CORPOS E MAIS CORPOS

Por Pedro Tavares

Subybaya (Leo Pyrata, 2017)

Para Bazin, a história do cinema tem como horizonte o desaparecimento do cinema. Até lá, essa história se confunde com aquela que de uma pequena diferença que constitui o objeto de uma incessante recusa: sei bem (que a imagem não é a realidade), mas ainda assim… – Serge Daney em “A Tela do Fantasma”.

O mesmo Daney, em A Rampa, questiona: “Como ganhar de um morto?” A resposta, o próprio Daney oferece na sequência: “Ao dar a ele mais um corpo, é claro”. A imagem, o corpo, ganha, há séculos, corpos e mais corpos. Naturalmente, estes corpos passam por adequações de acordo com as conveniências do momento e possibilidades de diálogo entre elas: para o cinema, é o momento de interação com os games, pixels, glitchs, a velocidade extrema ou a máxima calma. Também o momento de experimentações graças aos dispositivos mais baratos e a possibilidade de criação solitária ou com equipe mínima.

Jean-Paul Fargier analisou a condição do vídeo com a possibilidade de sua filha, sozinha, empurrar um carrinho de bebê vazio em “Poeira nos Olhos”; Fargier compara o cinema com um passeio comum e consciente entre pai, filha e um carrinho de bebê. Para ele, o vídeo não habilita a realidade ao encontro, pois no vídeo não esperamos por ela. É por esse viés comparativo que se aceita o experimento de Jacques Tati em Parade (1974), filme que registra o cotidiano de um circo filmado em película e vídeo que Daney chamava de “sondagem no mundo do vídeo”. No filme, um embate de escrever e reescrever o que se vê. Os artistas ganharão dimensões distintas conforme a mudança de dispositivo, principalmente quando estão em ação. Raul Perrone, realizador argentino, é um exemplo contemporâneo de diálogo entre as duas formas: seus filmes mais experimentais buscam, através do digital, o que se entendia por real e mítico nas imagens do cinema. São viagens por diferentes décadas do cinema, sempre a favor de seu suporte – que nunca é usado.

Parade (Jacques Tati, 1974)

Hierba (Raul Perrone, 2015)

Narrativas e artifícios

Em extremos, Brian Taylor e Mark Neveldine, panteão do diálogo direto entre jogos e filmes – ainda que James Cameron, Paul W.S Anderson e tantos outros sejam lembrados -, com Adrenalina e Gamer, filmes que lidam com esvaziamento da função do dispositivo com extrema rapidez, hoje já escapam deste rótulo. Hardcore Henry de Ilya Nashuller tenciona o diálogo com a subjetividade do olhar de quem joga: um filme em POV, ou melhor, um jogo que não se controla, adota-se a passividade completa do domínio da imagem. Eis a questão: o filme está vivo? Com outros argumentos, as mesmas questões são feitas para Lisandro Alonso e Philippe Graundrieux, diretores que geralmente entregam a subjetividade àqueles que os controlam – cada espectador com sua certeza.  

Este embate entre o palpável e intangível (ou seja, vida e morte) se desenvolveu nos últimos anos com inclinação maior por parte de diretores como Jean-Luc Godard e Peter Greenaway, mas hoje o próprio ato de pensar e agir a favor de um filme parte com esta fusão embutida. Artistas como Ben Rivers, Ben Russel, Leo Pyrata e Charlote Serrand, para citar alguns, cada um a seu modo, buscam o material fílmico a partir de um dispositivo que, segundo Fargier, não oferecerá a realidade. 1048 Luas (2017), filme de Serrand, um exercício straubniano, resume-se ao encontro da artificialidade da imagem à dramaturgia. Sleep Has Her House (2016), longa de Scott Barley filmado em Iphone é mais sugestivo em função da imaginação material e do tempo. Mas o caso mais interessante a citar é o de Subybaya (2017), último filme de Leo Pyrata, onde o diretor entra como alvo “de um bombardeio intensivo”, como diria Fargier. Como espécie de um ricochete às imagens, Subybaya será paralisado, oferecendo suas imagens às chamas de hoje, os glitchs e pixels. A utopia encontra outra, um pensamento pessimista do real – a vida – e que não deixa de ser um pensamento sobre a imobilidade de quem “apenas assiste” – a morte.  O mesmo pode ser dito de Cat Sick Blues, filme de horror/terrir dirigido por Dave Jackson que esvazia a figura do assassino a ponto de transformá-lo em um conjunto de pixels. “A cada instrumento, sua destinação, seu impacto”, do mesmo “Poeira nos Olhos” define este momento.

O vilão vira pixel em Cat Sick Blues (2015).

Se o meio é a mensagem conforme Marshall Macluhan, neste contexto já estamos na era profetizada dos dispositivos como extensões dos sentidos. Hoje não é mais sobre expor o método ou escrever e reescrever com o vídeo a artificialidade. A tecnologia e sua essência formam o ambiente. Let the Summer Never Come Back Again (2017), exercício de esvaziamento dramático possível graças ao registro de um telefone celular, no alto de seus 202 minutos, é extremo na briga com o fluxo narrativo, espécie de texto subversivo aos olhos educados – a má qualidade da imagem, a possibilidade da câmera de abandonar seus personagens para buscar outros momentos sem alto custo – nada novo se pensarmos nos filmes em video de Godard -, mas um filme que se afasta da história sugerida.  Daney, mais uma vez, oferece a resposta: “a recusa de um mundo anterior, de um plano anterior”. A realidade está além do personagem e é este o alvo da câmera, ainda que esta realidade nunca seja alcançada. Nunca será, nem mesmo em Parade.

Recentemente o diretor Richard Perry adotou em Base (2017) o storytelling ao uso de uma câmera GoPro junto à linguagem de programa de esportes radicais e criando a partir dessas junções um filme basicamente sobre o dispositivo, seu processo de filmagem/edição e como sua imagem reflete a inconsistência da vida e da imagem – o que é o real? Sobra a ele o encargo de divulgar este ilustrativo e ambíguo obituário além das margens do que se chamava de “filme”.

Base (2017) de Richard Parry

Em busca do irreal

A tendência é que novas imagens sejam produzidas a partir de imagens já existentes ou que se filme ou que já foi filmado outras tantas vezes. Trazer um segundo significado em sobreimpressões, outras ideias além do pensamento original. Isto tampouco é novo na história do cinema. Porém, o processo nunca esteve tão em primeiro plano como hoje. A antologia das imagens parece tão importante quanto o que a sucede como construção analítica, preenchendo o foço entre imagem e espectador. Uma dinâmica particular, independente do real – imagem – mas que o recria em excesso. A busca simulada que cria independência ao real, nunca confundido, mas livre para abundância. É o momento da fartura visual, nem sempre pura e relevante e apta à queixa, longe da questão da figuração ótica e sim pela relação direta à existência, longe de referências, ou seja, a crise de representação. Esta ruptura de vida e morte está justamente no significado da imagem no cinema; como e o que ela representa entre a tela (do cinema, da TV ou do smartphone) e o receptor.

FacebookTwitter

ENTREVISTA: EDGARD NAVARRO

Por Pedro Tavares

le genou dartemide - straub

Premiado no último Fest Aruanda, incluindo o prêmio de melhor filme pelo júri da crítica, Abaixo a Gravidade recentemente encerrou a última edição do Festival de Brasília e de diversas formas marca o início de um novo caminhar para Edgard Navarro. Responsável por filmes de escolhas livres, poéticos e anárquicos, o cinema para ele agora pode estar longe de grandes equipes e orçamentos. Conversamos com Navarro sobre cinema de invenção, processo de produção e claro, seu novo filme, Abaixo a Gravidade.

Do grito “abaixo a gravidade” antes do salto em SuperOutro à face de Bené (Everaldo Pontes) chafurdada na terra em Abaixo a Gravidade há uma elipse de quase 30 anos. E esse intervalo de certa forma dá o tom de Abaixo a Gravidade. Como foi criar essa atmosfera de contestação e constatação com sua tradicional liberdade artística tantos anos depois? O cenário de hoje é pior que o de 89, época do lançamento de SuperOutro?

 Acho que o cenário de 30 anos atrás é tão parecido com o de nossos dias que, infortunadamente, atualiza o filme com relação ao que há de pior no país. Ironicamente, no SuperOutro há uma sequência – a da comemoração da independência – em que vemos uma faixa com os dizeres: “FORA SARNEY, DIRETAS JÁ”. A diferença é que agora não estamos às vésperas de eleições diretas após um jejum de quase 30 anos; vários presidentes se sucederam no poder – Collor, Itamar, FHC, Lula, Dilma… Temer; vivemos um cenário de descrédito das instituições, descrença nos políticos e, pior, desesperança e perplexidade diante de um quadro de cinismo e corrupção nunca vistos… Não, isto não é verdade: se examinarmos bem a história, o Brasil sempre conviveu com essa discrepância social que nos avilta: uma classe empoleirada no comando da nação desde a colonização, com o massacre dos índios e dos africanos escravizados, passando pela organização do Estado com toda a sorte de expedientes escusos pra garantir a manutenção de privilégios à custa de uma maioria que sobrevive em condições precárias, tudo resquício de uma injustiça atávica, primordial. Quanto ao processo de criação do Abaixo a Gravidade, digo que o mote inicial foi a busca de uma generosidade redentora como característica principal de Bené; uma certa inocência, também, e a aspiração ao crescimento espiritual, apesar da decadência, desordem e violência ao redor… Ele almeja uma leveza – parte inerente de seu ideário, como se isso fosse possível; em certo sentido nosso bom velho, em seu afã de pureza, assemelha-se ao louco de rua do SuperOutro. (Não devemos esquecer que este último inventa fantasias suicidas, apesar do humor cáustico que as embala…). Digo que os dois são, apesar da loucura que os separa, partes complementares de um mesmo drama onde se pretende discutir a um só tempo a inviabilidade de ambos em face da realidade hostil que se apresenta e a extrema quixotesca tenacidade que lhes termina trazendo a almejada redenção (e nesse ponto me identifico completamente com ambos).

