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A Ponte das Artes (Eugène Green, 2004)

Por Robson Galluci

Um jovem resolve se suicidar. Nós testemunhamos os preparativos, vemos quando ele coloca uma gravação do Lamento della ninfa, de Monteverdi, como acompanhamento musical para sua morte, quando se inclina para o fogão e libera o gás. Os planos se sucedem, a porta entreaberta, a janela, o corredor, o painel do fogão, e a música preenche os espaços enquanto uma vida se esvai. Nós conhecemos as circunstâncias dolorosas e trágicas que envolvem a gravação que toca, a sensação de vazio e falta de significado que assolava a solista assim como assola o personagem desta cena. Parece que o filme se encaminha para uma nova tragédia, mas a vida que irradia da música, e sobretudo da voz de Sarah, não obstante sua tristeza atordoante, é irresistível, e o jovem Pascal desiste de sua tentativa, corre até a janela para recuperar o fôlego e, enquanto a música continua tocando, e com os olhos ainda lacrimejantes, ri.

A Ponte das Artes não é apenas o local onde ocorrem eventos centrais da trama; muito mais que isso, o título do filme expressa essa capacidade das artes — e, de forma privilegiada, da música — de estabelecer conexões entre pessoas, não importa quão perdidas estejam, não importa que de espaços e tempos cuja separação parece irremediável, de fazer visualizar, justamente através desse encontro, uma harmonia até então secreta que se configure como um sentido do mundo, da vida. Para isso a câmera invade o espaço mais íntimo que é a troca de olhares, alternando planos em que dois personagens que estão frente a frente são enquadrados frontalmente e olham diretamente para a câmera. Não se trata de uma perspectiva subjetiva, e sim de quebrar a encenação onde é necessário para inserir o espectador no próprio centro dessas linhas de força que são os olhares dos personagens de Green, linhas que transmitem um sentido possível. Quem assiste a um filme como esse ou A Religiosa Portuguesa não é convidado à identificação com um personagem, mas a ser mais um, que recebe esses olhares e, principalmente, olha. Porque, para Green, o olhar é expressivo também quando não se dirige a ninguém em particular, mas nesse caso o importante não é exatamente o que se vê — em muitos casos, tanto aqui quanto no filme seguinte do diretor, o que os personagens filmados de frente veem é alguém cantando ou executando uma música, um disco tocando na vitrola —, mas o que exprime o olhar de quem vê. Na única instância de A Ponte das Artes em que pessoas assistem a algo — um espetáculo de nô —, a informação visual é negada ao espectador, sendo substituída por intertítulos que descrevem a trama da peça e se alternam com longos travelings que passeiam pelos rostos e olhares da audiência. O que exprime o olhar do espectador enquanto ele vê A Ponte das Artes? A trama da peça ecoa a do filme, e talvez o mais próximo que se pode chegar de uma resposta seja essa cena.

O poder que Green enxerga na música de despertar essa categoria de olhar do qual emerge um sentido e, além disso, de fazer com que dois desses olhares se encontrem é absolutamente ilimitado e indomável. Guigui, um personagem mesquinho que tenta matar nos outros a música que não encontra em si mesmo, e nisso, segundo Green, acaba por abrir mão da própria humanidade (“Pensei que o chamavam de inominável porque você era excelente. Mas é porque você não tem um nome”, diz Pascal a ele quando enfim se encontram), e outros representantes de uma certa classe artística e intelectual que se caracteriza por sugar a vitalidade da arte para substituí-la por mero dogmatismo teórico, conseguem levar Sarah ao seu limite e fazê-la desistir, mas sua música segue viva e incontrolável e põe em curso a jornada de Pascal que culmina no abraço impossível na estupenda cena que toma lugar na Ponte das Artes.

Green não defende uma arte de improviso — nem poderia, dado o rigor de sua mise en scène, que evita todo tipo de manipulação —, mas sim uma arte que, evitando não só a frieza mas também o sentimentalismo barato e indigente de obras que se ancoram na pieguice, não abra mão do impacto genuíno que pode causar, uma arte que sobreviva dentro de seu destinatário, assim como a música de Sarah sobrevive em Pascal e Manuel. É através dos olhares deles dois que o Lamento della ninfa é novamente ouvido pelo espectador, num dos raros momentos de uso de música não-diegética no filme (o único outro é durante a abertura), conduzindo aos créditos finais. Pouco antes, na Ponte das Artes, quando um madrigal do século XVII une, contra a “surda Inteligência humana”, uma mulher que se matou e o homem cuja vida ela salvou através de sua voz, a música é definida como o tempo entre dois silêncios em que pessoas se encontram, e de onde flui a única realidade que importa. O filme de Eugène Green é, à sua maneira, a encenação desse encontro, de que o espectador é convidado a participar; formas feitas de luz e sombra entre uma escuridão e outra, em que se pode descobrir, como descobre Sarah, que, apesar da opacidade do mundo, o que é belo não está além de nós.

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Rir é o Melhor Remédio (Pierre Étaix, 1966)

Por Fernando Mendonça

Quatro curtas compõem essa pequena antologia de Pierre Étaix, tesouro que também guarda um quinto e substancial momento de brilho já em sua introdução, na criativa abertura de créditos sustentada como uma espécie de filme autônomo, de iluminação para os seguintes episódios, assim como para tudo o que o diretor refletiu em sua produção de curtas. Nos dois minutos que abrem Tant Qu’on a la Santé, um reflexo imediato do espetáculo, com grandes cortinas se abrindo para a projeção dos créditos, numa tela que não esconde o artifício da pintura e ganha novas dimensões com a camada sonora que desdobra: o que ouvimos são os sons exatos de uma sala cheia, à espera da representação, pessoas conversando, pedindo silêncio, alterando-se no humor, como se digladiassem num pequeno inferno em que é quase impossível o necessário e solitário gesto da concentração. Perfeito o descortinar da sessão, que contará com filmes a respeito disso mesmo, de infernos causados pela relação com o Outro, em variados níveis de contato humano, dos mais íntimos aos que publicamente se contornam, não importam os espaços ou as intenções em jogo.

Já no primeiro episódio, Insomnie, também a estreia de um trabalho colorido do diretor — que sinaliza uma sensibilidade refinadíssima para texturas e contrastes, diversificando a paleta em tons inteligentes e narrativos —, vemos sob uma perspectiva bem humorada, o tormento noturno de um leitor que, ao lado da adormecida esposa, envolve-se nas páginas de um livro sobre vampiros. Realidades confundidas, suores imprevistos, parágrafos vencidos, trata-se não somente de uma das mais inventivas reflexões sobre as teorias literárias da recepção, dentro da linguagem fílmica, mas de uma amostra desse confronto de gêneros pretendido pelo cinema de Étaix, como se na própria superfície narrativa já se pressagiasse o inferno. Humor e horror dão as mãos para indicar que as crises levantadas pelo autor (que também interpreta o leitor), podem até começar no recôndito de uma mente, nos anseios individuais de alguém que sofre pela incerteza do futuro (a próxima página, a possibilidade do sono), mas sempre terminam por romper as distâncias da realidade, alcançando as pessoas próximas e nelas revelando uma espécie de fonte dos medos, de origem do mal. Não por acaso, o desfecho fantástico em que a esposa ao lado vem se tornar uma manifestação concreta do vampirismo, ansiosa pelo vulnerável pescoço que adormeceu, ao fim da leitura.

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Do ambiente doméstico ao coletivo, entramos no filme seguinte, Le Cinématographe, uma das mais ácidas críticas já feitas ao espaço das imagens em movimento, seja num sentido físico ou ideológico. No primeiro momento, a comédia se instala pela infernal procura de um espectador (sempre o próprio Étaix) por um lugar na sala lotada de cinema. Filme iniciado (um western!), luzes apagadas, a jornada é penosa, e em poucos minutos, já não sabemos se rimos ou choramos com a situação do personagem. Lidar com a má educação do público, a exploração dos funcionários e a péssima arquitetura da sala, que não permite uma boa visão da tela em diversos pontos erroneamente ocupados por poltronas, despe a potência da sessão de qualquer contorno romântico: ver um filme, como indicava o som dos créditos iniciais, pode ser uma experiência trágica, em que o conflito da coletividade anula os efeitos do espetáculo, e em que se torna impossível uma devida postura do olhar, qualquer risco de introspecção.

O filme prossegue, não aquele que o espectador não viu, mas o que continuamos acompanhando, do lado de cá. E o nível de autorreflexão aprofunda na medida em que notamos uma inadequada utilização, não apenas do espaço cinematográfico, mas daquele que é propriamente fílmico, ou seja, o espaço da película, daquilo que se projeta na tela e deixa de se preocupar com qualquer princípio estético. A propaganda que preenche os intervalos da sessão no cinema acompanha o espectador mesmo fora da sala. Nas ruas, nas casas, entre os amigos, a ordem dominante é publicitária, consumista, à beira do ditatorial. São gestos extremos e patéticos que Étaix usa para mais uma vez questionar os rumos da imagem, a validade do que se pode fazer com as câmeras e o domínio da representação. Um inferno que brota das telas, contaminando de forma massiva e desproporcional todas as camadas da sociedade. Afinal, o cinema também é o Outro.

E, finalmente, o encerramento da antologia com dois curtas que se espelham, um na cidade e outro no campo, dando prova de que não há lugar privilegiado ou livre de ameaças, no caso, isento dos mórbidos risos insistidos por Étaix. Tant Qu’on a la Santé e Nous N’Irons Plus Aux Bois, fecham a sessão e se completam como se fossem a luz e a sombra originalmente pretendidas, aqui. Neles, infiltram-se crises que nasceram desde Heureux Anniversaire (1962), na terrível lapidação de um tempo que é insuficiente para qualquer ponto de vista, pois Étaix faz questão de explorar suas ações como num prisma cubista: médico e pacientes, homens do campo ou da cidade, todas as possibilidades são levadas em conta para concluir o acertado título que ganhamos do filme em português. Neste cinema, o riso se estabelece de fato como único remédio, derradeiro antídoto para situações de que não se pode escapar. Não se trata de fuga, de alheamento, mas de um corajoso embate contra o estabelecido e aceito. Pierre Étaix nos recorda, cena após cena, de que todo inferno depende de um céu para existir.

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Seleção comentada: Filmes sobre cinema

Daniel Dalpizzolo e Fernando Mendonça comentam 30 obras que abordam a realização do cinema, em exercícios de metalinguagem e de reflexão sobre a natureza das imagens cinematográficas. A seleção está em ordem cronológica e não pretende delimitar os melhores filmes sobre o tema, mas sim traçar um recorte de obras que ambos consideram especiais entre tantas outras igualmente importantes para a História do cinema.

