Arquivo

Little Dieter Needs to Fly (Werner Herzog, 1998)

Por Kênia Freitas

Little Dieter Needs to Fly poderia ser resumido como um documentário sobre o sonho americano de um garoto alemão. Mas apesar da pequena ironia do título, o filme de Herzog é muito mais cúmplice do que carrasco com o seu herói-quase-por-um-acaso. Assim, o diretor conta entre depoimentos, reencenações e imagens de arquivo a história do desejo do pequeno Dieter de voar, desejo que acaba o tornando um piloto da força aérea americana no Vietnam e um prisioneiro sobrevivente dessa guerra. De um pobre menino alemão que passou uma infância de fome em um país devastado pela derrota na Segunda Guerra Mundial, Dieter Dengler cumpre uma espécie de profecia bélica entre os dois grandes acontecimentos.

A infância de Dieter se confunde em vários aspectos com a do diretor Werner Herzog, também um alemão filho imediato do nazismo. Por isso, não é de se estranhar que o diretor e seu personagem dividam a voz narrativa do filme. Uma operação de dupla fabulação em que o personagem real se apodera do documentário sobre si, mas também em que o diretor torna-se esse personagem. Dessa forma, temos duas instâncias de enunciação no filme: a voz em off ou em depoimento presencial de Dieter e a voz over do diretor, que contextualiza os fatos – ao mesmo tempo que não perde a dimensão crítica tão comum ao cineasta em seus documentários.

Nessa dupla fabulação, o filme se constrói como uma memória recriada. Memória evocada não apenas pela narração dos fatos, mas também pela reencenação in loco de alguns acontecimentos. Herzog leva Dieter de volta a sua cidade natal na Alemanha e aos locais em foi prisioneiro no Vietnam. Mais do que isso, faz o personagem reviver toda a sua penosa saga entre a captura, a prisão, a fuga e o resgate. Em uma recriação bastante incomum pelo constrangimento dos envolvidos, figurantes vietnamitas interpretam os carrascos de Dieter. Mas essas imagens nunca conseguem atingir a potência da narrativa que revivem. A guerra como uma experiência não pode ser recriada em uma guerra como imagem.

No outro sentido, imagens de arquivo logo após o resgate do personagem e um filme da época de instrução para soldados são as munições das quais o diretor se serve para fazer sentir a diferença entre essas duas dimensões da guerra (como uma imagem e experienciada). Se a primeira é capaz de mover afetos e criar sonhos americanos, a segunda parece evidenciar as falácias da primeira como uma máquina de desejos que se realizam apenas no objetivo de se autoalimentar. Uma operação didática, é verdade. Mas tratando-se de uma pedagogia herzoguiana, estamos ao abrigo de qualquer senso comum.

FacebookTwitter

The Transformation of the World into Music (Werner Herzog, 1996)

Por Luis Henrique Boaventura

Não passa pela cabeça inicialmente que The Transformation of the World into Music fora concebido como uma simples introdução a uma série de programas de ópera para a TV alemã. A vitalidade do documentário aponta um tema apaixonante para Herzog: não a ópera especificamente (com que o diretor mantém uma relação passional), mas o próprio ato de criação de algo, seja o que for. Herzog acompanha ensaios e montagem do espetáculo com a curiosidade de quem não dedicou uma vida inteira a fazer cinema. Um escrutínio para os artífices do concerto. É claro que é necessário algum interesse em ópera (ou em Wagner, que às vezes se basta sozinho enquanto figura) para fazer valer, em primeiro lugar, os 90 minutos de um documentário com linguagem purista, composto de câmera na mão e entrevista-sobre-entrevista, e em segundo lugar, para simplesmente encontrar o filme, raro demais até para os padrões do que é obscuro na filmografia de Herzog. Havendo disposição, The Transformation of the World into Music vale a pena. Há em especial uma pequena sequência, com a sobreposição de música sobre recortes de pinturas, que lembra demais o exercício de montagem de Alain Resnais em Guernica.

FacebookTwitter

Death For Five Voices (Werner Herzog, 1995)

Por Fernanda Canofre

O grupo de oficiais chegou à Nápoles na manhã de 17 de outubro de 1590. A luz do dia não acalmou os nervos da cidade que, na noite anterior, havia testemunhado um duplo homicídio em uma das casas mais nobres da Itália. Dona Maria D’Avalos, uma das mulheres mais bonitas de sua época, que teria servido de modelo para a Gioconda de Da Vinci, havia sido assassinada ao lado do amante, o Duque de Andria. Segundo o relatório do grupo de oficiais, único registro oficial sobre o caso, no chão do quarto foi encontrado o corpo de Don Fabrizio Carafa, vestido com uma camisola feminina de seda preta, coberto de sangue e ferimentos. Sobre a cama, estava Dona Maria com a garganta cortada e a camisola encharcada em sangue. Algumas testemunhas entrevistadas pelo grupo confirmaram o que já era sabido: o autor dos crimes era Don Carlos Gesualdo, Príncipe de Venosa e Conde de Conza, marido de Dona Maria D’Avalos. Segundo os depoimentos, após comandar os assassinatos, Gesualdo teria partido para fora da cidade. Porém, as lendas sempre vão além das páginas dos documentos oficiais. As histórias que continuam a ser contadas hoje nas ruelas de sua vila, dão conta de que Gesualdo criou um plano para pegar a esposa em flagrante. O Príncipe fingiu que havia partido em uma viagem de caça, deixando Dona Maria livre para encontrar-se com Don Fabrizio. À noite, Gesualdo, na companhia de três servos, invadiu os aposentos da esposa disposto a limpar seu nome da vergonha a qual ela lhe expôs. Enquanto os servos se encarregaram da morte de Don Fabrizio, Gesualdo reservou o fim da mulher para suas próprias mãos. Um conto de Anatole France diz ainda que Dona Maria desafiou o marido, reconhecendo seu amor pelo Duque e dizendo que ele poderia fazer com ela o que quisesse. Depois de deixar o quarto onde a mulher jazia, Gesualdo exclamou para os servos, cúmplices no crime: “Ela não pode estar morta!”. O Príncipe então voltou ao quarto, ferindo o corpo já sem vida de Dona Maria com mais 28 golpes de espada, para se certificar de que seu trabalho de vingança estava concluído. Tomado pela fúria da traição, Gesualdo teria ainda arrastado os dois cadáveres até as escadas em frente ao palácio, para que o pecado cometido pelos amantes fosse exposto a toda a cidade. Há quem afirme que uma mulher os teria tapado com lençol e que um monge teria tentado levar os corpos de lá para enterrá-los, no entanto, os dois atos de compaixão popular foram rechaçados pelo Príncipe. Ele não permitia que ninguém mudasse o quadro que havia preparado para o fim de Dona Maria e seu Duque. Mas, com quatro séculos de distância do crime de Gesualdo, como saber o que realmente aconteceu no palácio próximo a Piazza de San Domenico Maggiore? Como saber o que se passou na cabeça do Príncipe traído antes, durante e depois de cometer os crimes? Como separar a realidade da lenda? A resposta é uma não-resposta. Assim, o caminho seguido por Werner Herzog na construção de uma biografia de Carlos Gesualdo, com Death for Five voices (1995), é também um documentário-não-documentário.

