É Tudo Verdade: Gorbachev – Céu

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Por Chico Torres

Há dois trunfos no documentário sobre Gorbachev. O primeiro é em relação à forma: o filme possui direção e montagem que conseguem criar uma boa dinâmica e poeticidade para a monotonia das entrevistas e do próprio ritmo de Gorbachev, um homem nonagenário e adoecido. O segundo é em relação ao conteúdo: o entrevistador, desabusadamente, interroga Gorbachev sem reservas, o colocando diversas vezes contra a parede para que ela seja direto em suas respostas. Mas, como diz o próprio entrevistador, Gorbachev é ardiloso e suas falas são quase sempre ambíguas. O filme é conduzido assim até o final, sem grandes revelações, causando a sensação de que o entrevistador teve seus planos frustrados.

Ainda que o foco do filme seja explicitamente arrancar considerações de Gorbachev sobre os diversos fatores envolvidos na dissolução da URSS, o que se tem é um extrato poético e divertido sobre a decadência de um homem contraditório e que se vê solitário no fim da vida. Seja falando de sua falecida esposa, recitando poemas ou cantando canções de modo fanfarrão, quase chegamos a esquecer que aquele homem foi uma das figuras mais importantes e controversas da segunda metade do século XX. Além da presença do que parece ser funcionários que se tornaram amigos, aquela solidão é completada, de modo sugestivo, com retratos na parede de sua esposa e a insistente figura de Putin no televisor.

Nesse sentido, o documentário que parecia se propor a tratar sobre o tema árido da política, acaba que transmitindo um senso poético que, de algum modo, se coaduna com a personalidade errática de Gorbachev. Não temos nenhuma resposta precisa e saímos do documentário sem conhecer quase nenhum detalhe das ideias e dos bastidores dos eventos nos quais o estadista russo esteve envolvido. Por outro lado, tomamos conhecimento da frágil intimidade de alguém que parece estar preso em um limbo ideológico, no limiar de ideias que o deixaram preso em um universo indefinido, onde seus olhos vivos se contrastam com o seu corpo debilitado, como se em sua carne reinasse também um tipo de contradição indissolúvel.

 

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É Tudo Verdade: Eu e o Líder da Seita

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Por Chico Torres

Em Eu e o Líder da Seita (Aganai/ Me and the Cult Leader – A Modern Report   on the Banality of Evil) temos a presença de dois homens que poderiam ser retratados como vítima e algoz, um caso típico de confronto que renderia cenas bastante constrangedoras e redentoras. Mas, se esperamos que embates polêmicos se desenvolvam através desse encontro tão incômodo, ficamos surpresos porque o que encontramos é quase que a história de uma amizade que se dá sem grandes exaltações. Os dois personagens, em uma viagem que transmite a ideia de jornada purificadora, parecem estreitar os laços ao longo do filme, fazendo com que aquela possível história polêmica ganhe contornos mais sutis.

O filme se abre para reflexões sobre moral, fanatismo religioso, consumo e perdão. Sakahara e Araki flutuam entre tensão silenciosa e desconcertante intimidade. Se o primeiro permanece em seu lugar duplo de interrogador intimidador e possível amigo brincalhão, Araki é de fato o personagem que sofre as maiores transformações e quem nos salva da monotonia do filme. Percebemos suas transformações emocionais à medida em que se avança na viagem de trem. No início, Araki aparece tímido e quase assustado com a presença da câmera; no meio, está emotivo e bastante reflexivo, revelando diversos aspectos de sua vida antes e depois de sua adesão à seita. No fim, aparece acuado, visivelmente contrariado por ter que carregar toda aquela responsabilidade.

São essas variações que sustentam o filme. Sakahara, através de suas perguntas e investidas que muitas vezes possuem a intenção de convencer Araki a sair da seita e retomar a sua “vida normal”, conseguem fazer com que ele reflita, ainda que de maneira fugidia, sobre as suas escolhas. Desse modo, vemos o confronto de dois mundos irremediavelmente conflitantes: o de Sakahara, ligado ao consumo e à realização, e o de Araki, ligado à renúncia e ao esvaziamento de expectativas. Mesmo que sejam temas instigantes, os diálogos se realizam de modo natural e, por isso mesmo, muitas vezes são truncados e tediosos. O filme plaina nesse tipo de ambientação morna e não consegue realizar de fato uma investida consistente em nenhum dos temas que levanta. Seu final acaba por condensar tudo aquilo que estava latente ao longo da viagem: o confronto direito e a redenção de Araki através de um pedido de desculpas diante da imprensa. A sensação que se tem é que esse elemento chegou tarde demais, enquanto que os outros, os mais sutis, foram mal aproveitados, talvez por culpa do próprio Sakahara que parece não ter conseguido explorá-los devidamente. Um filme que fica no meio do caminho e que extrai com timidez a complexidade de alguém que parece querer estar além do bem e do mal, mas que acaba por retornar, inevitavelmente, para as questões demasiadamente humanas.

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É Tudo Verdade: Máquina do Desejo – Os 60 Anos do Teatro Oficina

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Para além da questão de uma arte panfletária, aquela desenvolvida na URSS, muitos artistas e pensadores se dedicaram a criar e refletir uma arte que fosse além de sua função pedagógico-revolucionária. A complexidade do que se entende por arte e política possibilitou uma série de desdobramentos que superam o sentido reducionista e datado de “arte revolucionária”.

É diante disso que quero pensar Máquina do Desejo – Os 60 Anos do Teatro Oficina. O filme procura mostrar panoramicamente o percurso e os diversos impulsos criativos que movimentaram o grupo sempre na direção de uma teatro com princípios políticos, mas um político libertário e muito pouco pedagógico. De Brecht a Shakespeare, sob o sol absoluto de Oswald de Andrade, o grupo desenvolveu, através de uma constante evolução estética, um tipo de dramaturgia que tem como centro não o cérebro ou o coração, mas a pelves e as entranhas. Assim, além do texto e da encenação, o corpo surge como elemento fundamental, um corpo liberto, dionisíaco. O filme consegue retratar bem, mesmo que indiretamente, o modo como o corpo foi sendo cada vez mais explorado e radicalizado dentro do Oficina. O irracional, ironicamente, surge como elemento político à medida que explicita ou sugere uma libertação total através do desbunde, indicando um sentido orgíaco e antropofágico para a vida.

