A Vida Íntima de uma Mulher (Nicholas Ray, 1949)

Um corpo nos filmes de Nicholas Ray é aquele que é narrado (pela luz, pelos movimentos que descreve, pelo aprisionamento ou não à história) ou é aquele que tenta se libertar da narrativa (quebrá-la, devolvê-la aos pedaços que são as folhas do roteiro — dois personagens que assim operam: Jim Stark e Ed Avery) por sua vez narrando coisa diversa, aquilo que pensa ou que lhe parece uma verdade suprema (dos fatos, da vida). A Vida Íntima de uma Mulher, segundo longa-metragem de Nicholas Ray, possui um corpo no seu centro, que apenas é narrado, mas que faz um outro narrar. Um corpo supostamente vazio, a princípio. Ou melhor, preenchido por uma personalidade julgada nula pelos outros corpos-personagens que a circundam e, em certo ponto (ou porque não, no ponto central) a manipulam: o Luke Jordan de Melvyn Douglas — o que narrará o que acredita ser a verdade; a Marian Washburn de Maureen O’Hara — o corpo que será libertado por esta verdade. “Nova educação”, simplesmente, covardemente, até. Este corpo preenchido com uma personalidade que não é a mais indicada (no sentido do intelecto ser desenvolvido, claro. Por isso, ele, este corpo, é o indicado perfeito: por não se ter desenvolvido intelectualmente, só corporalmente) às pretensões de Luke e Marian é o de Susan Caldwell, conhecida por Estrellita (Gloria Grahame), o poço, desta vez sim, de um conhecimento pouco desenvolvido, de uma facilidade de condução pelos outros, corpo onde a arte insistiu em habitar. O corpo de Susan, à revelia do “ser-Susan”, é um corpo que canta e é também um corpo bonito, da sexualidade velada da Hollywood do final dos anos 40. É o grande problema que Marian haverá de solucionar: o corpo fala, e Susan, sua personalidade, tem que ser a da outra, tem que emprestar o seu corpo a um modus operandi social, de escalada social. Grande parte do filme não seria, em palavras gerais, uma tentativa cruel de preencher o corpo do outro com o que se supõe o melhor de si? Talvez. O que se sabe, entretanto, e saltando aos olhos, é que o “corpo-Susan” é um corpo a ser educado. Não é de se admirar, portanto, que o corpo ferido (e jamais mostrado dessa forma durante todo o filme — perto do final vemos Susan se recuperando em seu quarto de hospital e nada mais do que isso) de Susan seja o centro gravitacional (em Ray, sempre se tem um personagem-gravidade) e irônico que força à narrativa uma série de flashbacks para salvar um outro corpo ainda mais doente: o de Marian.

Puro processo de transferência. Em A Vida Íntima de uma Mulher, Nicholas Ray consegue antever este processo de passagem de duas formas (Susan e Marian) a uma só forma perfeita que é a conjugação única das duas anteriores, apenas na enunciada fusão presente no começo do filme, aquela em que a imagem de Susan cantando no estúdio de rádio é sobreposta, bem rapidamente, à de Marian em casa, ouvindo-a no seu aparelho radiofônico. Não há nesta cena, claro, uma distinção do som. Marian ouve Susan como se ela estivesse cantando ali dentro da sala, ou como se ela mesma estivesse cantando. Não é uma supressão dos dois espaços (estúdio de rádio e sala de estar), mas um grande amálgama. Amálgama este que anuncia o que sugere um suposto simples jogo de campo/contracampo no momento seguinte, ainda na mesma cena, quando Susan chega em casa e discute com Marian na escada que dá para o primeiro andar. Algo no campo/contracampo funciona anomalamente, porque a cada corte vê-se o rosto que “responde” como se fosse um rosto que pergunta. Já aí, a primeira conclusão, a coisa que se destaca na relação de dependência das duas mulheres. Isso porque este jogo de planos (e a interpretação de O’Hara e Grahame) é quem ajuda a construir uma densidade a mais durante o diálogo exasperado: vemos duas criaturas intrincadamente ligadas, algo parasiticamente. Deixa-se de lado a simples parasitologia do “sobreviver às custas do outro” para se chegar à impossibilidade visível de ser sem o outro (numa cena, Marian se defende do crime ao dizer que seria um suicídio atirar em Susan). Marian se transfere para Susan (e é interessante, outra vez, a relação ambígua entre o trio central, como será em outro filme de Ray, Paixão de Bravo) como quem muda de corpo. Entretanto, acima de qualquer esquema de produção, Nicholas Ray dá a si mesmo a ambiguidade. Ambiguidade de estilos, sobretudo porque A Vida Íntima de uma Mulher é um produto “de estúdio” da RKO (Paixão de Bravo, mesmo sendo da mesma RKO, parece ser um filme sem estúdio, como um filho bastardo rejeitado e sem casa) que recorre à constante compreensão do que levou ao crime (o tiro que atingiu Susan), mas também está como uma experiência “a mais” de Nicholas Ray, onde fica muito clara aquela insistência pesada e dupla de dois olhares para os personagens: o da RKO, exigindo um filme “certinho” e o de Ray, algo como o da relação futura de Mario Bava com os roteiros que filmava, mas sem parecer que Ray “se aproveita da máquina”, como Bava, brava e arriscadamente, o fazia.