O nome de Gesualdo é sempre ligado a duas conotações. Enquanto para boa parte do povo italiano ele é sinônimo de um cruel assassino, um homem que passou o resto de sua vida fechado em um castelo, sofrendo com sessões de autoflagelação para aliviar a culpa de seus crimes; para os especialistas em música, o nobre italiano maldito é um compositor revolucionário, capaz de antecipar, nos séculos XVI e XVII, o que só seria desenvolvido por Wagner, mais de duzentos anos depois. Sem ter como determinar onde começa e onde termina o nobre, o compositor e o assassino, Herzog monta seu filme com duas tramas paralelas: uma, com músicos comentando a importância e a estrutura dos madrigais e peças sacras escritas por Gesualdo; outra, utilizando histórias inventadas e encenadas diante das câmeras sobre as lendas em torno dos crimes e de seu fim. Ao buscar a verdade sobre a vida de um mítico personagem de séculos passados, Herzog cria um ensaio metalinguístico sobre as fronteiras entre o real e a ficção dentro do universo documental. Diferença que ele sempre rejeitou. Isso fica evidenciado na dinâmica das cenas do filme. Em uma delas, por exemplo, temos um casal italiano de meia-idade, em uma cozinha, com a tarefa de reconstruir o cardápio do banquete de casamento de Carlos Gesualdo e Maria D’Avalos. Enquanto o homem fala sobre os pratos exorbitantes que os registros históricos afirmam terem sido servidos na festa de mil convidados (incluindo 120 cabras e duas mil ostras) a mulher apenas ecoa o consenso popular sobre o noivo: “Ele era o diabo! (…) O diabo! O diabo pra ter um casamento assim”. O cozinheiro fala dos fatos relatados por historiadores, sobre o que ocorreu e como foi o casamento do Príncipe de Venosa com a nobre espanhola D’Avalos; já sua esposa, se sustenta no que ouviu sobre o nobre durante toda a vida, em histórias tradicionais de sua região, transmitidas pela memória oral de seu povo. Há outra cena em que Herzog joga com os limites entre real e ficção, nos dando provas concretas do que é falado, mas ao mesmo tempo, nos deixando em dúvida se aquilo é mesmo verdade, que se passa no próprio palácio dos assassinatos. Uma handycam entra pelo prédio seguindo um homem. Uma voz lhe pergunta: “O que aconteceu naquela noite?”. O homem responde: “Aquela noite foi caótica! Todo tipo de coisa aconteceu. (…) Como sabemos, Gesualdo era um demônio e um alquimista. Ele era certamente muito inteligente”. Em seguida, o homem revela que Gesualdo fazia experimentos com corpos humanos, dando a deixa para que Herzog traga à cena algo que poderia ser a prova concreta destes rumores. No subsolo de uma capela, encontramos dois esqueletos cobertos por um emaranhado de veias e artérias negras, lembrando um roseiral seco, expostos à visitação pública. Os moradores locais dizem ser Dona Maria e o Duque de Andria, cujos restos teriam resistido aos séculos devido a uma substância química aplicada em seus vasos sanguíneos. Porém, mesmo que nossos olhos estejam diante dos corpos semi-preservados, a voz de Herzog lembra que nada disso é comprovado. Em momento algum o diretor menciona a existência do relatório dos oficiais que teriam visitado a cena do crime no dia seguinte aos assassinatos. O único testemunho original dos assassinatos, que chegou aos nossos dias. É como se ele buscasse através da representação das histórias nascidas em boatos e crença popular, a absolvição do nobre condenado pelos séculos. Ao optar por representar as lendas em torno de Carlos Gesualdo, Herzog lembra que a História não deixou provas concretas para julgar sua figura como a de um Fausto. Sem poder entrevistar as testemunhas das mortes, ou os próprios assassinos, como faz na recente série Death Row (2011), o diretor concede a Gesualdo o benefício da dúvida acalentado pelo tempo, o que aproxima seu personagem-assunto de nós espectadores. Por pior que tenham sido seus atos, foram atos que qualquer outro ser humano, demasiadamente humano também seria capaz de cometer.

Assim, a música, a saída pela arte, também se torna compreensível e palpável ao nosso senso. Antes mesmo de assumir seus títulos de nobreza (Príncipe e Conde de Conza), Gesualdo já passava os dias entretido com a música. Um dos estudiosos entrevistado no filme, diz que, o fato de ser um compositor amador, independente das vontades de um mecenas, deu ao jovem a vantagem de poder ser livre na exploração de seus temas. Porém, todos os trabalhos de Don Carlos que chegaram até nós foram compostos após os assassinatos ligados a ele. Nos seis livros de madrigais e nas três peças sacras que levam sua assinatura, estão presentes temas ligados ao amor, dor, morte, êxtase e agonia. Talvez, o exorcismo de sua consciência, as sensações com as quais ele teria sido condenado a conviver até o fim da vida. Talvez. O que é comprovado de fato no filme é que a força do mal que Gesualdo teria tentado expurgar através da arte acabou por gerar um poderoso movimento musical que só teria correspondência no século XIX com Wagner e no Expressionismo, no início do século XX. Uma música capaz de inspirar poemas de Aldos Huxley ou de fazer um compositor do nível de Igor Stravinsky peregrinar diversas vezes pela vila de Gesualdo, em busca de encontrar algo que o ajudasse a compreendê-lo. Mas, acima de tudo, uma música que, junto com sessões de tortura auto-impostas (dizem que Gesualdo mantinha vinte servos em seu castelo, com o dever de bater nele todos os dias; inclusive, há quem acredite que essas sessões teriam sido a causa da morte do Príncipe, devido às infecções dos ferimentos causados pelas punições físicas), teria ajudado Gesualdo a sobreviver. A perfeita aplicação para a famosa frase de Nietzsche, segundo a qual, “sem música a vida seria um erro”.  Além de servir para humanizar o nobre acusado de ser um demônio, a presença dos depoimentos de estudiosos que se debruçam sobre a obra de Gesualdo acaba por ser a única peça do filme que não vive na dúvida, que é sustentada pelo concreto. É a peça que dá a Death for Five voices o direito de estar na categoria dos documentários.

O aviso de que a história trazida no filme não é clara ou bonita, vem logo na cena de abertura: as ruínas do castelo de Gesualdo aparecem contra um céu escuro de um dia nublado, que parece julgar a vila. Ali já temos o anúncio de que estamos entrando em uma biografia obscura e misteriosa, o que pode ser ainda mais interessante que o acesso a uma versão definitiva dos fatos. O filme se torna então um ensaio roteirizado de Herzog sobre a vida e a obra de Carlos Gesualdo, onde temos a dicotomia em exercício constante. Em uma das últimas cenas, ao mostrar um garoto vestido de anjo suspenso a alguns metros de altura com um cabo, o diretor adiciona a seguinte legenda: “Próximo ao castelo de Gesualdo, a luta entre o Bem e o Mal continua”. Diante de uma multidão que acompanha o espetáculo, outro garoto, vestido de diabo, sobe em um palco e declama um texto lembrando os crimes de Gesualdo. O Bem e o Mal; o que é Real e o que é Ficção; a Vida e a Morte, todos elementos que, embora o dicionário traga como antônimos, descobrimos serem complementares. No fim, tudo se resume a batalha interior que travamos durante toda a vida para resolver qual deve predominar. No fim, tudo se resume a condenação de sermos humanos. Seja o ato de matar alguém ou de compor música.

FacebookTwitter

Sinos do Abismo (Werner Herzog, 1993)

Por Fernando Mendonça

No primeiro plano do filme Sinos do Abismo, vemos dois homens rastejando sobre um lago de gelo, peregrinos siberianos que acreditam no mito da cidade perdida de Kitezh, um lugar colocado por Deus no fundo das águas como livramento contra o ataque de mongóis e que, ainda hoje, ecoa o soar dos sinos de sua igreja. A cena, apresentada de maneira direta e sem intermediações, dá a ver somente a presença dos corpos, a composição do espaço e a forte impressão de um anseio metafísico. O suficiente para instaurar no espectador toda a premissa do que a hora seguinte trará. O que a cena não diz (pois o filme só revelará adiante) é a explicação para o movimento dos peregrinos; ainda desconhecemos o mito, as crenças locais, ainda não ouvimos os sinos. O que o filme não diz (pois Herzog só o revelará em entrevistas) é que os dois homens filmados são, na verdade, bêbados contratados para interpretar aquilo que o diretor lhes pede; simulacros de uma realidade que, para se materializar em cinema, silenciaram a encenação natural do mundo, instaurando a sua, tão fiel e factual como qualquer outra.

Conhecer as circunstâncias de uma filmagem, a rigor, não altera o material resultante dela, mas neste caso específico, encontramos uma disposição muito típica de Werner Herzog, realizador que sempre se equilibrou entre a ficcionalização dos fatos e a documentação das ficções. Manipular a cena muitas vezes é a única forma de encontrar nela a verdade, daí não podermos negar serem os bêbados daquelas imagens verdadeiros peregrinos, homens de fé. O que a ‘atuação’ deles proporciona é uma confirmação das evidências que todos os demais elementos da imagem revelam: existe o mito, existe o lago, existe algo que não podemos ver sob a camada de gelo. Se Herzog foi obrigado a forjar uma situação — durante as filmagens a equipe não encontrou um peregrino real, pois o inverno estava muito rigoroso —, não quer dizer que ele tenha incorrido numa falsificação do mundo que ora documentava. Como denota o subtítulo do filme, Fé e Superstição na Rússia, Herzog recorreu inclusive nos procedimentos técnicos a uma credibilidade que não deixa de ser objeto de toda encenação fílmica: é preciso crer para ver.

Verdadeiro catálogo do imaginário místico e religioso da Rússia e da Sibéria após a dissolução da União Soviética, Sinos do Abismo contextualiza eventos originados nas mais diversas raízes da cultura popular russa. Herzog se aproxima de nômades, curandeiros, exorcistas, gurus esotéricos e toda uma casta de seres que orientam suas vidas a partir de convicções espirituais. Não pretende a análise, o julgamento daquilo que elenca, mas sim a captura de um estado emotivo particular à nação e ao povo que enfoca. Fugindo da concepção etnográfica previsível ao que abraça por tema, Herzog declarou que preferia ver o seu filme sendo recebido e experimentado como num poema de Hölderlin, associação pertinente não só pela lógica da montagem que ele trabalha (uma lógica de poesia, de sensações e sinestesias), mas adequada pela própria referência ao poeta lírico alemão, homem que de fato acreditava nos deuses e compreendia a estética como uma via de acesso entre o homem e o divino, um contato de identidade entre os espíritos.