SuperOutro (1989)

Abaixo a Gravidade possui diversas intenções de um fim de ciclo – as corridas em direção a um novo salto -, seja para a morte, para a liberdade. Mas o filme opta sempre pela persistência, para algo além do corte. Recentemente você disse ao G1 sobre sua vontade de parar. O que vem após o corte? Uma nova forma de fazer filmes para Navarro? Durante a Mostra do Filme Livre em que foi homenageado, você já citava o peso de uma grande equipe ao falar de O Homem que Não Dormia, citando febres, insônia e surtos criativos e como você sempre foi adepto da independência.

Isso é absolutamente verdadeiro: desde que comecei a fazer filmes pesados (com equipes grandes, produção e logística difíceis), voltados pra a busca de sustentabilidade dentro desse nosso mercado quase inviável, considerando o modelo de distribuição existente e a falta de políticas adequadas ao enfrentamento do modelo atual que, não bastasse os vícios profundos criados pela relação de dependência com o cinema estrangeiro (mormente o americano com seu gigantismo), precisa conviver com as produções da Globo Filmes, por exemplo, detentora de uma fatia desproporcional do que sobra, contando em sua distribuição com os milhões de espectadores de sua programação diária; a comparação que nos acode ao juízo é bíblica: Davi contra Golias. Temos uma atiradeira e muita pontaria, mas não contávamos com os golpes baixos de governantes que estão se lixando pra a cultura, uma classe dominante cujos filhotes estão sendo preparados pra serem vencedores e não pra ficarem assistindo a filmes que apontam suas setas contra o peito da estabilidade do sistema; mais: uma educação constituída de forma a manter alienada a grande massa – acho que é evidente o pacto dos homens de negócios com as emissoras de TV, cujo teor essencial de suas programações trabalha no sentido de imbecilizar ainda mais o nosso povo. Uma saída digna pra quem faz arte nesse contexto é realizar projetos de baixo custo com alto poder de alcance, principalmente da camada jovem da população que ainda não foi tão infectada pelo lixo com o qual tentam massacrar suas cabeças sem parar… Existem muitos jovens talentosos acordando pra essa realidade e começando a refletir sobre as questões inerentes aos meios de produção e de distribuição de seus produtos audiovisuais. Minha geração não conseguiu realizar esse plano, mas aposto que essa rapaziada que está chegando agora tem muita chance de conseguir transformar essa realidade… Vou tentar aprender com eles, imitar seu exemplo ao escolher um caminho de independência – repito: única saída digna! Viva o Cinema!

Abaixo a Gravidade (2017)

Ainda é possível ver marcas profundas do que Jairo Ferreira costumava chamar de “cinema de invenção” em Abaixo a Gravidade. Houve revisita aos filmes dessa época ou até mesmo a sua filmografia no processo de Abaixo a Gravidade? Na citada entrevista ao G1, você comenta que gosta mesmo é de passear. Werner Herzog costuma dizer que a melhor escola de cinema é a longa caminhada. Você costuma criar nesse costume?

Tudo o que possa haver nesse novo filme de classificável como cinema de invenção é bem-vindo, mas devo dizer que não procurei criar nada que a priori viesse atender a este ou aqueloutro estilo ou escola; parto sempre de uma necessidade que aos poucos se engendra em meu espírito, talvez como um tumor que precisa ser espremido, ou como um filho inesperado (mas sempre desejado) que vai ter que vir à luz. Aí começa um embate interno levado a consequências muitas vezes danosas; crio sempre em meio a certa agonia… aí penso: tudo bem, agon[1] é uma palavra grega que tem a ver com esse estado de conflito a que nos lança o teatro, em sua raiz, nós, incautos filhos de Prometeu – um deus rebelde. E assim continua o drama do fazedor de arte, a fazer de sua agonia mote pra quem quiser ver; como diz Caymmi numa de suas canções: “dizendo a todo mundo o que ninguém diz.” Se houve revisita? Sim, sempre há; alguém já disse que estamos sempre fazendo o mesmo filme… Herzog me inspirou muito, sempre, mas nesse último filme… Bem, tem um momento de agonia no filme em que escrevo explicitamente numa cartela: “CAMINHAR AJUDA A BOTAR O JUÍZO NO LUGAR”; Quanto ao gostar de passear… também veio quando pensei que haverá o momento em que não terei mais nada pra fazer aqui, quando a missão estiver cumprida… Vontade de não ter mais nada pra fazer por obrigação e me deu uma vontade de passear. E é também uma homenagem a meu amigo, o Mestre Paulino[2], a quem o filme é dedicado; desde que nos conhecemos (ele fez uma participação de destaque em O Homem Que Não Dormia), sempre que vinha a Salvador ele ficava em minha casa; nós passeávamos pra cima e pra baixo; sem saber que eu o observava, sem querer ele me deu a solução dramática pra a personagem Bené, no filme… E no dia 1° de maio deste ano (acredito que não apenas por acaso no dia do trabalho) ele serenamente nos deixou, foi passear no céu…

Há também certo saudosismo no filme. Nem perto do saudosismo de Eu Me Lembro, mas um comentário que guarda certa lamentação sobre a mudança radical no qual Salvador passou nos últimos anos. O que você guarda ao olhar para o dique do Tororó?

Tem um momento que a câmara dá um rolê pela cidade, numa cena em que Bené encontra um velho amigo e os dois conversam. Ali tem uma nostalgia, sim, algo que canta a beleza da cidade que ainda resiste e lamenta que o crescimento desordenado a tenha desfigurado a ponto de Bené não mais reconhecê-la; lamentam também o fato de que nessa terra sempre houve um mandachuva… E para plantar um laivo de esperança no coração do espectador, os dois chegam a um acordo e a uma conclusão irrefutável: “O que nos redime a todos é o tempo, cuidando pra que nenhum desses donos do mundo sobreviva aos próprios desmandos…”

le genou dartemide - straub
Edgard Navarro (esq.) e Bertrand Duarte durante as filmagens de “Abaixo a Gravidade”

Uma pergunta sobre o processo: como se dá tua relação com os atores? Como extrair o máximo deles e manter a aura de um “filme livre”?

Tive como preparador de atores um amigo – Fernando Belens – em quem posso confiar inteiramente; além de ser psiquiatra, tem grande experiência no métier. Ele me entregou os atores bem afiados no texto e familiarizados com as situações dramáticas e suas implicações emocionais; assim tudo fica mais fácil. Gosto dessa parte de lidar com o elenco, embora às vezes seja enérgico além do necessário, causando certo constrangimento; mas sei como desfazer essas tensões porque também sou ator e tenho muito carinho pelo trabalho deles que estão ali expostos, vulneráveis; enfim, até agora tem dado certo, e como quero fazer trabalhos menos complexos em todos os sentidos daqui por diante, o que havia de problema ficou no passado, espero.

Falando em “filme livre”, até onde vai a liberdade em seus filmes no processo de criação? Há o espaço pensado para que a imagem esteja sempre em função metafísica?

Sim, desde a elaboração do roteiro que a metáfora central que se constitui na espinha do filme é servida pelos vários setores da produção e todos passam a contribuir dentro de sua competência para que tudo o que há pra ser dito nas entrelinhas seja feito com a ênfase ou a sutileza desejável. É verdade que às vezes um detalhe mal pesquisado por algum dos colaboradores pode me tirar do sério, mas essas tensões fazem parte do processo – nobody is perfect. Por isso durante a pré-produção fazemos reuniões onde tentamos estabelecer certas metas na expressão final – vetor resultante do filme. Mas creio que essas metas devem ser flexíveis, justamente pra deixar espaço à criação livre, ao improviso, ao acaso emergente que pode surpreender. Pra mim quase sempre é melhor sacrificar o que foi escrito a priori em favor daquilo que se oferece: seja uma revoada de pássaros inesperada, uma chuvinha marota que quer aparecer e se enfeita de luz metafísica, ou a performance de um ator ou uma atriz ultrapassando limites estabelecidos pra nos brindar com uma interpretação irretocável e impossível de ser repetida… Em casos como estes, dane-se o texto!

[1] Termo grego – ágon, que significa luta, competição, disputa, conflito, discussão, combate, jogo, e que tem as suas raízes na Antiga Grécia onde, anualmente, eram realizadas competições desportivas e artísticas.

[2]  Luiz Paulino dos Santos, cineasta pioneiro do ciclo baiano, autor original do filme Barravento – que mercê de um episódio seria dirigido por Glauber.

FacebookTwitter

Cinema(s): Dennis Hopper e James Benning em Easy Rider

Por Pedro Tavares

“Você não precisa procurar por novas imagens, imagens jamais vistas, você deve utilizar as já existentes de uma forma que elas se tornem novas.” (Harun Farocki)

Retomar, remontar ou resignificar materiais existentes independente de concessão estão na filmografia de nomes como Esther Schub, Dziga Vertov, Alain Resnais, Orson Welles, Rogério Sganzerla, Andrea Tonacci, Chris Marker e Jonas Mekas que com suas devidas motivações remeteram e provocaram entre ética e a estética.  James Benning fez de seu Easy Rider (2012) a revelação de um sonho perdido sobre seu tradicional arquétipo de observação sem que suas imagens sejam necessariamente novas, ainda que nenhum plano do filme original de 1969 seja projetado. É necessário, portanto, traçar a rota do encontro entre Hopper e Benning através deste imaginário de cinema e política.

Easy Rider (James Benning, 2012)
Easy Rider (James Benning, 2012)

À procura pela América

Pelas estradas americanas, na representação de uma parcela significativa da identidade do país – as highways -, Easy Rider (Dennis Hopper, 1969) procura a América perdida, o mito e o norte existencial em tempos de Guerra do Vietnã. De maneira geral, Easy Rider rompe com a era de filmes cômicos hollywoodianos e oferece à contracultura seu apogeu cinematográfico fixado pelo pessimismo, pela música, locações e diálogos como o filme definitivo de uma geração.

