Mostra de Tiradentes: Eu, Empresa

eu empresa

Por Chico Torres

Em Eu, Empresa temos a exposição da uberização da vida, dentro do contexto brasileiro, através de uma abordagem irônica e tragicômica de uma busca de sucesso através do empreendedorismo dentro do mercado dos youtubers. Realizado como ficção, mas repleto de aspectos documentais, o filme possui, ainda que de maneira tímida, uma força denunciadora desse novo sistema de trabalho onde se estabelece a ideia de estrelato e riqueza pela simples exposição do eu, de um eu que se apresenta como conteúdo e viraliza. Uma abordagem atual e que também toca, de modo pertinente, em questões de saúde mental e alienação.

Joder surge como uma caricatura desses indivíduos de classe média que, diante do esvaziamento crescente das possibilidades de perspectivas, mergulha em uma busca alienada de autorrealização através da internet. Uma busca imediatista e que, para o personagem, se justifica em um tipo de exposição do seu fracasso. O conteúdo, portanto, é justamente a sua não realização, o seu não sucesso, uma autoindulgência que denota já de imediato um tom irônico e que vai se obscurecendo ao longo do filme, com diversas cenas que provocam o nosso riso constrangido.

 Como todos que estão ao seu redor, enquanto o sucesso não vem, Joder passa a improvisar para sobreviver. É nesse sentido que o filme ganha aspectos documentais e esboça uma nova potência narrativa, mas são momentos muito pontuais e logo abandonados, como a sua conversa com os entregadores do ifood. Todo o processo de busca do personagem orbita entre uma ideia de fracasso e um desejo irrefreável de sucesso, desejo que pode ser lido como sintomatização de um tipo de cultura que recusa os modos tradicionais de emprego e se deslumbra pelo coaching e empreendedorismo pessoal como soluções instantâneas de seus problemas. Esse processo de alienação é evidenciado na exagerada e justificável personalidade ingênua e depressiva de Joder. Ele realmente acredita naquele sistema e sofre por não ter êxito, mas todo o seu esforço parece surgir de modo sintomático porque se dá na repetição de um ciclo psíquico em que o fracasso o persegue implacavelmente e, justamente por isso, o seu desespero pelo sucesso.

A estética de Eu, empresa é interessante à medida que empobrece, com sua fotografia opaca e visualmente amadora, esse ambiente que está entorpecido pela imagem. A fotografia do filme responde àquilo que quer criticar e se sustenta de modo pertinente dentro dessas imagens empobrecidas e despretensiosas. A atuação de Marcus Curvelo impressiona não só por seu carisma, mas também por seus momentos infantis e bizarros. Um personagem complexo que representa um tipo de personalidade cada vez mais presente em um país imbecilizado pela ilusão de que o sucesso e a riqueza dependem pura e simplesmente de uma vida transformada em conteúdo.

FacebookTwitter

Mostra de Tiradentes: O Cerco

o cerco

Por Chico Torres

Um filme que é concebido durante o processo de sua feitura precisa saber dos riscos que corre e da natureza diversa desses riscos. Ao ver o debate com os realizadores de O cerco, fiquei com a impressão de que o filme possui uma ótima justificativa, mas que funciona apenas de maneira intelectual e extra-fílmica. Como acontece com boa parte da arte contemporânea que depende da legenda e que por isso mesmo se apresenta articulado com um conceito prévio, fui levado a esse lugar de que o filme não possui em si a força daquelas argumentações apresentadas durante o debate, ou que pelo menos não foi construído de uma maneira que me convencesse particularmente.

A ideia de um “tempo quântico”, como foi indicado por um dos realizadores, é bastante promissora. O que se tem é passado, presente e futuro interagindo dentro de um edifício em ruína, centrado em uma personagem feminina que convive com todas essas camadas materializadas através de outros personagens. Alegoricamente, a casa serve como uma espécie de núcleo de tensão para tratar de uma questão política recorrente no Brasil: a ditadura militar e suas implicações no presente e no futuro.

A partir disso, identifico dois problemas que me parecem fundamentais sobre a diferença entre aquilo que foi conceituado pelo filme e a sua realização. O primeiro problema é que todo o arcabouço conceitual da obra parece funcionar de modo circular, o que faz com que aquele discurso se esgote muito rapidamente. Ou seja, não nos são apresentadas camadas, desdobramentos.  Pelo contrário, parece que tudo flutua dentro dessa ideia primária e que nada se desenvolve através dela. O segundo problema relaciono com o modo improvisado e documental no qual o filme foi realizado. Essa intenção, ainda que nos aproxime da protagonista e dos adolescentes do filme, acaba, por outro lado, esvaziando o pretenso valor simbólico atribuído a eles e que tenta ser transmitido através da estranheza do filme (sua montagem, seus planos e sua fotografia se esforçam nesse sentido). A construção dos planos, com a maioria das cenas construídas fragmentariamente e dentro de ambientes fechados, criam um tipo de contraste estranho entre personagens quase sempre simples e reais, com uma ambientação fantasmagórica e imprecisa.

A sensação que se fica é que o filme procura fugir daquilo que quer dizer, que é o seu discurso político que articula acontecimentos passados com os vividos na atualidade. Mas essa fuga, ainda que tenha seus méritos formais, parece, sobretudo, um artifício para esconder ainda mais o modo improvisado e dispersivo de sua construção. Desse modo, penso que O cerco não consegue se realizar sob as ideias que foram “achadas” por seus realizadores no processo do filme, nos restando a sua bela fotografia e bons momentos de atuação de todos os personagens, em uma entrega sincera e livre em um filme que parece estar perdido tal qual a protagonista que orbita em temporalidades indefinidas.