Aquilo que encontramos inicialmente na imagem dos peregrinos sobre o gelo e veremos repetir-se inúmeras vezes no decorrer do filme — homens e mulheres que rastejam, engatinham, anciãos que curvam-se à gravidade para tocar nas águas, na terra e sua vegetação —, também pode representar mais uma dimensão do que conecta o homem à natureza dentro do imaginário primeiro de Herzog. A integração entre a humanidade e o mundo físico que a cerca, constante temática do diretor, é concebida em Sinos do Abismo como numa perspectiva cósmica, ontológica. Os indivíduos que atravessam a tela, a imensidão de tomadas que contrastam o horizonte e fazem dos corpos, pontos no espaço, o enquadramento de árvores que verticalizam a imagem e conectam o chão aos céus, são todos elementos de um olhar que também confessa sua maneira de crer. O que Herzog alcança com seu filme não é somente um painel de credos e práticas, sua compilação dá forma e contorno a uma busca que é do homem e consequentemente de seus meios de expressão, no caso, do próprio cinema. Concretizar o impossível, dar a ver o invisível, anseios de Herzog a cada filme, cena ou plano realizados, necessidades da alma.

FacebookTwitter

Lições das Trevas (Werner Herzog, 1992)

Por Robson Galluci

A vida sem fogo torna-se insuportável para os bombeiros ao final de Lições das Trevas, para grande surpresa e consternação do espectador, depois de o filme investir tempo considerável retratando os esforços necessários para apagar as chamas em um único poço de petróleo — e, como vários planos impressionantes filmados de helicóptero nos mostraram, há muitos deles, muitíssimos, centenas ou até milhares: em um gesto que o narrador consegue conceber apenas como loucura, vários grupos se asseguram de que terão de novo “algo para extinguir”. O público sabe que os poços de petróleo estavam em chamas em primeiro lugar também como resultado de agência humana, por mais que a faceta documental nunca seja assumida explicitamente e o filme se desenrole como um híbrido de narrativa e ensaio de ficção científica (num procedimento não muito diferente do que rege Fata Morgana, e com a mesma carga de radicalismo estético); Herzog se utiliza dessa camada de conhecimento que o espectador acrescenta ao texto da obra para, nesses movimentos de incêndios criados, contidos e recriados pelo homem orquestrar sua sinfonia da destruição — porque, no fim das contas, é isso que Lições das Trevas representa, tanto em si próprio quanto como um certo ponto de chegada de vários temas e procedimentos cultivados pelo diretor ao longo de sua carreira.

O choque de realidade que a presença da natureza causou em tantos personagens e em nós é aqui amplificado, de modo que não é apenas uma natureza ameaçadora, indiferente e desconhecida que se coloca diante da câmera, mas todo um mundo cuja familiaridade desaparece sob um olhar peculiar, uma sensação de estarmos contemplando uma paisagem totalmente alienígena e no limite inapreensível; o narrador tem tantos problemas para estabelecê-la e entendê-la com clareza quanto nós, e tudo se dá por aproximações e metáforas, até que uma direção histórica geral — o fim — se torna evidente, e com ela um padrão de comportamento apareça entre seus habitantes: eles estão nesse planeta desolado sem que isso lhes gere algum tipo de conflito do qual os sonhadores e loucos de Herzog não escapariam sob nenhuma hipótese. Estão, diferente da maioria dos protagonistas da obra do diretor, em paz, ou harmonia, com o mundo que os cerca, mas, ironicamente, essa harmonia se concretiza nos termos apocalípticos e destrutivos que dominam todo o filme: a harmonia, quando enfim dá as caras no universo herzoguiano, vem como caminho para a aniquilação e para o colapso.

Colapso este que a epígrafe faz notar que se dará, como a criação, em grandioso esplendor, e é sem dúvida de forma majestosa que Herzog retrata os poços incendiados, o que levou-o a ser acusado de estetizar o horror da guerra. O horror que Lições das Trevas busca, porém, é muito mais vasto e fundamental (embora não deixe de se contaminar por terrores mais próximos e concretos, como a história de uma mulher e seu filho, que invade a narrativa de forma inesperada, e, significativamente, imediatamente antes de testemunharmos toda a quase inacreditável extensão das chamas, do desastre de proporções cósmicas que Herzog já mencionou ao falar sobre o filme), embora, como a obra pregressa do diretor se encarregou de mostrar vez após outra, esse horror primordial não venha sem seu lado inegável e terrivelmente belo; e o texto recitado pelo narrador, com reverberações apocalípticas (e em muitos momentos com paráfrases ou citações diretas do Apocalipse), não deixa dúvida de que o que nos está sendo mostrado é, de maneira poética mas também literal, o fim desse mundo, ou uma imagem possível dele. O homem herzoguiano finalmente encontra uma síntese para resolver seu embate milenar com a natureza, mas é na forma de uma simbiose destrutiva. Quando os fogos se apagam, há que acendê-los de novo para continuar, uma dança da morte que se estende para todo o universo.

FacebookTwitter

No Coração da Montanha (Werner Herzog, 1991)

Por Filipe Chamy

A princípio, No coração da montanha é um filme igual a tantos outros de Herzog: trata-se do clássico embate homem versus natureza, com as adequadas discussões sobre a megalomania mundana e a perenidade das forças naturais.

Ocorre que essa leitura se verifica além da superficialidade — de fato, o filme possui esse mote.

Claro que isso não é tudo: caso Herzog fosse um cineasta acomodado, limitar-se-ia a uma zona de conforto e não procuraria sair nunca dali, sem qualquer razão que desmotivasse sua inércia.

Neste No coração da montanha Herzog acaba se voltando mais para um comentário social do que para um simples relato de viagem. Claro, ela está lá; e da maneira predileta do diretor, numa terra distante e de desafios intrínsecos. Há neve, há montanhas, há a imensidão geográfica. Mas há, além disso, a crônica intrusiva contemporânea, a televisão e o registro incessante dos passos fúteis das pessoas. Uma pitada de realidade numa fábula de superação, de desafio. Qual pico é mais inacessível, o de um monte gelado e de altura assombrosa ou o do sucesso pessoal respaldado pela imprensa? Como Herzog prova a todo instante (pelos dramas encenados por suas personagens), não basta estar num lugar, é preciso registrar (e portanto documentar) essa atividade. Daí o momento-chave em que uma elipse insinua a dúvida sobre um feito alegado mas nunca realmente esclarecido.

Resgatando sempre a cada obra a admirabilíssima habilidade de forçar o espectador a partilhar os sentidos e dores das pessoas que segue (inclusive em seu cinema de documentário), Herzog abrasa o gelo com intensidade precisa e demonstra sensatez ao não se deixar perturbar pela tentação de virar um “paisagista”, mostrando o oco de um cenário sem alma, árido por constituição; não, aqui se trabalha o palco de um drama em que as figuras humanas não se deixam ofuscar pela grandeza das proporções do ambiente com que se relacionam — e com isso o filme fica forte como o imponente Cerro Torre, mas infinitamente menos frio.

FacebookTwitter

Jag Mandir (Werner Herzog, 1991)

Por Filipe Chamy

Já se cantou que o Brasil nunca foi ao Brazil; segregações sociais à parte, diversos fenômenos históricos e culturais também nos impedem de ir a outras paragens mais distantes. O “Oriente”, por exemplo, ainda nos parece tão exótico quanto nos romances de Emilio Salgari. Não entendemos seus códigos, suas tradições, sua cultura. Ficamos meio anestesiados quando confrontados com certas demonstrações de suas gentes, seus povos. Isso é devido a milhares de fatores desenvolvidos ao longo da história, mas o fato é que, na verdade, com certas diferenças de língua e geografia, não somos assim tão diferentes de nossos irmãos do outro lado do globo.

É um pouco abstrato observar este registro que Herzog fez de uma cerimônia em honra de uma celebridade política indiana; mas não o são também nossos concertos de música, arte performática, circos? É tão difícil considerar-se próximo a representações de movimentos, cantos e danças que evocam sentimentos e certas considerações sobre a sociedade que se habita?

Estamos junto aos indianos no esforço em viver em áreas superpopulosas, quentes, com natureza abundante e por vezes selvagem, agressiva. Macunaíma bem pode ser tido como um irmão de criação de Mowgli, e é no carnaval brasileiro onde se tem a chance de perder um pouco do velho ranço xenofóbico deixado em nós pelos colonizadores e perceber que, afinal de contas, nossos costumes são tão “exóticos” quanto o de qualquer país.