E nele está um filme basicamente de elipses e insinuações, intencionado a criar um espaço que permite o diálogo com uma época e um estado de espírito em forma de aventura lisérgica em monocórdio, longe da estrutura do cinema clássico americano. O road movie que aspira os westerns – à época tão próximos no tempo de exploração de territórios – parte de uma asfixia generalizada – social, existencial e político como espelho de um mal estar que muitos estavam a lutar. E como pilar de tudo isso está o sonho de recomeço. Coube a Benning, anos mais tarde, identificar caminhos complementares à época da filmagem de Hopper. Em comum, ambos estão em estado de suspensão e cabe as palavras do antropólogo Marc Augé sobre este estado: “(…) O estado de suspensão designa uma forma de esquecimento na medida em que ‘ambiciona recuperar o presente cortando-o provisoriamente do passado e do futuro e, mais exatamente, esquecendo o futuro quando este se identifica com o regresso do passado'”.

Noites ao léu em Easy Rider (Dennis Hopper, 1969)
Noites ao léu em Easy Rider (Dennis Hopper, 1969)

O encontro

Como parte da geração marcada por Hopper, James Benning é um cineasta/videomaker que transita entre cinema e museus com propriedade. Seus filmes seguem características únicas de caráter observacional. E o encontro sobrenatural de Benning com Hopper pelas estradas dos EUA se dá pelo mesma convenção: um filme sensorial, de sugestões e que recria Easy Rider a partir dos tradicionais longos e estáticos planos, aqui em paralelo em alguns momentos com diálogos do filme original como forma de guia narrativo, sem que o filme original seja remontado por Benning e sim uma releitura ao seu estilo característico de contemplar, criar atmosferas e narrar histórias.

Benning, que outrora tinha refeito Faces de John Cassavetes com os mesmos espectros, em entrevista ao Lola Journal afirma que seu respeito pelo filme de Hopper diminuiu conforme o tempo. Hoje, o diretor considera o filme “Cristão, capitalista e que afirma o manifesto de Malcolm-X que o uso de drogas é anti-revolucionário”. Sua reencarnação é feita pelas paisagens de Hopper, hoje muitas deterioradas ou completamente modificadas pelo tempo ou pelo homem. E Easy Rider, ambos, se resumem à  busca de um espaço, de um local não definido.

A outra América

Restaurar ou constatar o passado? A questão que permeia a versão de James Benning o isenta de uma resposta concreta quando seu trabalho de aproximação e posse é explícita ao exibir, por exemplo, o cemitério da cena mais lisérgica da versão original em estado deplorável, ao trocar Born to be Wild do Steppenwolf por uma canção pop ou exibir a placa de “Não há vagas”, num simples gesto interpretativo, de criar novas camadas e significados, como a construção de um novo córrego para as cenas escoarem após o corte. A visão de Benning, neste ponto, é dicotômica entre passado e futuro.

d

c
O lamento de Benning.

A América filmada por Benning passou por outras guerras, ataques terroristas, novos tipos de drogas sintéticas e fenômenos pop, mas há de se considerar o lampejo de Hopper simbolizado na última sequência do filme original. O encontro se dará a partir desta cena – o encontro de um pensamento, ainda que rápido, de fuga, um lapso pessimista sobre o país dos sonhos. Está feito o diálogo ostensivo entre Hopper e Benning: alusões sobre um sonho – o início e o fim. A morte nos campos da liberdade, do vento no rosto e felicidade plena é escarrado em cada plano da observação de James Benning. “Não há vagas” é o canto nada subjetivo da cultura pop, um lamento à transgressão que outrora cantava selvageria, lisergia e revolução. Em troca estão os sussurros em forma de diálogos originais em volume mais baixo em pompa decrescente, como se o silêncio fosse o ponto final da geração e o ponto inicial de Benning, que entrega suas intenções ao dispositivo, permitindo que os longos planos falem por si. Uma infeliz coreografia social (e artística).

Foi-se o tempo: rebeldia trocada pelo silêncio
Foi-se o tempo: rebeldia trocada pelo silêncio

O modelo de Dennis Hopper que supõe o processo de integração e desenvolvimento por trás da carcaça de um filme de motoqueiros segue a retórica da heroicização de uma geração. Nele, homens (quase anônimos que seguem mais tipos que a ilusão da construção de personagem) ressoam às questões sociais daquele tempo como forma de análise urgente transpassadas em ações e falas duvidosas. O modelo de Benning, longe de uma comparação, apesar da releitura, é de um protoluto, silencioso, de análise partilhada com o espectador; o diagnóstico suspende a economia vista durante todo filme – ainda que não se chegue a respostas como em boa parte de discussões sobre o cinema, é possível dizer que o trabalho de Benning é um complemento com a permissão que o tempo cedeu, com a clara constatação que a América não foi e nunca será àquela almejada e que o homem que derruba motos também derrubará a economia e o ambiente em que vive.

FacebookTwitter

Introdução ao Cinema Vulgar

Por Pedro Tavares

sem-titulo
Miami Vice (Michael Mann, 2006)

No livro A Short History of Cahiers du Cinéma, a crítica, autora e roteirista Emilie Bickerton lembra da rejeição a cineastas que utilizavam gêneros como base para justificar suas histórias. A equipe de críticos e cineastas da revista, na época formada por nomes como Jean-Luc Godard, François Truffaut, Jacques Rivette e Eric Rohmer justificava o trabalho de diretores como Howard Hawks, John Ford, Nicholas Ray e Alfred Hitchcock pelo manifesto da “Política dos Autores”. Rohmer, por exemplo, elevava Hitchcock a mestre moderno no início dos anos 50 através do texto Of Three Films and a Certain school e defendia o valor de obras de acordo com o tempo em que era analisado. Já Godard e Rivette teorizavam sobre obras de Nicholas Ray e Howard Hawks, respectivamente. Até o fim dos anos 60 esse discurso foi mantido, quando Godard, integrante da escola de Vertov, colocou a palavra ante à imagem e declarando no fim de Weekend (1967) “o fim do cinema” e da autoria.

  1. “Eu era um cineasta burguês, depois um cineasta progressista, e depois não mais um cineasta, mas um trabalhador de cinema (…) e quando falamos de Hollywood, entendemos Hollywood como todo mundo: seja o Newsreel, ou os cubanos, ou os iogoslavos, ou o Festival de Cannes, ou o de Nova Iorque, ou a Cinemateca Francesa ou a Cahiers du Cinéma. Hollywood quer dizer tudo relacionado com o cinema. Assim, cada vez que a gente diz Hollywood está dizendo o imperialismo deste produto ideológico que é o cinema” (Focus on Godard, CARROL, 1970)

O embrião da “Política dos autores” colocou os jovens críticos da Cahiers contra o conservadorismo da velha guarda e questionou a função da crítica. A “Política dos autores” funciona à distinção de cineasta e autor pela grife. O crítico e teórico André Bazin em 1957 esclareceu as dicotomias desta ideia e suas fragilidades através deste texto na edição de número 70 da Cahiers, comparando a recepção da crítica a um filme ruim de “autor” a um borrão de tinta feito por um pintor famoso. Essa ideia também foi invocada por Alexandre Astuc sobre camera-stylo na década de 40.

Já nos anos 00, o cinema ganhou uma nova maneira de produzir e distribuir filmes. A tecnologia facilitou a feitura e permitiu que filmes fossem vistos de variadas formas e assim refletindo o pensamento da função da crítica. Nos tempos de torrents e serviços de streaming, a variação desta “política de autores” foi criada via internet, onde o cinema sobrevive com mais força, longe das salas de exibição pública e das remanescentes locadoras de vídeo. Os novos autores, que segundo Bazin eram amados pela excelência e vitalidade e não pela abordagem, hoje são chamado de “vulgares” pelo diálogo com o irreal e carregam a mesma empolgação por parte da cinefilia – hoje sufocada por infinitos arquivos de torrent e mais agregador no sentido de definição sobre o que é ou não um “autor vulgar”.

Sinais dos tempos

Segundo artigos de revistas online de cinema, o ponto de partida para o termo “Vulgar Auteurism” foi a matéria de Andrew Tracy para a Cinema Scope sobre o cinema de Michael Mann à época do lançamento de Inimigos Públicos (2009). Porém Tracy já ensaiava sobre o termo na crítica de Déja Vu (2007) de Tony Scott. Adiante muitos artigos foram produzidos discutindo os valores estéticos e filosóficos de diretores que trabalham em “modo popular”, esta que seria a suposta base para o termpo Vulgar Auteurism. São diretores com preocupações distintas em relação à imagem, principalmente por seu espaço e função, mas em comum, todos têm momentos estéticos fascinantes em suas filmografias. A partir disso o que se viu nas redes sociais foi um desfile de stills que inerentes à qualidade dos filmes, os definiam. Um caso clássico desta ação é a comparação matemática de frames de Mortal Kombat (1995) de Paul W.S Anderson com Falstaff – O Toque da Meia Noite (1965) de Orson Welles divulgado no Tumblr “Vulgar Auteurism”. Desta relação com a imagem se questiona forma e influências destes “autores vulgares” que esbarram nas artes plásticas, jogos de videogame, HQs e claro, grandes diretores de cinema.

sem-titulo
Mortal Kombat e Falstaff em comparação em uma página do Tumblr.