FacebookTwitter

Mostra de Tiradentes: A Mesma Parte de Um Homem (Ana Johann)

a mesma parte de um homem

Por Chico Torres

Toda a lógica de A mesma parte de um homem se sustenta em uma ideia de transição. Transição do desejo, do corpo, do medo. Tudo parece fluir dentro dessa concepção de que, através de acontecimentos traumáticos, mudanças se instauram e transformam toda a realidade das personagens, principalmente da protagonista Renata (Clarissa Kiste). Uma mulher retraída dentro de um ambiente rural e marcado pela violência, se descobre possuidora de desejo, de voz, de vontade, ainda que tudo isso se dê através da presença de outro homem.

Em seu primeiro ato, temos uma atmosfera ora explícita, ora sutil de medo, abuso sexual e violência doméstica. O ambiente familiar é marcado por uma presença masculina maléfica, na figura de um pai que domina tudo o que está ao seu redor. Por outro lado, o medo que existe em relação ao ambiente externo, presente obcessivamente em Renata e que paira por toda a primeira parte do longa, não é devidamente trabalhado ao ponto de embarcamos junto com ela em sua angústia.

Com a chegada de Lui (Irandir Silva) logo se percebe que esse medo do externo não será relevante para o desenvolvimento do filme, mas sim a relação daquelas mulheres com o estranho que logo ocupa, sem grandes complicações, o lugar de esposo e pai.  A aposta no estranhamento e na falta de respostas muito claras sobre diversos acontecimentos ao longo do filme, conferem originalidade à obra, já que nos escapa certos psicologismos previsíveis. Não se descobre exatamente quem é aquele homem que “chega”, do mesmo modo que mãe e filha não revelam em nenhum momento o segredo que guardam de Lui. O longa está cheio desses elementos que provocam dúvida quanto ao caráter e motivações de todos os personagens, mas que são bem aproveitados à medida que povoam todo o filme, criando uma atmosfera bizarra e de abertura interpretativa.

 Essa quebra de expectativas nos ajuda a focarmos no que parece ser o objetivo central da obra: o modo como ocorre a transição de Renata em relação ao seu desejo, à sua vontade. As cenas de sexo são filmadas magistralmente e marcam o quanto a questão da descoberta sexual é um ponto fundamental. É assim que se estabelece a transição. Renata passa a descobrir o prazer e a se impor diante do novo esposo, dando vazão aos seus desejos e vontades. A fotografia e o corpo da personagem vão gradualmente se transformando: ela começa o filme apagada, curvada e com medo, mas termina iluminada, sentindo as novas possibilidades atingidas através do afeto e do sexo, ainda que timidamente. Um filme que, apesar de estar pincelado por alguns elementos pouco convincentes, é bem-sucedido ao desenvolver, através do bom uso da fotografia e do trabalho dos atores, uma ideia sutil de transição que revela descobertas pessoais há muito reprimidas.

FacebookTwitter

Mostra de Tiradentes: Kevin (Joana Oliveira)

Kevin_joana oliveira

Por Chico Torres

Kevin, de Joana Oliveira, me remete ao cinema de Hong Sang-Soo, sobretudo ao The woman who ran, seu filme mais recente. A premissa é semelhante: uma mulher que, longe de casa e do ambiente familiar, dialoga com algumas amigas sobre diversos assuntos cotidianos. Por trás dessa banalidade aparente, o filme expõe algumas questões acerca de dilemas femininos há muito conhecidos, sem nunca perder de vista a subjetividade das personagens, o que imprime originalidade e verdade à obra.

Se The woman who ran é uma ficção com ares documentais, Kevin é um documentário constituído por diversos aspectos ficcionais, expondo com muita potência esse limite tênue entre gêneros. Conhecendo alguns detalhes da produção do filme, se descobre, por exemplo, que ele foi feito em duas etapas, com duas viagens à Uganda. O filme passa a sensação de que Joana fez uma viagem relativamente curta e na ausência de seu esposo, Gustavo Fioravante, que aparece apenas no começo do filme, ainda no Brasil. Mas Gustavo, além de personagem, fez também o desenho de som do longa, estando em África nas duas ocasiões. Esse é um exemplo entre tantos, mas serve para mostrar o quanto Kevin é construído dentro de um controle e rigidez que se afasta, em alguma medida, da imprevisibilidade do documentário, daquela tentativa de capturar o real em detrimento do bom acabamento e do resultado esperado. Pelo contrário, o filme não possui quase nenhuma ranhura ou entrave em sua construção, mas nem por isso perde a naturalidade e a sinceridade que se dão através do encontro entre as duas personagens.

O longa carrega o nome de Kevin, mas sua protagonista é Joana. Somos apresentados primeiro aos seus dilemas e é sua jornada pessoal que sustenta todo o filme, além de olharmos Kevin a partir do ponto de vista da diretora/personagem. Entretanto, como no filme de Hong Sang-Soo, as questões emocionais de Joana não só vão sendo reveladas de maneira sutil através de seu convívio com Kevin, mas são atravessadas por sua presença, sua vida, suas falas.  E aquilo que Kevin expõe à sua amiga, inevitavelmente, acaba por se relacionar com questões sobre interculturalidade e interracialidade. Desse modo, Kevin cresce em protagonismo à medida que vamos conhecendo sua realidade de mulher negra, mãe solo e africana com vivência na Alemanha.

Essas duas instâncias, a subjetiva e a política, nunca se conflitam porque não se separam, funcionando sempre através dos diálogos e do cotidiano dividido entre as personagens. Mais do que uma história de uma amizade, Kevin é sobre a história de duas mulheres que vivem realidades completamente díspares, mas que através do afeto se reconhecem, se somam e se acolhem dentro de seus dilemas, como na cena em que ambas caminham sobre os trilhos do trem e percebem que de mãos dadas conseguem um melhor equilíbrio para seguir o caminho.