Talvez para deixar a experiência mais “palatável”, Herzog investe aqui em uma pequena narração (seguida a uma introdução), em que explica um pouco dos motivos do evento que filmou e alguma coisa de suas origens e especificidades. Nada muito acadêmico, contudo: acredita-se que boa parte do relato foi inventado pelo diretor, inclusive.

Então ficamos por pouco mais de uma hora por dentro de um balé especial feito artesanalmente por um povo de pele morena curtida do sol, roupas coloridas e marcantes, filosofia e religião abundante em símbolos, imagens sugestivas, fortes marcas de uma expressão serena em sua convicção. É com admiração que se nota o empenho no arregimentar de forças para o espetáculo: não é apenas aqui, também reconheçamos, que marajás dispõem de dinheiro para suntuosas comemorações.

É nas comemorações, portanto, que se estabelece o símbolo da unidade e da fragmentação: o poderio de um homem, a explicitação das mazelas de desigualdades de classes (sempre notadas na Índia), uma certa rigidez nas regras de conduta e convívio; ao mesmo tempo, o desejo de se perpetuar uma cultura em vias de extinção (talvez a grande ambição de Herzog ao topar o projeto), a fraternidade que iguala as pessoas que participam do teatro, o escapismo dessa farsa (no sentido cênico).

Jag mandir não foi o único filme de Herzog em terras algo menosprezadas pela cartografia ocidental; fica clara a posição do cineasta de mostrar em seus trabalhos locais desolados mas de vivo pulsar de experiências humanas, pois no final somos todos modificadores de ambientes inóspitos e nossos passos na Terra significam uma contribuição a esse espaço — o que este documentário parece reforçar a cada quadro, de uma maneira ou de outra.

FacebookTwitter

Ecos de um Império Sombrio (Werner Herzog, 1990)

Por Fernanda Canofre

Paul Rotha, um documentarista britânico, disse certa vez que documentários não podem ser de maneira alguma uma reconstrução histórica e que aqueles que tiverem esta ambição já estão fadados ao fracasso. Para Rotha, o filme documental era um fato contemporâneo expresso através de associações humanas. Nos documentários de Werner Herzog, temos a teoria de Rotha colocada em prática. O diretor alemão sempre rejeitou a distinção técnica entre filmes de ficção e documentário, declarando inclusive que, o vocábulo “documentário” era apenas uma forma disfarçada de dizer feature film (filmes que, segundo o dicionário Oxford, trazem uma história, mas não são documentários). No universo de documentários de Herzog, a experiência humana vale mais do que os fatos, do que aquilo que entendemos por “real” ou “verdade”. Assim, para compreender a mensagem contida em cada frame de uma produção herzoguiana, temos de ir além daquilo que está contido no view finder da câmera. Mesmo que a história mostrada na tela seja compartilhada com os personagens do filme (quem de fato a viveu) e com outros espectadores, a experiência fílmica que cada indivíduo-espectador vive é sempre algo pessoal e intransferível, uma vez que só ganha significação através de sua psique.

Em Echoes from a sombre empire (1990), Herzog retoma a estrutura de outros trabalhos, usando um personagem-guia para conduzir o roteiro. Acompanhamos a trajetória de Michael Goldsmith, jornalista suíço e cidadão britânico, em sua busca para desvendar quem foi Jean-Bedel Bokassa, o homem responsável por um dos piores momentos de sua vida. Em um encontro com uma das esposas de Bokassa, o jornalista explica calmamente suas razões para estar ali, dizendo: “Eu tenho uma razão especial para estar interessado no Imperador. Ele quase me matou uma vez”. Em 1977, ano em que Bokassa resolveu criar para si mesmo uma cerimônia de coroação, Goldsmith era correspondente de uma agência de notícias na África do Sul. Enviado para cobrir o evento onde o presidente golpista assumiria o título de imperador, o jornalista partiu para Bangui, na época a capital da República da África Central. O texto de Goldsmith, falando sobre os exageros da cerimônia, acabou sendo interceptado pela polícia local quando era transmitido por telex para a agência. Bokassa, além de não ter gostado do tom de deboche utilizado pelo repórter, ainda concordou com a análise de seus soldados, para quem, os erros de datilografia eram na verdade uma mensagem secreta transmitida por um espião. Michael foi então levado a presença do Imperador Bokassa I, onde, sem tempo ou direito de explicar o engano, foi condenado a pena de morte. O filme de Herzog é a escolha de Michael de revisitar o local onde esteve preso e foi torturado, como uma forma de recuperar peças perdidas de sua memória. Echoes inicia com Herzog na frente da câmera lendo uma carta escrita pelo seu personagem, direcionada a ele. O diretor explica que naquele momento, Michael Goldsmith está desaparecido e a equipe não consegue nenhum contato com ele. Na carta, vem a explicação de que a razão do filme não é apaziguar uma consciência ferida por um regime totalitário ou servir de consolo para noites sem dormir, mas sim, um sonho que atormentou Michael duas vezes. Nele, caranguejos alaranjados saem do mar e começam a invadir a terra. Logo, Herzog e seu escritório desaparecem. As imagens dos caranguejos ocupam seu lugar. Aos poucos eles vão dominando paisagens em diversos planos. Porém, somos atingidos pela força deste domínio, que a princípio parecia apenas a representação de uma ação surreal, quando nos deparamos com um plano curto, mostrando trilhos de uma ferrovia tomados pelos animais. Ao fundo, um trem vem se aproximando e apitando como que lançando um apelo para que os bichos se afastem. Não parece funcionar. O trem, grande o bastante para esmagar os caranguejos invasores, parece impotente diante deles. A ideia que imediatamente nos vem a cabeça é: “Os caranguejos já foram longe demais”.

O sonho que assombrou Goldsmith parece a metáfora da ascensão de Jean-Bedel Bokassa. Filho de um camponês, Bokassa teve o pai assassinado quando ainda era criança. O alistamento voluntário no Exército francês, aos 18 anos, foi a forma encontrada por ele para superar a perda e trazer orgulho a família. Depois de vinte anos servindo sob a bandeira da França, em grandes conflitos como a Segunda Guerra Mundial, a Primeira Guerra da Indochina, entre outros, Bokassa retornou a sua terra natal. A ex-colônia francesa, já havia se tornado uma nação independente com o nome de República da África Central, e era então presidida pelo seu primo, David Dacko. Este havia convidado Bokassa para participar do projeto que deveria criar um Exército nacional para o país. Bokassa, porém, depois de algumas discordâncias com a política de Dacko e seu gabinete, preparou o golpe militar que o colocaria no poder pelos próximos treze anos. Seguindo os passos de Napoleão Bonaparte, seu grande ídolo, primeiro ele fazia parte de um governo de transição, que ganhou reconhecimento de grande parte da comunidade internacional. Bokassa foi recebido em Assembleias da Organização das Nações Unidas e em uma audiência com o Papa. Mas em 1976, para se consolidar no poder, Bokassa baixou um decreto transformando a república em Império. Um ano depois, em uma cerimônia que teria custado 20 milhões de dólares, ele se coroou Imperador com o título de Bokassa I. Nessa época, a comunidade internacional havia começado a ter problemas para definir onde terminava sua a excentricidade e onde começava o comportamento de um líder insano. Até a coroação, a França ainda mantinha contatos com sua ex-colônia, tendo inclusive ajudado na cerimônia, enviando um batalhão para reforçar a segurança e dezessete aeronaves para o desfile. Mas isso não durou muito tempo. Menos de dois anos depois, seria a própria França quem organizaria o golpe responsável por derrubar Bokassa. As denúncias de violações de direitos humanos que aconteciam sob seu governo, não deixaram que ele permanecesse no poder. Porém, por mais bizarros que a personalidade e o comportamento de Bokassa soem, quando um de seus advogados de defesa, cita no filme uma frase de Saint-Just, lembramos que os tiranos só existem porque a humanidade inteira o permite: “O poder absoluto corrompe absolutamente”. Ou seja, Bokassa e seu Império bizarro, só foram realidade porque o mundo civilizado o reconheceu e legitimou.  Mas não é na discussão política que Herzog está interessado. Partes dessa história são contadas no filme através de imagens de arquivo, depoimentos de pessoas que viveram o antes, durante e depois dos anos Bokassa, porém a maneira como ele chegou e como foi derrubado do poder não entram no roteiro. Herzog tentou entrevistar o ex-líder, que na época do filme se encontrava preso na República da África Central, mas não conseguiu. Assim, sobrou-lhe a alternativa de usar imagens de arquivo de entrevistas de Bokassa e dos momentos mais importantes de seu governo. O que acaba por ajudar a alimentar o caráter folclórico de seu personagem. Bokassa em vídeo, se defendendo através de uma fala exacerbadamente patriótica, é a personificação de um personagem de opereta, como o próprio Goldsmith o define. No seu mundo tudo parece falso, as peças não parecem pertencer ao cenário onde são forçosamente dispostas. O que torna o homem, que se dizia descendente de faraós, ainda mais intrigante, para nós e mesmo para aqueles que conviveram com ele e que parecem nunca ter conseguido compreendê-lo.