O caso do diretor Paul W.S Anderson é um bom exemplo: cultuado por boa parte dos cinéfilos que se debruçam sob a crítica em redes sociais como o Letterboxd e MUBI, seus últimos filmes como Pompeia e Resident Evil: Retribuição foram ovacionados como baluartes do “gênero”. Este último com linguagem frenética, preocupada com a proximidade ao jogo de videogame. Pela produção criativa sobre o real, há espaço para observação que o Vulgar Auterism faz contraponto à autoria de um cinema feito nas ruas, em principal à Nouvelle Vague, Neorrealismo Italiano, o No Wave americano e ao Cinema Novo – já que falamos de movimentos cinematográficos; do uso da fantasia ante o real e de certa poesia não dogmática entre enredos que prestigiam os corpos. Pois já que falamos em Cinema Novo, digamos que o Vulgar Auteurism em muitos casos exige uma relação hiperconstrutivista sobre o corpo-espaço, da mesma maneira que Joaquim Pedro de Andrade faz em Os Inconfidentes (1972) e Glauber Rocha em Terra em Transe (1967) no qual o grande mestre desta função dos autores vulgares é Johnnie To.

São desses corpos que vemos um trabalho de coreografia coeso em cenas de ação – vale citar a cena da boate de De Volta ao Jogo (Chad Stahelski, 2014), o balé de Soldado Universal 4 (John Hyams), as famosas sequências de tiroteio presentes em boa parte dos filmes de Johnnie To e as perseguições dos últimos filmes de Tony Scott. Essas cenas servem de suspiro à trama em boa parte dos casos e não servem como um show de alegorias. É importante lembrar que por não possuir bordas, o termo Vulgar Auteurism sempre carregará exceções. E se pensarmos que, aos meandros de definição, poucos movimentos cinematográficos foram batizados por quem fazia os filmes e sim por críticos e pesquisadores os definindo por margens e similaridades – data, abordagens, discurso… O Vulgar Auterism é sim, uma ótima ferramenta de marketing para cinefilia ainda que a questão para onde os olhos miram realmente cabe a cada quadro, inclusive deste Tumblr citado anteriormente.

sem-titulo
De Volta ao Jogo (Chad Stahelski)

sem-titulo
Soldado Universal 4 (John Hyams)

O Vulgar Auteurism permite o retrospecto. Nomes como Paul Verhoeven, Walter Hill e John Woo, para citar alguns, reprovados pelo crivo do público e aclamados pela crítica nos anos 80 e 90, repetiram, em devidas proporções, o caso de Hawks, Ford, Ray e Hitchcock para os críticos da Cahiers du Cinèma. Hoje Verhoeven, Hill e Woo aparecem em dezenas de listas que os definem como autores vulgares. Há a identificação direta do termo com autores que trabalham com gêneros populares como o cinema de ação, terror e suspense como Tony Scott, Jaume Collet-Serra, Johnnie To, Neveldine/Taylor, M. Night Shyamalan e Kathryn Bigelow, porém, por exemplo vemos os irmãos Farrelly e Abel Ferrara no mesmo balaio. Os nomes de John Carpenter, Clint Eastwood, Samuel Fuller e Michael Cimino também figuram em diversas listas que definem o que é o Vulgar Auterism.

A imagem e seus custos

Por ser abrangente em relação a tempo e características, o termo se utiliza de  alicerces que permitem discorrer sobre o contínuo expediente de reflexão em obras classificadas como escapismo. São diversos tipos, meios e leituras de cinema convergidos em um por quem o consome e que prazerosamente reverte seus meandros de produção – dos altos cifrões ao objetivo dos estúdios – em função de uma interpretação baseada na arte e sua pluralidade formal em respeito ao diálogo. Mas se estamos em um momento que a internet cria um caminho independente de distribuição, o Vulgar Auteurism hospeda mais uma contradição.

O “modo popular” hoje encontra plataformas de streaming  para saciar o espectador, já que as salas de cinema hospedam em boa parte comédias e filmes de heróis e enfrenta o interesse público pelas séries de grandes estúdios. Portanto, não é tão popular assim. Com raras exceções, boa parte dos autores aqui citados produzem com auxílio de produtoras de pequeno e médio porte ou partem para produções independentes com ajuda dos fãs – a exemplo de Rob Zombie e seu último filme, “31”. Ainda que se afirme que o Vulgar Auteurism se resume a filmes de ação com suporte de distribuição e divulgação, seu histórico o define como um termo que viveu nas locadoras e hoje está no video on demand. Ainda sobre “31”, o filme foi produzido graças a ajuda dos fãs via Kickstarter, foi exibido em festivais e sem respiros parou nas plataformas digitais – e consequentemente nos sites de torrent. Resumindo: não houve tempo para o filme construir carreira.

sem-titulo
31 (Rob Zombie)

Herói ou vilão?

A respeito da discussão que o Vulgar Auterism devolve à crítica sobre a função da imagem e da própria crítica em tempos de dispositivos que dominam o olhar e que o interesse pela leitura é vertiginosa, é preferível ver com bons olhos o termo. A sensação é de ciclo, se voltarmos à “Política dos Autores”. Ainda que se questione constantemente o peso da grife sobre a palavra e que hoje tudo pode ser resolvido com buscas via YouTube, estamos portanto a falar sobre a vilania dos novos tempos. Ainda que suportada por alegorias com diversas funções e códigos, trata-se sempre do ode à narrativa e dramaturgia. Se há a possibilidade de uma provocação avant garde ao desinteresse e passividade do consumidor, cabe a questão se os autores vulgares são um bom caminho para o interesse do grande público. Principalmente por considerar a imagem ante ao verbo na arte contemporânea, o irreal e acessibilidade.

FacebookTwitter

Cobertura – Festival do Rio 2016

Por Pedro Tavares

Breves comentários sobre filmes que integraram a extensa programação desta edição do Festival do Rio, encerrada no último dia 16.

1

Ator Martinez (Actor Martinez, Nathan Silver e Mike Ott, 2016)

Curioso projeto que reúne dois dos mais promissores nomes do cinema independente americano contemporâneo: Nathan Silver e Mike Ott. Ator Martinez lentamente borra a noção do verdadeiro processo de filmagem e o que, afinal, é falso ou verdadeiro e se sustenta via mise en scene. Ator Martinez é vigoroso por almejar o ponto irregular dentro de relações humanas que se diluem em um espaço, que é de diferentes maneiras, o ponto em comum do cinema dos dois diretores.

Boris Sem Beatrice (Boris San Béatrice, Denis Coté, 2016)

Uma comédia sobre a consciência burguesa ou a completa falta da mesma. Coté é mais conciso num jogo de chiaroscuro – só existem cenas em ambientes extremamente claros ou escuros – a caminho do inevitável. Um filme de corpos encostados das mais diversas maneiras.

Capitão Fantástico (Captain Fantastic, Matt Ross, 2016)

O primo distante de Pequena Miss Sunshine. É o sucesso indie do ano, a aventura da família diferentona e tão caricata ao mesmo tempo, a do bem contra o mal, ou melhor, o capitalismo. Capitão Fantástico sobrevive graças às alegorias, sempre elas sustentadas por uma justificativa: é possível viver de outras formas. E como se espera, há conflitos sobre o que é “viver de maneira correta”. Um exemplar do que há de pior no cinema americano atualmente.

4

Certas Mulheres (Certain Women, Kelly Reichardt, 2016)

Para examinar a sociedade americana e em especial a contraditória posição das mulheres – aqui, sempre no comando, mas apagadas pela rotina, Reichardt emula a sensibilidade de Clint Eastwood. É cinema americano narrativo com vigor para retratar os limites de relações interpessoais, vida profissional, amor e tédio. Assim como Night Moves, Reichardt se distância do diagnóstico e se apega aos gestos  como forma de manifesto.

5

De Palma (Idem, Noah Baumbach, 2016)

Brian De Palma frente à câmera, livre para comentar sua filmografia cronologicamente e sem opinião de terceiros. O monólogo tem alguns bons momentos, especificamente os detalhes sórdidos de filmagem e repercussão dos filmes, que não tiram o ar superficial de extra de DVD.

Dog Eat Dog (Idem, Paul Schrader, 2016)

A degradação moral da América. Schrader faz um inventário completamente despudorado e hilário sobre o que já foi filmado sobre o assunto. Dog Eat Dog encontra-se na crítica direta ao sensacionalismo que o cinema americano cria como manobra para vender ingressos, sem apegar ao que há de mais importante – o lado soturno de seus personagens. E por isso Schrader gerou repulsa de críticos e público, porém o que se vê é um registro inflexível de um país.

Eis os Delírios do Mundo Conectado (Lo and Behold: Reveries of the Connected World, 2016) de Werner Herzog

Documentário protocolar de Herzog analisando de maneira científica, social e pessoal os prós e contras do mundo de hoje, dominado pela internet. Porém, a cada chance, Herzog quebra toda teoria de cientistas e analistas. Dos hatemails aos avanços tecnológicos e monges que se esquecem de rezar para tweetar, o filme tem a estampa de Herzog graças ao seu tradicional pessimismo que cerca boa parte de sua filmografia.

8

O Filho de Joseph (Le Fils de Joseph, Eugène Green, 2016)

O cinema de Eugène Green encontra uma comédia screwball e como resultado tem um filme peculiar. Das comparações à vida de Cristo e críticas às formalidades da burguesia artística chegam ao imaginário bíblico revestido da fantasia e arquitetura, dois pilares da filmografia de Eugène Green são louvados. O que é totalmente possível já que O Filho de Joseph é de certa forma, sobre Green e seu cinema.

Os Garotos nas Árvores (Boys in the Trees, Nicholas Verso, 2016)

O imaginário adolescente sobre o terror. Um filme muito particular de Nicholas Verso, permeado pela nostalgia – ilustrada por canções de bandas dos anos 90 – e de cuidado estético primoroso. Ainda que tudo seja resolvido na primeira hora e que o filme anda para o caminho de uma saudosa declaração, há uma força em cada plano do filme para justificar este sentimento.

Gimme Danger (Idem, Jim Jarmusch, 2016)

Os Stooges influenciaram gerações e Iggy Pop é referência para todo tipo de arte, porém o que resta no filme são algumas colagens de imagem-som-narrativa interessantes entre os depoimentos dominados por Iggy Pop. O lado animalesco da banda fica adormecido por ser protocolar, com poucas exposições. Em Gimmer Danger a palavra substitui o instinto.