A força política dessa dramaturgia se fundamenta também na subversão da própria ideia de arte. O questionamento estético é, portanto, também político, à medida que ao criticar os modelos convencionais do teatro, critica toda uma tradição e dá a ela uma resposta subversiva. Outro esquema que se desenvolve no Oficina é a interação entre artista e público. Ambos se confundem no espaço cênico. No sentido político, é possível entender que essa relação abre espaço para o jogo, para a participação, sendo um instrumento pedagógico poderosíssimo: uma forma brechtiana, mas que tem também como referência o teatro da Antiguidade.

Outros modos de relacionar arte e política são trazidos pelo documentário através de uma série de entrevistas e da presença iconoclástica de Zé Celso Matinez. Esses entrevistados não aparecem, suas falas são representadas por imagens de arquivos existentes desde a profissionalização do grupo. O filme, portanto, procura explorar um formato não usual de entrevista que mesmo podendo causar certo incômodo no início, já que ficamos curiosos para saber se quem fala é exatamente o personagem que aparece na cena, aos poucos vamos nos acomodando nessa narrativa quase errática, incorporando, de certo modo, o espírito irracionalista do grupo.

O filme, ao trazer diversos recortes de Zé Celso em sua longuíssima luta pelo espaço que circunscreve o Oficina, revela um ser contraditório e fascinante. Um homem que perdoa o seu torturador; que confunde realidade com ficção ao dizer “isso aqui é um filme de Glauber Rocha”, fazendo uma alusão ao Terra em Transe, como se esquecesse por um momento que entrega o microfone para um homem real em estado de miséria real e não a um personagem; um homem que luta pelo teatro fazendo teatro, teatralizando a política, numa ingenuidade que surge quase como a negação radical daquela vulgaridade e ambição dos políticos e homens de negócios. O filme, portanto, traça esse panorama através de uma cronologia torta e breve, pois são sessenta anos de um teatro que passou por diversas transformações internas, além de incêndios, ditaduras, revoluções e dissoluções. E a arte continua, como é mostrada em uma das encenações do Oficina, em seu lugar necessariamente à margem, procurando os espaços mais improváveis para fazer de suas bacantes algo de vivo no mundo dos homens.

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É Tudo Verdade: Fuga

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Fuga (Flee) é um filme interessante por unir animação, biografia e documentário histórico, integrando fatos importantes de um passado recente a aspectos subjetivos de um personagem bastante cativante. Apesar disso, o filme se detém às situações traumáticas dos personagens, fazendo com que aspectos históricos e subjetivos de uma realidade tão complexa sejam explorados apenas superficialmente.

Já de imediato conhecemos a história dramática de Amin, um afegão homossexual que foge da guerra e se refugia ilegalmente na Rússia com parte de sua família.  O longa exibe, através da vida em fuga de Amin em sua juventude, alguns aspectos da guerra que se desenrola no Afeganistão desde 1979, além do ambiente desolado da URSS em sua dissolução. Mas esses aspectos, apesar de serem fundamentais para o desenvolvimento do filme, são sempre trazidos através do olhar emocional de Amin. E não é que as emoções do personagem sejam menos relevantes do que um tipo de abordagem mais analítica. O que acontece é que o tom emocional, usado em exagero, acaba por tirar o peso de todo o arcabouço histórico que está por trás daqueles traumas. Conhecemos as situações-limite que são vivenciadas por Amin e seus familiares, mas não sabemos o que Amin fez dessas experiências, como ele desenvolveu os seus estudos e como é que isso o ajudou a lidar com tantos problemas. Sendo ele um homem afegão, homossexual, intelectual, que viveu em duas culturas completamente diferentes e em momentos históricos bastante decisivos, é possível presumir que muito mais poderia ser dito.

Apesar da alta carga dramática daquela história, o tom confessional, realizado através de entrevista que surge como uma forma de purgar o passado, acaba imprimindo alguma leveza ao filme, causando uma sensação de alívio ao perceber que, apesar de tudo, a coisas deram certo para Amin. Uma pena que, através dessa história de superação, conhecemos muito pouco sobre o que moveu aquele homem em sua trajetória, nos restando apenas imagens de um passado que foi apresentado por uma ótica que, mesmo sendo de maior alcance em relação ao público, parece diminuir consideravelmente a grande história de Amin.

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É Tudo Verdade: Glória à Rainha

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Por Chico Torres

Glória à Rainha (Glory to the Queen) é um documentário que se desenvolve através de uma dinâmica entre o mítico e o banal. O que nos leva nessa jornada dupla, são as trajetórias de quatro enxadristas contemporâneas e conterrâneas da Geórgia, país incorporado à União Soviética.

Em seu aspecto mítico, somos apresentados a essas mulheres que possuem o talento do xadrez e que monopolizaram por quase meio século os títulos mundiais do esporte na categoria feminina. São verdadeiras referências nacionais e isso se evidencia principalmente ao vermos seus nomes (Maia, Nona e as duas Nanas) serem replicados em outras mulheres, através de várias gerações, funcionando não apenas como uma homenagem, mas como uma espécie de benção, para que aquelas filhas também recebessem o mesmo talento das enxadristas. É curioso como muitas delas, de fato, se tornaram profissionais do xadrez ou mulheres que ocupam cargos importantes. Somam-se a isso, para reforçar esse aspecto mítico e que nos distancia daquela realidade meio mágica, imagens de arquivos de vários momentos em que as jogadoras, em meio aos cartazes típicos da estética soviética, exibem seus talentos jogando com vários opositores ao mesmo tempo, ou se desafiando entre si nos matches. Essas imagens estão carregadas de uma aura que imprime autoridade e reverência a essas quatro mulheres extraordinárias.

Por outro lado, presenciamos também o momento atual das enxadristas, o que acaba por revelar o teor mais banal e cotidiano de suas existências. Ainda que não se dedique exatamente a uma exploração de suas vidas particulares, o filme consegue cenas em que as personagens exibem suas personalidades, seus conflitos e realizações em torno de uma vida dedicada ao xadrez. Essa banalidade é exibida com sutileza, à medida em que é desenvolvida como detalhe, como algo que exige a atenção do espectador. Nada é exatamente revelado, mas surge como latência, como algo que é dado em doses mínimas e que talvez precisa ser subjetivamente explorado para uma apreciação mais proveitosa.

