrison estava com os dias contados, vítima de um câncer que o liquidaria. O seu desaparecimento em Living in the Material World não nos deprime: levado pela morte é como se ele apenas encontrasse a paz espiritual que tanto procurava, com Scorsese fechando o documentário com um plano que aparecera na abertura: Harrison surgindo do nada por entre as tulipas de um canteiro de flores no campo, flertando com a câmera durante uma filmagem caseira. É como um atestado de que a sua presença estará sempre por perto, ainda que em merecido descanso das agruras e emoções do mundo material.

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O Enigma de Outro Mundo (Matthijs van Heijningen Jr., 2011)

A princípio, O Enigma de Outro Mundo de 2011 não é um remake do filme de John Carpenter, e sim uma prequel, centrada nos acontecimentos da base norueguesa e que se conecta ao início do original, em que os dois sobreviventes, perseguindo um cão que se revela mais uma réplica criada pelo monstro alienígena que desenterraram, se encontram com o time de Kurt Russell. Partindo dessa abordagem, o que mais se destaca é o aspecto lúdico que Matthijs van Heijningen dá ao filme: trata-se de um jogo entre ele e os fãs da obra original, em que as peças vão sendo movidas pelo tabuleiro e posicionadas até que tudo esteja no lugar para o encaixe entre as duas histórias; assim, temos o encontro da nave, a retirada do bloco de gelo onde se encontra a criatura, uma longa sequência que serve para dar origem ao cadáver queimado grotesco que os americanos levam para a própria base, pequenas inserções aqui e ali que preparam o cenário da visita de MacReady ao local destruído.

Nesse sentido, Van Heijningen acaba realizando algo próximo ao que Martin Campbell fez em Cassino Royale: ambos partem da premissa de um status quo partilhado com o público e encenam a sua construção a partir de uma situação significativamente diferente, ainda que apenas na aparência. Isso, porém, já aponta uma das fraquezas do filme de Van Heijningen: se a informação compartilhada de Campbell é um personagem de status já mitológico que ele irá lapidar, através dos acontecimentos, tendo como matéria-prima um James Bond muito distante daquele com que estamos acostumados, no caso do filme de Carpenter não há nada nesse sentido, e o jogo proposto começa a perder a graça quando fica evidente que não se pode esperar fazer nada além de meramente preparar o cenário que os personagens da “continuação” visitam — a lista ali em cima não é casual. Fora isso, o novo O Enigma de Outro Mundo parece um filme feito apenas para preencher os 100 minutos antes das cenas dos créditos finais que conduzem ao original, e nesses 100 minutos não há nada que já não tivesse ficado evidente a partir das poucas cenas que Carpenter dedicou aos noruegueses; Van Heijningen não tem dimensões a acrescentar, e sua prequel acaba sendo pouco mais que uma brincadeira de fã.

Mas, ao mesmo tempo, e por mais que sob muitos aspectos não seja, O Enigma de Outro Mundo de 2011 também é um remake do filme original. De certa forma, não é nenhuma surpresa: temos a mesma criatura, a mesma situação de isolamento, no mesmo lugar, com poucas semanas de diferença — é claro que a coisa toda vai se desenrolar de forma semelhante. É um remake genuíno, porém, indo muito além de uma estrutura geral parecida: temos a clássica cena do teste para ver quem está infectado — e crédito às boas ideias: dessa vez, a prova de humanidade está nas obturações, já que o monstro não consegue replicar material inorgânico —, o clímax na nave, a cena em que um personagem finalmente entende o que está acontecendo, e até mesmo o lança-chamas falhando num momento crucial. Sendo um filme claramente feito por um fã do original, também funciona como homenagem, e Van Heijningen se aguenta bem nesse quesito, embora não se livre de fazer diversas concessões ao tipo de cinema comercial de terror praticado hoje em dia — o exemplo maior é que, por mais que haja uma tentativa séria de estabelecer a paranoia e a erosão da confiança do grupo que assombravam a versão de Carpenter, ela logo é sabotada pelo excesso de aparições da criatura, que a todo momento surta e destrói seu disfarce lançando tentáculos para todos os lados, aqui com muito menos paciência e, pelo jeito, ainda menos consciência de qual é, afinal, a vantagem de conseguir criar réplicas quase perfeitas de suas vítimas. E também estranhamente submetida a certos maniqueísmos e que-tais, que a levam a escolher como clone para o clímax justamente o personagem construído como uma espécie de vilão humano do filme, o cientista arrogante, irresponsável etc.