FacebookTwitter

Mostra de Tiradentes: Rosa Tirana (Rogério Sagui)

açucena

Por Chico Torres

O sertão alegórico e fantástico é uma das fixações do cinema brasileiro. A ideia de que, em detrimento de todo o vazio, morte e desamparo, há espaço para a cor, para a beleza, para o encantamento, repetindo a velha história de que o sofrimento, ainda que endureça, é o que conduz o caráter de um povo que é essencialmente bom e criativo. O desejo de fantasiar, nesse sentido, parece estar sempre ligado ao clichê da esperança: esperança da chuva, esperança da comida, esperança do trabalho. Dedicar-se a esse tipo de fabulação e, provavelmente, cair no erro de produzir formas fetichizadas ou romantizadas do Nordeste e do sertão, há muito tempo se tornou um lugar comum do cinema e sobretudo da televisão, criando um tipo de produção específica que pode ser sintetizada, em seu estágio de máxima realização, com a minissérie Hoje é dia de Maria.

Ainda que o longa se utilize de aspectos mais contemplativos desde o seu início, quase que equilibrado com a sua tentativa de dar uma jornada à protagonista, o que se tem é a utilização da contemplação e também da fantasia de modo vazio e meramente pictórico. Todos os personagens do filme estão esvaziados de humanidade, de uma história particular, e o que realmente se destaca é a beleza dos quadros e algumas incursões não usuais da fotografia. Mas não se ultrapassa essa fronteira. Fica-se com a impressão de que o filme existe para a fotografia e para a direção de arte, não o contrário.

Rosa Tirana parece ser mais uma dessas obras que reitera a ideia de um sertão encantado sem a devida responsabilidade quanto às implicações que esse tipo de projeto pode suscitar. Essa responsabilidade não existe por alguma necessidade de estabelecer um papel político para a arte, mas é importante quando se quer falar de um lugar, de um povo, de uma cultura específica, de algo que tem o real como referência e que agora está sendo retratado por um grupo de pessoas que geralmente não possuem relação alguma com aquela realidade. Pode parecer bobagem, mas é um tanto chocante ver, por exemplo, a personagem de Rosa, que vive em extrema pobreza, possuir uma bolsa de couro nova e impecavelmente trabalhada. Apesar de sair um pouco fora da curva por seus aspectos de fantasia e contemplação, Rosa Tirana entra no rol dos filmes que colore e fantasia o sertão sem olhar devidamente para as pessoas que habitam aquele mundo.

FacebookTwitter

Mostra de Tiradentes: Rodson ou (onde o sol não tem dó)

on the rocks

Por Chico Torres

Rodson ou (onde o sol não tem dó) procura se estabelecer dentro de uma rebeldia cyberpunk tropical, explorando, através de excessivos efeitos visuais e sonoros, ideias de desbunde, ironia e revolta. Sustentado pela estética de um cinema marginal, o longa narra a odisseia futurista de Rodson, um jovem que sai pelos confins de um Brasil dos anos 3000 em busca de sua realização pessoal.

Ainda que parta de uma ideia clara de desconstrução radical, tendo no lisérgico e no lixo o princípio de seus inúmeros efeitos visuais e sonoros, Rodson possui uma narrativa tradicional: a da jornada do herói. É perceptível a tentativa de sair desse espectro narrativo na inserção de pequenas rupturas ou interrupções estabelecidas através de esquetes, mas a sua estrutura básica é linear e simplista. Outro dado que faz o longa perder em potência como obra disruptiva, é a constante necessidade, como se diz em literatura, não de mostrar, mas dizer. Ainda que isso revele a existência efervescente de um grupo, por outro lado revela exatamente o desejo de se afirmar como coletivo e de levantar explicitamente a bandeira de seus princípios. Essa necessidade leva a uma romantização que acaba se contrapondo negativamente às possibilidades niilistas da obra, o que a poderiam levar para um nível maior de abertura. Por fim, há também um dizer que corresponde às agendas políticas atuais que, mesmo sendo tratadas com alguma ironia, servem como uma espécie de domesticação do filme, o tornando uma obra quase complacente.

Mesmo flutuando entre essas duas esferas contrárias, Rodson é interessante pela extrema criatividade e variedade de seus recursos. Diante dessa pulsante diversidade sonora e visual, percebe-se um intenso desejo de criar, de dar vazão a algo que estava represado (e, de alguma forma, é esse o desejo do próprio personagem: se realizar em seus impulsos criativos). Tudo isso, aliado à sua ótima noção de ritmo, fazem do longa uma experiência que nos leva a pensar sobre as inúmeras possibilidades de um cinema que se desenvolve através de uma força coletiva que, retomando propósitos vanguardistas, encontra na escassez a fonte primária de sua criatividade.

FacebookTwitter

Mostra de Tiradentes: Açucena (Isaac Donato)

açucena

Por Chico Torres

Um filme sobre uma outra percepção do tempo. Um tempo dilatado, que vai de encontro ao tempo cronológico porque é um tempo de espera, de contemplação, de suspensão. Açucena coloca o espectador em uma ambientação que, pouco a pouco, desvela os mistérios que cercam a personagem mítica apenas de modo parcial, pois a revelação não está disponível nem para os que convivem intimamente com aquela presença difusa.