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Bancando o Águia  [Sherlock Jr., 1924], de Buster Keaton / O Homem das Novidades [The Cameraman, 1928], de Buster Keaton e Edward Sedgwick

Dois filmes essenciais sobre a invenção do cinema. Em Sherlock Jr., Buster Keaton explora a metalinguagem como artifício para projetar os desejos e a imaginação do homem na tela do cinema, esta janela que se abria para lhe permitir voar e sonhar. Já em O Homem das Novidades, onipresente na história, a câmera reaparece como mecanismo de intervenção no cotidiano para aproximar corpos afastados por obstáculos físicos, morais ou sentimentais; como interveniente às restrições do olhar, que não nos permitem enxergar sem amparo dela o que se mantém distante do alcance dos nossos olhos – mesmo estando às vezes muito próximo. Seja para nos deslocar da realidade ou nos reafirmá-la, Keaton reconhece no cinema uma ferramenta essencial à vida moderna, em filmes de humor e singeleza incrivelmente encantadores. (Daniel)

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O Homem com a Câmera [Chelovek s kinoapparatom, 1929], de Dziga Vertov

Se as obras de Keaton apropriavam-se do maquinário do cinema para reafirmar virtudes humanas, Dziga Vertov e seu O Homem Com a Câmera sugerem um contraponto a este olhar, numa celebração sinfônica da frieza e do caos modernos. O registro do cotidiano pelo qual o cineasta se interessa não contempla individualidades, atordoado pela movimentação em grande escala das metrópoles no início do século XX. As virtudes estéticas de Vertov representam um deslumbre pelo progresso tecnológico e pelos efeitos gerados por estes novos espaços urbanos, quando, com eles, era reinventada toda uma noção de movimento. É deste mesmo apreço pelo movimento e pelo progresso tecnológico que nasceu o cinema, e a ele O Homem Com a Câmera é um presente ofertado com esmero. (Daniel)

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Contrastes Humanos [Sullivan’s Travells, 1940], de Preston Sturges

Um dos primeiros diretores independentes do cinema americano, Sturges precisou entrar na indústria para denunciá-la, convertendo o humor clássico na mais profunda e hedônica ironia. Sullivan’s Travels, no (des)equilíbrio entre a ficção e o documental, alcança pela jornada trágica de seu protagonista — um cineasta de comédias que almeja concluir um filme sobre a miséria humana — questionamentos que não se limitam ao sistema hollywoodiano de produção, mas que tocam a própria necessidade do riso e do espetáculo, de toda a motivação que existe para se fazer cinema. (Fernando)

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Crepúsculo dos Deuses [Sunset Boulevard, 1950], de Billy Wilder

A decadência da mitologia hollywoodiana nunca foi tão cruelmente devassada como em Sunset Boulevard, filme abismo que dilacera sua metalinguagem ao materializar dois ícones (Von Stroheim e Gloria Swanson) e recuperar cenas do jamais concluído Queen Kelly (1929). Mais do que um jogo de ficções, Wilder parece colocar realidades dentro de realidades, como o faria mais uma vez em seu testamento, Fedora (1978). Mas foi em 1950 que ele chegou mais perto da morte, num fúnebre oratório a velar o próprio cinema, em sua decomposição narrativa, na diluição de suas formas. À beira do abstrato, como pede o luto. (Fernando)

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No Silêncio da Noite [In a Lonely Place, 1950], de Nicholas Ray

Muito já foi escrito sobre esta obra-prima no Multiplot. Aqui e aqui. (Daniel)

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Cantando na Chuva [Singin’ In the Rain, 1952], de Stanley Donen & Gene Kelly

Além de figurar como um dos maiores exemplares do gênero dourado de Hollywood, Singin’ In the Rain representa uma das reflexões históricas mais autoconscientes que o cinema clássico realizou. No meio de tanto bom humor e refinada sensualidade, Donen & Kelly conseguiram uma obra definitiva sobre a indústria e as transformações tecnológicas que ao mesmo tempo ameaçaram um modus operandi artesanal e abriram horizontes para um exercício estético ainda mais completo e totalizante do filme — no caso, o surgir do advento sonoro. A renovação de um sonho audiovisual, da magia que a ilusão impõe, de um pacto do cinema para consigo. (Fernando)

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Assim Estava Escrito [The Bad and The Beatiful, 1952], de Vincente Minelli

Dono de um cinema da desilusão e já responsável por retratar o caráter decadente de outras artes, Minelli expressa aqui uma visão bastante pessoal que interpreta nesta decadência e maldade do sistema os motivos também responsáveis pela genialidade e beleza do movimento cinematográfico. O personagem inescrupuloso de Kirk Douglas — ator e diretor fariam em Two Weeks in Another Town (1962) outra provocação aos bastidores de Hollywood —, dá prova de que o cinema e a humanidade já foram corrompidos a um ponto irremediável, mas que talvez somente por isso sobrevivam. (Fernando)

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A Tortura do Medo [Peeping Tom; Inglaterra, 1960], de Michael Powell

Filme maldito que condenou a carreira de seu diretor ao ostracismo definitivo, Peeping Tom é dos mais cruéis retratos que o cinema produziu sobre o fetiche voyeur. Para narrar a trajetória de seu patético e cinéfilo serial killer — no sentido psicanalítico do termo, em que a cinefilia surge como neurose fundadora da pulsão escópica — e associar tal personagem a todo um entendimento espectatorial onde o público também é criminoso, Powell exercitou aquilo que aprendera com Buñuel e Hitchcock, legando uma catártica, uma quase demoníaca visão do objeto cinematográfico. (Fernando)

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O Terror das Mulheres [The Ladies Man, 1961], de Jerry Lewis

Para que exista misé-en-scène, é necessário ao cineasta compreender, primeiramente, a postura e a imposição dos corpos sobre o espaço, e o distanciamento com que estes elementos, corpo e espaço, serão enquadrados pela câmera. Toda obra de Jerry Lewis, como a de Keaton, Chaplin, irmãos Marx e outros mestres da comédia, sugere através de sua misé-em-scène particular um desarranjo com o mundo que nasce justamente do equívoco de cálculo na imposição de seus corpos sobre o espaço. Esse exercício talvez atinja o ápice em O Terror das Mulheres, em que um set cinematográfico com múltiplos andares, ambientes, objetos e figurantes é construído para Lewis protagonizar uma longa sequência de insanas desventuras e malabarismos. (Daniel)

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Oito e Meio [Otto e Mezzo; Itália, 1963], de Federico Fellini

Cinema de confissão, em Oito e Meio Fellini materializa todas as sombras presentes nos pesadelos de um cineasta. Do ócio criativo ao vislumbre da musa, da crise existencial aos picadeiros do estrelato moribundo, a encarnação de Marcello Mastroianni enquanto alter ego confesso de seu diretor é das mais desesperadoras que o cinema já provou. Uma descida aos infernos é do que se pode chamar o seu clímax, apesar de o filme merecer indiscutível lugar no olimpo da sétima arte. (Fernando)

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O Desprezo [Le Mépris, 1965], de Jean-Luc Godard

Éric Rohmer dizia que “o essencial no cinema não é questão de linguagem, mas de ontologia”. O termo linguagem é constante nos textos sobre Godard em especial para destacar o rompimento de procedimentos protocolares da narrativa cinematográfica, e esse deslumbramento postmodern acaba por preterir o que há de mais especial em filmes como Pierrot le Fou e O Desprezo, e que sobrevive mais modestamente ao tempo, sem saltar aos olhos apressados. O Desprezo é pura ontologia, em um filme de sentimentos e personagens pulsantes, compostos com a precisão do olhar de um cineasta que acredita na força do cinema e de suas imagens como mediadora da própria existência humana. (Daniel)

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Introdução à Antropologia [Erogotoshi-tachi yori: Jinruigaku nyûmon, 1966], de Shohei Imamura

O sexo é tema recorrente na Noberu Bagu japonesa, e pelo menos dois grandes filmes do período discutiram abertamente a intervenção da câmera no prazer sexual. Se A Mulher do Lago, de Yoshishige Yoshida, segue assustadoramente contemporâneo nestes tempos de polêmicas sobre o compartilhamento clandestino de fotografias de nudez na internet (e o infame debate sobre a condescendência do registro, que em geral aponta não mais que a predominância do conservadorismo e do machismo em nosso senso comum), em Introdução à Antropologia o mestre Shohei Imamura realiza uma obra-prima sobre a obsessão pelo pornográfico, discutindo com seu humor duro e subversivo temas como voyeurismo, pedofilia, incesto, prostituição, masturbação e orgias – a busca ilimitada por prazer nas diversas formas de sexo, sejam aceitas moralmente ou não. (Daniel)

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Na Mira da Morte [Targets, 1968], de Peter Bogdanovich

Como temer os monstros da ficção em um mundo onde homens empunham armas de fogo e alvejam outros na rua sem real motivo? Targets segue um dos mais precisos estudos do medo e da emergente violência urbana, com um choque gerado através da presença do corpo de Boris Karloff, intérprete de populares filmes de horror da primeira metade do século XX, cuja incapacidade de assustar novas gerações representa toda decadência de um imaginário da fantasia que não encontra mais espaço em nosso doentio cotidiano. É um dos melhores trabalhos de Bogdanovich e um dos filmes mais fortes da Nova Hollywood. (Daniel)

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Louis Lumière [idem; França, 1968], de Eric Rohmer

No emblemático ano de 1968, Rohmer provoca toda uma cinefilia ao entrevistar Jean Renoir e Henri Langlois, num documentário para a Televisão Escolar, a respeito do potencial de Louis Lumière enquanto cineasta moderno. Pela importância da conservação histórica e no debate que surge a respeito da receptividade fílmica junto a uma nova geração de público, os filmes do séc. XIX irrompem na tela desafiando toda uma concepção de contemporaneidade cinematográfica. (Fernando)

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O Homem que Deixou Seu Testamento no Filme [Tôkyô Sensô Sengo Hiwa, 1970], de Nagisa Oshima

Um dos trabalhos mais experimentais de seu realizador, Tôkyô Sensô sintetiza muito do que se convencionou chamar de nouvelle vague japonesa além de representar parte do núcleo formado pela Teoria da Paisagem, fundamental para o cinema nipônico pós-68. No contexto das manifestações estudantis e do impacto cineclubista trazido pelos ‘cinemas novos’, Oshima revoluciona não só a maneira de fazer cinema, mas de compreender o próprio lugar da câmera num mundo que sofre de agônico esvaziamento. O filme dentro de seu filme, enquanto testemunho suicida, reconfigura a condição primeira da imagem enquanto coisa morta, enquanto túmulo do olhar. (Fernando)

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Bang Bang [idem, 1970], de Andrea Tonacci

Radical meta-cinema em que a presença da câmera em cena não apenas denuncia a metalinguagem, mas vai além, permitindo ao filme renegar qualquer neutralidade no olhar – pois ele está todo contaminado por esta câmera. É um filme de vísceras, que nasce do interior dos mecanismos do cinema, gestando em seu corpo sequências por vezes oníricas, descontínuas ou infladas, mas que abraçam desmedidamente um ideal de ficção plena para impor a força do cinema sobre a realidade. Há uma incrível sequência, próximo do fim, em que um dos personagens ensaia explicar a história do filme para o espectador e é repentinamente alvejado por uma torta cremosa que surge de trás da câmera, como se arremessada pela equipe de filmagem para silenciá-lo, que sintetiza com precisão a coragem e a genialidade deste filme de Tonacci. (Daniel)

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Precauções Diante de Uma Prostituta Santa [Warnung Von Einer Heiligen Nutte, 1971], de Rainer W. Fassbinder

Responsável por um cinema que será para sempre lembrado como da humilhação — humilhação do afeto, das relações, da humanidade —, Fassbinder entrega com Warnung Von Einer… um cinema que agora se humilha a si mesmo, dentro de uma narrativa prostituída que sintetiza todo o cerne do novo cinema alemão. O esvaziamento dos corpos e espaços em jogo (e da homenagem avessa que fazem ao classicismo de Marienbad) denuncia a esterilidade não só de um sistema produtivo, mas da imaginação criativa que beira o abismo nesta crepuscular Modernidade dos tempos. (Fernando)

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A Noite Americana [La Nuit Américaine, 1973], de François Truffaut

Aquele que talvez seja o cineasta mais assumidamente cinéfilo da história não poderia deixar de entregar em sua filmografia uma visão pessoal do ofício. Por mais que La Nuit Américaine desnude alguns mitos técnicos e exponha os bastidores com certa acidez, o registro romântico de Truffaut sempre fala mais alto, como ainda melhor acontece em sua prática crítica. Se do rigor didático sobram alguns excessos, não há como ignorar obra de tamanho afeto, tão passional e honesta em sua exposição. (Fernando)

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O Espírito da Colmeia [El Espíritu de La Colmena, 1973], de Victor Érice

O cinema nasce de um olhar para se libertar em outro. A magia de todo trânsito entre ambos está em O Espírito da Colmeia. Mais aqui. (Daniel)

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Um Tiro na Noite [Blow Out, 1980], de Brian De Palma

Como em No Silêncio da Noite, quando o escritor é abandonado por seu grande amor e enfim descobre que a frase que imaginava ter criado para um roteiro representava na verdade sua própria e inevitável tragédia, Blow Out é uma melancólica elegia à interseção entre a vida e a arte. É descortinando os artifícios do cinema e reempregando novo sentido a cada um deles, na belíssima sequência com Travolta operando a moviola, que De Palma resolve o mistério do acidente investigado por Jack Terry, e é no assassinato de Sally, seu grande amor, quando o microfone capta o mais agudo e doloroso grito de horror, que o cineasta sadicamente concede a Jack o registro perfeito para finalizar seu filme. Da miséria da vida nasce o triunfo da arte, quando a escuridão da noite, iluminada pelas cores dos fogos da Liberdade, submerge o destino de Jack em uma indissipável treva. (Daniel)