Por um lado, esse tipo de comparação não é dos melhores critérios — é preciso ver o filme pelo que ele é independentemente do de Carpenter —, mas o problema central é que, diferente de um Planeta dos Macacos: A Origem, O Enigma de Outro Mundo de Van Heijningen não assume nunca uma postura com relação a si próprio que não seja uma função do de Carpenter; o filme de Wyatt é tanto uma prequel do de Schaffner quanto de uma eventual continuação que se estabeleça por si mesma, assumindo o original de maneiras indiretas — tendo, por assim dizer, diante de si um horizonte em que o filme de 1968 pode ter sua existência ignorada. O horizonte de Van Hejningen nunca prescinde do original, e cria um elo concreto com O Enigma de Outro Mundo de John Carpenter, mas o situa justamente no entrelaçamento entre um remake que não faz mais que apontar para sua inspiração — é quase uma performance, apresentando o clássico de 1982 para a geração atual —, mas que nunca alcança o mesmo nível, e uma prequel que nunca se afasta do óbvio.

Temos, portanto, um filme que até é, em muitos aspectos, eficiente, mas exatamente no que não se propõe, pois seus méritos terminam ofuscados pela insistência em não deixar que o de Carpenter saia da vista ou da memória. Resta a questão de como uma obra tão dependente de outra se apresenta a um público que não tenha assistido ao original (o filme acabou sendo um fracasso de bilheteria, o que é sintomático, não de uma estética provocativa ou de timing ruim, mas de seu encapsulamento e horizonte referencial mínimo). Poderia ter sido diferente, porque não se deve negar que a ideia e a intenção — um remake que não é bem um remake e ainda por cima tenta levar os espectadores a assistir ao filme que o inspirou — são boas, e o próprio Carpenter já tinha dado, em Assalto à 13ª DP, a lição de como fazer uma refilmagem que não é bem uma refilmagem (e de um filme de um grande cineasta). Não se pode negar também que temos aqui algo acima da média quando se trata de remakes de filmes do diretor, mas isso não quer dizer muita coisa. Nem é suficiente.

 

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Os Monstros (Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti, 2011)

Por Daniel Dalpizzolo

“Quando ouço a sua música me dá vontade de ser livre. Ser livre pra criar”.

Desvincular o diálogo travado pelos amigos à beira-mar do procedimento de realização de Os Monstros é uma tarefa improvável. Embora sejam personagens fictícios, João, Pedro e Joaquim, interpretados por três dos quatro realizadores que assinam o filme, fortalecem ali, mais que laços de amizade, uma necessidade de vínculo artístico e de expressão que diz muito sobre o próprio filme e sua existência. Não por nada a sequência ocupa exatamente o centro da narrativa: se no plano inicial vemos João tocando um instrumento de sopro ruidoso e desafinado praticamente engolido pela escuridão solitária da noite que emoldura seu corpo, ao final vemos esta mesma linha sonora conquistar um sentido ao lado da guitarra não menos ruidosa de Eugênio, o quarto amigo/realizador, em uma gigantesca jam session registrada pelos equipamentos de som de Pedro e Joaquim – e, é claro, pela câmera, que legitima nosso olhar como parte integrante da ação e passeia por entre eles inquieta.

A arte como escape das desilusões da vida, a força das amizades para superar problemas e a inaceitação social não são temas inéditos, mas o que há de mais interessante em Os Monstros é como estas ideias básicas desenvolvidas durante a primeira parte (em situações corriqueiras como perda de emprego e fim de relacionamento) se conectam para dar a si mesmas e ao filme um sentido intimista e bastante particular – sem deixarem por isso de ser universais, mas se valendo mais do que representam aos quatro personagens-realizadores do que o que devem representar ao público. A jam session final, que se encerra com os quatro completamente exauridos e ofegantes, é  uma ação que sintetiza a existência do filme, em que mais do que estes princípios de fuga/força o que se vê é uma necessidade de expressão vigorosa, um expurgo vital através da arte de um grito travado ao fundo da garganta, implorando pra sair.

Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti, os ‘inventores’ do filme, como se auto-denominam nos créditos de encerramento, assumem através destas opções um risco que deixa o filme constantemente sobre a corda bamba. Apesar desta consciência de necessidade de expressão fortalecer uma visão geral da obra, em tela o cinema do quarteto cearense vai de momentos bastante envolventes, como a conversa na praia e a festa que frequentam depois (que celebra um olhar interessante dos autores aos seus próprios personagens, homens adultos que têm de lidar com questões quase adolescentes, como admitir a entrega sentimental a uma mulher), a planos e cenas bem menos atraentes, como as andanças pela rua com a câmera balançando vertiginosamente em frente aos corpos e a sequência do espetáculo desajustado no bar. Em alguns momentos o clima de improviso soa mais receptível como teorizador das ideias deste cinema do que efetivamente uma opção funcional para colocá-las em prática, o que torna a experiência um pouco desigual.