Jovens, Loucos e Mais Rebeldes! (Everybody Wants Some!, 2016) de Richard Linklater

Não à toa Gabe Klinger dirigiu um documentário sobre o encontro de James Benning com Richard Linklater. Pois assim como Benning, Linklater também é um mestre no estudo da passagem do tempo. Emulando Dazed and Confused, o filme na verdade é sobre como um time de baseball usa o seu tempo livre antes do início das aulas, assim, dando início à minuciosa análise da masculinidade e como os pilares de um conjunto de regras são o norte da juventude e vida acadêmica.

Ma ma (Idem, Julio Medem, 2015)

Medem longe dos tempos de Terra (1996) e Vacas (1992) e seguindo o protocolo da via crucis no melodrama. Medem usa a personagem Magda (Penelope Cruz) como coluna de uma história de redenção, vida e morte que permeia inclinações artísticas, principalmente em relação às imagens, entregando a narrativa à superficialidade. O interesse maior em Ma ma é o da resposta e vislumbre e não o da problematização. É possível dizer que Ma Ma é cinema fantástico.

O Ornitólogo (Idem, João Pedro Rodrigues, 2016)

O evangelho segundo João Pedro Rodrigues é exatamente o que se espera dele; percorre terreno do indevido, da solidão, das representações visuais e de um discurso a favor da tradição, porém contra a religiosidade. Onírico e igualmente assustador, o caminho no deserto é o lugar para ver uma vida inteira – das tentações à crucificação, de Judas a Tomé. O Ornitólogo pode ser uma análise científica do que não se vê.

Personal Shopper (Idem, Olivier Assayas, 2016)

O filme americano definitivo de Assayas. E não surpreende que ele pareça com um filme de M.Night Shyamalan. Um jogo de espectros, inclinado à cafonice, um completo controle de direção – uma sequência de 20 minutos dividida em ação e uma longa conversa por celular, por exemplo – que justifica sua trama com um interesse muito maior no lado espiritual sem amarras com a subjeção.

15

A Região Selvagem (La Région Salvaje, Amat Escalante, 2016)

Filme que faria sessão dupla com Boris Sem Beatrice, pois também aborda a consciência, dessa vez pelo lado visceral. Escalante continua sua abordagem social, talvez mais perto de Bastardos do que Heli onde o realismo fantástico é chave moral para costurar questões minuciosas do “mundo cão” de Escalante.

Tramps (Idem, Adam Leon, 2016)

Adam Leon faz mais um filme de aventura pelas ruas de Nova Iorque após seu tributo involuntário a Spike Lee em “Gimme the Loot”. A premissa é a mesma, englobar o ambiente e tensão justificados por um fio narrativo. Em Tramps trata-se da busca por uma maleta que desenvolve como um romance bem humorado com as amarras deo suspense justificados por uma gangue do Brooklyn.

17

Três (San Ren Xing, 2016) de Johnnie To

A cada filme Johnie To desafia os limites de direção cinematográfica e roteiro. Três é um filme tensionado por uma simples justificativa, sem que precise de grandes sequências de ação para afirmar que se trata de um filme sobre crises sob o escopo do gênero. Três remete a Office, do próprio To, um filme de limites dado principalmente pelas paredes de um estúdio. Três parece o limite final de um espaço cênico e de ações contidas num jogo de distanciamento e proximidade dos personagens e do gênero em si.

18

Wiener Dog (Idem, 2016) de Todd Solondz

Chamado de spin off de Bem-Vindo à Casa de Bonecas (1995), Wiener Dog na verdade poderia ser a continuação de qualquer filme de Todd Solondz, pois sua lupa apontada para o subúrbio americano é a mesma. Em 1995 o estudo da sociedade americana, aquela da grama verde no quintal e de belas fachadas, era impressionante e hilário. Em 2016, ele é frouxo, enfraquecido e saturado ao seguir a sequência de abandonos do cachorro salsicha que batiza o filme. Para quem não é familiarizado com a obra de Solondz, pode valer o ingresso.

Yoga Hosers  (Idem, Kevin Smith, 2016)

Yoga Hosers é mais um da leva midnight movies de Kevin Smith que começou com Red State (2011) e Tusk (2014). Este remete a John Waters em modo comédia adolescente em terreno fantástico. Com brechas para o informativo pop que permeia a filmografia de Kevin Smith, o filme, no fim das contas, é uma gigantesca piada sobre a posição americana em relação aos canadenses.

FacebookTwitter

Rua Secreta (Vivian Qu, 2013)

Por Pedro Tavares

Em entrevista a Grazia Paganelli, então programadora do Museu de Cinema de Turim publicada em Sinais de Vida: Werner Herzog e o Cinema (Indie Lisboa 70, 2008), Werner Herzog comenta sobre a principal percepção de Fata Morgana (1971): “Para recordar”. Tal afirmação partiu de uma sugestão de Grazia sobre o filme: o que os olhos vêem e o que imaginam são dois caminhos diferentes. Em casos de registro de um estado de espírito, seja ele de um local, grupo ou apenas um personagem, pouco influenciaria a cronologia ou a quantidade de arcos narrativos ou subterfúgios dados ao padrão de simbolismos quando se trata de uma experiência metafísica. Rua Secreta é um caso de estrutura que se toma consciência à medida que este espírito é revelado. Este espectro é apresentado de forma que a política é parte indivisível das coisas e que a corrupção estará na direção do olhar (a cidade como nossa extensão), mesmo que o objetivo de uma vida seja fugir desta entidade.

Desta forma é feita a transposição das ruas da China para um microorganismo – uma torta espécie de gangue –  cujo valorização do que se vê está atrelado ao diálogo direto com gêneros cinematográficos. Rua Secreta é, em síntese, feito de associações, justificado pela transformação de um roteiro linear em híbrido hermenêutico ao habitual escape da própria vida quando a colocamos em risco, diariamente, sem percebermos. Para isso, o filme de Vivian Qu, adormece esta percepção com outro diálogo ligado à essência e que transpassa a rotina com desejos de intensidades diversas. Um paradoxo ligado às mutações cabíveis muito mais ao roteiro que às emoções do dia-a-dia, e por isso, Rua Secreta é um filme que sobrevive na superfície.

trapstreet3

Há a simetria para que Rua Secreta seja um filme de gangsteres, um romance inflado e ainda que contido, um discurso social. Um jogo comum e batido sobre o que se vê e o que se entende, como afirmara Grazia Paganelli, quando boa parte do que é visto aqui é colocado às avessas a cada “mudança de gênero”. Inevitável é à associação ao discurso social em função de um tipo de panorama apressado mas suficiente para a noção de quem e como governa o país. Tudo passará por um “crivo”, este que sempre terá o poder e o dinheiro como balança. Um serviço a queda de mitos aos quais nossos olhos estão acostumados a ver a cada esquina. Este olhar, objetivo, afirma que pouco importa o local; trata-se de um diagnóstico geral e extremamente pessimista.

E demorará para a tênue linha de equilíbrio narrativo ser transformada em decoração. O que em algum momento foi narrativa é logo transmutado para uma espécie de montes complementares, ou, como é dito e cabível a este, uma teia, um quebra-cabeça, quando todos seus elementos são exibidos. O fim do mistério do tal espírito, por fim, leva ao que mais importante Rua Secreta guarda: o diálogo com que há na tradição do cinema chinês contemporâneo (Jia Zhang-Ke, Wong Kar-Wai e Hou Hsiao-Hsien, em especial). É o fim da zona de conforto e da mudança em função da mobilidade que interessou a Vivian Qu.

O filme, por fim, está debruçado em um tipo de controle da História, de um sintoma geral (o desespero) aplicado às convenções, dadas as proporções, aos cineastas citados. Se vive na inospitalidade de Em Busca da Vida, se deseja como 2046 e sonha como Café Lumière. Porém, não há espaço para discutir a memória em Rua Secreta. Há, no máximo, o instinto de sobrevivência, quando, enfim, o que está diante de nossos olhos, diariamente, é transformada em ameaça – nem constatação ou imaginação. O passado, está incrustado nas interferências e desconfortos de uma cidade (nunca identificada) que reverbera todas as ruas do mundo, que necessitam de uma reação – antes mesmo de enxergarmos ou respirarmos estas ruas.

 

FacebookTwitter

Cobertura XI Fantaspoa – Parte II

Por Daniel Dalpizzolo e Pedro Tavares

A XI edição do Fantaspoa segue até o próximo dia 31, nas salas do Cine Santander e do CineBancários em Porto Alegre, com uma seleção que mescla novidades e revisões especiais de clássicos do cinema fantástico. Neste segundo e último artigo sobre o festival, publicamos novos comentários para filmes vistos durante o festival. O primeiro artigo da cobertura pode ser lido aqui.

fabulasnegras

As Fábulas Negras (idem, Brasil, 2015), de Rodrigo Aragão, Petter Baiestorf, Joel Caetano, José Mojica Marins