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O Estado das Coisas [Der Stand Der Dinge, 1982], deWim Wenders

Da recorrente metalinguagem que assola a carreira de Wim Wenders, a mais impactante na abordagem do próprio cinema foi a que marcou seus primeiros filmes da década de 80. Lightning Over Water (1980) e Chambre 666 (1982) são exemplos de um cinema que assume considerável temor, pelo passado ou pelo futuro, contra o rigor do tempo. Der Stand Der Dinge é o clímax de toda uma crise narrativa, ao filmar uma refilmagem interrompida pelo desaparecimento do produtor. Sem película e sem dinheiro não há filme, mas sem movimento ou imaginação, todo o cinema é impossível. (Fernando)

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Sem Sol [Sans Soleil; França, 1983], de Chris Marker

Ainda que, filme após filme, Chris Marker nunca abandone a reflexão sobre o mecanismo cinematográfico, é preciso destacar três títulos essenciais pelo foco a outros cineastas: A.K. (1985), sobre Kurosawa, Le Tombeau D’Alexandre (1993), a respeito de Aleksander Medvedkin e Une Journée D’Andrei Arsenevitch (2000), em homenagem à Tarkovski. Se inserimos um filme além destes na presente lista é porque em Sans Soleil, Marker aprofunda suas observações sobre o cinema com uma nostalgia ainda mais íntima e singular, por mais que também ancorada em outros nomes, a exemplo de Hitchcock e seu Vertigo. Porque a cinefilia também escreve em diários. (Fernando)

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As Poltronas do Cine Alcazár [Les sièges de l’Alcazar, 1989], de Luc Moullet

O apaixonado cinéfilo/crítico e suas dúvidas tenras e por vezes deliciosamente bobas. Da escolha pela melhor poltrona na sala de cinema à eterna guerra ideológica em torno dos cineastas, transitando pela decisão por ficar ou não com uma mulher pelo gosto cinematográfico dela ou, em um encontro no cinema, fixar os olhos à telona ao invés da boca ao beijo da companheira, Luc Mollet filma em Sièges de l’Alcazar uma das mais divertidas e singelas representações da cinefilia, da paixão pelos filmes e por toda áurea mística que os cercam. (Daniel)

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Les Baisers de Secours [idem; França, 1989], de Philippe Garrel

Poucas vezes o cinema terá gerado tamanha introspecção, tão marcante equilíbrio entre a Imagem e a Vida, a Ficção e a Realidade. Ao filmar sua própria vida de cineasta e colocar nisso um núcleo familiar verdadeiro (esposa, pai e filho, todos atores de ofício), Philippe Garrel acompanha a luta de uma geração que já não sabe como se enxergar no cinema. O fazer do filme em Les Baisers de Secours, assim como em Sauvage Innocence (2001, do mesmo diretor), se reflete como num espelho manchado, um diário de amores que não poderia ser escrito senão pela grafia da câmera. (Fernando)

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Close-Up [Nema-ye Nazdik, 1990], de Abbas Kiarostami

O cinema de Kiarostami propõe um exercício permanente de ressignificação. A cada plano, novas verdades – ou possíveis farsas – se integram a um conjunto de observações sobre o comportamento e a relação dos seus personagens – seja com outros personagens em cena, com nosso mundo ou com a realidade proposta ao filme. Close Up, neste ou em qualquer outro sentido, é um dos grandes trabalhos do cineasta iraniano. É um filme que abraça as potências do documentário e da ficção e dilui as barreiras entre ambos para remontar brilhantemente uma curiosa história de farsa – como todas as histórias de farsa, também uma história de amor pela ficção e pela representação. (Daniel)

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O Jogador [The Player; EUA, 1992], de Robert Altman

O estilo fragmentário peculiar das narrativas de Altman só poderia cair como uma luva para um enredo a respeito dos dissabores do sistema hollywoodiano. Sendo o cinema arte da coletividade, The Player encontra no excesso de colaborações e citações interfílmicas o tom exato para a ironia pretendida pelo diretor, a começar do ponto de vista protagonista, que, ao seguir um produtor da indústria, já se dispõe a focar aspectos paralelos ao da criação estética em si, pois mais interessados no caráter mercantilista da sétima arte. Entre trapaças e cifrões, a ácida visão de mitos despidos. (Fernando)

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Irma Vep [idem, 1996], de Olivier Assayas

A câmera de Assayas filma ao mesmo tempo a História do mundo e do cinema. Pessoas e personagens. Vidas e tramas. Sua lente é um filtro pelo qual estas representações se rarefazem para serem projetadas ao espectador como uma realidade híbrida cuja existência está terminantemente fadada a pertencer à arte. Ao mesmo tempo, há uma vida que pulsa destes personagens que nos envolve e nos aproxima deles como de outros poucos no cinema atualmente. É este olhar cinematográfico e ao mesmo tempo tão humano que fascina em seus filmes, e Irma Vep é uma orgânica representação do estudo sobre a [des]construção de signos, imaginários, personagens e narrativas que precederiam e sucederiam sua existência na filmografia do diretor. (Daniel)

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Onde Jaz o Teu Sorriso? [Où Gît Votre Sourire Enfoui?; Portugal/França, 2001], de Pedro Costa

Exercício ensaístico que observa a montagem do filme Sicília!, filmado em 1999 pelos diretores Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, o trabalho de Pedro Costa firma pelo diálogo com o casal um cinema que prioriza a dimensão do olhar, sua sensibilidade, sua maneira particular de encontrar o mundo e guardá-lo com um carinho próprio, nostálgico, vivo. Onde Jaz o Teu Sorriso? é a pergunta que fica diante de um rosto filmado pelos Straub e que, num movimento íntimo e irrecuperável, pareceu sorrir, sem que tal gesto pudesse estampar em definitivo uma imagem de cinema. (Fernando)

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Adeus, Dragon Inn [Bu San, 2003], de Tsai Ming-Liang

Rumores indicam que um cinema de calçada na Coreia, que terá sua última exibição antes de fechar as portas definitivamente, é assombrado por fantasmas. Enquanto a projeção ilumina a tela na noite derradeira (o filme é Dragon Inn, de King Hu), poucos espectadores ocupam algumas poltronas da vasta sala – parte deles procurando refúgio contra a chuva avassaladora que desaba na cidade. A câmera acompanha delicadamente os gestos e as ações destas pessoas, os olhares que se voltam à tela ou que se cruzam com outros olhares durante este curto período, mas também observa a amplitude do vazio, o silêncio que reverbera pela sala como notas de um réquiem emudecido. Em seu atordoante clímax surge o rito fúnebre, quando as portas são trancadas pela última vez e o templo antes habitado, lar de múltiplas histórias e vidas, se transforma enfim em um legítimo casulo de espectros. (Daniel)

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Aquele Querido Mês de Agosto [idem, 2009], de Miguel Gomes

A câmera é também um instrumento para desvendar o mundo. E é do prazer pela descoberta do novo registro que cresce mais este híbrido entre documentário e ficção, acompanhando uma equipe de filmagem em visita à locação de seu próximo filme e os desdobramentos que cada personagem encontrado por eles no percurso provocam dentro da própria ficção que o grupo propõ­­­e, que brota naturalmente pela narrativa durante a trajetória e se intersecta magicamente à realidade disposta pelo filme. Miguel Gomes filma aqui um dos mais prazerosos exercícios sobre fazer cinema justamente porque cada plano e movimento registrados, mesmo em condições absolutamente triviais, são impregnados de um encantamento contagiante pelo ato de observar o mundano e nos surpreender com ele através das mais singelas ações. (Daniel)

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Grande Amor (Pierre Étaix, 1969)

Por Murilo Lopes

A comédia da vida pública e o drama da vida privada. Um dos maiores valores que um filme de comédia pode atingir é o de ser o retrato de um povo ou de uma época. É o de conseguir atribuir aos seus personagens não apenas profundidade e carisma, mas uma espécie de transcendência que faça com que o público se identifique ou, pelo menos, encontre paralelos com a sua realidade e cotidiano. Este primeiro filme colorido de Pierre Étaix se apresenta como um confronto de duas realidades às quais qualquer pessoa – desde o público que pôde contemplar esta obra à época de seu lançamento como o público que o assiste agora – pode reconhecer e se identificar. Uma comédia social e um drama íntimo.

Pierre (novamente interpretado pelo próprio Étaix) era um rapaz francês suburbano como outro qualquer. Envolto em seu próprio mundinho, tinha amores por três moças diferentes ao mesmo tempo. Elas não se importavam. Ele não se importava. Era um mundo livre, de sabores e nuances diversas. Até que ele conhece uma jovem de boa família chamada Florence. Em algum tempo, a relação se torna séria e Pierre ganha o posto de “futuro-genro” de um pequeno industrial. O filme tem início justamente com o casamento de Pierre e Florence. O momento no qual a juventude descompromissada acaba… e começa a vida vigiada de adulto casado. Durante quinze anos, Florence e Pierre vivem tranquilos uma vida de rotina e trabalho: agora trabalhando para o sogro, Pierre ajuda a comandar a pequena fábrica lidando com fornecedores chorões e exigências contábeis. Até surgir uma jovem e bela secretária chamada Agnès (Nicole Calfan, lindíssima). Pierre então se vê desejando novamente a vida de jovem, longe dos olhos dos sogros e, claro, longe da esposa, que agora o entedia. Porém, quando Florence anuncia que irá passar duas semanas no litoral, Pierre vê a oportunidade perfeita para se declarar a Agnès e reaver algum controle sobre sua vida.

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Muito longe de ser uma mera história de um homem na meia idade sofrendo da “idade do lobo”, Grande Amor consegue extrair risos daqueles que iniciam como uma gargalhada e terminam esmaecendo, como uma constatação de que, apesar de cômicas, as situações passadas por Pierre são humanas e agridoces, como as de qualquer um. Talvez a maior delas seja justamente o fato de que a vida de Pierre, por mais que o próprio personagem não se dê conta, é ditada muito mais pelas pessoas que vivem ao seu redor do que por ele próprio. As vizinhas fofoqueiras, a sogra que insiste em telefonar para sua filha toda noite e até o amigo bem intencionado são todos agentes de um mesmo plano: todos estão dizendo como Pierre deve agir. Todos estão movendo peças que afetam sua vida. No final das contas, para Étaix, a vida em sociedade é um jogo que se joga em conjunto. Todos influenciam em tudo e exercem essa prerrogativa o quanto podem, inconscientes dos reflexos que suas jogadas podem ter no futuro. A insatisfação de Pierre advém, em grande parte, do fato dele precisar exercer um papel para o qual ele não tinha ensaiado. As jogadas foram sendo realizadas, decisões tomadas e regras estabelecidas enquanto ele sequer tinha ideia do que estava acontecendo. Conquistar Agnès é a forma de bater o pé no chão e reclamar para si um mínimo de controle sobre o que lhe acontece.

Como recheio a esse contexto, Étaix pincela com maestria e criatividade cenas hilárias, como a do amigo de Pierre imaginando como ele faria para anunciar à Florence o fato de estar apaixonado por Agnès: a solução de Étaix para a divisão dos bens do casal é imensamente divertida, assim como as gags envolvendo um barman que, curioso pelas confusões que acontecem no café, sempre acaba por retirar a bebida de um pobre homem que ainda não a tinha terminado. A montagem de som, ainda, é sensacional ao brincar com expectativas, como uma cena acompanhada por um solo de violino que se revela estar sendo tocado, na verdade, por um personagem em outra sala, ou com pequenos exageros que ajudam a reforçar as noções que Pierre tem de seu entorno (no caso, o som de choro de criança que irrompe pelo escritório toda vez que Pierre atende a um certo fornecedor ao telefone). Porém, destacam-se, mesmo, as brilhantes cenas de Pierre e Agnès dando um passeio de cama (não pergunte, só assista) pelo campo em meio a tantas outras camas enguiçando ou colidindo pelo caminho e aquela na qual Pierre envelhece gradualmente enquanto conversa com sua jovem secretária.