Os Monstros representa uma nova geração do cinema brasileiro, que aos poucos conquista espaço em festivais de cinema e até mesmo no circuito (o primeiro filme do quarteto, Estrada Para Ythaca, teve distribuição a nível nacional), mesmo que em esmagadora minoria em relação à produção mais genérica. E se por um lado vê-se nesta renovação um interessante sopro de novidade a um cinema hoje em dia raras vezes capaz de criar alternativas a si mesmo, também parece ainda não ter encontrado um porta-voz forte o suficiente para que ela seja consolidada no Brasil. Filmes como Estrada Para YthacaOs Monstros mostram um caminho, além de algumas tendências estético-narrativas (e como todas as tendências, esta tem seus prós e contras). Mas se o resultado em geral soa ainda um pouco imaturo, o que de melhor pode-se extrair da experiência é que, neste cinema, o desejo de expressão sobressai-se às fórmulas e até mesmo às tendências que abraçam. Os Monstros, mesmo com seu desequilíbrio, é apreciável enquanto manifesto esperançoso por um cinema brasileiro mais preocupado com sua legitimidade de criação do que com cifras.

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Carnage (Roman Polanski, 2011)

“É claro e evidente que o mal se insinua no homem mais profundamente do que supõem os médicos socialistas. Em nenhuma ordem social é possível escapar ao mal e mudar a alma humana.” A frase de Dostoiévski coloca o bem e o mal como dois impérios em constante batalha dentro do espírito humano. O mal, tanto quanto o bem, faz parte da nossa natureza e é despertado como um instinto natural do homem. Portanto, negar que ele exista em todo homem é negar ser humano. Se analisarmos o estado selvagem do próprio homem, veremos que o mal e a violência gerada por este fazem parte do nosso instinto de sobrevivência. Porém, desde que a civilização nasceu, juntamente com seus mitos fundadores que confrontavam bem e mal como dois seres distintos (por exemplo, as histórias de Caim e Abel ou Rômulo e Remo), ficou determinado por lei que um indivíduo é bom (certo) ou é mau (errado). Os dois lados já não poderiam coexistir dentro de um mesmo ser. O livre-arbítrio é o que permite ao homem escolher aquilo que ele quer ser. Mas e quando nossos instintos são mais fortes que a razão? É este o confronto que vemos retratado no novo filme de Roman Polanski, Carnage. Baseada em uma peça da escritora francesa Yasmina Reza, chamada Le dieu du carnage (em tradução literal, “o deus da carnificina”), a história se passa em tempo real, mostrando o encontro de dois casais reunidos para discutir a briga que seus filhos tiveram no parque.

A guerra de tribos

O filme começa mostrando o desentendimento entre os garotos. Assistimos tudo com a câmera colocada à distância. Ao fundo, uma trilha dá o tom de suspense. Em um canto dois garotos brincam e brigam pela posse de uma bola de basquete, quase nos distraindo da ação que se passa ao seu lado. É ali que ocorre o fato que vai motivar o enredo. Um grupo de meninos está conversando, de repente um deles é empurrado. Vemos o que parece uma discussão onde todo o grupo se coloca contra aquele garoto. Enquanto ele começa a se afastar, os outros o seguem. Eles caminham em linha reta se aproximando da câmera. A discussão continua. Um dos meninos do grupo se aproxima como quem vai atacar. O menino que havia sido empurrado segura um pau nas mãos e acaba o usando para se defender. Ele acerta o outro com um golpe no rosto. O menino que atacou vai embora. O menino que foi atacado é rodeado pelas outras crianças. Como em um documentário sobre a vida selvagem, Polanski narra assim a briga entre Zachary (vivido por seu filho Elvis) e Ethan. Corta para a próxima cena e vemos os pais dos garotos reunidos em frente a um computador, escrevendo uma espécie de boletim de ocorrência, onde relatam que Ethan, o garoto agredido, perdeu dois dentes e sofreu danos nos nervos do lado direito do rosto. Penelope (Jodie Foster) e Michael Longstreet (John C. Reilly), os pais de Ethan, recebem em casa o casal Cowan, Nancy (Kate Winslet) e Alan (Christoph Waltz), pais de Zachary, na tentativa de resolver o que se passou entre as crianças. Apesar de se tratarem com polidez, vemos desde já uma leve tensão entre eles enquanto cada um tenta defender o próprio filho.