Junto a essas narrativas que correm paralelas, uma mensagem ocupa todo o espaço do documentário: a de que essas mulheres, para além de serem fundamentais para o desenvolvimento do xadrez em todo o mundo, lutaram por um espaço ocupado majoritariamente por homens. Através das personagens que carregam o nome das quatro jogadoras, é possível pensar na simbolização da vitória feminina sobre uma sociedade machista, sustentada sob a construção de um exército de Maias, Nanas e Nonas. Também de forma sutil esse aspecto vai se tecendo sobre as biografias entrecruzadas das personagens, se desenvolvendo como discurso engajado, mas muito pouco militante, à medida em que a problemática é explorada com naturalidade e objetividade, tratando com obviedade aquilo que é realmente óbvio. Tal qual a mente de suas personagens, Glória à Rainha é um filme que transita bem entre a assertividade e a imaginação, nos mostrando, ao mesmo tempo, a genialidade e a banalidade de mulheres que conquistaram o mundo debruçadas sobre um tabuleiro.

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De onde vem esta música?

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Por Felipe Leal

O terreno em que as possibilidades de encaixe de certos fatores também são capazes de criar existências em brecha, e aquele outro espaço, mais virtual, em que um número indefinido de atores entrará em consenso para definir a pertinência de nomenclaturas como existências exclusivistas, territoriais, se distinguem de maneiras inimagináveis à conversa comum, ainda que as questões de gosto estejam diretamente ligadas a questões de linguagem, de vocabulário. Mas poderíamos reescrever tal enunciado ainda de outra forma, exemplificada: quem diz o que deverá ser qualificado como música (com irrefutáveis poderes e diante de um espaço onde é necessário que um juízo se emita, como excludência e por parâmetros que importam a alguns), e quem, dentro de experiências musicadas, consegue interferir com adições ou flexões de elementos outrora “não musicais”, constituem e nos devolvem lugares de crítica e de experiência distintos, mas seguramente mesclados, numa história que é sempre contemporânea às suas possibilidades, entre as artes de fazer e aquelas de sentir/julgar.

Quando nas últimas décadas do século XX, do Reino Unido ao Japão e mundo afora, ruídos, chiados, distensões de sonoridades corriqueiras, silêncios, urros e intrusões do mundo dito natural, interferências e várias outras camadas inusitada de sons que nunca haviam participado da qualificação “música” (uma exclusão, inclusive, imprescindível para definir o conceito de gosto como assepsia), adentraram, por choques, nas camadas de produção e de crítica, não é como se repentina e ineditamente, na história e na história musical, chiados de televisões disfuncionais tivessem assumido um estatuto próprio nos lugares onde legislar o musical interessa, nem tampouco como se, para as camadas tidas como populares, independentes e menos criteriosas, a apreensão e distinta divulgação de certo gosto fosse, por sua vez, suficiente para legitimá-lo, sobretudo quando todo o universo musical (e não somente suas antípodas “participantes”) treme e se reformula em pontos de alargamento que somos todos mais ou menos capazes de reconhecer. Nem todo rewind constitui música. Não há música tão original e progressista que prescinda de certo efeito de retorno.

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É dentro da sua polissemia, portanto, que a palavra ‘música’ e suas variações mais interessam, especialmente ali “quando” o campo semântico musical, por desaparição, vem se materializar num outro meio, à moda das virtualidades das vozes fantasmáticas que só nos chegam através de gravações antigas, cômodos e lares carregados dos assuntos não resolvidos neste plano, ou quem sabe dos ouvidos dos indivíduos a quem o corpo se entregou a certa fragilidade veicular, afetada. Mas, mais especificamente, um fantasma é capaz de canções?, uma vez que sua presença não se faz completa aqui, e considerando-se que seu canto não seria nada além de balbucio das coisas terrenas àqueles que não o ouvem de fato nem de direito?

 O que leva, portanto, um cineasta alemão radicado nos Estados Unidos a tematizar, destes, através da moralizante e genérica distância entre campo e cidade, a redenção de um marido cristão perante uma esposa que tentara matar?, fazendo-o não somente ao não sub-entitular o filme como uma história, uma tragédia, uma pintura ou uma cena (trata-se de Aurora – Uma CANÇÃO de Dois Humanos, 1927), como, paradoxalmente, ao prezar de toda sua tipologia de cinema mudo aquele lugar em que mais pode haver a inóspita nascença de uma canção.

Na aurora do rosto redimido, no instante em que somente algo que precisa nos (ir)romper como um som é capaz de quase antecipar à vida vivida o vislumbre, o fantasma daquilo que ela poderá ser – ou do que poderia ter vindo a ser, nunca tendo sido –, é que seu diretor tinge este filme de fantasmas e formas do som, num estado de suspense em que aquilo que já foi visto em demasia é feito UMA imagem da qual é impossível se desgarrar. Cantar, atingir um estatuto de canção através de um instante e sem precisar responder à Música, cantar, para Friedrich Wilhelm Murnau, é deixar-se assombrar, sendo todo ouvido, pelo fantasma do desejo da outra vida. A canção é o índice desta imagem que não ultrapassou um regime nem permaneceu no seu de pertença. Pois a tristeza da esposa interpretada pela lendária Janet Gaynor é por ainda ver seu marido ali, mesmo quando sumido, seja à mesa de jantar, no choro do filho, ou, com expressiva amargura, na mesma cara com quem tem de conviver todos os dias e com a qual, alhures, disse “sim” (não esqueçamos: o cinema já dependeu com triunfo de seus rostos). E de onde viria, então, “a outra volta do parafuso” dele, a serpente apta a lhe fazer de fugitivo? De duas imagens, cujo privilégio de espectadores contemporâneos – a tantas revoluções do som e do corpo “percebente” – deve inclusive nos servir como munição.