Belíssimo em seus esforços e conduzido de maneira sempre segura e sempre objetiva, Grande Amor é uma obra de sensações mistas. Um olhar por vezes brincalhão, por outras preocupado sobre uma época e uma sociedade em transformação. Étaix é o palhaço triste e comovido que lança esse olhar e identifica tanto pelo que se sentir melancólico… mas, ainda assim, tanto mais pelo que rir e por perceber que esses nossos dramas, no final das contas, andam de mãos bem dadas com o cômico.

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O Enamorado (Pierre Étaix, 1963)

Por Kênia Freitas

Le Soupirant é o primeiro longa-metragem de Pierre Étaix. Já palhaço, músico, desenhista, o artista vinha da experiência de trabalhar com Jacques Tati em Meu Tio assumindo várias responsabilidades no set de filmagem – de criador de gags a assistente de diretor, tendo feito também o storyboard do filme. Logo em seguida, Étaix e Jean-Claude Carrière iniciam a sua amizade e parceria, que marcará grande parte da jornada do artista no cinema. Antes desse longa, os dois escrevem e dirigem coletivamente em 1962 os curtas: Heureux anniversaire e Rupture. De certa forma, tanto os curtas quanto Le Soupirant são laboratórios para Étaix desenvolver o seu personagem cinematográfico – que com variações nesse percurso, vai se definindo ao longo dos filmes para atingir o seu momento ápice de engenhosidade em seu segundo e mais aclamado longa-metragem, Yoyo (1965).

Assim, em Le Soupirant, o protagonista Pierre (interpretado por Étaix) é um jovem sonhador e um pouco deslocado em relação ao mundo e as pessoas. Filho único de uma família rica, Pierre causa preocupação aos seus país pelo seu isolamento e sua falta de interesse em casar-se e começar a sua própria família. Com a cabeça na lua e nas estrelas, o rapaz apaixonado por astrologia recebe um ultimato de seu pai para que finalmente vá procurar uma companheira. Visto que ele não tem a menor ideia de como abordar romanticamente (ou de qualquer outra forma) uma mulher, a partir desse plot o filme se dedica a essa caçada desajeitada desenvolvendo as mais diversas gags em cima das fracassadas tentativas do personagem.

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Se por um lado, nesse filme fica evidente a influência do cinema de Tati, sobretudo no uso marcado do som sublinhando cada ação, principalmente as mais cômicas. Por outro, na economia dos diálagos e na expressividade dos gestos, Étaix presta também a sua homenagem aos grandes da comédia no cinema mudo: Buster Keaton, Harry Langdon, Laurel & Hardy.

Nesse sentido, os primeiros filmes de Étaix se situam nesse limiar entre o cinema clássico e o moderno. Do clássico burlesco, os filmes preservam o sistema sensório motor, em que cada ação desencadeia uma reação. Para o efeito da comédia, há sempre um desencontro na resposta: a reação nunca é exatamente a que se esperava, algo sempre dá ligeiramente errado. É o que acontece por exemplo quando o personagem observa a interação entre outros homens e as mulheres e tenta imitá-los em investidas que invariavelmente são mal sucedidas das mais diversas e engraçadas formas.

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Mas essa a fórmula do burlesco clássico só funciona até certo ponto nos filmes de Étaix. Visto que no decorrer desses desencontros, dessa incapacidade do personagem em executar ou imitar ações simples, dessa falta de jeito, as situações e as gags se encaminham para uma destruição. Pierre está sempre quebrando algum objeto, colocando fogo em alguma coisa, levando ao limite as suas reações. É desse sistema que vai se destruindo a medida que vai dissipando sua energia inicial que está o maior trunfo de humor do cineasta – e a sua contemporaneidade com seu tempo. Pois, se de forma geral esse desencontro sempre fez parte da construção de gags e do burlesco, no cinema de Étaix esse descompasso vem de um deslocamento do personagem principal com os outros e com a sociedade moderna.

Nesse sentido, nada mais sintomático do que a fulminante paixão de Pierre por Stella, cantora vedete da moda que ele conhece pela televisão, cartazes, em performance no palco. O interesse do rapaz se desfaz imediatamente na primeira interação não mediada dele com a Stella. No final, já estamos certos do desenlace feliz do personagem com Ilka, a estudante estrangeira (que não fala francês) hospedada na casa da família. Mas até o happy ending de Pierre é ligeiramente atrasado e estranho. Ainda que, sempre encantador.

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Tourneur e a rarefação do horror

Por Luis Henrique Boaventura

Há três momentos de assombro em O Homem Leopardo: o galho que se dobra na cena do cemitério, o cigarro jogado na direção do curador do museu quando ele é perseguido pela rua, e os passos invisíveis que se aproximam de Clo-Clo pouco antes de sua morte. Três fagulhas da fricção de coisas suspensas do mundo conhecido pelo espectador, ações clandestinas que correm à revelia do quadro, no subterrâneo da imagem. A quem esses passos pertencem? De que mão em que sombra do quadro vem o cigarro jogado na tela? Ao peso de quem ou de quê se vergam os galhos das árvores do cemitério? Se o suspense, em definição simplista, é o terror sugerido, a tensão criada por Jacques Tourneur provém de um terror invisível, habitante de um inviolável fora de campo. Os grandes clímaces de O Homem Leopardo ocorrem sem a menor partícula de matéria que os dispare. O catalisador da tensão não está mais oculto, conforme cânone do gênero; ele sequer existe realmente. Visíveis na tela apenas faíscas de qualquer coisa que se esconde, provocante objeto de discurso resgatado dos dois filmes anteriores para se tornar peça funcional e impingir efeitos que não seriam possíveis sem uma intrincada progressão referencial.

Em 1942 e 1943, ao lado de Val Lewton, produtor da RKO Pictures, Jacques Tourneur rodou três filmes-B de horror com orçamento limitado a US$ 150.000 cada: (em ordem) Sangue de Pantera (Cat People, 1942), A Morta Viva (I Walked With a Zombie, 1943) e O Homem Leopardo (The Leopard Man, 1943). Três filmes absurdos para a época, ligados entre si por uma obsessão liminarmente erótica/infantil: o fascínio pelo que está oculto ou que se desconhece; uma presença que se infiltra nas camadas do filme, que se sente, que se ouve, mas que está sempre num nível imediatamente inferior ao da superfície. Qualquer coisa fantasmática e inferencial que se acha num subsolo diegético inacessível ao espectador. O único momento em que essa presença denunciada por uma sombra ou um estalo no escuro se materializa é no momento da morte, acessando um lapso entre os planos onde o medo, espectro incorpóreo do qual só se apreende a sombra que projeta, feito fumaça, entra em contato com o que é matéria e a destrói num golpe de lâmina (garras, dentes, a ponta de um florete).

Há um referente catalisador do horror pretendido por Tourneur em cada um dos três filmes. Em Sangue de Pantera é a metamorfose de Irena, em A Morta Viva é a magia negra e em O Homem Leopardo é o serial killer que mata imitando um felino. Cada um desses elementos é responsável por homologar o gênero em que Tourneur enquadra seus três filmes. É a relação entre eles, contudo, que permite ampliar a perspectiva de texto fílmico para as três obras (e não apenas uma) e que os constitui não como meros “referentes mundanos”, mas como vibrantes objetos de discurso.

Apesar de parecerem a princípio distintos, os elementos disponíveis nos três filmes são, na verdade, apenas um referente (apreendido e postulado por Tourneur como cânone do cinema de horror): a sugestão do perigo, a iminência da tragédia, a ameaça que não se mostra, mas que se esconde e que aterroriza sem precisar agir, bastando os efeitos de sua presença (por vezes real, por vezes apenas imaginária) ocultada nas sombras densas da fotografia como herança do até então recente expressionismo alemão. É o mesmo referente, passando, contudo, por recategorizações que o redefinem e sentenciam uma tese de Tourneur ao final de sua parceria com Val Lewton.

Ocorre, como se verá, um processo de rarefação do horror e de estudo do quanto essa gradação de intangibilidade afetará o envolvimento do espectador. O referente é denso em Sangue de Pantera, mais esparso em A Morta Viva (a partir de quando já é seguro o chamarmos de objeto de discurso), e totalmente abstrato em O Homem Leopardo. Cada um desses três filmes corresponde a uma fase de diluição da ameaça em medo puro, um esvaecer da matéria até que a mera suposição de sua presença seja desencadeante suficiente às pretensões de Tourneur. Como ocorre em O Homem Leopardo, tratado quase sempre como obra menor, de argumento cretino e subterfúgios primitivos, mas que é clímax de um delicado processo de expurgação desse algo secreto que habita as imediações da lente, um processo que se estende por estes três filmes fundamentais do início de carreira de Tourneur como operário de estúdio em Hollywood.

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Sangue de Pantera (Jacques Tourneur, 1942)

Sangue de Pantera conta a história de Irena (Simone Simon), uma jovem artista, imigrante nos Estados Unidos, que se apaixona e se casa com Oliver (Kent Smith). À medida que o tempo passa, a relação dos dois se deteriora, e Irena passa a sofrer com alucinações. Ela descobre ser descendente do chamado “cat people” (título original), pessoas com a capacidade de se transformar em panteras. Conforme avança, Irena percebe que o perigo que ela sempre sentiu em seu entorno partia, na verdade, dela mesma: uma mulher-pantera.

Concreta (mas implícita), a insígnia do horror aqui desfila (e este é o termo apropriado) encarnada em Irena, ainda cerceada pela prisão da pele, lutando para escapar. A primeira cena já entrega esse duelo: Irena, diante da jaula do zoológico, tentando desenhar a pantera. Ela se esforça para apreender no papel o relevo da sua escultura, a complexidade do seu movimento, a fúria e energia represadas no limite de uma vitrine de exposição, um quadro para ser apreciado por quem tiver a presteza de dedicar ao olhar alguns minutos do seu tempo; não muito diferente do processo empreendido por um cineasta. O medo é ainda completamente tangível, embora dormente. Como um animal preso, não há perigo para quem observa a não ser que essas grades se partam. É necessário esse irromper do horror para além de seus limites, do contrário, ele torna-se um engodo, uma caricatura, feito um bicho de zoológico: precária representação da natureza. A pantera não é pantera sem uma vasta planície que suporte o alcance das suas patas. Falta-lhe a explosão e o espaço, falta-lhe o poder de imprimir medo novamente. Não há diferença entre o animal que respira dentro da jaula e o que Irena desenha no papel: ambos são recortes de um cenário verdadeiro, ambos são meras representações de algo. O horror aprisionado é, afinal, apenas uma possibilidade de horror, e todo medo que emana dele é uma farsa.

Por isso este medo prende-se à carne; nada no filme avança para além do raio de ação que um corpo derrama sobre o outro. O tempo inteiro se investem esforços numa fuga, mas é tão somente a este conflito que o filme se atém: no universo do corpo. É o objeto de Tourneur em Sangue de Pantera: o corpo mutante, em movimento, em desespero; ao mesmo tempo a ameaça e o ameaçado. O suspense limita-se às instâncias do corpo porque a presença à que ele reage não pode jamais se dissociar do cálice que o contém (o corpo feminino). Por esse motivo, em cada uma de suas cenas (ao contrário do que ocorre nos dois filmes posteriores), sabe-se que a presença que ronda o personagem em perigo é a da pantera, amarrada ao tecido vivo do mundo e portanto sujeita a seus princípios (como a dor ou a morte). É a desvantagem de Irena para o voodoo de A Morta Viva ou a “impresença” assassina de O Homem Leopardo. Presa ao corpo, ela pode ser vista, ser tocada e, portanto, vencida.

Interessante que, mesmo por isso, seja a liberdade o tema de Sangue de Pantera, ainda que despojada de beleza, alcançada num rebentar seco e violento. O assassínio, embora guarde a premeditação ritualística da caça, é mais um despejar exangue de força reprimida, instantânea e derradeira; clímax do atrito entre os corpos (a grande demanda do bicho enjaulado). Tourneur passa quase 70 minutos apenas ensaiando o horror, acompanhando-o em seus muitos esforços para vir à tona; ocultando o referente na névoa, mas sempre aludindo a ele, em anáfora, com o som de passos que se espalham ao redor dos personagens ou da montagem ágil que Tourneur imprime à tensão de suas sequências. O medo ganha força porque refere a algo ainda aceso na memória discursiva do espectador.