O anjo exterminador

O assunto parece resolvido e, enquanto os Cowan se dirigem a porta para ir embora, falando sobre banalidades, Penelope retoma a questão das crianças dizendo que gostaria que Zachary pedisse desculpas a seu filho. Desde o figurino escolhido para a personagem, podemos ver que se trata de uma mulher controladora, sistemática, apegada a regras. Apesar de ela trabalhar em uma livraria, o marido diz que é escritora, porque já foi coautora de um livro. Agora, ela pesquisa sobre o genocídio de Darfur, na África. O marido, Michael, parece apenas obedecê-la. É um homem que, a princípio, concorda com tudo o que é dito, seja pela esposa ou pelos visitantes. Vendedor de artigos para casa, como descargas e maçanetas, ele é o típico boa-praça, pacificador. Ao contrário de Alan. Desde o início é ele quem discorda das posições tomadas por Penelope. Advogado, passa todo o tempo no celular falando sobre o caso de uma empresa farmacêutica que está sendo processada pelos efeitos colaterais apresentados por um de seus medicamentos. Ele orienta que seus assessores deem declarações manipulando a imprensa, negando todo o tipo de acusação, mesmo que estas se provem verdadeiras. Alan é cínico nas suas repostas, a ponto de ser insensível (chama o próprio filho de “maníaco”), e mostra que está tão ocupado com seu trabalho que não tem tempo de se importar com o problema dos garotos. Nancy, sua esposa, uma investidora da bolsa, já se mostra mais preocupada. Tenta responder as perguntas de Penelope e resolver a situação da maneira mais diplomática possível. Até aqui todos parecem adultos avaliando uma briga de crianças, porém, assim como a atitude das crianças se mostrou puro instinto, também os adultos deixarão os seus aflorarem com o decorrer da trama.

Em Carnage temos o encontro de O Anjo Exterminador, de Luis Buñuel, e Cenas de um Casamento, de Ingmar Bergman. Assim como no filme de Buñuel, há algo no apartamento que faz com os personagens fiquem presos ali. Nancy e Alan tentam ir embora três vezes, mas sempre tem algo que os faz voltar e continuar a conversa com os Longstreet. O eco de Bergman vem quando os quatro vão se despedaçando mediante o confronto que vai além da briga das crianças, coloca em xeque seus casamentos, a maneira como criam os filhos, seus princípios diante do mundo. A sala de estar vira um campo de batalha. Primeiro temos casal contra casal, depois homens se unem contra mulheres. Temos os adultos entregando-se a sua natureza cruel, deixando de lado a falsidade da cordialidade que eram obrigados a usar em nome da etiqueta social. Assim, vem à tona o lado infantil (ou seria humano?) de cada um deles. Para ilustrar isso, Polanski dá a cada um dos personagens um objeto de apego. Alan tem o celular, que o leva virtualmente para longe da sala e dos problemas de sua vida familiar; Penelope tem seus livros de arte, colocados impecavelmente sobre a mesa de centro; Nancy tem a bolsa onde guarda o batom e o espelho que consulta algumas vezes para arrumar o cabelo; Michael tem o uísque e o telefone onde sua mãe não para de ligar. Cada um deles perde suas coisas em algum momento da trama e suas reações mostram o quanto são ligados a elas, como crianças com seus brinquedos. Eles choram inconsoláveis diante da perda material. A relação de Michael com a mãe, por exemplo, é usada para infantilizá-lo todo vez que ele atende suas ligações. Se ele é rude com a esposa quando perde a paciência, e grita que “o casal e a família são os piores castigos de Deus!”, para a mãe não cansa de dizer “eu te amo” a cada vez que desliga o telefone. O que cada um dos pais defende em relação ao caso ocorrido entre seus filhos serve apenas como gatilho para confrontar suas personalidades humanas, demasiadamente humanas.

Penelope parece exigir desde o início uma punição para o “criminoso” que agrediu seu filho. Ela se mostra chocada quando Nancy revela que o motivo da briga, segundo Zachary, foi que Ethan não o deixou entrar em sua gangue. Ela, a mãe que sabe como criar seus filhos, é informada pela mãe de um menino que recorre à violência que seu filho tem uma gangue. Se Michael mostra até um certo orgulho, lembrando que ele tinha uma gangue e havia batido em um garoto em seus tempos de escola, ela fica chocada. Penelope quer impor ao mundo aquilo que ela acredita ser justiça. Ela estuda um conflito na África, não por compaixão às vítimas, mas porque, de acordo com sua moral, como americana, residente em Nova York, ela tem que se importar em levar seus “valores ocidentais” aos que ainda vivem de forma primitiva. Por isso ela não se permite gritar ou agir de qualquer forma impulsiva. Quando atinge a catarse, ela estoura exigindo que Nancy castigue o filho porque “eles não são livres!”. Ela chega a chamar o garoto de 11 anos de “ameaça à segurança nacional”. É a personagem que mais vai a extremos na história. Já Nancy nos entrega a cena clímax do filme: os personagens ainda se contêm quanto ao tratamento que dão uns aos outros, quando ela, que reclamava não estar se sentindo bem, acaba vomitando em cima da mesa de centro. É um discurso visual diante do qual as verdadeiras personalidades vão começar a aflorar. A partir dessa cena os personagens soltam-se das amarras sociais e entregam-se à “carnificina”.