A atmosfera infantil, onde flutua uma casa rosa repleta de bonecas, é completada pelo trabalho sério e zeloso daqueles que fazem acontecer o aniversário, compreendido na acepção plena de um ritual que deve ser cuidadosamente preparado. Açucena, eternamente com 7 anos de idade, habita não apenas Mãe Guiomar, mas é como um ser onipresente dentro daquela comunidade que de modo extremamente delicado cuida dos preparativos da festa: pequenas roupas que são construídas, o reparo das bonecas, o portão e a casa pintados, os detalhes da decoração, tudo gira em torno desses afazeres, como se cada gesto devotasse à Açucena aquilo que devidamente lhe cabe: respeito, sacrifício, entrega.

Percebe-se que o processo de construção é tão importante quanto a realização do aniversário em si. Desse modo, o ritmo do filme é lento e não há o compromisso tranquilizador do ato de revelar (ainda que possa ser compreendido como um documentário de suspense), mas sim o de se incorporar àquela temporalidade. A fotografia procura acompanhar esse tempo de latência e mistério, nunca enquadrando de modo resolutivo e convencional, mantendo-se em distância respeitosa para que aquele microcosmo exista sem interferências externas. A paciência e o excesso cenográfico de toda aquela preparação são incorporados aos planos do filme, fazendo de Açucena um caleidoscópio inundado por várias tonalidades de rosa.

O fundamento é o tempo que permite uma dedicação séria à realização do brincar, da alegria, as pedras de toque das religiões de matrizes africanas. O existir dentro dessa realidade onírica da infância, na qual o adulto deve devoção, cuidado e afeto, se reforça pelo caráter mítico e ancestral. Açucena surge como a infância eternizada que se espalha beneficamente pela comunidade, reforçando experiências integradoras através de gestos de cuidado em nome de uma celebração.

FacebookTwitter

Mostra de Tiradentes: Subterrânea (Pedro Urano)

subterraneaPor Chico Torres

 

Sou a pedra que caiu do céu
E virou peça de museu
Que ardeu em grande fogaréu
Mas que sobreviveu

(Trecho de Bendegó, canção de Renato Frazão e Cláudia Castelo Branco)

A pedra falava
Ao longo das eras
Sempre baixinho
Ninguém suspeitava
Que no meio da pedra
Tinha um caminho

(Trecho de Pedra de iniciação, canção de Thiago Amud)

 

Subterrânea surge como alegoria para denunciar diversos acontecimentos ocorridos no estado do Rio de Janeiro que fazem parte tanto de sua fundação quanto de seu aspecto sociopolítico atual. Todos esses acontecimentos, expostos através de uma série de metáforas, falam, em síntese, sobre o desequilíbrio entre homem e natureza, ou sobre o desequilíbrio do homem consigo mesmo. A obra parte da premissa de uma natureza mineral que, ao ser explorada, enterrada ou destruída por um ideal de progresso, gera a própria ruína humana.

Já de imediato, percebemos um cinema de gênero. Somos levados pelo estudante Leo (Negro Leo) e por sua tia e professora de geologia Stein (Susana Stein) em uma aventura exploratória que procura desvendar os símbolos gravados em pedras encontradas aos arredores da região do extinto Morro do Castelo. Em paralelo a esse aspecto fabulesco, Subterrânea também se desenvolve como documentário, o que reforça seu tom de ironia e denúncia. Todas as buscas de Leo e Stein caem nas mesmas conclusões: o homem é o destruidor de si mesmo porque não consegue se enxergar como parte da própria natureza. Ao destruir, implodir, demolir, o ser humano alimenta o motor que acelera a sua própria destruição, já que esse passado latente, mais cedo ou mais tarde, vem cobrar a dívida.

O filme passeia por diversos temas que exploram a ideia de que essa natureza subterrânea e mineral pode nos indicar um caminho (ou pelo menos entender que o caminho traçado até agora está errado), à medida em que acompanhamos o seu processo de destruição. Vemos como o meteorito de Bendegó “sobreviveu” ao incêndio do Museu Nacional: a sua resistência e presença nos servem como marco simbólico de um apagamento não apenas material, mas de todo um registro cultural e científico que viraram pó. Vemos, ao acompanhar parte do processo da demolição do Morro do Castelo e a lenda do seu tesouro, a história atual do Rio de Janeiro, pela relação entre religião e poder, seja através dos Jesuítas no passado colonial, ou do poder dos neopentecostais no presente capitalista. O fantasma de Lima Barreto parece ser o guia para o verdadeiro caminho por entre esse passado apagado, mas que ainda resiste sob os escombros da história. Esse aspecto fantasmagórico e sombrio se reforça, ainda que de maneira menos significativa em relação ao tema que norteia o filme, com a presença da estudante Clara (Clara Choveaux), personagem que simboliza os casos de suicídio acontecidos na UERJ. Uma denúncia sobre o processo de desmonte das pesquisas nas universidades federais e suas consequências aterradoras.

O arrasamento de tudo como processo de desenvolvimento. Maceió, capital de Alagoas, serve como o exemplo mais atual dessa constatação: a Brasken, empresa de exploração do sal-gema, foi responsável pela destruição de bairros inteiros a partir ano de 2019, desabrigando centenas de famílias de suas casas devido à exploração inadvertida do minério. Nascem cidades fantasmas de ações como essas. É assim que a natureza cobra, revelando que o avanço é também o prenúncio do fim. E, como é citado no início do filme por Leo, uma referência a Eduardo Viveros de Castro, quem paga primeiro com esse aniquilamento são os povos indígenas, os negros, os empobrecidos, todos eles são especialistas em fim de mundo, já que para eles o mundo acaba diversas vezes e sistematicamente. Mas a ruína está para todos que fazem parte desse jogo civilizatório em nome do progresso. E o que resta fazer? Ressuscitar os mortos, recontar a história e entender o caminho que está inscrito nas pedras.

