Terra Prometida (Gus Van Sant, 2012)

Por Fernando Mendonça

A primeira imagem: sob as águas, nos aproximamos de uma superfície que espelha o rosto de Matt Damon, capturado de forma quase abstrata e irreconhecível, dado o movimento de agitação no líquido que o ator usa para se lavar.

A última imagem: num afastamento panorâmico, nos distanciamos de uma pequena cidade rural, ao som de uma trilha (Danny Elfman) que destoa levemente do desfecho, causando um estranhamento na atmosfera até então sustentada.

Uma e outra, são estas as imagens que parecem realmente carregar a marca de Gus Van Sant, diretor que não viu problema algum em assinar friamente um projeto encomendado pelo amigo Matt Damon, ator/roteirista que já lhe fora parceiro em dois momentos importantíssimos da carreira (Gênio Indomável, um dos títulos que aliou respeito e popularidade ao seu nome, nos anos 90, e Gerry, a experiência que alavancou a sua fase mais expressiva de realização, nos anos 2000). A bem da verdade, não é incomum a prática desta ‘brodagem’ dentro da produção cinematográfica, nem mesmo no âmbito de Hollywood; por toda a história vemos bons realizadores abrindo mão de sua perspectiva autoral para favorecer algum amigo intérprete (Hitchcock, Wyler, Ford, nem mesmo os gigantes escaparam disso), então não é surpresa, e nem se esperou o contrário, de que o novo Van Sant não fosse exatamente novo, nem exatamente Van Sant. De forma bem calculada, Gus cumpre todos os requisitos pedidos pelo roteiro do amigo, abrindo uma espécie de hiato, entre a primeira e última imagem de Terra Prometida, sem deixar de, com estas cenas, dar a piscada de olho que, aí sim, se espera de um diretor como Van Sant.

Vejamos bem quão significativa é esta abertura, no sentido da fragmentação que ela confere aos contornos do rosto, justamente, daquele que é a razão de ser do filme. Se Van Sant não se importa em elevar a presença de Matt, em alça-lo como núcleo central de sua filmagem, ele também só cumpre esta função depois de ‘borrar’ e desconstruir toda a força de um close (ângulo retomado exaustivamente no decorrer da projeção). É o tipo de cena que diz: “fica aqui o meu ponto de vista para entrar o seu”, dando margem a toda uma provocação do diretor que, ainda posteriormente diluída, não deixa de nos lembrar dos confrontos típicos já proporcionados justamente a partir do rosto e corpo de Matt Damon, na carreira de Van Sant. Mesmo tipo de crise sugerida pela última imagem do filme, marcada por um significativo distanciamento do espaço, um conceito tão caro à Gus e tão esquecido em Terra Prometida; novamente, uma cena que diz: “fica aqui o seu ponto de vista, para que eu retome o meu”, em algum próximo trabalho, inspiração ou mesmo encomenda (pois não é este um problema a priori de encenação, mas a maneira como ele é resolvido).

No mais, ainda que possamos, com relativo esforço, encontrar outros ‘momentos Van Sant’ em seu próprio filme — como na imagem de uma ave sobre a fiação de postes, interrompendo sem prejuízos uma ação dos protagonistas, ou o vertiginoso giro de câmera sobre o corpo de Matt na cena em que ele tenta interpelar o oponente (John Krasinski) pela primeira vez — as imagens que realmente importam ao realizador, dentro de uma perspectiva autoral, só podem ser estas que emolduram toda a extrema transparência de Terra Prometida e, de alguma forma (e com alguma torcida nossa), indicam a autoconsciência devida a um cinema que não se entrega em definitivo à diluição. Como na imagem de abertura, é tudo uma questão de se reencontrar o foco certo, sob as condições adequadas.

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