Ao tentarem racionalizar uma atitude de crianças, os pais acabam tendo de se confrontar com seus próprios limites morais. Hannah Arendt diz que “a razão é o que torna o homem egoísta; ela impede a natureza ‘de se identificar com o sofredor infeliz’”. Vemos isso manifestado na mãe que não consegue enxergar que outra criança pode estar tão machucada quanto seu filho, ainda que esta ferida não seja física. Embora na atitude dela seja possível ver uma ação natural da mãe que protege o filho como uma leoa, ela ainda se mostra dominada por sua razão, que ordena que ela deve seguir o código de moral que rege sua sociedade. Penelope, apesar de ser uma estudiosa de civilizações e comunidades, também prefere ignorar o elemento do instinto que pode ter motivado Zachary a atacar seu filho, porque para ela a violência não é aceitável sob nenhuma circunstância. Alan a confronta com essa ideia ao dizer: “Eu acredito no deus da carnificina. Um deus cujas regras não foram desafiadas. (…) Eu acabei de voltar do Congo. Há crianças lá de 8 anos treinadas para matar, e durante sua infância talvez matem milhares de pessoas. Matam com um machado, uma arma de fogo… Então, obviamente, quando meu filho ataca outra criança, arrancando-lhe um dente, ou mesmo dois dentes, não me impressiona, nem me indigna tanto quanto a você”. Ele não está defendendo a atitude do filho, mas tenta explicar a Penelope que ser violento é algo compreensível enquanto atitude humana.

Cenas de um apartamento

Com humor, Polanski realiza em Carnage uma sátira da sociedade moderna, presa a seus códigos morais e suas leis, obrigada a dominar constantemente o seu lado selvagem. É interessante que Polanski tenha escolhido o texto exatamente no momento em que ele mesmo se via preso. Apesar de estar ambientado no Brooklyn, em Nova York, o filme foi todo rodado em um estúdio em Paris. Na época, Polanski estava proibido de sair de lá, ainda respondendo a acusação de estupro de uma garota de 13 anos, que teria ocorrido nos anos 1970, nos Estados Unidos. Toda a história se passa no apartamento do casal Longstreet, exceto pelas cenas do parque que abrem e encerram o filme. Ao contrário de clássicos, também ambientados em apenas uma locação, como Hitchcock o fez com Festim Diabólico, Disque M para Matar e Janela Indiscreta, Polanski quase não utiliza planos sequência. Sua câmera está mesmo interessada em mostrar os rostos dos personagens, suas reações e gestos. O elenco também foi escolha acertada, especialmente os personagens masculinos. Mesmo sendo difícil olhar para Christoph Waltz sem enxergar a sombra do oportunista sádico Hans Landa, de Bastardos Inglórios, ele parece ter nascido para viver tipos cínicos como Alan Cowan.

Em sua direção, Polanski mantém-se fiel à linguagem teatral, utilizando, além da fina trama textual do roteiro (escrito por ele e por Yasmina Reza), o “diálogo” dos atores com os objetos de cena. No fim, Carnage é um belo ensaio sobre a questão humana, sobre o que faz de nós animais civilizados, entregue com a assinatura de Roman Polanski e sua própria carga de erros e acertos como pai, como marido, como homem.

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A Pele que Habito (Pedro Almodóvar, 2011)

No que consiste contar uma história? E no que consiste construir um personagem? Essas são duas questões chaves do novo filme de Pedro Almodóvar, A Pele que Habito. Talvez uma das respostas a que o cineasta nos leve é a de que trata-se em ambos os casos de construir camadas de superfícies — e saber deslizar sobre elas.

Assim, entramos na história por seu primeiro platô: vemos Vera, que é mantida prisioneira pelo médico Richard Ledgard e sua governanta Marília. No momento, Richard e Vera parecem ter uma relação que passa pela pele: é em sua prisioneira que o médico desenvolve o seu projeto inovador de uma pele humana ultra resistente — através de alterações transgênicas. A obsessão de Richard por sua criação transparece como um desejo cada vez mais potente do médico pelo monstro — que no caso tem uma aparência de boneca de porcelana, revestida por uma segunda pele o tempo inteiro para não ser estragada. Vera apresenta-se assim como esse personagem em recuo, debaixo de tantas peles. Ainda que presa, também predadora justamente por sua beleza, pela aparência.