Este quesito de “dois olhares” é questão velha, clássica, porque o realizador dos grandes estúdios, à época de Nicholas Ray, usaria de perspicácia para contrapor o seu olhar ao menos subliminarmente. Se para a RKO e meio-mundo de pessoas “de cinema” interessava, talvez, a verdade e o confronto final de observações sobre os fatos (sempre, a coisa eterna: os finais frágeis de Nicholas Ray, filmados como algo independente do todo de que fazem parte), para Ray interessa um aprofundamento maior nos jogos amálgamos dos personagens. A cena mais emblemática a este respeito em A Vida Íntima de uma Mulher é uma pequena, quase que “de passagem” tamanha a pequena forma não tão frontal que Ray dá a ela em sua importância de informar a proximidade de um indício da revelação final que o roteiro pede: aquela em que Luke está com Lee Crenshaw (Bill Willams) nas caldeiras do hospital aparentemente depois de um longo confronto físico (os rostos dos dois estão sujos, como se tivessem brigado por um tempo) e há uma pequena confusão na conversa, quando os nomes de Susan e Marian passam a ser confundidos em ações realizadas por elas. Trata-se de uma pequena cena muito importante e significativa para se descobrir o que de fato aconteceu (quem disparou o tiro que quase acabou com a vida de Susan, logo no começo do filme) e para o enunciado mais importante, o jogo de Marian ao se (re)construir em Susan.

Se o começo de A Vida Íntima de uma Mulher (e também o deste texto) já insinuava para em seguida expor uma inocente (se partirmos do olhar de Marian) “tomada de corpo”, fica bastante visível (porque em Nicholas Ray o que não é visível é apenas o que o “the end” oculta — mas isso, claro, Ray oferece a uma possibilidade imagética da imaginação) que há também uma ocultação deste corpo. Mas não só. Porque a narrativa de A Vida Íntima de uma Mulher serve, primordialmente, para salvar um corpo do obscurantismo do cárcere e também ao embate da verdade dos personagens. Susan e Marian concordam a respeito da autoria do disparo sem nem mesmo conversarem sobre isso (as duas mal se veem durante o tempo presente do filme, só nos flashbacks) entre si, já que depois do tiro, cada corpo terá o seu tempo particular, sua separação do outro e, mais profundamente, a sua suspensão e ocultamento da narrativa. Se é uma ironia que Susan, a inocente, a dona de um corpo a ser preenchido por outras idéias, salve Marian, é principalmente não porque ela lhe dê uma nova liberdade ou, sobretudo, um novo corpo (Marian sofre de uma doença). A proeza que vemos no velho final falso de Ray, proeza de Susan, é a de fazer um verdadeiro contra-ataque a Marian, dando-lhe um novo modo de pensar a sua nova vida e as coisas. E não era exatamente essa a vontade e o objetivo de Marian contra o corpo supostamente “não-habitado” de Susan? Pura ironia. Puro cinema.

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