Por alguma travessa ironia, essa força incontida termina por recair exatamente sobre a própria pantera (Irena). Um reflexo. Mas era essa mesma a ideia de libertação conduzida desde o início por Tourneur, onde se tenciona o estilhaçar do corpo (objeto frágil e mundano) para a sublime evolação do espírito. Vencido o nível da carne, passa a não haver defesa contra o mal.

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A Morta Viva (Jacques Tourneur, 1942)

Em A Morta Viva, Betsy (Frances Dee) é uma enfermeira contratada por Wesley (James Ellison) para cuidar de Jessica (Christine Gordon). Tentando ajudar Jessica, que sofre de um estado de catalepsia inexplicável, Betsy recorre ao voodoo, componente indissociável da cultura africana que povoa a ilha onde o filme se passa.

Sangue de Pantera termina com o irromper da forma por sua essência, uma vitória da alma como refúgio da verdade (mesmo que maligna). Por isso, em A Morta Viva, o medo já não jaz debaixo da debilidade de um corpo qualquer.  Ele é livre, absoluto, percorre ao largo o vazio do mundo, porque se Sangue de Pantera tratava da iminência da morte, A Morta Viva trata do seu habitat: o abismo e a desolação de seus espectros. O referente é recategorizado, não tomado como um novo elemento. A acepção construída ao longo dos três filmes de Tourneur só é possível porque a teia de sentido de A Morta Viva liga-se, por sua vez, ao que já fora construído em Sangue de Pantera. A tensão não explode mais da fratura do corpo, mas da fratura dos espaços que este conquista. Essa presença antes tão óbvia, traída por rastros e outros indícios, agora perde-se e desaparece nas fiações da atmosfera, arcaico feito algum fantasma cujo vulto ficou para sempre estampado nos olhos da morta-viva. O medo excede as paredes do corpo e ganha dimensões mais raras, montando nos seres e nas forças da natureza. É o som longínquo dos tambores, a sombra que se desprende de Carrefour e que chega antes dele ao seu destino, os cabos invisíveis que arrastam Jessica para a cura (novamente a morte como ideia de fuga). O medo que escapa das fronteiras do corpo em Sangue de Pantera ganha as fronteiras da Terra em A Morta Viva, povoando seus arredores de caveiras e animais enforcados, de assovios e vendavais, recorrendo à força do mundo, e não apenas de seus objetos, para imprimir-se sobre a tela.

Essa fé de Tourneur nos elementos do campo A Morta Viva um de seus filmes mais requintados. Tourneur aproveita-se de tudo que seu espaço fílmico tem a oferecer. As sombras compondo miragens de teias e balaustradas, o duelo particular entre os extremos do claro (de espanto) e do escuro (de medo), o vento que resvala no vestido de Jessica e o dota de vida própria enquanto ela atravessa o quadro deixando um rastro branco para trás. O fora de campo aqui é reinventado; ele não trata apenas do que cerca a câmera. O suspense sob esses preceitos é o do corpo, limitado à presença física. Já o suspense em A Morta Viva é o que monta o som dos tambores e viaja até o outro lado da ilha. O horror não mora na fricção entre um corpo e outro, mas nas largas distâncias que se impõem entre eles, oposição que só se torna possível quando se defronta A Morta Viva (o horror na segunda acepção) com Sangue de Pantera (na primeira acepção).

A imagem de um personagem se movendo de um extremo do quadro para o outro é recorrente em A Morta Viva. As duas cenas mais lembradas de Sangue de Pantera expõem essa diferença: na opressão da cena da piscina e na sequência em que Alice se sente seguida, quando a câmera faz apenas recortes de seu corpo e deixa para a imaginação do espectador a possibilidade de algo saltar na sua frente a qualquer momento. Já aqui não há essa necessidade. O horror está inscrito na terra; pertence à amplitude do espaço, não à exiguidade do corpo, mero joguete de Tourneur em suas composições — sumido no meio de um matagal ou engolido pelo mar; movido por bruxaria através do cenário como quem move peças num tabuleiro. O objeto de Tourneur em A Morta Viva é o próprio mundo (e suas passagens secretas).

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O Homem Leopardo (Jacques Tourneur, 1943)

A fim de melhorar a performance de Kiki (Jean Brooks), uma dançarina de um clube noturno no Novo México, Jerry (Dennis O’Keefe) tem a ideia de usar um leopardo no espetáculo. Assustado com a plateia, o bicho foge e não é mais encontrado. Nos dias que se seguem, uma série de assassinatos passa a assolar a cidade.

Se em Sangue de Pantera o horror mora no corpo e em A Morta Viva ele galopa livre a face do universo, em O Homem Leopardo ele se lança a um nível infinitamente mais lasso desse círculo: o do imaginário. É incrível que Tourneur, aproveitando-se de elementos extradiegéticos (o título, o fato de ter dirigido Sangue de Pantera um ano antes), nos induza ao engano absurdo de conceber literalmente um “homem-leopardo” quando sua existência não é sequer cogitada por algum personagem no filme. Não há menção, não há evidência, no máximo uma sugestão oblíqua. Ainda assim (até onde se sabe) é ele nas molduras dos planos, curvando um galho ou camuflado nas sombras pouco antes do ataque. A tensão funciona em O Homem Leopardo sem ligações com um indivíduo ou mesmo com a porção de espaço que ele supostamente ocupa, um espaço que nos dois filmes anteriores era compartilhado com a vítima, mas que agora acomoda-se num vão entre os patamares, interregno entre a realidade e a loucura.

Esse processo de diluição que se assiste nos três filmes só se completa porque o referente fechado no (longínquo) filme anterior é retomado com elaborada prestidigitação. O horror não está personificado exatamente — portanto não pode ser combatido, como em Sangue de Pantera — e não está solto na superfície do filme como em A Morta Viva. Ele é apenas uma suposição, interpretação dos sinais que sobram do fora de campo para dentro da tela (o galho, o cigarro, o som dos passos).

É claro que há uma aproximação com Sangue de Pantera; muitos podem argumentar que a cena da rua com a parada de ônibus poderia estar sem problemas em O Homem Leopardo, mas há aí uma coincidência que ao mesmo tempo é uma diferença determinante: as certezas a respeito dessa cena. Em ambas o espectador está seguro da identidade do perigo que ronda os personagens, mas apenas quanto à primeira ele estará correto. Mesmo que dentro da trama a suspeita do protagonista recaia sobre um homem, o espectador imediatamente amplia a interpretação (porque tem um conhecimento extradiegético que não pode ignorar) e raciocina que, sim, os assassinatos são cometidos por um homem, mas um homem que se transforma em leopardo para matar (já que o bicho é descartado depois dez minutos de filme, uma peça que estrategicamente não se encaixa no trajeto que o público é induzido a percorrer). Em Sangue de Pantera, vemos Irena na tela seguindo Alice. Em O Homem Leopardo não vemos nada (com óbvia exceção da primeira morte, acidental). O suspense é todo firmado na ideia de uma ameaça abstrata, mais imaginária do que real (porque Tourneur só volta ao plano da realidade no pós-clímax, durante a investigação e o exame do corpo).

Nu e mínimo, O Homem Leopardo ilustra uma das questões mais elementares do próprio cinema: o fato de seu objeto ser sempre espectral, sempre uma impresença. As pessoas filmadas já não estão mais ali, os cenários já não existem, as ações foram há muito sedimentadas pela massa constante do tempo. O que se vê em um filme é o eco ancestral da realidade que ele registrou; o que cabe dentro do plano são apenas os sinais de um todo pressuposto, porque o que interessa ao cinema é o gole de fábula que se entorna nesse vácuo: entre o indício e sua fonte. É afinal o lugar da mise-en-scène, baseada na encenação de uma presença que se vende verdadeira, firmando este milenar contrato entre o mágico e o público: o pacto da ilusão, da mímica, onde até a crença é forjada. O horror invisível de O Homem Leopardo faz saltar a mais tênue filigrana desse conceito: o suspense, pleno e exuberante, baseado em rigorosamente nada além do que os signos jogados na tela são capazes de engendrar, levando a cabo o esforço patético do espectador em antecipar-se à narrativa.

Juntos, os filmes da parceria Lewton-Tourneur formam quase um estudo de caso das reações e comportamento do espectador diante dessa dissipação do horror, provando que ele não está no filme, mas na retina de quem o assiste. Cabe ao cineasta provocar os sentidos corretos, dar ao público espaços a preencher, uma construção só possível com as reconstruções operadas pelo discurso de Tourneur no mesmo referente catalisador do gênero que foi instituído no primeiro filme.

Essa rarefação do referente de horror faz-se quase defesa de uma ideia de cinema (um tanto démodé, talvez): partindo do intangível, tudo pode ser arranjado. O delírio mais ultrajante de Allan Poe é possível quando vestido na mortalha da noite, esconderijo de panteras e outros demônios. Tudo o que não se vê ou que não se conhece provoca o súbito deslumbramento dos homens, emprenha o mundo de centauros e feiticeiros, imprime num grão de poeira o fascínio cintilante do imponderável. Jacques Tourneur inventou com sua trinca de filmecos baratos, todos com a extensão de um episódio de novela, os princípios que regem até hoje a urdidura do medo no cinema: a imposição de algo cuja validação é irrelevante, que não demanda ser visto ou tocado, concorrendo junto ao espectador em sua própria dissimulação.

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Estrada Perdida (David Lynch, 1997)

Por Vlademir Lazo

Se existe algo em comum entre os fãs e detratores do cineasta David Lynch é o de que a sua filmografia se divide entre antes e depois de Estrada Perdida. Talvez não tanto um divisor de águas em sua obra, mas um ponto de equilíbrio entre essas duas “fases”. Um ponto de chegada decorrente de tudo que havia feito até então, representando uma evidente depuração plástica e até conceitual do que ele vinha construindo desde os seus primeiros curtas, e também um novo ponto de partida como uma espécie de recomeço para o que ele poderia realizar dali em diante. É também possivelmente o seu filme mais bem-acabado — junto com Uma História Real —, com uma maturidade que atinge uma plenitude que apenas se esboçava em trabalhos pregressos, e que formam a síntese, não tanto das obras anteriores, mas sobretudo dos filmes seguintes, das questões narrativas e estéticas do seu cinema. E também sem uma certa irregularidade que os não-fãs poderiam apontar em seus dois mais recentes, Cidade dos Sonhos e Império dos Sonhos, que a despeito de poderem ser considerados belos filmes, apresentam em suas estruturas notas dissonantes e auto-indulgência por parte do realizador (especialmente o último).

Jean-Luc Godard costumava dizer que um filme deveria ter começo, meio e fim — mas não necessariamente nessa ordem. Não são muitas as obras a que a sentença acima se aplicaria tão perfeitamente quanto Estrada Perdida, que corre de maneira aparentemente linear, mas com passado e presente suspensos no tempo. Muitos poderiam apontar como confusa a sua história, em contrapartida ela também pode ser considerada muito simples, só que trabalhando relativamente fora de certa ordem cronológica em torno de elementos pulps corriqueiros em qualquer narrativa policial de literatura barata, que não por acaso serviram de base para o cinema americano formular o gênero noir.

Com alguma frequência somos apresentados a algum filme contemporâneo dito neo-noir, por repetir em sua trama características do gênero dentro de uma roupagem moderna. Estrada Perdida viaja mais longe com o procedimento, não tratando o gênero apenas como homenagem e reverência, ao subverter e levar a uma dimensão outra as regras básicas da escola clássica do noir (Femme Fatale, de Brian De Palma, à sua maneira, também faria algo semelhante). Temos no filme de Lynch os principais ingredientes que conhecemos do noir: uma atmosfera marcante e sombria, o predomínio de uma narrativa escura, um universo amoral, sensualismo, femmes fatales, longas estradas, homens enganados, investigação policial, identidades duplas, vilões caricaturalmente durões, etc.