O jogo só é interrompido quando entra em cena um personagem externo. Personagem grotesco em sua segunda pele de onça — que descobrirmos ser apenas uma fantasia de carnaval. É o homem-onça o primeiro a tentar penetrar Vera — penetração que filme e personagens continuarão perseguindo, a partir de então. Assim, começamos a descascar as camadas da narrativa em busca de sua essência: qual a relação que entrelaça aqueles personagens? E o inquietante é que, ao descobrirmos os acontecimentos do passado que explicam a situação inicial, é o presente da narrativa que entra em colapso. Todas as peças iniciais parecem trocar de lugar e os afetos que motivam os personagens tornam-se ainda mais ambíguos. Isto porque, no exato momento em que Almodóvar nos conduz pelo longo flashback — um sonho? Uma lembrança? Mas de quem: de Vera, de Richard ou das imagens? —, algo acabou de transformar irremediavelmente a narrativa. Quando criador e criatura rendem-se ao desejo e recodificam sua relação, o passado de ambos já não parece corresponder ao presente. Ainda que…

E nesse ponto se cruzam as nossas duas questões iniciais: à medida que Almodóvar transita livremente da paixão para a vingança (numa via de mão dupla contínua) e que Vera pode ser Vicente, para voltar a ser Vera querendo ser Vicente. Contar essa história consiste em construir, desconstruir e reconstruir esses personagens e os seus desejos. Ao mesmo tempo em que estes personagens são essa narrativa de si que está constantemente nesses processos de reconstituição. Não é apenas a pele que se cria, ou todo um corpo que se molda pela cirurgia plástica, a yoga e a maquiagem, mas também o desejo e com ele a percepção de si e do outro.

No sentido em que tudo pode se reconfigurar, a questão das essências perde a relevância: cada camada da narrativa traz em si as suas próprias verdades, como cada superfície de pele o seu conteúdo constitutivo. A sobreposição dos platôs não constitui uma síntese, mas apenas um novo plano.

Da mesma forma que A Pele que Habito pode se afastar esteticamente de outros filmes de Almodóvar, continuamos a deslizar por suas temáticas recorrentes. Temos então — pelo menos em algumas das superfícies — a relação da vítima que se apaixona por seu carrasco como em Ata-me, com o mal-feitor na pele do mesmo ator fetiche do cineasta, Antonio Bandeiras. E todos os amálgamas entre gênero, sexualidade e desejo que impulsionam os personagens, tão caros ao diretor.

Ainda assim, temos um percurso diferente. Mais do que ao suspense ou ao horror como gênero, Almodóvar parece se filiar à meticulosidade cruel e precisa de seu médico monstro para conduzir a narrativa com a frieza necessária. É preciso ambientar o espectador à primeira pele do filme, para em seguida despi-lo, violá-lo, contrair suas lógicas e expectativas, e, por fim, abandoná-lo ao ponto de partida (ou de recomeço).

Se resta algum amparo, só entre as imagens de Vera e Vicente — um amparo de incerteza. Pois como o próprio personagem, entramos em curto-circuito ao vermos os dois corpos, as duas camadas no mesmo plano — ainda que por uma pequena fotografia de jornal. E, então, o passado da imagem não consegue modificar o presente da pele em que se habita. Temos o fim da possibilidade de narrativa — ou do desejo de narrativa — ali onde no corpo de um afirma-se o ser do outro. E vislumbra-se o devir de uma nova superfície — e outras tantas narrativas.

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Todas as Noites (Eugène Green, 2001)

Há algo de mítico na noite que motiva cineastas a trabalharem este simbólico período do dia, além de cenário, também como licença poética ou até mesmo personagem (há exemplos que vão desde Aurora, de F. W. Murnau, a Um Tiro na Noite, de Brian De Palma, isso sem falar em pelo menos um terço da filmografia de Jacques Tourneur, entre muitos outros). É o caso de Todas as Noites, o longa de estreia de Eugène Green, praticamente uma elegia à noite e seu poder de nos envolver em conflitos intensos, por vezes existenciais ou oníricos — seja em vivências ou através de pensamentos e sonhos, tanto os que temos com os olhos abertos, encarando o teto do quarto antes de dormir, quanto os que ganham vida inconscientemente durante o sono. Nos versos que abrem o filme, e que sonorizam um plano da lua que surge quase como elemento sobrenatural na imagem, ouvimos uma voz feminina entoar versos de contemplação e celebração à noite, captando com precisão a atmosfera em que se envolve o filme: “Desde que a noite é para mim o tempo mais precioso em um sonho, meus pobres olhos, para que eu não deixe de sonhar, dormem todo o dia”. Mais que uma canção, o que ouvimos ali, imediatamente, é um convite para viajarmos por um delicioso delírio cinematográfico que, com sua estranheza estética e história de motivações por vezes aparentemente incompreensíveis, carrega uma magia que se assemelha muito à de um bom sonho noturno.