FacebookTwitter

Mostra de Tiradentes: Ostinato (Paula Gaitán, 2021)

ostinato

Por Chico Torres

Em Ostinato, Paula Gaitán persegue o compositor Arrigo Barnabé. Não uma perseguição no sentido de almejar uma investigação total, como acontece em alguns documentários que se debruçam, com uma nostalgia sedutora e vendável, sobre a biografia de artistas, surgindo como heróis da tropicália, da bossa, do samba e por aí vai. Não, Paula persegue Arrigo como aquilo que ele é: um ser no presente, com inquietações, aspirações e dúvidas no presente. Persegue-o também como inspiração estética, buscando no próprio método do compositor as soluções para o filme que se dedica a ele.

E o que Paula captura é um homem fragmentado, ou, como no título de uma reunião de textos de Walter Benjamin sobre Baudelaire, “um lírico no auge do capitalismo”. São muitos os Arrigos que surgem: aquele que revolucionou a música popular brasileira ao antrofogizar o dodecafonismo de Schoenberg, o desdobrando em canção, substituindo o serialismo pelo ostinato. Há também aquele que surge como Beethoven, em semelhança física e intelectual: Gaitán filma Arrigo em close, como se quisesse reproduzir em fotografia o retrato mais famoso do autor alemão, pintado em 1820 por Karl Stieler. Logo em seguida, Arrigo cita a Grande Fuga e diz ser a música de Beethoven a expressão do “pensamento puro”. Assim é também a música de Arrigo: exigente, feita para desafiar o cérebro. Por fim, há um Arrigo crítico da contemporaneidade, expondo a decadência do gosto e a falta de comunicação entre autor e público. Um Arrigo confuso, quase nostálgico, um homem de vanguarda perdido em um tempo sem vanguarda.

Todas esses Arrigos que aparecem dispersos ao longo do filme, como que em série dodecafônica sem repetição, surgem novamente em seu final, como em ostinato, nos dando a ideia de organicidade, de completude, tal qual o método composicional de Arrigo Barnabé. Todas as ideias do músico, seus desafios e frustrações, parecem sintetizadas em uma bela citação de um fragmento de Benjamin feita por Arrigo:

E por que? Porque se curvou. Assim, o corpo é justamente o que desperta a dor profunda. E pode igualmente despertar o pensamento profundo. Ambas as coisas precisam do isolamento. Quem alguma vez subiu sozinho a uma montanha, chegou ao topo esgotado, e depois inicia a decida, com passos que abalam todo o seu corpo. Sentiu que o tempo se desagrega, as paredes divisórias no seu interior desabam, e ele caminha por entre o cascalho dos instantes, como num sonho. Por vezes tenta parar e não consegue. Quem sabe que coisa o abala, se os pensamentos ou o caminho difícil. O seu corpo transformou-se num caleidoscópio que a cada passo lhe mostra figuras mutantes da verdade.

Ostinato é sobre esse ser caleidoscópico que busca os fragmentos da verdade através de uma música construída na esfera do pensamento. É também sobre Paula Gaitán, sobre seu cinema agora inspirado na música, nesse esforço incomensurável de encontrar, ainda, novas maneiras de dizer, sugerindo novas maneiras de pensar e sentir.

FacebookTwitter

O Prazer (Max Ophüls, 1952)

Por Ranieri Brandão

Durante os primeiros cinco minutos de O Prazer, a famosa frase de Scorsese sobre a câmera “que respira” de Max Ophüls parece ganhar um sentido mais justo, mais claro, mais visível. Se a perplexa pergunta a essa constatação pode ser posta mais ou menos como num “ela respira como?”, ou “apenas porque está junto da protagonista de Carta de uma Desconhecida, é que ela respira?” — protagonista esta sobre quem a frase de Scorsese dá conta —, em O Prazer o que seria subjetivo torna-se enfim concreto. A câmera “respira” porque acompanha a história a seu modo, focalizando apenas o que deseja e como deseja ver. Não é a velha questão de ser mais um personagem, mas a de que a câmera passa a ser um figurante ousado que se insurge, quase um voyeur que padece de hipermetropia e da necessidade imperiosa de ver bem as coisas mais de perto. Significante extremamente necessário, porque essa câmera é também um espectador tragado pelo poder do drama, das peculiaridades da vida em sociedade.

Então, a questão talvez se resolva de uma vez por todas: a câmera “respira” porque só quem não respira é quem está, em primeira instância, morto. Ela vive literalmente ao lado do narrador em off de O Prazer, ou até seja capaz de fazer parte dele, de ser sua extensão, como se fosse a pena que compõe o retrato desses lapsos de mundo que Ophüls traz aqui, mas de forma a elucidar geometrias, saídas cênicas de (mais do que apenas uma mera) ilustração da palavra, como se esse autor verbal do filme que nos conduz às três histórias distintas que o compõem tivesse um visível problema cerebral onde palavra e gesto não se unem. A câmera de Ophüls em O Prazer, informação essencial para a força que se desprende do filme, se locomove, esquadrinha, tem uma noção espacial fascinante, que quase (ou nada) tem a ver propriamente com a enunciação narrativa (como em Hitchcock), mas com um desejo de composição de cena, com o desejo absurdo de ser humana, de olhar, de fazer se reintegrarem, mentalmente e de forma total, determinados espaços configurados dentro de sua inteligência, de modo que este ato confirme sua presença e sua enunciação dentro destes mesmos espaços, e até mesmo do plano. Sabemos que às vezes mover-se, em termos de organismos complicados como o do nosso corpo — e como o da câmera de Ophüls, porque ela pode sobreviver apenas a partir do desejo de olhar as coisas com um cérebro mecanicamente primitivo, em condições mínimas — é estar vivo.