Sem a entrevista com Bokassa, o percurso de Michael para responder suas grandes questões sobre o ditador é preenchido com a presença de personagens que viveram e testemunharam as grandes histórias ligadas ao nome dele. Essas histórias, aliás, transformam Bokassa em uma figura ainda mais contraditória e bizarra. Em um momento do filme, por exemplo, acompanhamos o caso das duas Martines. Enquanto servia como soldado francês no Vietnã, Bokassa casou-se com uma vietnamita com quem teve uma filha. Tendo sido relocado, acabou tendo de deixar as duas para trás. Porém, assim que se tornou presidente da África Central, uma de suas primeiras ações foi entrar em contato com o Embaixador francês para que localizasse sua filha. Para agradar o novo presidente, importante aliado, a França apresentou rapidamente uma garota, dizendo ser a filha perdida que ele buscava. Pouco tempo depois, a mãe da verdadeira Martine decidiu aparecer e levar sua filha para junto do pai. Ela provou ser a verdadeira mulher com quem Bokassa se relacionou enquanto esteve no Vietnã, ao falar sobre o dedo quebrado que o ditador sempre tentou esconder com um anel. Bokassa reconheceu a filha verdadeira, mas não desamparou a falsa Martine. As duas casaram-se no mesmo dia, na mesma festa e receberam do pai o mesmo presente para evitar qualquer problema de ciúmes. A parte intrigante da história é que, o mesmo homem capaz de acolher quem tentou dar-lhe um golpe, acabou sendo o responsável pelas mortes dos maridos das duas filhas. O marido da falsa Martine, Capitão Oubrou, foi acusado de estar por trás de um golpe de Estado que pretendia derrubar Bokassa e restituir Dacko no poder. Quando o golpe foi escancarado, Oubrou foi preso, torturado e condenado à morte. Não satisfeito, Bokassa ainda teria ordenado a morte do filho recém-nascido de Oubrou, encarregando para isso o marido da outra Martine, Dédé Abodé. Assim que o crime foi descoberto, Abodé também foi condenado a morte. Se para seu país Bokassa foi um assassino cruel, capaz de práticas como arrancar orelhas de ladrões, torturá-los e expôr os cadáveres daqueles que acabavam morrendo, para seus filhos ele parece ter deixado boas memórias. Dos 54 filhos que o ditador reconheceu, conhecemos menos de dez no filme. Em um trecho, Herzog e Goldsmith conversam com as crianças que vivem no Chatêau da família, nos subúrbios de Paris. Elas contam o que sabem sobre as mães com quem não conviveram, riem dos boatos de que seriam canibais e parecem saber pouco sobre quem o pai fora publicamente. De uma destas entrevistas, aliás, vemos surgir um traço importante dos documentários “históricos” de Herzog. Uma das meninas começa a contar sobre sua mãe que a deixou com dois meses de vida. Diz que ela foi uma dançarina romena por quem o pai se apaixonou. Segundo ela, a mãe queria se tornar imperatriz ao lado de Bokassa, porém, como não era natural da África Central a lei não permitia. Assim, ela acabou partindo. O relato parece encerrar a história, que não é contestada pelo diretor, nem contraposta com o que diz a História oficial. Ele dá voz ao personagem, entregando-lhe o direito de criar a sua verdade dos fatos. Porém, mais adiante, quando já nos esquecemos da esposa romena, duas outras fontes acabam ressuscitando no filme uma das lendas mais famosas de Bokassa. Dacko e o advogado de defesa, Szpiner, contam que depois de levar a romena para viver em seu país, Bokassa a teria colocado viver em uma casa afastada, onde não ia muito frequentemente. Para se vingar por sua negligência e ganhar sua atenção, a dançarina teria seduzido todos os seguranças e dormido com todos eles na cama do ditador. Assim que ele descobriu mandou que prendessem e executassem todos aqueles que o traíram. Para a romena, teria sobrado apenas a deportação. Porém, tempos depois, descobriu-se que ela era na verdade uma agente da Securitate, polícia secreta romena, que foi trazida de volta para o país quando seu disfarce estava prestes a ser desvendado.

Mais forte que a história da romena, eram os boatos de canibalismo cometido dentro do palácio do governo. Goldsmith visita a cozinha do prédio em ruínas e pergunta para o homem que está servindo como seu guia se isso era verdade. Ele confirma. Dacko confirma. Fotos que servem para ilustrar estes trechos parecem confirmar. A existência de uma sala que funcionava como freezer confirma. Bokassa, em entrevista, nega. A questão da antropofagia aqui parece servir para acentuar as tintas de uma personalidade já assustadora pelas suas práticas de tortura. Mesmo no julgamento que condenou Bokassa pela segunda vez a pena de morte, a acusação de que ele preparava e comia carne humana com frequência, acabou virando um pequeno detalhe do júri e ficando quase despercebida perto dos crimes que o condenaram de fato. O evento responsável pela queda de Bokassa, por exemplo, onde 100 estudantes, entre crianças e adolescentes, foram mortos quando protestavam por serem obrigados a pagar uniformes caros que estampavam a foto do ditador, não é mencionado no filme. Mas testemunhas vieram ao tribunal relatar que o próprio imperador havia esmagado o crânio de dezenas de jovens com sua bengala no dia da manifestação. Werner Herzog disse certa vez que faltavam “imagens adequadas” na nossa civilização. O diretor ainda complementou dizendo que a civilização estava condenada ou que poderia ser extinta, como os dinossauros, se não desenvolvesse uma “linguagem adequada” para “imagens adequadas”. Em um mundo onde alguém como Bokassa é autorizado a assumir o papel de Estado e comandar uma nação, o que é adequado? Antes de comandar um governo dos horrores, ele lutou com o uniforme dos Aliados, aqueles homens que o próprio cinema nos ensinou serem os mocinhos, contra os nazistas. Mesmo quando se sentou em um trono todo de ouro, em formato de águia, quando montou um grande teatro tentando reconstruir os dias de glória de Napoleão I, quando estava matando pessoas para manter e legitimar seu poder, Bokassa ainda era uma figura reconhecida pela civilização. Por isso, os planos recorrentes nos filmes de Herzog de animais, talvez nunca tenham se encaixado melhor do que nos minutos finais de Echoes from a sombre empire. Ao visitar o que sobrou do zoológico particular do ditador, Michael Goldsmith para em frente a jaula de um chimpanzé. O macaco estende a mão. O jornalista não entende. O guia explica que ele está pedindo um cigarro. Michael, levemente desconfortável, tira um cigarro do bolso e o entrega para o guia. Este, depois de acendê-lo, alcança para o chimpanzé. Com a desenvoltura de um humano, veterano no vício, o macaco traga e solta a fumaça. Goldsmith diz não aguentar mais ver aquilo, pede para Herzog encerrar o filme e prometer que aquela será a última cena. O diretor cumpre a promessa. O documentário termina nos deixando ainda mais carentes das tais “imagens adequadas”, ainda em falta.

FacebookTwitter

Giovanna D’Arco (Werner Herzog, 1989)

Por Fernando Mendonça

Pouco se comenta da relação que Werner Herzog nutre com a ópera dentro de sua carreira. Desde 1986, ele iniciou uma espécie de jornada paralela àquela mantida com o cinema, envolvendo-se na realização de inúmeros operísticos (o mais recente, de 2008, já conta seu 26º trabalho), que, apesar de não estarem relacionados diretamente com sua perspectiva no audiovisual, contribuem para uma compreensão dos valores por ele mantidos em seus interesses estéticos.

Como ele mesmo declara, a ópera é um universo em si, um mundo completo, um cosmos transformado pela música. Estes mesmos princípios, de maneira evidente, também estão presentes nos filmes que Herzog dirigiu, de exemplos mais óbvios como Fitzcarraldo (1982) a praticamente qualquer um de seus títulos, cada um deles dotado de cosmogonia autônoma. Se uma das características do cinema de Herzog é determinada proximidade – ou anseio por ela – ao conceito de obra de arte total, aquele mesmo de Goethe e dos românticos, nada mais natural que ele venha ser motivado pela experiência criativa na qual se funda o caráter da ópera, das manifestações humanas a que mais longe foi (e o tempo é passado porque o cinema surgiu) na direção de originar novos universos.