O que Estrada Perdida recupera é o que há de absurdo dentro da própria essência dos noir, cujas características foram ao longo dos anos tão repetidas e assimiladas pelo cinema que acabaram se tornando críveis demais nos fazendo esquecer o quanto aqueles filmes eram fantasiosos e pouco realistas. O filme de Lynch nos devolve esse olhar e sensação construindo um filme-sonho como poderiam ser chamados muitos dos noirs, não no sentido de algum dos personagens estar sonhando, mas do filme em si como um grande sonho para o espectador que o assiste, e que precisa atar as pontas dele para formar o quebra-cabeça de um labirinto sem fim que se fecha e ao mesmo tempo se abre em várias direções (e gêneros) como esse Estrada Perdida.

O filme começa e termina na estrada vazia, em meio à espessa noite, e percorrida por um carro cujos faróis iluminam o pouco que nos é permitido ver naquela escuridão. Conhecemos Fred (Bill Pullman) e Renne (Patricia Arquette) casados e com o relacionamento em crise, com ele suspeitando de traições dela, e a situação se agravando com as fitas de vídeo que misteriosamente recebem. Voyeurismo, incertezas, mistérios, invasão de privacidade, a câmera intrusa: as fitas reproduzem imagens feitas dentro da própria casa deles, filmadas não se sabe por quem e sem pistas também de como houve os acessos à residência. As circunstâncias levam ao aparecimento da esposa morta; ele é preso e condenado, sofrendo uma metamorfose física e psicológica que restituirá em seu lugar Pete (Balthazar Getty), bem mais jovem, e que longe da prisão se envolverá com Alice (Patricia Arquette de novo, agora loira), noiva de um gângster sanguinolento.

O que seria uma premissa comum de qualquer thriller irrelevante vai além com David Lynch construindo clichês para depois desmontá-los e acrescentando signos no decorrer de sua narrativa. Espectador e personagens geralmente são apresentados a imagens/figuras que não são o que aparentam e precisam descobrir o que está por trás delas. Próximo de ambos os protagonistas masculinos a acompanhá-los em suas intrigas uma figura esquisita e de identidade não revelada (que parece deter a maioria dos segredos que pairam em torno do filme), com um rosto que lembra o da Morte em O Sétimo Selo, e que também remete muito à figura de Mefisto no genial Filme Demência, a versão livre de Carlos Reichenbach sobre Fausto, o homem que vende a alma ao diabo e rejuvenesce (seria Fausto de Goethe uma das inspirações de Lynch para o seu filme/personagem?). Outra das chaves do filme possivelmente seja Dick Laurent (Robert Loggia), que no começo é mencionado como morto e mais adiante surge como o mafioso que divide Alice com Pete, o que sugere distensões temporais que explicam em parte a narrativa intrincada, com o que é mostrado depois da troca de identidade tendo de fato se passado antes (com a mesma cena final se ligando a de abertura).

Mas que não fiquemos obcecados com lógica e resoluções, nem em decifrar ou interpretar o filme por completo. Lynch simplesmente elimina as sequências que só existiriam para explicar a história, as junções narrativas que nos levariam pela mão para não nos perder dos acontecimentos, tornando Estrada Perdida muito além de uma história convencional e clara, mas sim perturbadoramente elíptica e não menos envolvente, “cuja lógica própria é a de uma máquina produtora de imagens e de um espiral de tempos internos a estas mesmas imagens” (Thierry Jousse, Cahiers Du Cinèma).

É o cinema como uma experiência de fluxos rítmicos e sensoriais quase musical, mas sempre fortemente imagético, pontuado com um espetacular uso da trilha sonora, desde David Bowie no começo e no fim, passando por “This magic moment” (Lou Reed) na cena em que Alice surge para Pete, “Insensatez” (Tom Jobim), e os temas compostos por Trent Reznor (colaborador dos filmes mais recentes de David Fincher). Lynch como brilhante orquestrador de imagens trabalha num terreno que adere ao artifício, estímulos sensoriais, aos jogos de ilusionismo, a provocação, sedução, o disfarce, com uma sofisticação visual (como esquecer da cena de amor na areia do deserto, com a luz dos faróis do automóvel sobre Alice e Pete?) que mistura gêneros diversos: suspense, terror, romance, narrativa policial, etc. Os personagens de Estrada Perdida (e da filmografia de Lynch em geral) transitam num universo que só pode existir na tela de cinema.

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Delírio de Loucura (Nicholas Ray, 1956)

Por Robson Galluci

Não há lugar para conforto do espectador em Delírio de Loucura. De início, ainda na escola, Ray dá a impressão de que vai gastar os primeiros minutos de filme na construção de um quadro de felicidade familiar suburbana clichê para, depois, e como esperado em se tratando dele, demoli-lo pouco a pouco. Mas não: basta James Mason atravessar a porta de casa — longe, portanto, dos olhares que o legitimam em seu papel de marido, pai, professor — para que a tensão se instale, ainda sutil a essa altura, mas ali. A imagem da família perfeita não é sequer construída, ela já dá as caras com rachaduras visíveis. E, se não existe o uso de lugares-comuns da família feliz, podemos aqui identificar alguns da família em crise: a relação com o filho não parece atravessar tempos dos mais favoráveis, e a esposa tem suspeitas de uma traição em andamento — na realidade, Ed Avery arranjou um trabalho numa companhia de táxis para complementar o salário que recebe na escola, mas mantém isso em segredo por acreditar que não contará com o apoio da esposa, que julgaria o trabalho indigno. É irrelevante se o receio de Ed é ou não justificado (não é, como se vê depois). O que importa é apenas que ele o tenha, que veja Lou se preocupando mais com a imagem social do que com a questão premente do dinheiro — e que ela, por seu lado, embora com melhores razões, ao menos com base no que é dado a conhecer ao espectador, suspeite que ele a trai.

Portanto desde o começo a família Avery se encontra com sua estrutura instável, e o vício em cortisona que Ed desenvolve a partir de um tratamento que precisa fazer, sendo que a alternativa é morrer em menos de um ano, mesmo sendo muito mais que um mero McGuffin, pode ser culpado apenas por intensificar problemas que já existiam a priori, ainda que os distorcendo gravemente, mas não por sua origem. A tensão de relações erodidas por desconfianças variadas e não ditas do começo dá lugar a uma tensão cada vez mais física conforme a dependência de Avery avança e ele vai perdendo o controle; e tensão física não diz respeito à violência física em si — que, de resto, só acontece no clímax e é controlada antes que cause algum mal duradouro —, mas ao modo como Ray a encena e comprime no espaço, seja numa ocasião tão inofensiva quanto um jantar, seja na tortura psicológica a que Ed submete o filho (sempre se preocupando, como nunca deixa de salientar, apenas com o futuro do garoto), com sua sombra se projetando gigantesca na parede, seja até mesmo na cena ensolarada em que pai e filho jogam futebol americano. Na penumbra ou com iluminação generosa, a sensação de proteção no seio da família não existe mais para os personagens e isso fica muito claro no modo como James Mason impõe uma tensão muda sempre que está em cena — não se trata da ameaça de ele atacar fisicamente quem quer que seja, mas da possibilidade de, em mais um estouro, expor ideias que possam causar ao tecido familiar danos irreversíveis.

As ideias do personagem, seus ataques verbais cuja frequência aumenta conforme o filme corre, são mais assustadores exatamente porque são eles também, da mesma maneira que os problemas familiares, apenas intensificações do que já existia antes causadas pelo abuso da cortisona. Assim como o receio de que a mulher considere o emprego na companhia de táxis indigno se transforma num desprezo aberto pelo que Ed diagnostica como nível intelectual inferior e incapacidade de distinguir o que é importante do que é supérfluo, assim como a preocupação inicial com os estudos do filho se transforma numa obsessão, as ideias absurdas expostas durante uma reunião de pais são apenas a versão extrema de ideias subjacentes a certo conceito de educação, como o personagem deixa muito claro (“como chamamos alguém que, na idade adulta, ainda tem traços infantis de comportamento?”). No primeiro dia fora do hospital, Ed também demonstra uma versão exagerada — ou talvez nem tão exagerada, o que só torna toda a sequência mais irônica e ácida — da felicidade familiar movida a um consumismo que se pode exibir — vestidos caríssimos para Lou, uma bicicleta nova e cheia de recursos para Richie.

Mesmo que Ray encerre o filme com um tradicional final feliz, o estrago feito na hora e meia anterior é grande o suficiente para que o espectador saiba que não há volta, não há como simplesmente restituir o status quo inicial — de qualquer forma, mesmo que houvesse, é preciso lembrar que o status quo inicial também não era particularmente agradável, evidenciando a decisão de Ray de não nos dar alternativas fáceis, assim como não dá a seu protagonista. Minutos antes, o médico de Ed diz que ele terá que continuar tomando a cortisona, vivendo assim sempre sob o risco de retornar à dependência. O que quer que tenha sido conquistado, Ray nos diz, e o que a cena final da família abraçada e reconciliada apenas reforça, seja a felicidade ou a mera aparência de felicidade, seguirá indefinidamente sobre o fio da navalha.

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A Hipótese do Quadro Roubado (Raoul Ruíz, 1979)

Por Daniel Dalpizzolo

Em A Hipótese do Quadro Roubado, semelhante ao que fez Orson Welles em Verdades e Mentiras, Raoul Ruíz parte de uma análise aparentemente técnica sobre a manifestação artística para, através dela, desafiar seu filme – e consequentemente a nós, espectadores – por uma aventura que ultrapassa os limites da narrativa e da encenação cinematográficas – num elegante jogo metalinguístico barroco e fantasioso. Se Welles, em seu filme de 1973, questionava a verdade na imagem através de um suposto documentário que a cada passo dado se mostrava mais e mais falso (talvez seja o filme definitivo sobre a encenação), aqui Ruiz vai além dessa problemática para adentrar possibilidades complementares, especialmente a relação que os signos utilizados para a composição destes quadros (seja um quadro de cinema ou um quadro de pintura, como os que dão sustentação às observações do personagem), e posteriormente seu resultado final enquanto imagem, mantêm com o receptor de arte após seu contato primário com o olhar – aquilo que se converte em assimilação – e, finalmente, chegando à forma como nós, receptores, reagimos a eles, numa busca inevitável por sua compreensão.

O personagem central de A Hipótese do Quadro Roubado, que conhecemos apenas como O Colecionador, se propõe, na companhia de um narrador oculto, a compreender a relação entre seis polêmicos quadros de um pintor impressionista do final do século XVIII – seriam sete caso um deles não tivesse sumido misteriosamente. O cenário deste jogo é a mansão em que reside o Colecionador, que se torna palco de uma viagem viva pela arte do artista que o obceca – o que de imediato também faz lembrar de Arca Russa, de Alexandr Sokurov, que utiliza-se de um dispositivo semelhante. A câmera de Ruíz transita pelo pátio coberto por névoa, pelas salas imensas e por demais cômodos da casa, que parecem ganhar vida apenas quando preenchidos pelos fragmentos imagéticos dos quadros (ou por eles em sua integridade), que por sua vez passam a fazer parte dos cenários pelos quais transita nosso personagem para que, a partir de algumas características particulares de cada um, ele construa sua teoria de correlação entre as pinturas, que justificaria a reação agressiva tida a elas à sua época – através de pequenos elementos que ligariam-nas a um escândalo.

As intenções de Ruíz, porém, se distanciam gradativamente dos quadros e de seus significados, objetivo específico de seu personagem e por nós recebido meramente por suposições. O que há de mais brilhante em A Hipótese do Quadro Roubado é como o cineasta vai se utilizando desta obsessão para compôr um filme no qual todas as informações recebidas parecem filtradas unicamente pelo olhar de seu personagem, um homem praticamente isolado de todos os fatores externos à obra do pintor, e que, sugado pelo mistério que elas propõem, vive uma busca indelével e desgastante por sua compreensão – uma diluição feita através de sua precisa perícia técnica e que é bem sucedida desde suas escolhas mais primárias, como a opção pela fotografia em preto e branco, que com sua textura inexpressiva acaba acachapando tanto as pinturas quanto suas reproduções tridimensionais em uma mesma realidade, uma realidade possível somente no cinema ou na mente, jamais na vida.