Reafirmação cultural como gesto político. E quando falamos de política, aqui, diz respeito menos ao que há de mais evidente nos comentários sociais que fundamentam algumas histórias, e mais à defesa de um fazer cinematográfico que abraça a margem e levanta o dedo médio a todo um sistema pelo qual foi duramente oprimido nessas décadas todas de cinema brasileiro. Aragão e os cineastas convidados (entre eles o maior representante do ignorado cinema de horror brasileiro, José Mojica Marins, popularmente reconhecido – mais que propriamente conhecido – como Zé do Caixão) defendem um horror legitimamente tupiniquim reinventando fábulas e folclores de uma cultura bastante rica em imaginação, tanto quanto desprezada pela indústria local. Se autores como Stephen King e Chris Carter (X Files) exploraram lendas e promoveram uma leitura fantástica do espaço rural estadunidense no centro da cultura de massa, esse As Fábulas Negras, cuja produção, pelo contrário, é totalmente independente, se desloca por caminhos que atentam a esse enorme potencial. Das lendas e desse espaço mítico da mata brasileira o filme extrai pequenos contos sempre instigantes, mesmo quando imperfeitos, partindo de um olhar amparado pela riqueza da imaginação infantil, base de um prazer cinematográfico que nos recorda que, para fazer e ver cinema, tem-se muito a absorver do espírito destemido e aventuroso das crianças e sua capacidade de se encantar/espantar pela mais simples e elementar das narrações. (Daniel)

lisathefox

Liza, the fox-fairy (Liza, a rókatunder, Hungria, 2015), de Károly Ujj Mészáros

O filme de Károly Ujj Mészáros se faz nas margens – boa parte do filme é composto por cenas suspostamente intensas que encontram uma saída cômica surpreendente. No miolo, o romance sintético sobre uma enfermeira em busca do amor. Ao redor, algo muito parecido com as gags de programas humoristicos japoneses com sensibilidade narrativa, algo que só Hitoshi Matsumoto sabe fazer atualmente. A enfermeira é vítima do espírito ciumento de um popstar japonês morto há décadas que gradualmente aumenta o nível de violência conforme os pretendentes aparecem, calhando em uma investigação policial interminável. Por Liza, The Fox-Fairy parecer um filme de temas indefinidos no sentido de qual suporte usará para definir um desfecho (e consequentemente definir sobre o que é o filme), ele consegue ser tanto um filme romântico quanto um escracho sem limites sem que pareça uma contradição ambulante. (Pedro)

starry_eyes

Starry Eyes (idem, Bélgica/EUA, 2014), de Kevin Kölsch e Dennis Widmyer

Bastante cultuado pela imprensa norte-americana, onde as críticas geralmente defendiam-no evocando nomes como Lynch – aquela comparação básica e infundada sempre atribuída a filmes minimamente “bizarros” ambientados em Hollywood após Mullholand Drive e Inland Empire –, Cronenberg e Polanski. Na verdade, não mais que um filme cínico e grotesco, mais facilmente comparável a Cisne Negro. A escalada para o sucesso de uma atriz inclui ritos de transição como chupar o pau de um produtor, pactuar com o demônio em culto satanista e “renascer” sob forma de uma entidade estranha – promovendo uma matança no meio do caminho e transformando o drama intimista num slasher na cidade dos sonhos. Se para atingir o sucesso é necessário transformar-se em monstro, esse trabalhinho “bem sucedido” de Kölsch e Widmyer não me despertou muito mais que uma legítima repugnância. (Daniel)

hardkor-disco

Hardkor Disko (idem, Polônia, 2014) de Krzysztof Skonieczny

Há na transição de Krzysztof Skonieczny da direção de clipes para a narrativa uma dose considerável de influência de Michael Haneke. O suspense está na economia de palavras, na sinalização de uma ação futura ou na distância e cinismo que um abismo (social ou existencial) traz na história que se esconde por opção. Hardkor Disko é feito pela repetição de gestos, de planos e situações através do olhar tendencioso ao nicho criticado (uma família polonesa de classe alta), extremamente preocupado com a perfeição (geométrica, arquitetônica) e inibe qualquer sugestão política pela noção de que isso não interessaria a quem consome sensacionalismo. Eis o tiro no pé do filme: o separatismo completo oriundo da ideia que gênero deve esvaziar qualquer tipo de discussão. Enfim, Hardkor Disko é ônus e bônus como rotina e surpresa, respectivamente, em um mundo frio e autodestrutivo. (Pedro)

zombie

Zombie (Zumbi 2, Itália, 1979), de Lucio Fulci

Infelizmente não pude participar da sessão de Zombie e Terror nas Trevas (que estampou o primeiro artigo da cobertura) no festival, com participação do músico e compositor de diversas trilhas de Lucio Fulci, Fabio Frizzi. Entretanto, os eventos culturais sempre passam, mas os filmes permanecem, o que nos impede de ignorá-los na cobertura – especialmente pela possibilidade de incentivar outros a redescobri-los. Produzida para ser lançada como continuação de O Despertar dos Mortos (George Romero) na Itália (o que explica o ‘2’ do título original), essa obra supera plenamente a picaretagem comercial dos produtores, e remonta a tradição das aventuras em ambiente exótico e desconhecido que terminam em banho de sangue, com um incontável número de cenas geniais e aquela que talvez seja a mais famosa das mortes filmadas por Fulci: a estaca de madeira perfurando um olho que almeja espiar atrás da porta. Se a explosão do gore no cinema de horror era essa onda de conflitar a fragilidade humana e gerar prazer visual através da morte e da dilaceração da carne, Fulci filma aqui uma das cenas mais emblemáticas do ciclo de cinema fantástico italiano. Isso em um filme realizado no Caribe e fotografado como western, e que, entre outras delícias, ainda traz o histórico embate entre um zumbi e um tubarão durante um mergulho com topless. (Daniel)

thebarber

O Barbeiro (The Barber, EUA, 2014), de Basel Owies

Um filme sobre farsas que poderia muito bem estar nas mãos de David Fincher ou Joon-Ho Bong. O Barbeiro vai além da teia onde a atuação é o regime vivido por todos os personagens do filme – suas representações dualísticas são sempre nítidas para dentro e fora do mote principal – e assombra a noção que a influência é a maior vilã de grandes tragédias nos Estados Unidos, ainda que este norte, claro, também seja uma grande mentira. O Barbeiro é genérico em seu feitio e mais parece uma sátira às recentes tentativas de reviver o cinema noir – o que vem acontecendo com frequência maior nos últimos anos – e larga a questão sobre sua reais intenções como qualquer personagem do filme fez em algum momento. (Pedro)

sombras

Sombras (Schatten: Eine nächtliche Halluzination, Alemanha, 1923), de Arthur Robison

Outra sessão especial do festival, a exibição desse obscuro filme expressionista foi musicada pelo Quarteto Sensorial, de Porto Alegre, com trilha especialmente composta pelos músicos para o evento (trilha que, em alguns blocos, não deixou de remeter aos clássicos de Frizzi, pela evocação de um ritmo próprio à banda-sonora através das inclinações progressivas, um ritmo que não necessariamente acompanha o da montagem ou da ação). E se as sombras, esse elemento da encenação historicamente ligado ao movimento expressionista, estão plenamente em evidência no projeto desde seu título, é porque, além de um característico elemento estético (e até metafórico, considerando o desejo reprimido e a trama de infidelidade e vingança), possuem no filme um caráter representativo bastante simbólico, desde o ato de deslocar as sombras, que pontua a transição entre atos e toda movimentação de uma fantasia particular dentro da narrativa, até a encenação de ações fundamentais, como o beijo e o assassinato representados em tela pela projeção da sombra, e não pelo enquadramento dos corpos. (Daniel)

theframe

The Frame (idem, EUA, 2014), de Jamin Winans

Mais um filme que seria facilmente abraçado por qualquer grande estúdio americano. The Frame se equilibra por uma hora e meia na tênue linha que o separa do ridículo com a história de interação entre dois seriados de TV de segunda linha. Com o mínimo de bom senso para o equilíbrio entre fantasia e drama, o filme tem espaços para a sugestão de debates sobre a dependência que este tipo de entretenimento produz e como eles se reproduzem com poucas diferenças pela audiência. Enfraquecido pela pretensão de ser um filme maior que pode ser – afinal, assim como os seriados imaginados, The Frame também é um filme menor por diversos motivos, principalmente pela afirmação que a direção (em vias literais) é mais importante que o próprio espetáculo, sem dar o valor cinematográfico que estas imagens poderiam reproduzir. É claro que interação dos personagens leva ao romance e a ideia de salvação e regeneração que somente narrativas podem fazer se concretiza. Este é o pulo do precipício quando The Frame, enfim, resolve ser um filme sobre produções audiovisuais de maneira mais literal entre incontáveis fade in/fade out. A sugestão feita em uma hora e meia já era suficiente. (Pedro)

latephases

Late Phases (idem, EUA, 2014), de Adrián Garcia Bogliano

Enquanto Starry Eyes provoca uma legítima repulsão, esse Late Phases é aquele filme que passa em branco, de modo que pouca coisa se sustenta depois da sessão. Na trama, um combatente de guerra aposentado e cego muda para um condomínio de subúrbio e é ameaçado por lobisomens. Poderia existir certa potência advinda da condição física do personagem, da impossibilidade de contato visual com esse elemento fantástico aterrorizante, mas a execução é tão morna que termina sendo basicamente um homem atirando no escuro enquanto assistimos a movimentação dos monstros. Ganha pontos por preservar um olhar sobre a tradição fabulística do lobisomem (alterações da lua, produção de balas de prata, tudo legitimamente presente) e ignorar qualquer solução espertalhona, mas o protagonista antipático e a falta de uma atmosfera mais envolvente deixam tudo pouco interessante. (Daniel)

theninjawaroftorakage

Ninja Torakage (idem, Japão, 2015), de Yoshihiro Nishimura

Ninja Torakage confirma que Yoshihiro Nishimura se sai muito melhor em curtas ou filmes de episódios por saber construir introduções e saídas urgentes. Torakage parte de um fiapo narrativo muito utilizado – um mapa partido ao meio, a busca pela outra metade e um acerto de contas – com um mundo de personagens e referências com a imposição de Nishimura em costurá-los e dar algum sentido em sua reação passional. O importante para o diretor é dar ao que é construído um sentido e seguir com seu mundo de fetiches que já passou por mutantes, zumbis, monstros, etc. A crença de que o que é pobre – estilo e narrativa – pode justificar o humor que outrotora era o carro-chefe de seus filmes como Tokyo Gore Police e Helldriver chega ao limite tão rápido que o filme se resume ao desajeito de justificar o que é gratuito. (Pedro)

FacebookTwitter

Cobertura XI Fantaspoa – Parte I

Por Daniel Dalpizzolo e Pedro Tavares

Toda cobertura de festival é fundamentalmente um recorte do recorte, refletindo, além de opções da curadoria, também as escolhas dos críticos para percorrer os caminhos propostos por ela. Ainda assim, num festival com a amplitude deste XI Fantaspoa – Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre, e considerando nossas condições, achamos importante alertar que esta cobertura propõe-se ao risco tanto quanto a própria programação do evento se propõe.