Portanto, se a primeira cena de O Prazer está localizada dentro de um baile, com pessoas dançando freneticamente, é precisamente previsível que a câmera de Ophüls esteja lá, acompanhando tudo em estado puro de frenesi, flanando materialmente pelo espaço, ligando-se a ele e ao que nele está disposto, surpreendendo então um homem estranho com uma máscara horrorosa, a dançar. Sua aparição é apenas aquilo que mais queríamos para viver o cinema de Ophüls em pura conjugação com essas imagens moventes ligadas a algum sentimento, a alguma narração, a saber: ele é um homem velho que usa a máscara para poder “curtir a noite”, sentir os últimos sopros de juventude, se mover até cair ou até morrer, e seu rosto por cima do rosto é basicamente o de uma figura morta, inexpressiva, a face de um morto que dança. É por isso que a câmera “vive”, em O Prazer, talvez mais do que em qualquer outro filme de Ophüls, porque ela divide o drama, comporta-se como uma escrita e uma tradução (sua própria “versão” da história) atenciosa demais a ele (de novo, não à narrativa, mas ao sofrimento, ao desespero, à coisa singela, triste) e se ela o compartilha é senão para construir aí uma forma de escrita (palpitante, pulsante, às vezes até afobada, trêmula, extasiante) que, nos primeiros instantes do frescor desse mundo de desejos, não deve perder o tal homem de vista. A câmera de Ophüls é o filme de Ophüls.

Em todo caso, há tempo para se edificar os caminhos do amor e das relações, porque esse “prazer” que Ophüls contará, além de ser um prazer doentio pelas extremidades do movimento, é também o amor de narrar os meios que levam o amor a acontecer ou não. Para isso, com sua elegância, o cineasta escolhe um período que parece julgar riquíssimo em imagens (já que o repete em outros filmes), aquele que parece ser o início do século XX, e o toma pelo local ideal para o nascimento das coisas que ele quer filmar e dizer. O Prazer é composto de três narrativas particulares narradas por um mesmo homem de quem só teremos a voz “falando no escuro”. São, entretanto, narrativas que não se entrecruzam, mas que revelam as faces diversas das formas de manifestação do amor e de seus destinos específicos. Daí é que vamos encontrar, com extrema vivacidade e precisão, o contato com o prazer perdido, envelhecido, o romance solidificado por anos de casamento, do homem da máscara; o prazer impossível de concretizar, idílico, puro, protagonizado por Danielle Darrieux e Jean Gabin, emoldurado pela linda descoberta de uma vida no campo; e o último, o mais extremo dos episódios, onde o amor destruído volta a se recuperar sob o signo de uma frase essencial — e que Godard, se não me engano, utiliza com uma pequena troca de palavra, em um de seus doze tableaux em Viver a Vida: “a felicidade não é alegre” — implicação de uma verdade gigante, que logo em seguida é demonstrada pelo que a câmera focaliza, o casal na praia, já idoso, feliz em sua parcial paralisia física.

É essa diversidade que dá a O Prazer aquela sensação de que de fato vemos uma história em pleno movimento, preparada para o próximo gesto. E é também por ela que as surpresas do filme se estabelecem, ao contrário, pelo que só podemos perceber discretamente no interior do plano. Por exemplo, é um enigma a precisão com a qual Ophüls consegue fazer nascer (e depois fazer ser abandonado) o amor (ou a admiração) entre Darrieux e Gabin: por uma simples troca de elogios corriqueiros e, de fato, muito sinceros. Quando Darrieux tem que voltar à cidade, para o bordel onde trabalha, existe um pequeno momento de ternura que mesmo a câmera respeita e se detém a olhar com expectativa, quieta, prendendo a respiração: Gabin diz que vai visitar a moça algum dia, e vai embora de volta para casa, claramente entristecido em sua carroça. Dentro dessa beleza que fica impregnada como os trilhos do trem que levam Darrieux embora, é claro que a atenção retorna à câmera, em sua breve volta à imobilidade e à suspensão “clássicos”, é essencial, provavelmente porque este é o momento mais bonito de O Prazer, aquele em que uma linguagem de cinema se torna de fato humana, consciente, respeitosa, que sente o peso das coisas.

Porque o que há para viver em O Prazer é aquilo que se vive no limite do visível, do questionável, da matéria e das pequenas ou grandes convulsões. E essa é a própria lei que estabelece a existência da câmera como esse objeto passional, extremamente, pois ela é também o próprio drama, o próprio “saber onde estar”, como quando o narrador diz que para que a história comece, uma luz deve ser apagada, e a câmera, nesse momento, focaliza justo a luz que se apaga; ou como naquela cena indescritível na primeira comunhão da garota, onde a câmera de repente começa a se mover e sai vagando, em traveling, pela igreja, observando-a como uma criança que tem seu primeiro momento de consciência, que descobre que o mundo é também para se ver o quanto antes. É estabelecida aí, então, toda uma lógica para O Prazer, em particular, e para o cinema de Ophüls, em geral: esse “regime” de imagens que se movem fortemente, instaurado no momento em que a câmera de repente “desperta”, cria imagens que não se fixam (porque o movimento é primordial, essencial, é vida, fluxo, é toda a graça da arte de Ophüls, todos os movimentos que ela inventa e captura, os que levam filmes para frente, para trás, para o presente), mas que fixam os sentimentos no espaço, e também transformam esses mesmos sentimentos em linguagem, em coisas que podem ser metáforas.