Se Herzog faz questão de acentuar a diferença entre os meios de uma e outra arte, comparando cinema e ópera a cães e gatos que nunca serão apaziguados, é porque cada uma tem a sua especificidade diante do mundo, não importa a semelhança coletiva de representação que as compõe. Segundo ele, a ópera se destaca por trabalhar as emoções de forma extremamente concentrada, num rigor quase matemático; e assim, se as emoções fluem de maneira diferente nela, obrigatoriamente o tempo também precisa ser alterado em sua dimensão. É por transformar o mundo em música que a ópera libera os fatos de sua veracidade a um nível ainda mais profundo, onde tudo se torna repentinamente possível, onde a abstração surge como o mais fidedigno reflexo da realidade.

É curioso que, dentre tantos trabalhos do diretor nesse viés de representação, o único que tenha vencido o caráter efêmero da performance (justamente pelo registro em audiovisual) seja Giovanna D’Arco, variação de uma personagem (Joanna D’Arc) já íntima do meio cinematográfico, presente no imaginário de cineastas muito admirados por Herzog. A produção televisiva que ele aqui co-dirige, sétima ópera de Giuseppe Verdi com libreto de Temistocle Solera (catastrófico, segundo o próprio Herzog) seria mais uma vez encenada sob o seu olhar no ano de 2001, o que indica tratar-se de um trabalho significativo para sua sensibilidade.

Que não se espere de um filme assim a liberdade típica do Herzog cineasta. Compreender seu ponto de vista sobre a relação cinema e ópera é fundamental para perceber que, ainda distante do mero registro, seu trabalho com a câmera submete-se a uma liberdade anterior, que emana do palco, das vozes, dos instrumentos (magistralmente regidos por Riccardo Chailly). Ao mesmo tempo em que Giovanna D’Arco pereniza-se em imagens de um distinto rigor – desde o primeiro plano, sobre os lustres do Teatro Comunale di Bologna, fica evidente um olhar que foge ao ordinário, que procura no contraste de luz e sombra uma motivação que justifique o audiovisual -, em nenhum instante Herzog pretende ofuscar as qualidades intrínsecas ao domínio que obedece.

Se em outros momentos veremos Herzog refletindo a ópera pelo seu avesso, como no exemplo de Die Verwandlung der Welt in Musik (1996), espécie de making off introdutório para uma série de transmissões operísticas da TV alemã, em Giovanna D’Arco temos apenas uma experiência de espelho, reflexo de um movimento cênico que é tratado com a reverência devida. Apenas um registro de humildade. Um ‘apenas’ que é tudo.

FacebookTwitter

Cobra Verde (Werner Herzog, 1987)

Por Luis Henrique Boaventura

“I think about a time when I will be relaxed.
When flames and non-specific passions wear themselves
away. And my eyes and hands and mind can turn
and soften, and my songs will be softer
and lightly weight the air.”
— Amiri Baraka

É claro que o ritmo que Herzog imprime ao prólogo de Cobra Verde (cantado por um repentista sertanejo, para se ter ideia da serenidade de que o filme parte) não condiz com a sobrevinda de Klaus Kinski à tela. Mas a ruptura é indispensável. O plano em questão abre num corte seco e com um close absurdo. Em seguida, a câmera inicia uma bela sequência de movimentos: vai paliar o choque do encontro num vagaroso recuo em zoom out, iniciar um giro sobre si mesma, rastrear o horizonte em busca de algum alento e reencontrar Kinski do outro lado, num elíptico 360. Nada se acha nesse intervalo, só mais poeira e sertão, num circuito que é, em escala, o mesmo percurso do traficante Cobra Verde. De bandido, peão, herói e general a bandido outra vez, sempre em fuga, sempre em desespero.

A obsessão de Cobra Verde em fugir do Nordeste (na forma de um sonho mais inocente: o de ver o mar, muito porque a ideia de mar é oponente exata à de sertão) o leva a cruzar o oceano, aonde, para sua surpresa, apesar da grandeza da expedição e da imensa distância, vem a encontrar uma terra tão seca quanto a sua, com negros tão negros quanto os seus. Não há possibilidade de fuga porque logo em sua primeira cena, de joelhos sob uma cruz de paus e envolto em ossadas de boi, Herzog o concebe como componente inapartável da paisagem. Cobra Verde é terra e tronco desse sertão, é escombro da raça aniquilada, ruína de uma gente que já teve sua chance. E no que se refere a isto de nada vale ir do leito de morte ao nascedouro, nem tentar retornar, porque a África e o Nordeste compartilham sua matéria-prima. A paridade da terra, do clima e da gente entre ambos aponta para dois gêmeos há muito separados e esquecidos um do outro, religados mais tarde, pelo homem branco, em horrenda transfusão.

As hordas de negros que cantam em uma praia em Gana parecem ecoar a voz do escravo que delas se desprendeu, aquele que reclama ao senhor de engenho sua orfandade irreparável nas bases de um tronco em Pernambuco. Há aí um diálogo inaudível, gritos que se lançam e caem ao mar antes de encontrarem um ao outro no meio do caminho. E é irônico que Herzog, ao narrar a história do maior traficante de escravos do Brasil, confira a ele a ternura da esperança, da saudade e do desengano, três turning points capitais (nessa ordem) da aventura do africano em direção ao brilhante Novo Continente. É por isto que o tom de derradeiro repouso (de retorno pacífico para casa, ou seja, para a terra) nos versos de Amiri Baraka (militante da dessegregação, ensaísta da escravatura, dramaturgo dos navios negreiros) serve menos ao povo torturado e escravizado do que ao próprio Cobra Verde.

Esse desejo de voltar sempre, que é perene, é intranquilo de natureza e inerente ao ser humano, dá origem a uma cena final que é o duplo exato de retorno/repouso que os esforços de Cobra Verde miram desprovidos de decisão, apenas instinto. A três passos do mar, o derrotado aventureiro não consegue mover o bote até a água (é pesado demais). Meio-vivo, ele se projeta em falso contra a areia da praia. Sem outra opção que não a de retroceder pela primeira vez em vida, Cobra Verde resgata uma energia primeva e desconhecida, puxa as cordas do bote como se a fim de reatá-lo puxasse todo o continente, e cedendo enfim ao cansaço, tomba na água feito um corpo baleado somente para encontrar na precipitação da queda um último vestígio de vínculo neste oceano do exílio: a luminosa, de brilho impossível, de natureza absurda e fabular, a por tanto tempo sonhada água do mar. Tão salgada e quente quanto a terra e a sede no Sertão.

FacebookTwitter

The Dark Glow of the Mountains (Werner Herzog, 1985)

Por Murilo Lopes

Em março de 2010, escrevi para o antigo blog Multiplot! um texto sobre este mesmo documentário de Werner Herzog, The Dark Glow of the Mountains, e revisá-lo tanto tempo depois foi um exercício interessante. Lembro de tê-lo assistido por conta de dois pequenos furores pessoais: o montanhismo (esporte sobre o qual li intensamente nos últimos anos, fascinado pelas conquistas dos lunáticos que vão para o meio do nada subir montanhas perigosíssimas) e os documentários de Herzog. Sobre estes, digo que me conquistaram a tal ponto que, até hoje, fico imensamente mais ansioso por um documentário do que por algum filme “de ficção” de Herzog. O velho alemão tem algo a mais do que, simplesmente, “mão” para fazer documentários.

O envolvimento de Herzog com seus objetos de estudo escapa ao simples interesse, exibindo seu próprio fascínio de maneira contundente e reveladora. De repente, o espectador que se sentou para assistir a um documentário sobre montanhismo está assistindo, também, a um diretor de cinema que, aos poucos, desnuda suas obsessões, dúvidas, certezas e defeitos em uma espécie de busca pessoal, como se fazer um documentário fosse não mais que uma maneira de expor seus pensamentos e, quem sabe, provar alguns argumentos. A cada documentário de Herzog visto, a figura do cineasta, do artista e, principalmente, do ser humano fica mais e mais nítida. Quando Herzog vai à Antártida visitar um centro de pesquisa ou a uma reserva ambiental no Canadá conhecer o local onde um ambientalista passou seus últimos treze verões protegendo ursos pardos, ele está muito mais do que documentando: está atrás de algo que o intriga e o motiva.

Sendo assim, é interessante repensar este The Dark Glow of the Mountains. Embora não seja um dos primeiros documentários de Herzog (é o décimo dirigido por ele), ainda assim é um demonstrativo um pouco mais antigo desse auto-desvelamento que ele fornece quando vai com uma câmera para um local inóspito filmar algo que o instiga. Neste caso, Herzog acompanha Reinhold Messner (o maior montanhista de todos os tempos) até o acampamento-base dos picos Gasherbrum, aos quais Messner e Kammerlander tentarão atacar. Em meio a detalhes técnicos sobre as montanhas, as altitudes e os riscos de se aventurar em ambientes totalmente selvagens e incompatíveis à sobrevivência humana, Herzog parece procurar entender o que, de fato, leva os dois montanhistas a uma empreitada tão extrema. Esta última questão é direcionada de maneira mais particular justamente a Messner, que havia perdido o irmão na montanha Nanga Parbat (Paquistão) e que, portanto, tinha motivos de sobra para desenvolver completa aversão às montanhas.