Diante de uma seleção tão ampla e naturalmente irregular, em que são apresentadas até dia 31 de maio, e em duas salas de cinema simultaneamente, mais de 100 obras de cinema fantástico (70 longas e 45 curtas-metragem), a maior parte delas ainda inédita no circuito de festivais do Brasil, o que nos será possível é compartilhar com o leitor breves impressões sobre algumas produções que estiveram ao nosso alcance, sem o mesmo rigor possível em festivais de programação mais concisa ou com críticos enviados exclusivamente para cobri-los.

É importante destacar que, juntamente com a proposta de apresentar um amplo recorte da produção recente dos principais gêneros do cinema fantástico (horror, suspense, ficção, ação, etc), há também um fundamental espaço para revisões de obras essenciais destes gêneros. É o que torna possível, por exemplo, a exibição de Terror nas Trevas, obra-prima antológica de Lucio Fulci (com a presença do compositor Fabio Frizzi, responsável pela incrível trilha-sonora), ou a dobradinha Re-Animator e Do Além, adaptações de Stuart Gordon a clássicos literários de H. P. Lovecraft (sessões comentadas pelo roteirista Dennis Paoli), certamente filmes dos mais essenciais na programação.

Além de clássicos do gênero, o público do Fantaspoa ainda descobre novas realizações acompanhando a competitiva internacional, com produções de praticamente todos os cantos do mundo; a competitiva nacional, na qual são exibidos seis longas-metragem produzidos no Brasil (uma novidade desta edição que merece ser destacada); e as sessões de curtas nacionais e internacionais. Comentamos então, neste e em um próximo artigo, algumas das produções que integram a programação deste ano.

Leia a segunda parte da cobertura aqui

beyond

Terror nas Trevas (…E tu vivrai nel terrore! L’aldilà, Itália, 1981), de Lucio Fulci  

Hoje em dia uma obra-prima mais do que consolidada, e com justiça, entre os fãs de cinema fantástico, na qual Fulci desenvolve uma espécie de antologia do horror sobrenatural absolutamente apaixonada pela imaginação e pela liberdade de criação possibilitadas pelo gênero. Como outros grandes horrores italianos do período, parte de um plot muito simples e até genérico – portal para o inferno liberta horrores no mundo. Ponto. – e amplifica toda sua potência através da atmosfera assombrosa e da envolvente criação visual, emendando sequências oníricas nas quais o diretor explora os mais diversos elementos fantásticos (casas assombradas, maldições, possessão, delírios, zumbis, animais assassinos, e infinitas mortes em um gore sempre muito frontal no seu desejo por registrar dilacerações da carne). Mais do que a materialização de um pesadelo ad infinitum (no qual aos sobreviventes, ao fim, só resta aceitar a condição de eternos cárceres das trevas), é uma elegia à arte fantástica assinada por um cineasta que possui muitos trabalhos igualmente incríveis e pouco vistos (Uma Lagartixa na Pele de Mulher, Gato Negro, Cat in the Brain) que merecem mais atenção. (Daniel)

Midnight-Swim

The Midnight Swim (idem, EUA, 2015), de Sarah Adina Smith

Ainda que o núcleo de The Midnight Swim seja afirmado em um drama independente muito próximo aos moldes de um filme qualquer de Joe Swanberg, sua força está no mesmo princípio dos filmes de M.Night Shyamalan – a condição humana a partir da relação com o que está ao redor, aqui representado por um lago amaldiçoado em uma ideia muito próxima a de Fim dos Tempos. Toda trama está à serviço do luto e o terror está justamente na ciência de que o lago não sumirá. Sarah Adina Smith justifica seu filme como um found footage gravado por uma das irmãs, que se reunem após a morte da mãe e são atormentadas pelas lembranças e eventos sobrenaturais. (Pedro)

goodnight-mommy

Goodnight Mommy (idem, Austria, 2014), de Severin Fiaza

A forma com que Severin Fiaza desenvolve o filme, indo de um coeso drama sobre os valores familiares para um brutal filme de terror e tortura faz de Goodnight Mommy um ótimo exercício de tensão e atmosfera. Fiaza parece ter muito cuidado com os limites que o lado espiritual da história poderia levar ao filme e encontra nele o ponto perfeito para um desfecho fortíssimo. (Pedro)

thecanal

O Canal (The Canal, Irlanda/Reino Unido, 2014), de Ivan Kavanagh

“Quem quer ver um fantasma? Todas as pessoas que aparecem neste filme já morreram há tempos. Então, é como assistir fantasmas de verdade”. Há um escopo interessante, apesar de nada exatamente inventivo, na aproximação entre tempos distintos através da imagem fotográfica, aqui a partir de um crime registrado em película que é desencavado para assombrar e possivelmente reescrever o futuro do protagonista. Pena que Kavenagh creia menos que o necessário no potencial desta ideia e abandone-a em detrimento aos caminhos mais fáceis dos horrores ditos psicológicos, onde apontar o dedo a um culpado e estabelecer razões para justificar sua loucura acaba sendo sempre a saída mais confortável – diminuindo, consequentemente, o impacto de todo o restante. Houvesse mais de Pulse (Kurosawa) e menos das piores tendências que costumam extrair de O Iluminado (King e Kubrick) e teríamos um filme bem mais interessante, apesar de algumas sequências isoladas (conversa no Skype, projeção na parede) e seu desejo de abraçar diferentes correntes do horror serem fortes o suficiente para valer a sessão. (Daniel)

La_distancia

 A Distância (La Distancia, Espanha, 2014), de Sergio Caballero

Com a mesma estranheza de seu filme anterior, Finisterrae, Sergio Caballero mescla o humor vindo do espanto e a percepção da metáfora da formação de uma ideia e o funcionamento do cérebro. A forma pessimista para um mundo sem divindades, apoiado no ego e cálculos matemáticos como argumento máximo para a autodestruição da raça humana. (Pedro)

reanimator

Re-Animator (idem, EUA, 1985), de Stuart Gordon

O que Gordon fez com Lovecraft beira ao insulto. E é aí que reside o prazer de rever Re-Animator, uma comédia de horror que adapta a já satírica história original, escrita nos anos 1920, transformando sua releitura de Frankenstein em uma grande zoeira sem deixar, ao mesmo tempo, de homenagear escritor e tema central da obra – a brincadeira com a obsessão pelos avanços da ciência e pelo pós-morte. Gordon estabelece todo um cenário para uma estilosa produção 50’s da Hammer para mais tarde subvertê-lo com um festival de bizarrices recheado do melhor gore. A ideia do cientista genioso que descobre uma fórmula para enganar a morte transportada ao embrião de uma universidade de medicina, numa disputa típica de poder e egos acadêmicos, com um clímax delicioso que entre outras coisas envolve a cabeça de um professor decapitado praticando sexo oral na filha do reitor enquanto este, transformado em zumbi, tenta assassinar seu melhor aluno e futuro genro. Segue uma das mais divertidas dessas produções norte-americanas da década de 1980 em que abria-se grande espaço para as equipes de efeitos e maquiagem brilharem. (Daniel)

wyrmwood

Wyrmwood (idem, Australia, 2015), de Kiah Roache-Turner

Mad Max meets Dawn of the Dead” – assim o release apresenta Wyrmwood. É justamente do lado fetichista dos dois filmes citados que Kiah Roache-Turner se utiliza para fazer um filme de mascarados versus zumbis sem se preocupar com justificativas. O que vale em Wyrmwood é o espírito sugerido, de anarquia e a subversão da posição de cada grupo na história – surpreendente respiro ante tanta gratuidade. É possível resumir o filme com cenas de perseguição, tiroteios e humor – campo saturado e que exige originalidade para ter relevância. Algo que Wyrmwood não faz. (Pedro)

deserto-azul

 Deserto Azul (Idem, Brasil, 2014), de Eder Santos

Na primeira camada de Deserto Azul se vê um número gigantesco de possibilidades de desenvolvimento narrativo quanto a um futuro próximo e seu iminente desespero. Não demora para o filme se revelar como uma aposta de segmentar (e sustentar) o discurso através do aspecto visual – provavelmente o que há de melhor aqui. Fica a sensação de que se o filme não se levasse a sério, utilizando até mesmo o tradicional viés pessimista, Deserto Azul seria um bom filme político. (Pedro)

spring

Spring (idem, EUA, 2014), de Justin Benson e Aaron Moorhead

Provavelmente vou levar puxão de orelha de alguns amigos ao descrever um filme como Linklater meets Jonze/Gondry & mumblecore sem que isso soe exatamente pejorativo, mas debaixo desse caldeirão de referências do cinema indie norte-americano existem alguns aspectos até agradáveis nesse continho sobre um jovem fodido na vida que viaja à Itália e se apaixona por uma criatura mitológica violenta personificada como uma bela ragazza. Há um espaço significativo dedicado à fruição desses encontros, em diálogos simples registrados em cenários históricos quase míticos (beira-mar, ruelas, ruínas, cavernas em alto mar) que formam a geografia dessa Europa milenar (mais Befores impossível, ou seja, nada de novo), e uma intersecção entre eles, a História registrada pela Arte e essa criatura na qual todos esses elementos convergem, tudo filmado com um visual bem habitual do cinema digital. A presença de Jonze e Gondry nas referências obviamente atenta aos momentos em que o realismo fantástico incomoda o suficiente para o filme descambar, mas ainda é bem menos irritante que qualquer pós-Eternal Sunshine do Gondry. (Daniel)

wolfcop

Lobocop (WolfCop, Canadá, 2014), de Lowell Dean

É raro um filme com esta proposta ser consistente e ter noção de suas bordas. Lobocop tem ritmo, boas doses de humor e faz alusões às histórias clássicas do lobisomem, à falência social abordada por Robocop e a policial de Dirty Harry, mas o que chama atenção é como Lowell Dean sabe medir as forças do filme, sem que ele pareça uma homenagem em formato exploitation. (Pedro)

what-we-do-

O Que Fazemos nas Sombras (What we do in the shadows, Nova Zelândia /EUA, 2014), de Jemaine Clement e Taika Waititi