Fixar sentimentos no espaço. E histórias, que devem conhecer rigorosamente o espaço onde se situam, que podem ser visualmente definidas pela recorrência da luz noturna, da vida noturna, clandestina, ou pela luz do campo, pela simplicidade de quem vive ali, também filmada por Ophüls. Em O Prazer existe uma pequena preciosidade que parece atestar que Ophüls é dos primeiros cineastas “clássicos” que na verdade eram extremamente “modernos”. Porque, se a “moderninade” do cinema pode ter a ver com ascensão da ideia de que uma câmera “existe” como processo fundamental ao filme, e que por isso ela deve “se revelar” na película, então o que dizer de todas essas sequências descritas, e outras tantas (como aquela em que a fachada de uma casa é praticamente mapeada, cena que parece citada numa célebre sequência de Tenebre, de Argento) não citadas aqui? Como não entender a câmera como parte de um processo de integração radical à carne dos personagens e da história, de observação obsessiva aos gestos (através de janelas) dos personagens, suas paixões, os pequenos desencontros e as tragédias? Quando a garota interpretada por Simone Signoret tenta o suicídio, a câmera de Ophüls faz o movimento contrário àquele que esclarece sua “respiração” contida na frase de Scorsese, e assim ela o faz para ser ainda mais clara: ela se torna Signoret, torna-se subjetiva, os olhos de um outro, o olhar de alguém que comete suicídio, e ela mesma, câmera, é quem se joga, quem se espatifa na claraboia do prédio vizinho, e é acobertada pela tragédia por alguns segundos. Para Ophüls, todos os sentimentos do mundo estão em sua câmera, e nessa câmera existe uma força que sempre pode contar a sua própria versão da história, que pode, inclusive, provar que pode morrer por ela.

FacebookTwitter

Coração de Cristal (Werner Herzog, 1976)

Por Fernando Mendonça

Fluem
as águas, densa neblina,
da cadente luz o irromper
do sol ou das formas
terrestres, com os bichos, ruídos da vida,
abismo que atrai para si
atenção a pulsar, escorrer, evanescer entre
rochas, fendas, aberturas de finita superfície.
Prefigurações do fim.
Destruição que é começo, princípio das coisas,
novos céus e terra
pelo olhar lapidados, reformados, corrigidos
em suas imperfeições. Plenos.
Eis a dimensão do universo,
retratação de um cosmo oculto
sob a umidade do ar, a levar consigo
o tempo. A conosco
fluir.

Beira a leviandade pretender qualquer lógica do verbo diante de uma obra como Coração de Cristal. Recebê-la em palavras é igualmente obrigar-se à criação, determinar o raciocínio não pela organização de conceitos, mas num articular de sensações que ultrapassem o logos para contaminar todo um estado instintivo de percepção.

Perpetuar o que Werner Herzog aqui poetiza é lidar com o caos, com as formas não organizadas de vida que, em si, já respiram, deglutem, piscam, ordenam um novo parâmetro de visibilidade. Experiência incomparável de imagens, sons e poesia, Herzog elabora um de seus mais viscerais e arrebatadores trabalhos, sendo vã a tentativa de esgotar adjetivos para o que ele realiza.

Basta dizer que Coração de Cristal é filme que mal cabe no cinema. Seu rigoroso corpo de luz e sombra, de silêncio e voz, é material humano dos mais densos, potência que vislumbra os fundamentos do mundo, recuperando a gênese de toda uma dimensão física a nível que mal se permite comprovar como enxergado, por mais que o vejamos.

Situado numa aldeia da Bavária, século XVIII, seu enredo desenvolve-se sobre um pequeno apocalipse que os habitantes do local enfrentam ao saber da morte de um velho vidraceiro, negociante responsável pela sobrevivência econômica da região e único conhecedor da fórmula para o famoso Vidro rubi, principal e misteriosa fonte de renda, agora perdida, enterrada com seu criador.

Do luto sofrido pela comunidade, um reflexo do agonizante mundo natural, de um planeta que ainda não se sabe redondo, da esperança que se debate a beira da morte. É o profeta da região quem nos alerta do fim, Hias (Josef Bierbichler), eremita que atravessa toda a duração do filme prevendo as configurações de uma catástrofe. Concretizando o trágico pelo corpo de sua voz.

É o profeta quem enxerga todas as coisas. Quem dá forma inclusive ao que não se pode ver. Seu duelo com o invisível urso selvagem, cena nuclear dentro de tudo o que Herzog já concebeu, sinaliza o estado absoluto contido em Coração de Cristal de representar o irrepresentável, de ofertar aos sentidos aquilo que, platonicamente, nunca se afastou de um mundo ideal. É como se Herzog rompesse as estruturas do universo, alterando as composições físicas não somente dos corpos ou superfícies naturais, mas dilatando-as na própria dimensão do tempo. Pois em sua escatologia até mesmo o que não se pode ver ganha a atenção de uma câmera, torna-se imagem. A violenta luta do profeta Hias contra a criatura transparente reconfigura um embate primitivo do próprio cinema contra a transparência em si, contra o que não se filma, mas ainda assim sobrevive na tela. Violação do olhar, do que recobre todas as formas numa frágil materialidade, epiderme do caos. Pois não importa o que antecede a imagem, é nela que a criação se completa.