Enfim, o que permanece de minha primeira leitura sobre este documentário é que é realmente fascinante perceber que Herzog deixa, propositadamente, uma brecha em seus questionamentos: se as atitudes de seus objetos de estudo são tão extremas e tão obsessivas, por quê Herzog os segue? Este se mostra um verdadeiro caminho para o contra-ataque que seus entrevistados jamais chegam a usar, talvez por não terem percebido ou talvez por, simplesmente, não se importarem nem um pouco com tal brecha. Mas a impressão que fica é justamente que o diretor queria ser bombardeado com questões sobre sua suposta contradição. Porém, embora estes questionamentos não sejam expostos na tela, a analogia entre o aventureiro e o artista está feita. E, acima de tudo, a persona de Herzog ganha mais um capítulo, mais uma dimensão. Herzog é um cineasta-documentaria-ser humano que não cansa de se descobrir.

FacebookTwitter

Ballad of the Little Soldier (Werner Herzog, 1984)

Por Daniel Dalpizzolo

Ballad of the Little Soldier foi apontado à época como o documentário mais político de Herzog, uma afirmação que, conforme foi empregada, é questionada pelo próprio autor. “[O filme] É sobre crianças lutando na guerra, e não sobre os sandinistas ou Somoza”, disse o cineasta ao justificar que seu trabalho não teria interesse em defender nenhuma das posições ideológicas da batalha da Guerra Civil nigaraguense, mas apresentar ao mundo uma situação extrema gerada pelo conflito: a militarização dos índios misquitos, nativos de uma área do país atacada pelos sandinistas que, para se defenderem das investidas dos rebeldes, despiram-se da sua própria cultura para aprenderem a lutar com armas de fogo e técnicas militares, criações da selvageria do mundo civilizado que até então desconheciam.

O tom humanista do projeto colocou este telefilme de 45 minutos, co-dirigido com o jornalista franco-alemão Denis Reichle, em choque com o próprio conflito ideológico da guerra. Ballad of  the Little Soldier foi filmado in loco e veiculado enquanto o fato ainda ocorria no país. Logo no início, para contextualizar o sofrimento dos nativos, o filme destaca histórias crueis que relembram a violência sofrida por eles durante os ataques. Acusado por isso de se posicionar contra os sandinistas, Herzog define-se com poucas palavras: “Sou a favor dos misquitos”, reforçando a indignação com o massacre e com suas consequências, em especial para as crianças e adolescentes sobreviventes.

Apesar de lidar com um delicado embate ideológico em seu entorno, Ballad of the Little Soldier está muito menos  — ou nada — preocupado em discutir a guerra civil nicaraguense do que em investigar o impacto que os conflitos bélicos exercem na concepção de valores destes jovens crescidos em meio à violência gerada por eles, em uma realidade que os coloca seguidamente, já no início da vida, em contato direto com a morte, tendo que lidar abertamente com o medo, a perda de familiares e os sentimentos que suscitam desta perda — em especial o ódio, e o quanto ele pode se tornar um elemento desumanizador para uma geração que se constroi submissa à brutalidade da guerra. Ao voltar suas lentes às crianças nicaraguenses, Herzog implanta uma discussão que vai além do país retratado, propondo uma reflexão sobre parte significante da história do século XX, escrita em ruínas de batalhas intra e extra-territoriais.

Se existe, porém, algo de extremamente político nas escolhas de Herzog para a concepção de Ballad of the Liittle Soldier, diz respeito muito mais à forma com que ele opta por trabalhar seu material em favor de suas observações e questionamentos particulares sobre o tema; à maneira com que aproveita o formato documental não com a pretensão de um retrato cru da realidade, mas de um recorte desta realidade para a defesa de um princípio e de um ponto de vista próprio e consciente — um método que, é claro, também pode ser colocado em xeque, como não raramente ocorre nas discussões morais que o documentarismo de Herzog proporciona. A Herzog não bastaria olhar para o mundo e não filtrá-lo e devolvê-lo ao espectador como resultado de seu contato com ele, independente do que se discute ou do gênero em que se instala. No que diz respeito a Ballad, não são necessárias mais que duas ou três imagens ou entrevistas para percebermos que a defesa empreendida por Herzog vai além de qualquer questão moral — pois diz respeito à própria razão da vida.

Neste contexto, há uma melancolia muito forte na metade final do filme, quando acompanhamos o treinamento dos pequenos misquitos, apoiados por forças militares estrangeiras, para irem ao campo de batalha vingar a morte dos seus pais, irmãos e amigos — como enfatiza um dos entrevistados do filme, um garoto que atravessa as noites sonhando com a mãe assassinada no massacre, e que não vê a hora de matar alguns sandinistas imaginando que isso vá ajudar a aliviar a sua dor. As chocantes imagens dos nativos, em geral com idade entre nove e doze anos, caracterizados com roupas militares e desferindo tiros de metralhadoras com suas mãos trêmulas e nervosas, arremessando bombas e aprendendo disciplina e macetes da guerra, surgem como não mais que cenas de preparação para a morte — como diz o próprio professor presente no vídeo, há pouquíssimas chances de saírem vivos desta disputa covarde. À medida que as rajadas de metralhadora sobrepõem-se à inocência e à fragilidade dos soldados, é acentuada também a sensação de que estes jovens não são mais do que reféns da natureza hostil dos homens — e que, não fossem as circunstâncias do conflito, poderiam estar ainda hoje cantando juntos, como faziam na juventude, algumas das suas baladas de amor favoritas.

FacebookTwitter

Onde Sonham as Formigas Verdes (Werner Herzog, 1984)

Por Fernando Mendonça

Onde Sonham as Formigas Verdes é, sem margem de dúvida, o trabalho mais improvável a ser realizado por alguém que acabara de conceber a enormidade cinematográfica que fora Fitzcarraldo (1982). Como um profundo respiro após a exaustão, Werner Herzog retoma aqui um ponto de vista mais discreto do mundo, sem romper com o rigoroso ritmo da jornada anterior, mas investindo numa concepção intimista de narrativa, em que desloca a ambição que antes contaminara as noções elementares do ato fílmico para transferi-la a uma preocupação temática que não se retrai diante da ética e daquilo que seu novo enredo apregoa. Pois também há o lirismo da mensagem, a urgência do que não se pode calar.

 A premissa ecológica agora em questão — talvez aquela que norteie toda a carreira de Herzog —, parte de um acontecimento que o próprio diretor presenciou durante sua estadia na Austrália: a resistência de grupos aborígenes contra a exploração industrial de territórios nativos, ou seja, o desejo de seres que lutam por seu tempo no espaço. Para o filme, no intuito de não tornar muito evidente a relação com os recentes fatos verídicos, foram alteradas algumas variáveis da realidade (o nome da indústria e o produto por ela explorado, no caso do filme, o urânio) e acrescentadas boas doses de invenção, a exemplo do que justifica o empenho dos aborígenes em proteger tão zelosamente aquele pedaço de terra: a crença de que o terreno é lar de uma espécie sagrada de insetos, as formigas verdes. Do recurso imaginativo elaborado por Herzog — que fratura o aspecto documental do roteiro —, irrompe aquilo que eleva seu filme a um patamar além do mero discurso ambiental; confirmam-se nas formigas verdes os anseios de um mundo perdido no tempo, de uma humanidade que já não se lembra das coisas que mais importam, do que não se quantifica ou substitui.

As formigas sonhadas por Herzog, como explica o personagem de um maluco pesquisador que só ganha forma para delimitar verdades mais poéticas do que científicas, são de um nicho especial, que, ao afetar o campo magnético da Terra, modifica paisagens completas. E mais: são formigas que também sonham e rememoram os tempos passados, anteriores ao início do mundo. Assim, o que os guardiões da terra tentam proteger é um estado de memória não compreendido pela lógica do capital, daí ser todo o processo de comunicação entre eles e os homens brancos um percurso desintegrado e impossível de completar. O senso de preservação, mais do que relacionado a aspectos geográficos, procura mesmo o anular das fronteiras, um restabelecimento dos homens com seu meio, seu habitat.

No julgamento encenado para discutir o direito de posse das terras, Herzog insere um dos personagens mais impactantes de seu cinema: um aborígene ancião que fora considerado mudo pelos autos do processo porque a sua língua não é compreendida por nenhum outro ser humano. Último descendente de sua tribo, e, portanto, do dialeto perdido, eis um homem que sobrevive morto para a sociedade, que carrega no corpo uma fantasmagoria muito propícia as imagens que Herzog ordena para representar o caos. Pois se há uma impressão que fica diante de Onde Sonham as Formigas Verdes, ela está essencialmente relacionada ao colapso do mundo, ao caráter apocalíptico já multifacetado por inúmeros momentos na carreira do cineasta.