Quando lhe seduz à lua da lua numa espécie de canavial de espelhos melífluos, a “mulher da cidade” consegue produzir à mente daquele sujeito uma inebriação tamanha, que os recursos de edição de imagem, precisamente no atraso datado em que os engavetamos e inscrevemos gramaticalmente, ganham uma superfície de proposições para a qual a passagem do tempo não poderia ter um valor de arguição mais desprezível: como se estivessem assistindo a um quadro de cinema, a sequência musicada de uma banda de trombones, tubas e trompas, ao mesmo tempo extra e intra-diegeticamente, consegue assombrá-lo com a perspectiva de liberdade corpórea na grande cidade. Ele é seduzido por algo que não ouve propriamente, mas que, como imagem também inexistente, não deixa de formar um tempo excepcional nem de chegar-lhe às sensações “verídicas” por ouvidos que não aqueles dois.

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Em Aurora, essa febre de e por imagens, às maneiras da tortura que enaltecem aquilo que é da ordem do desejo inatingido, e que só nos será eliminada com a eliminação visível de algum dos componentes do jogo, consegue e conseguiu atingir, nos níveis de cognoscibilidade do cotidiano e de projeções sobre o tempo da expectativa futura, o estatuto particular de pertencer à vários campos. Em 27, já cabia às ordens de tratamento psíquico a libertação dos efeitos nocivos da vida de choques mal elaborados; cabia ao governo de infraestruturas os meios e possibilidades de ascensão social e econômica, e, portanto, os meios de garantia de trabalho (algo, sabemos, atado ao quesito do tempo); e cabia ao próprio povo a investigação e correção de tais ou quais valores cuja sedimentação e vigia ainda supõe outras camadas de re-aplicabilidade dos interesses.

Ora, é nesse nó de complexidades inevitavelmente físicas que a redenção daquele marido, ainda que impulsionada por uma época em que a moral deveria incrustar cada segmento, interior, exterior, prévio ou corrente, do monumento denominado ‘filme’, passará, também ela, por uma torção das principais experiências que o citadino almeja modelar. Empreitada subversiva e que, sem dúvidas, só poderia advir da interpretação de Gaynor de uma esposa incapaz de aceitar que interpretem, em nome dela, qualquer signo da felicidade, ou da felicidade marital. Muito do que surte efeito nele nos é repassado, uma vez que aquilo que é imutável, ordinário e até mesmo “pouco refinado” sobre aquela mulher passa a integrar todo tipo de florescimento cuja potência dramática jaz em neutralizar a moralidade até o ponto em que o mais geral é o mais fortuitamente indivisível, singular, no meio do caminho entre apenas um e todos os ninguéns.

A emoção batida, ao que parece, “anonimiza”. O que todos, repetidamente, sentem, convencionamos não ter o rosto de ninguém em particular; e o destacamento da unicidade isola esse esvaziamento de localização precisa, só parecendo elevá-lo a um Único, quando em verdade mais acaba por fazer do “apenas um” um “só mais um”, munindo essa canção de dois humanos de um anonimato como que inédito. “Um” sozinho para sentir se torna esse “qualquer” capacitado de sentir por todos. Mas o que assim o capacita?, só uma pergunta mais longínqua poderia perguntar de novo: estaríamos, afinal, longe da semelhança com a qual aquele sinal recebido por Moisés o obriga a sacrificar seu próprio fruto na terra – em nome Dele? Afinal de contas, a recusa desse dado do anonimato que se contenta com o esquecimento é uma das tópicas do fervor da lógica cristã: uma vez dado o sinal da Significação, a vida devém o cumprimento irrestrito das Leis que agora lhe guiam. Se, como o intertítulo coloca, aquela é uma historieta de lugar nenhum (não precisa ter acontecido, já tendo acontecido milhares de vezes) e de todo lugar (a vida implica repetir), somos reinstalados naquela máxima de Tolstói que inicia Anna Karenina: “Todas as famílias felizes se parecem; cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. É a qualidade, portanto, da sua miséria, que colocará sua vida ao ponto supremo de distinção – aquele mais terrível, da ordem da distância até meu limite, e pelo qual venho a desconhecer que me desconhecia –, o que é seria o mesmo que dizer: é o reconhecimento do quão longe pôde ir, ainda que sob o custo da miséria, que o coloca aos pés da redenção.

Quando está prestes a enforcar a esposa num passeio de barco dissimulado (a cena foi replicada dezenas de vezes, mas talvez nunca tão assustadoramente como quando atuada por uma diabólica Gene Tierney em Amar Foi Minha Ruína (Leave Her to Heaven, 1945), Murnau parece assumir essa inteligência que consiste em estar corrente à sua época, e que geralmente atribuiríamos aos maiores e menores graus de consciência e coincidência, como se o cinema fosse arte das intenções. Ele esconde “o motivo” da impossibilidade do crime (notemo-lo bem: a psicologia, o traço, aquilo que grafa de alhures), e faz do “retorno” à uma “supraconsciência” culpada, reparadora e autoreparadora, na verdade, um exercício da contra-profundidade novamente marcado pela metáfora de uma música – a dos sinos, neste caso – potente o suficiente para que o ouvido seja o canal de um redespertar, de uma redescoberta a algo a que já se estava entregue. Anjos, afinal, e seus instrumentos de sopro das boas-vindas à Redenção.

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Ele redescobre, “sendo infeliz à sua maneira”, uma teia de aproveitamentos, truques, trapalhadas e gozos ao atravessar a cidade com a esposa, e fá-lo ao, através dela, “ouvir de novo” todos os sons e signos de uma fruição infiltrada. Num parque de atrações em que o salvamento de um porquinho fugitivo e embriagado rende silvos, operetas e números de festejo, a banda lhes ofertará, por indicação do maestro, uma “canção de verão camponesa” – mas não subsiste, ali, qualquer espetacularização que os rebaixe; eles são, ao contrário, aqueles a quem é repassada a regência da felicidade. Num outro momento, sabendo que seu exagero o levaria a pedir uma garrafa de espumante mais cara que as economias em seu bolso reidimido, ela o permite se extasiar com a liberdade imaginária do pedido, para, como uma assistente de palco após sucessões de baquetas, revelar as moedas “perdidas” que pagariam a conta.