Todas as Noites existe em um universo à parte de qualquer classificação genérica massificada ao longo destes anos todos de cinema, o que nos leva àquela sensação inenarrável de estarmos diante de um filme de Eugène Green, de uma arte que ignora realidades e aspectos formais que não somem à sua linguagem particular, permitindo-se desprendimento da verossimilhança que imagina-se existir em filmes tão centrados em experiências humanas. Desta forma, embora exista em tela algo a ser expressado, não se trata necessariamente de uma ação, mas muito mais da representação de sensações que fortaleçam ou estejam ligadas aos sentimentos dos personagens — o que possibilita, por exemplo, não haver necessidade de classificar imagens em diferentes níveis de origem (como ações “reais” ou imaginação, sonhos, metáforas etc.), já que ali tudo pode coexistir através da realidade artística — algo que se tornaria mais evidente em seus filmes seguintes, mas que está presente aqui com grande força. Green, como alguns outros cineastas (que têm se tornado cada vez mais escassos à medida que o público parece perder o interesse por desafios cognitivos e, em contrapartida, compra picaretagens babacas como tal — é, estou falando de A Origem), compreende a arte como um campo simbólico e único, e não se restringe a filmar baseado na “surda” inteligência humana, como bem classifica o próprio diretor no arrebatador diálogo final de A Ponte das Artes, a homenagem dele à música e ao poder conectivo e sensorial da arte.

A partir do momento em que a música da abertura encerra e somos apresentados aos dois jovens amigos, o que vemos não é um registro banal de uma relação humana, mas uma busca por capturar algo próximo à sua essência, dar uma forma ao envolvimento de ambos com suas questões existenciais e à interferência que as experiências vividas têm na maneira com que lidam um com o outro e consigo mesmos. Desde a primeira cena, em que observam uma garota selvagem nua banhar-se em um rio, a fábula de Todas as Noites instala-se em uma realidade em que os dias parecem intangíveis, e as noites o grande palco das ações consumadas e dos principais conflitos vividos. “Vamos esperar até o anoitecer. O único momento em que se pode ser feliz é a noite” é o que diz Jules, o personagem de Adrien Michaux, quando cogitam abordar a moça do rio para tentarem perder suas virgindades com ela. E o pensamento representa mesmo o que se vê daí em diante — com ela, pela não consumação do ato, mas também com outras mulheres que passam por suas vidas: na primeira investida de cada um, a tentativa de conquista só funciona com Henri, que, depois de deixar a cidadezinha em que viviam para estudar em Paris, seduz a mulher de seu professor convidando-a a ir ao seu quarto à noite — Jules tenta pela primeira vez com uma angelical atriz durante um passeio vespertino pelo bosque, e o máximo que consegue arrancar são lágrimas, dela e mais tarde suas.

É a escuridão da noite que abriga os principais conflitos e contatos do filme, como se o diretor fechasse os olhos às possibilidades de consumação na presença do sol — as cartas e declarações platônicas, por sua vez, são recebidas com belos planos do parque e das ruas, iluminados por uma luz radiante. Assim, Todas as Noites atravessa duas décadas da vida de Jules e Henri, passando por períodos importantes da história francesa, como a revolução juvenil de maio de 68, e situações constantes das relações humanas (perda da virgindade, amor, casamento, etc), mas sob uma ótica bastante particular e que, conforme os anos avançam, vai se mostrando cada vez mais extraordinária — o desfecho da relação de Henri com a mulher de seu professor, o destino da personagem e a forma com que Green ao final faz uma conexão entre os três personagens principais formam uma história teoricamente inusual e meio maluca, mas o incrível mesmo está em como, na ficção de Green, soluções aparentemente insanas ou inverossímeis se tornam bastante funcionais por aquilo que representam, pelo sentimento que carregam em cada detalhe da encenação, das atuações, e pelas sequências de força descomunal que essas coisas geram quando combinadas. E não seria absurdo se, ao final, ambos despertassem ainda com 17 anos, deitados no bosque, esperando a noite cair para baterem à porta da loura selvagem. O sabor de um sonho bem sonhado é a sensação deixada por esta pequena pérola de Eugène Green.

