Inquietos (Gus Van Sant, 2011)

Falar sobre Inquietos é antes de tudo falar sobre mais um filme de Gus Van Sant. Se muitos diretores contemporâneos ainda carregam consigo a alcunha da autoria — Terrence Malick, Pedro Almodóvar, Lars Von Trier, para ficarmos nos exemplos óbvios dos que lançaram filmes este ano —, nenhum deles carrega o estigma de forma tão dúbia quanto Van Sant. Fãs e detratores parecem distinguir facilmente entre os projetos mais autorais do diretor (Elefante, Last Days, Paranoid Park) e o cinema sob encomenda (Encontrando Forester, Gênio Indomável, Milk). Ainda que nem sempre essa distinção signifique necessariamente uma superioridade de um Van Sant sobre o outro.

Nessa divisão, Inquietos pertenceria ao segundo grupo — dos filmes de Van Sant com roteiros de outras pessoas, em que o diretor empresta seu modo de filmar e construir uma mise en scène à realização. Vemos, assim, sua forma de acompanhar os personagens muito proximamente, os tons do ambiente que parecem contaminar a fotografia do filme e uma relação imprescindível com a trilha sonora. Inquietos traz inclusive um dos temas caros ao diretor, essa espécie de angústia da juventude, a inconformidade dos corpos à necessidade de serem docilizados pela sociedade, pela vida adulta.

No filme, Enoch é um jovem atormentado pela repentina morte dos pais em um acidente de carro. O seu passatempo, além de jogar batalha naval com seu amigo imaginário, é o de frequentar funerais de pessoas que não conhece. É exatamente em um desses que Enoch conhece Annabel, uma doente terminal de câncer. Aos poucos ambos desenvolvem uma paixão fofamente mórbida.

Assim, com um pouco mais do que 15 minutos de filme, o roteiro nos instala em uma armadilha dramática: sabe-se de saída o futuro do romance e dos personagens e, ainda assim, empatiza-se com o encontro improvável. Da trilha sonora indie bonitinha aos figurinos com o ar vintage descolado, passando pelos personagens disfuncionais porém adoráveis, tudo se encaixa perfeitamente — irritantemente, perfeitamente. Quase não há brechas para respiros ou ambiguidades, cada peculiaridade dos personagens precisa ser didaticamente explicada. Não é possível que os jovens se apaixonem sem o clipe clichê de música romântica e imagens de momentos felizes passados juntos. Não é dado ao espectador a menor dúvida, é preciso que Enoch diga com todas as palavras que sua maior frustração é a de não ter podido se despedir dos pais em seu funeral, pois o garoto encontrava-se em coma.

Em suma, não há inquietude em Inquietos, apenas certezas e caminhos bem definidos — mesmo que pouco ortodoxos ou convencionais. Não há justamente lugar para o cinema de Van Sant — ou para o que há de melhor no cinema de Van Sant. A superfície da imagem do diretor é contradita pela psicologização adolescente da narrativa. A empatia da forma como Van Sant filma seus personagens é esmagada pela esquematização do roteiro.

A exceção mágica do filme fica nas costas de Hiroshi — o fantasma (ou seria um amigo imaginário?) de Enoch, que foi um piloto kamikaze da II Guerra Mundial. A princípio, a relação com o personagem parece não superar a obviedade funcional de garoto deprimido com problemas de sociabilidade que inventa para si um amigo inseparável. Aos poucos, embora nunca de forma definitiva, essa relação torna-se mais incerta. Diante de um roteiro tão autoexplicativo, a presença (e as ausências também) de Hiroshi estremece os padrões estabelecidos. Por alguns segundos, não sabemos ao certo o que vimos ou como aquela peça se encaixa em um quebra-cabeça tão fechado. Mas apenas por alguns segundos.

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