Ao mesmo tempo também parece haver algo de muito irônico e bastante verdadeiro na forma com que Ruíz encerra este breve período que passamos com seu personagem fictício: suas teorias sobre a obra do pintor vão de ideias pertinentes a outras relações aparentemente absurdas, mas acabam fazendo com que ele, por fim, deposite suas esperanças de compreensão plena das intenções do artista no famigerado quadro roubado, como se fosse ele a chave para o enigma de sua arte. O que possibilita algumas reflexões interessantes sobre o consumo e também sobre a própria existência da arte, que é intrinsecamente dependente do mistério, dos segredos da expressão de seu artista, que muitas vezes podem permanecer ocultos por detrás de outros elementos de sua misé en scène. Diante do isolamento do mundo construído por esta necessidade de compreensão plena, o Colecionador acaba enfim soando como uma representação da resposta para uma questão bem mais abrangente: de que a arte, para existir, necessitará eternamente do mistério – e, em contraponto, a obsessão excessiva pela compreensão íntegra de todos os seus signos, não obstante, pode tornar-se o equivalente intelectual a uma prisão.

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Ruptura (Pierre Étaix, 1961)

Por Murilo Lopes

Um jovem parisiense caminha pelas ruas, driblando os demais pedestres e com a cabeça nas nuvens. Faz uma pequena parada em seu caminho e recebe uma carta de sua amada. Ansioso por lê-la, esquece até mesmo de continuar driblando os transeuntes e acaba partindo ao meio a baguete de um deles. Acidente de descuido, coisa sem importância em meio a um dia tão maravilhoso. Chega em casa, senta-se à escrivaninha e abre a carta perfumada… apenas para ler, incrédulo, que sua namorada está terminando com ele. Junto com páginas da carta, um retrato seu rasgado ao meio. O pobre rapaz, até mesmo, se dá ao esforço de juntar os pedaços como para conferir se é a sua imagem mesmo que está ali impressa. O dia maravilhoso se desmancha, a felicidade desmotivada vai por água abaixo e ele decide escrever uma réplica imediata à megera que partiu seu coração.

Rupture, primeiro curta-metragem de Pierre Étaix (em colaboração com Jean-Claude Carrière), é, além de um exercício de estilo competente, um revival do cinema mudo e da comédia baseada em humor físico, com pequenas – porém acertadíssimas – doses de um humor negro elegante e impiedoso. Ao longo dos onze minutos de duração, vemos o pobre personagem de Pierre descobrir que nada é tão ruim que não possa piorar. E que, quando as coisas estão rumando neste caminho… bem, o universo parece conspirar com mais força do que se fosse no caminho oposto. E o universo deste curta conspira freneticamente, a começar por seus sinais de que “um bom dia” pode ser um lobo na pele de cordeiro. A cena do porta-retrato que é derrubado por um beijo soprado pelo protagonista já figura em minha galeria de momentos mais maquiavélicos do cinema. O universo encerrado por aquele apartamento sabe exatamente o que espera pelo rapaz e tem preparada toda sorte de pequenos e grandes azares que podem acontecer em um dia como outro qualquer.

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Apesar da maior parte da projeção se concentrar em um espaço bastante pequeno, a câmera e a montagem e o talento de Étaix para suas gags funcionam em um conjunto impecável, a despeito de todas as possíveis limitações que os diretores tenham encontrado na época. Dessa maneira, eles atingem momentos realmente marcantes, como o melancólico close em um personagem emocionalmente devastado ou o movimentar debochado de um tinteiro sobre uma escrivaninha inclinada – em um jogo de cortes simples e eficaz. Longe de estarem em busca de uma mera emulação de Buster Keaton ou Charles Chaplin, Étaix e Carrière se propõem a usar uma estética bastante consolidada para dar um novo passo na comédia dentro de uma França efervescente de novas ideias e formatos para o cinema.

O ressurgimento das obras de Étaix é, certamente, algo a ser comemorado, não apenas pela possibilidade de, finalmente, podermos conferir a obra do diretor como um todo, mas pela chance de vermos estes primeiros passos que, embora pequenos, são tão marcantes e importantes para a consolidação das bases de todo um movimento.

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Cine Holliúdy (Halder Gomes, 2013)

Por Pedro Tavares

A postura de Halder Gomes em relação ao discurso principal de Cine Holliúdy é misteriosa. Desta indefinição surge a curiosidade do público e, como reflexo, a busca sobre o que é o filme, afinal. Não existe obrigatoriedade quanto à ordem dialética e muito menos na dosagem do discurso em relação a qualquer assunto dentro de uma linha – ou fio – narrativo. Neste caso, um fio. E deste bloco desconfigurado saem momentos relevantes à discussão do papel da cultura (sem generalizar) na sociedade.

Como extensão do curta-metragem Cine HolliúdyO Artista Contra o Cabra do Mal (2009), Halder segue a família de Francisgleydisson (Edmilson Filho) atrás da realização de um sonho – a máxima do cinema nacional pós-retomada. Abrir um cinema em um município no interior do Ceará traz ao empreendedor embargos em série. Mas, ao contrário do que fora exibido nos últimos anos em exemplares como Central do Brasil (Walter Salles, 1998) ou À Beira do Caminho (Breno Silveira, 2012), estes obstáculos servem como moldura para a homenagem bem humorada aos costumes nordestinos, principalmente do linguajar e da postura – àquele que não foge a luta e está pronto para outra no dia seguinte. Francis, porém, sai de casa, mas evita o sudeste como ideal e sim a proximidade com as raízes. Um estudo topográfico através de signos.

Dentro desta moldura, há outra muito valiosa e que se revela lentamente. Como o curta-metragem, o longa também servirá de tributo aos costumes da cinefilia e aos efeitos do cinema em um vilarejo. Halder Gomes parte do desconhecido – para o público, que encara a experiência de acordo com o nível de violência dos filmes, uma espécie de medidor de “macheza” para os rapazes do local – e vai à justa homenagem ao cinema independente, dialogando com eixos informais como o aumento do comércio ao redor do cinema, este que em certo ponto também se revela como comércio.

Enfim revelada a proposta principal do filme de Halder Gomes: Cine Holliúdy aborda apenas causas e efeitos no modelo comercial. É a forma de se declarar formal dentro de um mundo de informalidades. A TV, grande vilã para o cinema nos anos 70, é jogada política e apontamento para a vindoura cultura de celebridades. Profetiza-se em caso oposto a adaptação do cinema sobre qualquer aspecto cultural criado ou reinventado. Ir ao cinema, dividir emoções, desligar-se do mundo. Este é o ritual defendido por Gomes e dilacerado pelo coração, mas exibido em tom ameno. Com o fim dos cinemas de rua, igrejas protestantes tomaram o lugar. À época, a censura, com o apoio da igreja católica.

O ápice deste panorama marca o encontro dos extremos que justificam a busca de Francisgleydisson por uma nova vida. Nele, estão os cidadãos, todos com características específicas criadas para o humor voluntário inspirado em pastiches.  E na tela, o superoutro. O filme, a chance de escapismo, a diversão, um novo sopro de alegria, como a saída do cinema marca. Mas não haverá final feliz em Cine Holliúdy, pois Halder teve o cuidado de delinear sua obra com alegria do início ao fim. E nada há com o dialeto curioso, com o folclore e sim pelo tom, pela preocupação em manter o monocórdio como norte. Afinal, com o cinema não há motivos para chorar.

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Em Plena Forma (Pierre Étaix, 2010)

Por Luis Henrique Boaventura

Em Plena Forma é originalmente uma sequência da colagem de curtas Rir é o Melhor Remédio que Pierre Étaix extraiu do longa original a partir de um novo corte; faz parte dos filmes  restaurados e relançados em 2010.

Os non-sequiturs de Tati definitivamente encontram uma casa insuspeita no cálculo e na elegância de Pierre Étaix. As gags de Em Plena Forma são tão sóbrias e bem ensaiadas que o fazem emblemar um slapstick de ar bem mais moderno do que aquele de algumas sequências do pasteurizado O Artista, por exemplo; sobretudo por um aspecto: apesar de seu fazer como ator partir sempre de um maneirismo clown, o que o leva a interagir muito com objetos (Étaix é o tempo todo derrotado por coisas como uma cafeteira, um chapéu, um pacote que é grande demais para se carregar), a oposição de fato em relação a seus personagens mora na figura do Outro, o inferno personificado em uma série de pequenos personagens e as instituições sociais que eles instintivamente guardam.

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Se o lugar é um acampamento de férias, de refugiados, de concentração ou mesmo uma prisão a céu aberto é algo maravilhosamente embaralhado no filme. Logo ao chegar a câmera acompanha os passos de Étaix enquanto olha as altas cercas de arame farpado e espia um grupo de beberrões que cantam uns para os outros. Na entrada, o gesto mais forte: pessoas rastejando, o que é apropriado ao considerar que Em Plena Forma abre com um plano geral de uma bela colina ao amanhecer, e o protagonista é pequeno no centro do quadro diante do espaço que separa o chão da terra e de cerca nenhuma, para então se encontrar apertado e sufocado pelas mil pernas e braços da ordem social. Ele era livre e dono do mundo até ser encaixotado em um sistema com regras, hierarquia e lugares pré-determinados. Daí no fim o retorno à condição de criança, porque só assim, livre em quantos sentidos for possível conceber, para inventar um buraco no chão e fugir feito desenho animado.

O inimigo de Étaix em Em Plena Forma é todo mundo — estranhos, quadrúpedes e travestis, espalhados desleixadamente no seu caminho enquanto ele atravessa o quadro sem importar mais nada a não ser o passo obstinado para atravessá-lo. As pessoas não chegam a ser hostis, sequer são mais indiferentes a ele do que ele demonstra ser em relação a elas; em vez disso, perambulam entre uma sequência e outra como que pegando ar na superfície de cada pedacinho de filme que lhes é dado para se devolverem à massa indistinta de classes e gêneros que forma o acampamento, pequeno mostruário do mundo do qual ele procura fugir, motivo para ter ido acampar afinal de contas.

Pra nada servem as pessoas. O prazer que resta é caçoar delas com riso invisível.

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Vocês ainda não viram nada! (Alain Resnais, 2012)

Por Filipe Chamy

Vocês ainda não viram nada! é um título genérico, que poderia servir para designar praticamente qualquer longa dirigido por Alain Resnais, sempre criativo inventor de novas maneiras de se exprimir e apresentar seus pensamentos e reflexões; mas ele escolheu nomear este filme com esse nome, e razão há de haver. Qual?

Basicamente, estamos diante de um tema muito caro ao diretor: a encenação. Mas aqui a coisa ganha contornos ainda mais tênues, quando Resnais trabalha a encenação dentro da realidade e a realidade encenada (dentro da encenação da realidade). O que isso significa? Que nada é o que parece: nós ainda não vimos nada.

A súbita morte de um dramaturgo convoca cerca de uma dúzia de atores para uma espécie de leitura de testamento: trata-se de um vídeo, em que o autor de teatro convida seus intérpretes a assistirem a uma peça, de que todos haviam participado anteriormente; se a peça agradar a eles, estará dada a autorização (póstuma) para a nova montagem.

Reunidos numa sala, os atores começam a ver a peça. E, como mágica, aqueles diálogos e situações apoderam-se de suas vidas, como se eles nunca houvessem sido exatamente atores mas representantes de certas entidades que precisavam comunicar-se com seus rostos, seus corpos. Não é que eles recitem frases por saudosismo, por consciência do “ofício” de ser ator; não, em absoluto. Eles são aquelas pessoas. O drama de Orfeu e Eurídice é real, sempre, em toda parte. Eles estão ali. Há duas Eurídices, dois Orfeus, um pai de Orfeu. Aqueles mundos coexistem, porque o sentido da realidade é multiforme: cada um enxerga as coisas de uma maneira — por isso uma Eurídice é mais introspectiva e a outra, impulsiva, por exemplo. Como dizer qual a real? Ora, a que se sente assim. Ou as duas, mais provavelmente (e, ressalte-se: não são as únicas).