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O Livro de Cabeceira (Peter Greenaway, 1996)

Em O Livro de Cabeceira, lidamos com um universo em que a escritura surge como resposta à existência, dentro de um caráter que beira o inexplicável sem abandonar o que é intrínseco a toda uma compreensão racional da vida. Se em determinado momento a protagonista do filme tenta “colar” uma folha datilografada em seu peito, parecendo desejar que as letras impressas lhe penetrem a pele, é para que tenhamos a certeza de que as atitudes dela transcendem o patamar de um fetiche ou exotismo fantasioso. Escrever no corpo é como respirar. É como se nada bastasse em si para permanecer além do contato com as tintas utilizadas na escrita.

Os textos aqui centralizados por Greenaway, notadamente dotados de um interesse literário inspirado na tradição de Sei Shonagon (967 a 1017 d.C.), revestem-se com a importante função do registro da memória. Gênero literário dos mais respeitados pela cultura milenar japonesa, os “Livros de Cabeceira” resgatam não apenas a memória individual de quem os escreve como todo o imaginário social de uma época; a própria obra de Shonagon (Makura no Soshi), por exemplo, é considerada uma das maiores da história da literatura japonesa. Quando, no filme, surge o desejo de se escrever esse gênero sobre corpos humanos, inaugurando o que podemos chamar de uma “textualização do corpo”, atesta-se uma relação incondicional com a ontologia das tatuagens enquanto portadoras de memória e símbolos significantes materializados através da imagem. O corpo escrito/tatuado que Nagiko (Vivian Wu) cria nos amantes passa a não mais ser possuído apenas pelo ser que o utiliza enquanto suporte de vida (os amantes), antes e primeiramente, torna-se propriedade da nova autora, que reconhece na pele inscrita uma manifestação de seu interior (memória).

Há de se considerar que todo O Livro de Cabeceira se estrutura como uma variação direta da prática da tatuagem. Exemplo disso pode ser encontrado logo no início do filme, enquanto acompanhamos a leitura do Livro de Sei Shonagon pela tia de Nagiko. A ação é apresentada da seguinte forma: a página do livro é fotografada como fundo da tela, com as palavras e o número da página sendo revelados; sobre ela, em fusão, a tia realiza a leitura do livro; por fim, no centro da tela, é superposto outro pequeno quadro com a representação do que a mulher lê. Uma leitura permitida por essa “outra tela”, mais apropriada aos momentos em que as visualizações de cada moldura são opostas narrativamente (cada uma contando uma coisa diferente), é a certeza de que Greenaway realiza com esse filme, a tatuagem na imagem por outra imagem. A superposição aí trabalhada alcança, assim, um nível de problematização muito maior do que a simples “divisão de telas” como um procedimento já recorrente na criação cinematográfica de muito tempo.

“Rasgar” a tela principal com um “recorte” de outras telas/janelas — muito apropriado o conceito computacional, já que lidamos aí com uma variante da cultura do hipertexto — é um ato que, na verdade, harmoniza-se com as próprias escrituras de Nagiko, não só as que ela faz em seus amantes, como as que ela recebe desde a infância, ou seja: os ideogramas orientais — registre-se a referência ao paralelo que Eisenstein traçou entre a imagem de cinema e um ideograma. Se nos é impossível enxergar ao mesmo tempo tudo que se passa em cada tela de Greenaway, assim como a leitura de uma palavra sobre a outra dentro do suporte literário, tais limitações parecem se debruçar não sobre as expressões artísticas, mas naqueles que as apreendem, nos que definem a utilização e permanência do texto, do corpo. Pois o problema fica:

O corpo é um alfabeto? Pele pode servir de papel? Há imortalidade no texto? A espinha do livro é a mesma vértebra do homem? Qual é o preço em palavra do amor carnal? O texto pode sentir ciúme? Podem os livros trepar com outros livros e produzir mais livros? Sangue é tinta? A pena é um pênis cujo propósito é fertilizar a página? Aquela que era o papel pode tornar-se a pena? E se foi o corpo que fez todos os signos e símbolos do mundo, passando do cérebro pensante para o braço que move e daí para o gesto da mão e daí para a pena rígida sobre o papel silencioso durante milhares de anos, e agora? — agora que todos nós escrevemos com teclados? Teremos rompido um elo essencial? Haverá agora uma necessária evolução futura para as letras e as palavras? E, se as palavras foram feitas pelo corpo, onde haveria um lugar melhor para depositar essas palavras do que de volta no corpo?

(Peter Greenaway)

Filmes citados

O Livro de Cabeceira [The Pillow Book; França/Inglaterra/Holanda/Luxemburgo, 1996], de Peter Greenaway. 126 min.

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