Igualmente exemplar a encenação conseguida dentro da fábrica de vidros, entre simples trabalhadores (únicos no elenco do filme, junto a Bierbichler, a não trabalharem sob o efeito de hipnose, pois sim, Herzog fez questão de extrair de seus atores qualquer naturalismo ou entorno dramático) que lapidam a matéria incandescente e no vidro concretizam as mais variadas formas imaginárias. E talvez seja na cena em que vemos um dos operários esculpir um cavalo de vidro que finalmente cheguemos ao motivo de Herzog não apenas diante deste filme, mas de toda sua vida criativa junto ao cinema. Cena direta, de mise en scène fixa, invariável; dar a ver inquestionável de uma ontologia que brota pela imagem e que nela arremata todos os sentidos possíveis da criação; ainda que inserida num painel ficcional dos mais complexos, nela Herzog confirma o exceder da ilusão, seu ultrapassar, um preocupar-se com a realidade concreta ou, pelo menos, com o que é possível concretizar de real dentro do cinema. Do foco de luz que emana do centro para as bordas do quadro, do vidro para o espaço e sua decorrente cristalização, testemunhamos imagens do fôlego em eterna presença, da vida que, seja na criação ou no fim do mundo, permanece alvo de todo movimento expressivo. Em Coração de Cristal fluem os ecos de um testamento da humanidade, contornos da existência, lugar em que Herzog confirmou a ambição das ambições: cabe ao cinema não apenas espelhar a vida, mas fazê-la nascer, dela ser fonte. Eis a luz.

FacebookTwitter

Ballad of the Little Soldier (Werner Herzog, 1984)

Por Daniel Dalpizzolo

Ballad of the Little Soldier foi apontado à época como o documentário mais político de Herzog, uma afirmação que, conforme foi empregada, é questionada pelo próprio autor. “[O filme] É sobre crianças lutando na guerra, e não sobre os sandinistas ou Somoza”, disse o cineasta ao justificar que seu trabalho não teria interesse em defender nenhuma das posições ideológicas da batalha da Guerra Civil nigaraguense, mas apresentar ao mundo uma situação extrema gerada pelo conflito: a militarização dos índios misquitos, nativos de uma área do país atacada pelos sandinistas que, para se defenderem das investidas dos rebeldes, despiram-se da sua própria cultura para aprenderem a lutar com armas de fogo e técnicas militares, criações da selvageria do mundo civilizado que até então desconheciam.

O tom humanista do projeto colocou este telefilme de 45 minutos, co-dirigido com o jornalista franco-alemão Denis Reichle, em choque com o próprio conflito ideológico da guerra. Ballad of  the Little Soldier foi filmado in loco e veiculado enquanto o fato ainda ocorria no país. Logo no início, para contextualizar o sofrimento dos nativos, o filme destaca histórias crueis que relembram a violência sofrida por eles durante os ataques. Acusado por isso de se posicionar contra os sandinistas, Herzog define-se com poucas palavras: “Sou a favor dos misquitos”, reforçando a indignação com o massacre e com suas consequências, em especial para as crianças e adolescentes sobreviventes.

Apesar de lidar com um delicado embate ideológico em seu entorno, Ballad of the Little Soldier está muito menos  — ou nada — preocupado em discutir a guerra civil nicaraguense do que em investigar o impacto que os conflitos bélicos exercem na concepção de valores destes jovens crescidos em meio à violência gerada por eles, em uma realidade que os coloca seguidamente, já no início da vida, em contato direto com a morte, tendo que lidar abertamente com o medo, a perda de familiares e os sentimentos que suscitam desta perda — em especial o ódio, e o quanto ele pode se tornar um elemento desumanizador para uma geração que se constroi submissa à brutalidade da guerra. Ao voltar suas lentes às crianças nicaraguenses, Herzog implanta uma discussão que vai além do país retratado, propondo uma reflexão sobre parte significante da história do século XX, escrita em ruínas de batalhas intra e extra-territoriais.

Se existe, porém, algo de extremamente político nas escolhas de Herzog para a concepção de Ballad of the Liittle Soldier, diz respeito muito mais à forma com que ele opta por trabalhar seu material em favor de suas observações e questionamentos particulares sobre o tema; à maneira com que aproveita o formato documental não com a pretensão de um retrato cru da realidade, mas de um recorte desta realidade para a defesa de um princípio e de um ponto de vista próprio e consciente — um método que, é claro, também pode ser colocado em xeque, como não raramente ocorre nas discussões morais que o documentarismo de Herzog proporciona. A Herzog não bastaria olhar para o mundo e não filtrá-lo e devolvê-lo ao espectador como resultado de seu contato com ele, independente do que se discute ou do gênero em que se instala. No que diz respeito a Ballad, não são necessárias mais que duas ou três imagens ou entrevistas para percebermos que a defesa empreendida por Herzog vai além de qualquer questão moral — pois diz respeito à própria razão da vida.

Neste contexto, há uma melancolia muito forte na metade final do filme, quando acompanhamos o treinamento dos pequenos misquitos, apoiados por forças militares estrangeiras, para irem ao campo de batalha vingar a morte dos seus pais, irmãos e amigos — como enfatiza um dos entrevistados do filme, um garoto que atravessa as noites sonhando com a mãe assassinada no massacre, e que não vê a hora de matar alguns sandinistas imaginando que isso vá ajudar a aliviar a sua dor. As chocantes imagens dos nativos, em geral com idade entre nove e doze anos, caracterizados com roupas militares e desferindo tiros de metralhadoras com suas mãos trêmulas e nervosas, arremessando bombas e aprendendo disciplina e macetes da guerra, surgem como não mais que cenas de preparação para a morte — como diz o próprio professor presente no vídeo, há pouquíssimas chances de saírem vivos desta disputa covarde. À medida que as rajadas de metralhadora sobrepõem-se à inocência e à fragilidade dos soldados, é acentuada também a sensação de que estes jovens não são mais do que reféns da natureza hostil dos homens — e que, não fossem as circunstâncias do conflito, poderiam estar ainda hoje cantando juntos, como faziam na juventude, algumas das suas baladas de amor favoritas.

FacebookTwitter