Para aquele casal como que recém-casado, esse tempo de exposição de uns pelos outros, como forma de captar um instante de surpresa, articula também a repetição de números, esquetes, verdadeiras tramas circundando um objetivo ainda mais superficial do que a manutenção sincopada da felicidade regrada, moralizada. Trata-se de desejar ver o tipo de amor que brota quando o rosto é levado a um exagero, à produção de excedentes, à surpresa contaminada de uma originalidade repentinamente vidente – como só a criança exposta ao tempo da repetição de sua exaltação pode sentir. O fator de guia da legislação

cristã é seguramente óbvio, mas que o marido tenha uma segunda e ainda mais incorporada onda de arrependimento ao visualizar, com a esposa, outra performance de casamento, agora testemunhada de fora, significa, para aquele momento que é pura reverberação adiante, que só a reiteração da Palavra do contrato simbólico poderia o arrancar da percepção cristã em direção à ação cristã. O momento, a unidade de tempo compartilhada, vem a ser a força superior à qual ambos estão endividados, felizmente endividados. Também Deus trama pactos em vida.

Mas o esforço sobre-humano da esposa em elevar as confirmações de seu amor à uma exterioridade semi-anímica, isto não deve ser esquecido, atinge as proporções simbólicas e sobrenaturais que invariavelmente melhor encontramos nos gregos. Não deve nos espantar, ainda mais uma vez, que somente cinco anos antes de Aurora, em 1922, com Nosferatu (Nosferatu – Eine Symphonie des Grauens), Murnau tenha não só se abstido de esconder, como realçado, na forma de dispositivo de edição (de cesura), aquela falha hologramática de imagem cujo efeito é “perfurar” a reprodução de um outro rolo de imagens.

Em cena antológica, veremos Janet Gaynor e George O’Brien atravessar uma avenida sobrelotada como se pisassem em direção à uma cena de ação magicamente sonhada na câmara de um estúdio fotográfico, tão inquestionavelmente “real” que a pose diante do mundo será esquecida em favor da paixão da qual resulta o melhor instante. Metafórica, técnica e fisicamente, eles são embalados pelo próprio jardim de visões autogestadas. Uma licença do acontecimento mais-que-comum para ser duvidoso, mas impresso de forma que uma realidade física se insira numa realidade materialmente “pelicular”.  Com um truque semelhante ao das fotografias chamadas “espíritas”, que jogavam com o tempo de exposição para simular amalgamações desmaterializadas à superfície química, maquina-se a suposição de um tempo suspenso em que estaríamos aptos a atender, isoladamente, a uma chamada de semi-presença, sem que os choques do real nos atinjam. É a título de fantasmas crentes, então, que flutuam temporariamente por uma minhoca inacreditável de trânsito-jardim.

O efeito de Eros é o dessa “febre de imagem” que distorce o cônjuge e coloca-o sob um denominador particular: sendo também alguém, ele não pode ser, com efeito, meu ideal; mas posso com ele, pelo menos, viver algo como um espaço ideal. Só com ele posso viver essa sublevação do mundano ao simbólico e, quase literalmente, recortar a cidade, obliterá-la, viver dentro dela sem que me ultrapasse(m) ou que minha imagem me seja desapropriada. Feito dos deuses, decerto. E, portanto, uma redenção especular. Mas também por isso passível da ira divina a que apelidamos tragédia. O atiçar desses literais protagonistas em direção a um tempo dedicado a essa forma crescente e “cega” de júbilo, cujo envolvimento com a naturalização do aspecto artificioso da mecânica moral citadina entende o circundante como um estímulo ao acúmulo de forças também “cegas”, parece fazer com que eles paguem o preço pela travessia, como nos episódios de tragédia mitológicos, ali quando mais esse jardim lhes parecer tranquilo e perene.

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Podemos louvar Hitchcock pela estilização mais inimitável, “psicológica”, “dramática” – o superlativo pouco interessa – das relações da trama com a antecipação das chaves de suspense partilhadas com o espectador, que sempre toma conhecimento perverso dos detalhes antes que seus protagonistas e é duplamente solicitado ao pavor, mas é também ardilosa nas mãos de Murnau a apropriação desses signos dúplices, marcadores, como no caso do cãozinho que tenta impedir a esposa de compactuar com aquele passeio de parco, de um perigo que é grafado também com maiúsculas. Pois assim que aquele cachorro começar a se esgoelar em latidos obviamente abafados, a extração do audível daquele acontecimento que não deixa de ser sonoro faz dos pequenos gestos a transfiguração de algo mais ou menos legível em uma confirmação premonitória insólita – ainda que somente o espectador possa ver o trágico se inscrever ali. Quanto menos ela ouvir, CONOSCO, o verdadeiro improvável sentido do cão, mais continuará sendo traída pelos olhos. Mas como este espectador o vê, o signo da tragédia, então? El o vê mudo. Os sentidos divergem quatro vezes – estamos no domínio das paixões.

Na réplica de sua lua-de-mel, replicando também o passeio de barco de horas atrás, e quem sabe até mesmo o lago das promessas e futuros uma vez mais límpido (em outras palavras: em plena ingenuidade sobre o flerte com o perigo das probabilidades), eles são tentados pelo destino pelo que certamente não será a última vez, ainda que isto não deixe de marcá-los, como será testemunhado, com a circunvolução de ondas cuja efetivação os tolheria “para sempre” de um investimento amoroso e moral sentido como o Último; aquele, enfim, do qual eles não se recuperariam. E é também com um golpe sonoro, uma chamada mais entranhada e inédita do que aquela da morte, a de um nome tão anônimo quanto inexistente e vivo, que o rosto de um anjo retorna para, “muito além da moral”, nos justificar, fora de nossos poderes senão aquele de amar, e a partir de seus próprios meios de duração, por que as paixões e o cinema precisam, de fato, de rosto: em nenhum outro lugar a natureza fugidia do mistério se recolhe e se exibe tanto.