Portanto, é isso que de inédito vemos: os sentidos simultâneos das diferenças no agir, no pensar, no dizer. Uma mesma fala pode tocar uma pessoa de tal maneira e afigurar-se a outra num modo completamente diverso. E é Resnais que nos mostra isso, com sugestão ímpar: fazendo vários conflitos ocorrerem ao mesmo tempo, forçando nossas percepções a entender que não é sempre uma saída única que rege os acontecimentos. A mitologia clássica (onde Jean Anouilh buscou a inspiração primária para sua releitura do mito, evidentemente) é uma ponte que também diz a que veio: se não havia registros sonoros e visuais das peças na Antiguidade, como eram as Eurídices, como eram os Orfeus? Muito simples: como são os Orfeus e as Eurídices. A Antiguidade vive em nós, os dramas são cíclicos e ainda vivemos os mesmos problemas que nossos antepassados, temos as mesmas crises, dores e amores.

Por isso também este filme, sobre uma milenar história de amor, dirigido por um homem de noventa anos, é um tratado moderníssimo sobre a representação e sobre o cinema. O incômodo do desconhecimento da identidade é um reflexo não apenas de atores, mas de todos nós: jovens ou velhos, estamos nus diante de coisas que são maiores que nós, que não entendemos e refutamos. Isso não foi criado por Ovídio, por Jean Anouilh ou por Resnais. E nem se encerrará com a morte de quem quer que hoje esteja vivo. Seja hoje ou dois mil anos atrás, ainda não vimos nada, pois já vimos tudo — e sempre haverá algo a ver.

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Terra Prometida (Gus Van Sant, 2012)

Por Fernando Mendonça

A primeira imagem: sob as águas, nos aproximamos de uma superfície que espelha o rosto de Matt Damon, capturado de forma quase abstrata e irreconhecível, dado o movimento de agitação no líquido que o ator usa para se lavar.

A última imagem: num afastamento panorâmico, nos distanciamos de uma pequena cidade rural, ao som de uma trilha (Danny Elfman) que destoa levemente do desfecho, causando um estranhamento na atmosfera até então sustentada.

Uma e outra, são estas as imagens que parecem realmente carregar a marca de Gus Van Sant, diretor que não viu problema algum em assinar friamente um projeto encomendado pelo amigo Matt Damon, ator/roteirista que já lhe fora parceiro em dois momentos importantíssimos da carreira (Gênio Indomável, um dos títulos que aliou respeito e popularidade ao seu nome, nos anos 90, e Gerry, a experiência que alavancou a sua fase mais expressiva de realização, nos anos 2000). A bem da verdade, não é incomum a prática desta ‘brodagem’ dentro da produção cinematográfica, nem mesmo no âmbito de Hollywood; por toda a história vemos bons realizadores abrindo mão de sua perspectiva autoral para favorecer algum amigo intérprete (Hitchcock, Wyler, Ford, nem mesmo os gigantes escaparam disso), então não é surpresa, e nem se esperou o contrário, de que o novo Van Sant não fosse exatamente novo, nem exatamente Van Sant. De forma bem calculada, Gus cumpre todos os requisitos pedidos pelo roteiro do amigo, abrindo uma espécie de hiato, entre a primeira e última imagem de Terra Prometida, sem deixar de, com estas cenas, dar a piscada de olho que, aí sim, se espera de um diretor como Van Sant.

Vejamos bem quão significativa é esta abertura, no sentido da fragmentação que ela confere aos contornos do rosto, justamente, daquele que é a razão de ser do filme. Se Van Sant não se importa em elevar a presença de Matt, em alça-lo como núcleo central de sua filmagem, ele também só cumpre esta função depois de ‘borrar’ e desconstruir toda a força de um close (ângulo retomado exaustivamente no decorrer da projeção). É o tipo de cena que diz: “fica aqui o meu ponto de vista para entrar o seu”, dando margem a toda uma provocação do diretor que, ainda posteriormente diluída, não deixa de nos lembrar dos confrontos típicos já proporcionados justamente a partir do rosto e corpo de Matt Damon, na carreira de Van Sant. Mesmo tipo de crise sugerida pela última imagem do filme, marcada por um significativo distanciamento do espaço, um conceito tão caro à Gus e tão esquecido em Terra Prometida; novamente, uma cena que diz: “fica aqui o seu ponto de vista, para que eu retome o meu”, em algum próximo trabalho, inspiração ou mesmo encomenda (pois não é este um problema a priori de encenação, mas a maneira como ele é resolvido).

No mais, ainda que possamos, com relativo esforço, encontrar outros ‘momentos Van Sant’ em seu próprio filme — como na imagem de uma ave sobre a fiação de postes, interrompendo sem prejuízos uma ação dos protagonistas, ou o vertiginoso giro de câmera sobre o corpo de Matt na cena em que ele tenta interpelar o oponente (John Krasinski) pela primeira vez — as imagens que realmente importam ao realizador, dentro de uma perspectiva autoral, só podem ser estas que emolduram toda a extrema transparência de Terra Prometida e, de alguma forma (e com alguma torcida nossa), indicam a autoconsciência devida a um cinema que não se entrega em definitivo à diluição. Como na imagem de abertura, é tudo uma questão de se reencontrar o foco certo, sob as condições adequadas.

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Yoyo (Pierre Étaix, 1965)

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Por Fernando Mendonça

É um dos primeiros gestos do milionário Pierre, ainda na abertura de Yoyo (1965): olhar desconsolado para um porta-retratos, num gesto de saudade e impotência, após esconder-se de seus criados e dos barulhos mundanos. Na fotografia, a imagem da amada, perdida no tempo, lembrando-o de que nem tudo pode ser comprado com uma fortuna, que nem todos os desejos podem ser satisfeitos. Cena-repetição nascida desde o primeiro curta-metragem de Étaix, Rupture (1961), obra-prima que brindava seu protagonista com o recebimento de uma carta trazendo-lhe o próprio retrato, rasgado ao meio pela namorada que bruscamente findava a relação. Tais momentos pausam o bom humor destes filmes e perfazem a exata lembrança de que o riso é um contraponto, um movimento de resistência ao que se pode viver de doloroso, sentimental ou historicamente. Se os primeiros trabalhos de Étaix já bastavam para comprovar um conhecimento absoluto do mecanismo narrativo e da história guardada pelo cinematógrafo — é notável como algumas de suas gags concentram meio século de cinema, reagrupando e recodificando diversas camadas da imagem e do som —, com Yoyo, o realizador confirma a rara maestria de saber representar uma emoção ou estado de espírito através de um cuidadoso pormenor de linguagem, uma questão de mise en scène.

Vertiginosa a recorrência dos retratos. E o garoto Yoyo, filho que será descoberto pelo mesmo milionário após reencontrar sua paixão de outrora num espetáculo circense, também terá o seu: uma fotografia da mansão em que vivia seu pai, antes da falência, antes da paternidade em si mesma. Pois o rico homem só retomará seus amores após perder todas as posses no período da Segunda Guerra. Só se ganha com a perda, só se ri com a dor. E na fotografia do lar não habitado, da espantosa arquitetura que lhe fora roubada na infância, o garoto (Philippe Dionnet) também ecoa a saudade pelo que não viveu. Vemos o seu carinho pela imagem, guardando-a entre as partituras que usa nos ensaios de violino, o lugar mais certo para nos fazer entender que são estas memórias perdidas a verdadeira melodia do cinema de Pierre Étaix. Não é somente para disputar com La Strada, o Fellini citado em seu longa mais assumidamente felliniano, que Étaix busca uma melodia simples e certeira para centralizar as dores da nova família mambembe. O caráter de homenagem, típico em toda sua carreira, adquire identidade por justamente não se esquivar das referências. Ao tocar uma música própria, Yoyo também nos toca a memória num ponto quase impossível de largar — não há como encerrar a sessão sem cantarolar as tristes notas, sem perceber-se tão genuinamente equilibrado entre o riso e a lágrima.

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Já sabíamos que o interesse pela sonoridade é uma das tônicas que obceca Étaix. Desde seus curtas, o imaginário do cinema mudo dominava as dimensões de cada personagem ou situação, o que se exacerba na magistral apresentação do protagonista em seu primeiro longa, Le Soupirant (1962), personagem interpretado, como sempre, pelo próprio diretor, numa cena em que veda os ouvidos com tampões para não se perder em seus afazeres, deixando de escutar tudo o que se passa dentro de casa e nos conduzindo ao mais pleno silêncio — deslocado pelo que vemos sem poder ouvir, pela ciência do som, mas não a sua percepção. Se ali tínhamos a sonoridade explorada com todos os requintes de experimentação formal possíveis para o cinema falado, em Yoyo esta mesma marca aprofunda a tessitura da diegese, tornando-se um dos principais temas, ou melhor, o carro chefe de todos os temas que circundam as peripécias do roteiro. Justamente por tratar-se de um filme sobre a perda (das riquezas, das memórias, das inocências e certezas), aí o mais acertado enredo que poderia haver para se refletir as perdas do próprio cinema. Afinal, o que mais perdeu essa arte ao se despedir do silêncio? Qual foi o nível de negociação, quais os novos elementos realmente envolvidos, em quê a materialidade da representação se transubstanciou?

Numa das incontáveis gags do longa, Pierre Étaix comete a trapalhada de depositar um relógio sobre um pequeno forno com as chamas acesas. O objeto derrete sem que ele perceba, entretido com a leitura da nova carta dos pais (perdido entre as memórias, como no início). Há muito que deduzir com esta sequência, e a conclusão é certa: o cinema de Pierre Étaix é, acima de tudo, o registro de uma ferida que jamais cicatrizou, a incômoda lembrança de uma dor que não amorteceu. Um cinema sobre o cinema interrompido, sobre as necessidades de uma atualização que pouca novidade traz.

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O crescimento do menino Yoyo e sua interpretação retomada pelo próprio Étaix, que também encarnara seu pai, enfatiza este eterno retorno da arte, a necessidade de duplicações, de reescritas, de abismais reflexos como estes que dão forma a todo legado do realizador. É o mesmo homem dando corpo ao pai e ao filho, são as mesmas notas da música se repetindo, a mesma história das artes, em sua ascensão e queda, buscando os meios de se perpetuar. O menino cresce, segue a carreira de palhaço, esbarra com o sucesso e, num golpe do destino, enriquece e reassume os espaços paternos, a mesma mansão da fotografia escondida. Mas se o tempo se foi, se o passado não mais retorna, não adianta fingir a identificação. O reencontro com os pais, que renegam as escolhas do filho e nos negam a própria imagem — não mais os vemos, mesmo no cortante último diálogo que travam —, é dos mais tristes episódios que o cinema já concebeu sobre a diluição de um afeto. Já não há o reconhecimento do sangue, do sobrenome, dos espaços que um dia foram lar. Yoyo tem seu desfecho entre ruínas, ainda que maquiadas e ornamentadas pelo esnobe luxo das celebridades, como se espelhasse a desgraça de uma linguagem que se resumiu à indústria, assentando as últimas notas críticas contra seu próprio sistema.

Não poderíamos viver em melhores dias para se entender e sentir cada uma das alfinetadas que Étaix desferiu contra seu tempo. Pois mais tempo se foi, maiores são as perdas, ao ponto de hoje redescobrirmos num filme dessa grandeza, que em pouco mais de 90 minutos atravessa gerações e nos faz íntimos de cada detalhe que deu vida a um século com o cinema, uma qualidade quase totalmente perdida dentro da comédia, de tornar o riso um dos maiores atos políticos que se possa realizar, para não dizer um princípio de filosofia. Se a última cena do filme resiste ao tom trágico (Yoyo montado num elefante, afundando no lago de seu próprio terreno, como numa sombra de Mizoguchi), isto ocorre porque qualquer possibilidade de lágrima, em Étaix, precisa secar antes que o sorriso se forme no rosto. E, numa simples fusão, o lago se converte em picadeiro, o suicídio em ressurreição. Eis a esperança da imagem, sobreposta sobre si mesma, o derradeiro resgate da memória, pois, no círculo do picadeiro lembrado, reencontra-se o círculo/ciclo da vida, jamais fechado. Pierre Étaix sabe que, para se salvar uma imagem, somente outra. Nada mais adequado que nossos dias façam destes filmes, o seu picadeiro.

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