Um filme que deve agradar bem mais outras pessoas – principalmente o público de programas humorísticos de TV, de onde origina um dos criadores, Jemaine Clement – que a mim. Basicamente um filme de uma mesma piada recontada exaustivamente – esvaziar o peso mitológico da entidade Vampiros registrando estes seres em uma sequência de afazeres domésticos e situações banais para nosso convívio social e criando um atrito entre suas necessidades fisiológicas e os padrões do comportamento humano – em que as situações geradas a partir dela não me soaram realmente engraçadas. Ao contrário de outras obras cômicas – a mais notável e óbvia sendo, sei lá, Seinfeld – em que a inexistência de uma trama central e a despretensão e aproximação absoluta com o cotidiano eram base para invenções cômicas bastante ricas e imaginativas aqui tudo se restringe a uma interação em mockumentary bem desgastada. Pra ser sincero eu gosto da sequência em que os vampiros procuram virgens na internet e algumas coisas do encontro com lobisomens ao final, especialmente os zooms da câmera granulando e distorcendo a imagem. Pouca coisa, portanto. (Daniel)

redeemer

Redentor (idem, Chile, 2014), de Ernesto Diaz Espinoza

Há no filme de Ernesto Diaz Espinoza a preocupação estética na construção de planos abertos e na coreografia das sequências de ação, remetente aos códigos dos filmes de arte marciais chineses. Tão importante quanto, a aura trash é mantida na desmistificação do herói western. A eterna busca por paz do homem cristão passa por provas onde só um acerto de contas possibilitaria tal utopia na base da pancadaria, tiroteios e suspense. (Pedro)

FacebookTwitter

Noite Sem Fim (Jaume Collet-Serra, 2015)

Por Pedro Tavares

A linha reta é o caminho mais longo para ir de um homem a outro, a proximidade é uma ilusão; o face a face, um perigo; o amor, uma tirania. (Dodeskaden, Akira Kurosawa, 1970).

Para o bem ou para o mal, Noite Sem Fim é um filme enganoso. Pois, se a premissa, muito próxima a de Sem Escalas (2014), filme anterior de Jaume Collet-Serra – homem de moral execrada em busca de redenção em microcosmo repleto de anti-heróis -, indicara um modelo narrativo próximo ao absurdo, Noite Sem Fim se agarra apenas à freneticidade durante sua primeira hora como forma de encurtar uma linha de encontro. Neste espaço, Collet-Serra sonega suas intenções enquanto justifica o enredo composto por aparições – uma teia de personagens é tecida entre tantos cortes e propicia uma reunião relâmpago que possibilita ao diretor em uma só sequência afirmar a posição deslocada destes homens na sociedade; alguns por opção, outros, não. Alguns vivos por necessidade, outros, entregues ao tempo.

É um tipo de cinema indefectivelmente feito de corpos e como eles dominam o espaço urbano com suas necessidades, da mobilidade ao vício, mas que provém espaços para o desenho de um estado de espírito tal qual o de Abel Ferrara em O Rei de Nova York (1990) sobre Nova Iorque fragilizada pelo crime e em constante alerta, antes das medidas tomadas por Rudolph Giuliani a partir de 1994. Estes espaços em Noite Sem Fim medem o estado de tensão e terror após os atendados de 2001 sem que ele tome o papel de protagonista. As ruas refletem a busca incessante da imprensa por culpados e a (hoje) iminente justiça, observadas com distância suficiente para encarnar o antagonismo. Porém, a lacuna principal e que rege o filme é a da figura paterna deixada por Jimmy (Liam Neeson), onde seu contraponto, Shawn, vivido por Ed Harris, encarna um tipo de representação mutante muito comum na filmografia de Jaume Collet-Serra, em especial como ela serve de pilar para todos os seus filmes, sempre cambaleantes na corda da ética. Harris remete a mesma brutalidade e cinismo de William Walker, talvez o grande papel de sua carreira, em Walker (Alex Cox, 1987).

A história de ascensão moral de Jimmy acompanha o arquétipo de busca e fuga pelas ruas de Nova Iorque com licenças e referencias que levam a câmera de Serra do Madison Square Garden ao Brooklyn e desemboca em um conjunto habitacional muito similar ao inferno futurístico de Dredd (Pete Travis, 2012), onde se encerra a primeira metade do filme e que mais transparece a influência dos games na narrativa. A ideia até este momento é que Nova Iorque é um calabouço cercado pelas luzes de uma tempestade. Entre a penumbra e sombras, o que se vê além de rostos em planos fechados, são rastros de bala e luzes de neon. E o giro da trama vem, como em Sem Escalas, pela ética, que ganha outra face como sonegação de sentidos ao filme: a correria agora é outra.

run all night 3

Cai por terra a noção de que pulsa um Estado ao redor de Jimmy e suas obrigações profissionais e morais exercendo a função de contracampo permanente; o quebra-cabeças ganha frouxamente suas peças fundamentais, cheias de sentimentalismo e o raciocínio constante de um filme de sugestões se vai na afirmação de vida do protagonista, este que sempre foi dado como morto – financeiramente, moralmente, profissionalmente. O tom fabuloso motriz que justifica qualquer resvalo ao absurdo segue a mão contrária de uma pista que encontra sua bifurcação.

Há espaço para tentativas sem fôlego de bons momentos, como a sequência de tiroteio entre vagões (há um mundo de referências nesta cena, dos westerns aos tiroteios entre contêineres de filmes contemporâneos), mas Noite Sem Fim corre desenfreadamente para colocar os pingos nos “is” seguindo a cartilha da redenção de um homem cercado de erros. Moral e justiça estão, novamente, à frente de qualquer simbologia sobre renúncia e recomeço. A sedução que Collet-Serra construíra em forma de atmosfera sufocante se diluí na lembrança (ou a falta de) e que volta a enganar ao construir dois epílogos, suportados por um tipo de relação artificial, tão artificial quanto o local que Noite Sem Fim habitou, tão superficial quanto o convívio de toda teia construída para obter o que interessa a cada um deles, o que de certa forma resume o nosso tempo: além do ego, só existem sombras.

FacebookTwitter

Cine Holliúdy (Halder Gomes, 2013)

Por Pedro Tavares

A postura de Halder Gomes em relação ao discurso principal de Cine Holliúdy é misteriosa. Desta indefinição surge a curiosidade do público e, como reflexo, a busca sobre o que é o filme, afinal. Não existe obrigatoriedade quanto à ordem dialética e muito menos na dosagem do discurso em relação a qualquer assunto dentro de uma linha – ou fio – narrativo. Neste caso, um fio. E deste bloco desconfigurado saem momentos relevantes à discussão do papel da cultura (sem generalizar) na sociedade.

Como extensão do curta-metragem Cine HolliúdyO Artista Contra o Cabra do Mal (2009), Halder segue a família de Francisgleydisson (Edmilson Filho) atrás da realização de um sonho – a máxima do cinema nacional pós-retomada. Abrir um cinema em um município no interior do Ceará traz ao empreendedor embargos em série. Mas, ao contrário do que fora exibido nos últimos anos em exemplares como Central do Brasil (Walter Salles, 1998) ou À Beira do Caminho (Breno Silveira, 2012), estes obstáculos servem como moldura para a homenagem bem humorada aos costumes nordestinos, principalmente do linguajar e da postura – àquele que não foge a luta e está pronto para outra no dia seguinte. Francis, porém, sai de casa, mas evita o sudeste como ideal e sim a proximidade com as raízes. Um estudo topográfico através de signos.

Dentro desta moldura, há outra muito valiosa e que se revela lentamente. Como o curta-metragem, o longa também servirá de tributo aos costumes da cinefilia e aos efeitos do cinema em um vilarejo. Halder Gomes parte do desconhecido – para o público, que encara a experiência de acordo com o nível de violência dos filmes, uma espécie de medidor de “macheza” para os rapazes do local – e vai à justa homenagem ao cinema independente, dialogando com eixos informais como o aumento do comércio ao redor do cinema, este que em certo ponto também se revela como comércio.

Enfim revelada a proposta principal do filme de Halder Gomes: Cine Holliúdy aborda apenas causas e efeitos no modelo comercial. É a forma de se declarar formal dentro de um mundo de informalidades. A TV, grande vilã para o cinema nos anos 70, é jogada política e apontamento para a vindoura cultura de celebridades. Profetiza-se em caso oposto a adaptação do cinema sobre qualquer aspecto cultural criado ou reinventado. Ir ao cinema, dividir emoções, desligar-se do mundo. Este é o ritual defendido por Gomes e dilacerado pelo coração, mas exibido em tom ameno. Com o fim dos cinemas de rua, igrejas protestantes tomaram o lugar. À época, a censura, com o apoio da igreja católica.

O ápice deste panorama marca o encontro dos extremos que justificam a busca de Francisgleydisson por uma nova vida. Nele, estão os cidadãos, todos com características específicas criadas para o humor voluntário inspirado em pastiches.  E na tela, o superoutro. O filme, a chance de escapismo, a diversão, um novo sopro de alegria, como a saída do cinema marca. Mas não haverá final feliz em Cine Holliúdy, pois Halder teve o cuidado de delinear sua obra com alegria do início ao fim. E nada há com o dialeto curioso, com o folclore e sim pelo tom, pela preocupação em manter o monocórdio como norte. Afinal, com o cinema não há motivos para chorar.

FacebookTwitter