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O SER COMO PAIXÃO

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EDITORIAL: O SER COMO PAIXÃO
Diogo Serafim

ATLANTIQUE (MATI DIOP, 2019): PAIXÕES (DES)POSSUÍDAS
Kênia Freitas

CONSTELAÇÕES O CINEMA DE HELGA FANDERL
Por Gabriel Linhares Falcão

NO CAMPO DAS PAIXÕES
Pedro Tavares

ENCLAUSURAMENTOS SENTIMENTAIS, FÍSICOS E FÍLMICOS E A PAIXÃO FANTASMA EM “MANJI” (1964)
Anita Gonçalves
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A PAIXÃO PELO PODER DE ALGUNS ENCONTROS RESPLANDECEREM FRENTE AO CAOS
Lucas Saturnino
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A DOUTRINA DOS AFETOS
Chico Torres
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DOIS FILMES NECRÓFILOS
João Pedro Faro
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“A ATRIZ FOI CRIADA ENFIM”: ESTHER KAHN (2000) DE ARNAUD DESPLECHIN
Natália Reis
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NAS ANTÍPODAS DA PAIXÃO: O SER COMO INSTÂNCIA DE MODULAÇÃO
Luís Flores
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KARIOKA – TAKUMÃ KUIKURO (2014)
Geo Abreu
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A PAIXÃO SEGUNDO A MORTE
João Lucas Pedrosa
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NOMAD À DERIVA E O CORPO COMO UTOPIA
Beatriz Pôssa

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DE ONDE VEM ESTA MÚSICA?
Felipe Leal

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Editorial: O ser como paixão

Por Diogo Serafim

a mesma parte de um homem

Onde nasce o impulso de filmar? Por que se dedicar ao registro de tempos já mortos? Da onde vem o gosto pela cristalização do passado?

Se o ato de filmar é, acima de tudo, modelar a matéria do mundo de acordo com um estado de espírito específico, o cinema é, por sua vez, a articulação do invisível através desse artesanato. A arte pressupõe um padecer do espírito por uma condição ontológica superior, isto é, um ímpeto vital que exige a entrega total de um sujeito frente uma representação das suas obsessões, memórias e paixões.

De qual forma esse circuito de afetos, interesses, sentimentos – esse circuito de paixões – afeta o indivíduo, seu entorno e, principalmente, como o ato de filmar esses desdobramentos eleva e intensifica ou empobrece e manipula uma realidade na qual o amor e o desejo para além da razão guiam e regem a existência humana?

Cézanne certa vez disse que gostaria de morrer enquanto pintava. Uma paixão que, no seu paroxismo, aproxima o indivíduo da morte. O próprio Bazin definiu a arte da imagem como a arte do embalsamento: se a morte é a vitória do tempo sobre a vida, por sua vez congelar a vida em uma película – isto é, na matéria do mundo – é uma maneira de resistir a morte.

Embalsamar o passado para embalsamar uma paixão, para que nesse exercício de conservar a estética do instante, seja como registro ou como representação, o sentimento possa ser eternizado de maneira adjacente. Para que um dia outras pessoas possam amar o que você já amou. Nós somos a história dos desejos desejados.

Mas um instante não é a descrição do mesmo. Confrontar uma imagem é confrontar a existência dela na sua memória, no seu espírito. Aí é que está o truque: essa abertura para o imaginário só pode existir enquanto abstração. O instante já ficou pra trás.

Existe algum estado de espírito que permita a vivência de algo para além da memória? Seria possível, com a força da representação, encontrar em um fluxo de imagens um resquício das coisas que você amou? Vivê-las para além da sua descrição. O problema da representação é esse: é difícil imaginar as coisas que não estão mais lá, mesmo quando elas se apresentam na sua frente. O cinema é uma busca, tentar encontrar alguma singularidade na qual o tempo e o espaço possam colapsar, mesmo que por um instante, onde a subordinação do espírito para a memória possa dar lugar a um absoluto fora de si mesmo.

Feche os olhos e veja. Boa leitura.

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Nas antípodas da paixão: o ser como instância de modulação

Por Luís Flores

Um plano em close-up nos mostra a tela de um jogo pornô, com escala de cores simplificada, na qual um homem penetra uma mulher por trás. Para simular o ato sexual, o jogo se vale de uma pequena fração da ação replicada infinitamente, em loop digital. Corte para um braço mecânico, na forma de rolo gigante, que testa a qualidade de um colchão recém-fabricado. Corte para o garoto que controla, no primeiro-plano, um joystick em formato fálico, enquanto no fundo do quadro vemos o mesmo computador com o jogo pornô. Os movimentos repetitivos e velozes do jogador adquirem uma gestualidade masturbatória, embora a relação corporal e intersubjetiva do sexo tenha sido abstraída pela mediação da máquina. O que essa combinação de imagens nos diz?

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   A sequência descrita corresponde à abertura de Como viver na RFA (Leben — BRD, 1990), gravado em 1989 pelo cineasta Harun Farocki, logo às vésperas do processo de reunificação da Alemanha. No restante da narrativa, vemos a malha fina de instituições que governam, por meio de fluxos ininterruptos de modulação, cada esfera da vida cotidiana no país. Ao reunir cenas pedagógicas distintas, de cursos instrucionais, treinamentos, sessões de terapia e testes de produtos, o filme expressa a tendência à vida simulada e continuamente doutrinada que rege as relações sociais de um mundo tomado pelo neoliberalismo. A cena do colchão, que remete a outros testes industriais mostrados (a poltrona e a máquina de lavar), ecoa também nas pessoas que são submetidas a contínuos treinamentos e procedimentos de padronização. Não seria essa, afinal, uma das dimensões mais totalizantes da vida, sob o domínio do capitalismo tardio, esse que atravessou, desde a queda do Muro de Berlim, mutações mercantis e tecnológicas ainda mais complexas? Como se o mundo fosse, em sua configuração midiática abrangente, uma instância de preenchimento, com estímulos infinitos, para cada necessidade básica de um indivíduo?

    Farocki, que fez parte da militância estudantil da década de 1960, em Berlim Ocidental, estabeleceu ao longo dos anos um projeto sistemático de mapeamento cognitivo das ordenações tecnológicas do mundo, especialmente aquelas que atravessam o campo do olhar. Sua filmografia pode ser entendida como o esforço de compreender criticamente os dispositivos e processos que condicionam a própria possibilidade de ser e agir no mundo. Para isso, ele organiza, a partir da década de 1980, duas frentes principais de trabalho: a observação incansável da realidade, no intuito de apreender alguns aspectos imperceptíveis da sociedade pós-moderna; e a remontagem crítica das imagens do mundo (poderíamos dizer, ensaística).