Não é por acaso que a primeira imagem do presente filme seja a de um redemoinho; e que, próximo ao final do mesmo, repita-se a atmosfera de destruição. O importante, é que nenhuma destas cenas permita a menor sombra de catástrofe, pelo contrário, instaurem uma beleza apaziguadora, restauradora de um equilíbrio sensorial. São, de fato, a moldura que define todo o caminho intermediário da narrativa, confirmando ser este filme um sopro de interlúdio para Herzog. É muito possível considerar Onde Sonham as Formigas Verdes como um movimento filho do que fora iniciado desde Fata Morgana (1971) — a destacar-se o travelling lateral de abertura sobre o deserto, em acompanhamento aos créditos, como um reflexo das longas durações daquela obra-prima —, assim como um movimento pai de Lições da Escuridão (1992) — pois nas perfurações pela busca de urânio todo um presságio do que a exploração petrolífera futuramente fará. Em todos estes casos, é a intromissão de uma dimensão ficcional o que liberta os estados de crise apresentados. Seja num travelling, numa narração em off, ou na ilusão das formigas verdes, há sempre um caminho para que a ficção se estabeleça, para que o cinema se cumpra. É nele que as formigas sonham.

FacebookTwitter

God’s Angry Man (Werner Herzog, 1983)

Por Fernando Mendonça

Enquanto esperava o período de pré-produção transcorrer para as filmagens de Fitzcarraldo no Peru, Werner Herzog não perdeu tempo, investindo na realização de dois filmes irmãos sobre desdobramentos da religiosidade americana. God’s Angry Man e o posterior O Sermão de Huie, ambos de 1980, são frutos de um estado de espírito muito particular dentro do momento vivido pelo diretor em sua carreira, justamente o da realização de seu mais ambicioso projeto artístico, a ser lançado somente dois anos depois sob um véu de obstáculos como raramente o cinema terá enfrentado. Ainda que ambos os médias tenham sido relegados a um patamar próximo ao esquecimento, justificado inclusive pelo barulho que Fitzcarraldo gerou da gestação à estréia, não é possível ignorar a relevância que ambos os trabalhos possuem, mesmo após três décadas, de iluminar alguns dos interesses centrais e correntes no legado de Herzog.

God’s Angry Man, filme sobre a comercialização da fé — e por isso muito próximo ao que atualmente se intensifica no Brasil —, coloca em foco a controversa personalidade de Gene Scott (1929-2005), pastor protestante que, entre os anos 70 e 80, tornou-se um ícone da comunicação através de um programa (Festival da Fé) que liderava a audiência e convencia seu público, por meio de um discurso emotivo e ironicamente raivoso, a ofertar generosas quantias financeiras em nome de Deus. O curioso é que, ao invés de organizar seu material (arquivos found footage do programa, entrevistas exclusivas com Scott, registro de bastidores da TV) em tom de denúncia ou crítica direta aos questionáveis atos de quem observava, Herzog optou por aproximar-se do homem que se escondia atrás da imagem midiática evidenciando uma ambigüidade que ora se compadece, ora abomina, ora simpatiza com aquele que finalmente deixa sua máscara cair.

Ao nos mostrar a rotina de um homem que vive para as câmeras — à época, os programas de Scott duravam entre 6 e 8 horas diárias e ininterruptas — e que, por isso, já diluíra sua identidade num conjunto de expectativas e códigos de conduta indiferentes à sua vontade, Herzog desconstruiu todo um conceito fílmico baseado no desequilíbrio que a realidade e a ficção sempre nele tensionam. O que seu filme faz com Gene Scott é o que nenhuma das incontáveis horas de TV poderiam extrair dele e, em contrapartida, o que ele jamais revelaria para alguém não mediado por uma câmera. Consciente de sobreviver num ‘mundo de celulóide’, de ocultar uma profunda tristeza sob a fachada do estrelato, finalmente Scott encontrará a possibilidade de uma imagem que não se preocupe em vesti-lo de sentidos e significados exteriores, pois ao contrário, vem dela o mais pleno desnudamento, o desejo simples e puro de ser. E se procurarmos identificar o tempo da restituição, aquele momento em que Scott é brevemente devolvido para si mesmo, este não poderá estar em outro movimento senão o do incisivo close-up dedicado por Herzog ao entrevistado, durante vários e longos minutos.

Certamente o mais belo e funcional — sim, Herzog consegue fundir opostos — close já efetuado pelo diretor, eis uma proximidade que recupera todo o caráter trágico (chapliniano) do referido movimento técnico: há uma eterna dor na face que se deixa tocar pela lente, naquilo que da pele pulsa, dos vincos e rugas, de cada contorno. São nestas cenas que God’s Angry Man deixa de ser um filme sobre o mercado da religião para tornar-se um retrato do desamparo humano, do corpo que, abandonado solitariamente num mundo esquecido por Deus, agoniza uma espiritualidade impossível. Parece desnecessário apontar a relação entre Gene Scott e o protagonista de Fitzcarraldo, megalomaníacos que precisaram ultrapassar os limites da razão para sobreviver num domínio simbólico da existência. Desnecessário procurar neles um reflexo de Herzog, que otimizando a espera pelo seu próximo filme, comprovou ser o movimento cinemático uma conseqüência do saber aguardar.

FacebookTwitter

O Sermão de Huie (Werner Herzog, 1983)

Por Fernando Mendonça

Falar a respeito de um filme como O Sermão de Huie é falar sobre um gesto, sobre um delicado procedimento de observação e operação das formas como raras vezes o registro audiovisual terá conseguido dentro do tema e ambiente explorados. Ao comentá-lo, Werner Werzog referiu-se certa vez a ele como um “trabalho puro sobre as alegrias da vida, da fé e do cinema”, pelo que destacamos a referência a determinada ‘pureza’ de linguagem, um estado singular, ainda que indefinido, da organização fílmica — irrestrita ao domínio cinematográfico, considerado o caráter televisivo desta produção. A proposta do diretor, em refinada simplicidade, consistiu tão somente na filmagem (permitida) de um dos cultos do célebre Bispo Huie L. Rogers, pregador numa das maiores igrejas pentecostais de origem afro-americana nos EUA dos anos 80. Longe de procurar motivações em datas ou atos extrínsecos ao cotidiano da igreja, o culto em questão é apenas mais um dentro da rotina congregacional, sem nenhum evento extraordinário ou incomum. Animados louvores do grupo coral, um sermão doutrinário típico do pensamento cristão e orações fervorosas resumem a liturgia, mas de forma alguma dão conta daquilo que o olhar de Herzog constrói a partir desta matéria-prima.

Importa identificarmos o mecanismo aqui estabelecido pelo cineasta: todo o sermão de Huie — o que dá nome, força motora e movimento ao filme — é capturado por uma câmera reverente e fiel, que se distancia e aproxima do pregador com a máxima discrição, que sustenta o corte até o limite e assim imprime, na qualidade do plano-sequência, uma exata dimensão do tempo. A longa duração da cena é o que permite uma total autonomia de Huie em tornar-se imagem, em apoderar-se do espectador, dentro de seus códigos retóricos pessoais, como num domínio hipnótico, de transe extático. Nesse sentido, eis o filme de Herzog que talvez mais se aproxime do igualmente assombroso Coração de Cristal (1976), seja pela comparação do Bispo Huie ao profeta da ficção, seja pelo efeito que emana da superfície de suas imagens, à beira do anestésico, do aniquilamento de uma sensibilidade que atingiu a máxima potência.

Mas o trabalho de Herzog prossegue: após uma longa permanência no espaço-tempo da igreja, somos assaltados pela montagem de dois planos que reconfiguram O Sermão de Huie quase milagrosamente; sem interromper o áudio da pregação, Herzog intercala dois travellings laterais sobre as decadentes ruas do Brooklyn, bairro da igreja em questão. São imagens de ruínas, movimentos irmãos de todos aqueles que o diretor já fizera e ainda repetiria em território africano, em tantos outros filmes. Entrecruzamentos de espaços e arquiteturas que rearticulam a lógica da religiosidade até então apresentada, prova inconteste que um movimento de câmera ainda carrega imoralidade (ou pelo menos ainda carregava na entrada dos anos 80). Tais deslocamentos acentuam a rigorosa postura de Herzog no interior da igreja e evidenciam a manifesta pureza inicialmente comentada. Considerando que o Bispo Huie ainda hoje é uma figura singular de seu credo e há facilidade de acesso aos incontáveis vídeos de suas pregações no âmbito da internet — iguais entre si e separados por um abismo em relação ao filme de Herzog —, O Sermão de Huie permanece e ganha força como uma das elaborações estéticas mais apuradas provenientes da relação Cinema e Fé.

FacebookTwitter