    Como viver na RFA, embora guarde algo da forma do ensaio (por expor as imagens em encadeamentos argumentativos), pode ser situado entre os chamados filmes de observação. Trata-se de um conjunto significativo de obras, produzidas entre 1982 e 2013, que se debruçam sobre situações sem interesse cinematográfico explícito, seja pela escassez de oportunidades de drama, pela dificuldade de condensação do tempo ou pelo elevado grau de padronização. São filmes como Uma imagem (Ein bild, 1983) e Natureza morta (Stilleben, 1987), que observam processos de fabricação de fotografias publicitárias (da Playboy alemã, no primeiro caso, e de estúdios de propaganda, no segundo); O treinamento (Die Schulung, 1987), O que há? (Was ist los?, 1991), O re-treinamento (Die Umschulung, 1994) e A entrevista (Die Bewerbung, 1997), que mostram, assim como Como viver na RFA, dinâmicas de adestramento dos sujeitos no universo corporativo; A aparência (Der Auftritt, 1996), Os construtores dos mundos das compras (Die Schöpfer der Einkaufswelten, 2001),  Não sem risco (Nicht ohne Risiko, 2004), Um novo produto (Ein neues Produkt, 2012) e Arquitetos Sauerbruch Hutton (Sauerbruch Hutton Architekten, 2013), filmes que mostram, de maneira geral, reuniões de negociação e de tomada de decisão, no circuito econômico da produção global.

    O que fica explícito, no conjunto, é o desejo do diretor de investigar a existência, nos dispositivos contemporâneos, de novas modalidades de controle dos sujeitos e de padronização do mundo, que se pautam principalmente pela antecipação dos gestos e desejos (algo que ocorre, é claro, em múltiplas e intrincadas camadas). Tal dimensão operativa ou performativa — no sentido basilar do termo, a maneira como a linguagem é manuseada para padronizar determinados efeitos — corresponde a uma quebra dos modelos concentracionários filmadas por um documentarista como Wiseman (e estudadas por Farocki na fábrica e na prisão). Em Como viver na RFA, assim como nos filmes de treinamento corporativo, há uma primeira operação de suspensão tácita da negatividade por parte do cineasta, a fim de que ele possa assumir como válido o sistema observado e enfrentá-lo em uma relação imanente. Num segundo momento, contudo, que envolve a emulação formal desse mesmo sistema, as contradições do objeto começam a aparecer. A observação prolongada, associada às ilações sutis da montagem, mostram como a pedagogia corporativa, que pretende ensinar as pessoas a agirem da maneira desejada em cada situação, acaba por se tornar um trabalho de assimilação que violenta o próprio eu do sujeito.

    O sujeito é atacado, justamente, nas suas posições de singularidade, pois é toda a sua subjetividade que deve ser adestrada para melhor se adequar a um sistema de produção global. Nada mostra melhor isso do que a própria sequência de créditos de O treinamento: junto à trilha musical estranha, vemos uma imagem computacional de formas humanóides alaranjadas, sem diferenciações entre si, que caminham em meio à paisagem desertificada. É uma metáfora perfeita para a dinâmica de padronização do universo corporativo agenciada pelo instrutor — mas não uma metáfora qualquer, pois ela mobiliza justamente uma imagem sintética, pautada pela lógica da simulação realista. O que vemos surgir em filmes como esse, incluindo Como viver na RFA, é um cerceamento constante das manifestações de vida do sujeito, sobretudo ali onde elas escapam aos diagramas instituídos pela razão instrumental. A ordenação totalizante do mundo, em suas redes de processos e circuitos técnicos (que não deixam de ser os da arte), encarrega-se de podar cada indivíduo daquilo que, nele, constitui um transbordamento — podar, ou, então, capturar e canalizar para outro lugar.

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    Esse outro lugar, cabe dizer brevemente, é a esfera do consumo. Não basta ao capitalismo avançado se apossar até mesmo das horas de sono dos sujeitos contemporâneos: para o sistema dominante, essa posse precisa ser rentável. Em dois dos filmes que citei antes, vemos maneiras usadas pelas corporações atuais, apoiadas por agências de propaganda e por pesquisas científicas de ponta, para medir e prever cada mínimo movimento dos circuitos de desejo. Em determinado momento de O que há?, por exemplo, um espectador (que parece ser o próprio Farocki), com a mão estendida ironicamente para a tela, tem seus níveis de estímulo medidos por meio de eletrodos, ao assistir trechos de comerciais televisivos. A voz do diretor oferece uma interpretação aberta para o gráfico das medições, que vai surgindo por cima das imagens mostradas na tela. As imagens, destinadas a exibir e vender produtos, delineiam as representações desses produtos com base em instrumentos sofisticados de exame neurológico, a fim de canalizar, no nível mais imediato, os desejos e as emoções dos consumidores em potencial.

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    Em Os criadores dos mundos das compras, por sua vez, vemos como os shoppings são arquitetados com base em aparelhos exaustivos de medição e controle: um deles rastreia os impulsos do olhar dos sujeitos; outro contabiliza o tráfego de pessoas por cada região do território; um terceiro, ainda, analisa automaticamente perfis de consumo, a fim de otimizar a distribuição dos produtos no supermercado. Para aumentar a compreensão crítica do sistema, Farocki chega até mesmo a entrevistar o analista de sistemas responsável pelo software que examina os perfis de consumo do supermercado. Todo o resto, desde os pacotes temáticos da praça de alimentação até a concepção estética do edifício, torna-se secundário diante dessa codificação incessante do mundo, sob a forma de dados programáveis. Por meio das articulações da montagem, que ligam, dentre outras coisas, os registros das conversas dos arquitetos e executivos, aos softwares de medição, Farocki introduz fissuras de reflexão crítica ao planejamento do mundo para fins de consumo. Vai sem dizer, todavia, que esses problemas basilares da arquitetura e da esfera de produção global são indissociáveis, na atualidade, dos próprios circuitos e espaços de circulação da arte. (A arte que é, sem dúvida, um dos poucos campos que ainda pode restituir ao ser no mundo alguma dose de intensidade passional).
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Se nos deslocarmos novamente ao universo do trabalho, cabe apontar que Farocki se preocupou frequentemente, em especial até o final dos anos 1970, em filmar o gesto do trabalhador na fábrica e em representar os espaços da produção industrial. Nas décadas de 1980 e 1990, ele ainda aborda essa temática, mostrando o processo de ocultamento do trabalho e de expurgação da figura do operário, decorrente grosso modo dos avanços tecnológicos das máquinas. A partir desse ponto, também, os problemas marxistas de alienação e exploração, bem como o modelo disciplinar da fábrica e da prisão, são recobertos labirinticamente pelos princípios da “economia criativa” que diluem, com suas novas práticas de modulação subjetiva e ordenação do tempo, as fronteiras entre a vida e o trabalho. (Onde foi parar, afinal, o louvável direito à preguiça que era defendido com tanto brilho por Lafargue, cem anos antes?).

    Ao mesmo tempo, Farocki explicita em seus filmes o modo como a própria subjetividade é capturada sistematicamente, por meio de estratégias de controle e medição, no circuito totalizante da produção e do consumo global. Nesse contexto, o campo de manifestações passionais do sujeito se torna cada vez mais limitado; a paixão resta empobrecida, enfraquecida, adestrada, perde justamente o caráter de excesso que a caracterizaria. Resta, é claro, o desassujeitamento do sujeito, conclamado por Foucault, a inservidão voluntária, ou então o retorno ao singular da experiência e ao cosmológico, ao mundo propriamente dito. Mas e a paixão? Terá ela forças de interromper o movimento de uma racionalização que deseja, sob as diversas modalidades da técnica, tomar posse do mundo, em sua totalidade? Guardando, sobre isso, mais dúvidas do que respostas (e tentando fazer rima com os escritórios filmados por Farocki, espaços sufocados, pouco propícios à paixão), opto por terminar este ensaio com uma coleção de imagens incontidas, com gestos de revolta, desobediência e insatisfação: https://www.youtube.com/watch?v=aD4thXRn80M

 

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Nomad à deriva e o corpo como utopia

Por Beatriz Pôssa

The secret life of Arabia
Never here, never seen
Secret life, evergreen
(The secret life of Arabia, 1977; David Bowie)

Nomad (1982, Patrick Tam) se inicia quase como um pastelão, nos apresentando os irmãos Louis e Kathy e seus respectivos interesses amorosos, Tomato, Pong e Shinsuke, através de situações cômicas, como uma confusão numa piscina pública e num restaurante. Todos os personagens são levados um ao outro por jogos do acaso, uma faceta de leveza que perdura por quase todo o filme até que há um corte brutal em seus últimos minutos. Se podemos classificar um filme como adolescente, sua primeira hora me parece um bom exemplo devido à atmosfera de imediatismo e desejo por liberdade, em que suas paixões são o ponto central de suas vidas. Há uma pulsão muito juvenil que rege os quatro personagens em suas escolhas afetivas, pulsão esta que combina suas aspirações burguesas de amplas mansões a um senso compartilhado de entitlement, como se o mundo estivesse ao dispor de suas vontades. Esse sentimento se estende até no ato de inventar um novo país, essa criação de uma utopia insular na segunda parte do filme, quando os personagens finalmente são confrontados pelo peso das tradições e a herança de conflitos milenares; tornando-se na meia hora final um derradeiro filme de samurai.

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O filme abre com Louis, personagem de Leslie Cheung, aqui com um dos seus papéis mais ingênuos, e seu olhar distraído se derrama sobre as paredes do quarto enquanto ouve a voz da mãe falecida em fitas velhas. Sobre o televisor de Louis, no qual está passando o que parece ser uma reportagem sobre uma festividade nas ruas de uma cidade anônima, reside uma miniatura de Nomad, o navio que protagoniza seus sonhos febris de partir para Arábia, a promessa de paraíso sussurrada pelos cômodos da grandiosa casa com vista para o oceano que divide com sua irmã Kathy e a madrasta, por quem nutre um desejo secreto e a observa enquanto toma sol na varanda.

Kathy invade seu quarto praticando o kabuki, uma modalidade de teatro japonês que demonstra ter aprendido com o namorado, e lembranças de momentos íntimos com o amante atravessam rapidamente a tela, seus gestos ritualísticos ricos de uma dramaticidade única. Louis assiste a irmã recostado na parede e dois dos mais importantes álbuns de David Bowie emanam de sua cabeça como um halo: Low (1977) e “Heroes” (1977), os dois primeiros discos da trilogia de Berlim, conhecida como a fase mais experimental de Bowie – em um só plano as influências culturais são postas em confronto. A relação de Bowie com a Berlim Ocidental foi intensa para dizer o mínimo, e os álbuns produzidos durante esse período dialogavam com o complicado momento político na Alemanha durante a Guerra Fria. Consequentemente, sua trilogia, que finaliza com Lodger (1979), conversa com a juventude alemã que efervescia com uma arte absolutamente disruptiva de meados dos anos 70 ao mesmo tempo que estava fisicamente dividida, uma oposição ao desejo simbólico e simplesmente físico de constituir um só grande ser, um anseio sessentista sob os ares da Era de Aquário.

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Bowie talvez seja o maior exemplo de uma geração resultante da revolução sexual, sua obra e sua pessoa agindo como um catalisador das mudanças que ainda seriam experienciadas pelo mundo, concebendo uma música embebida em experimentações andróginas com um grande apetite pela liberdade. Os álbuns produzidos no período em que residiu em Berlim evocam muito desse sentimento compartilhado: era uma tentativa de encontrar na música alguma resposta, ou no mínimo um refúgio, para os conflitos políticos e sociais vividos naquelas décadas. Aliado a isso, havia por trás da criação de diferentes personagens que caracterizariam sua carreira um desejo de se modular multiplicidades, buscando a transfiguração do corpo em uma experiência artística e utópica. Sua obra traz um um reflexo da necessidade dos jovens da época pela formação de um organismo, alguma configuração de agrupamento que oferecesse conforto para que fosse possível explorar a fluidez de suas paixões.

A presença de Bowie na paleta de referências de Louis é interessante porque demonstra o desejo de Tam em retratar uma comunidade que busca o prazer sensorial e espacial, ou seja, dimensões que dizem respeito acima de tudo ao corpo. Uma das sequências mais potentes de Nomad é justamente a que evidencia uma impossibilidade do encontro romântico entre Pong e Kathy, que se inicia com as repetidas interrupções na casa de Pong. O plano de ficar a sós é arquitetado perfeitamente: Pong manda a irmã e a mãe para o cinema, mas não esperava ser atrapalhado pelo irmão mais novo e os idosos de sua família, que invadem a placidez da sala compartilhada. O casal trava daí uma coreografia extensa de troca de lugares, explorando o espaço da casa até esta se tornar pequena demais para seus desejos, o querer de ficarem juntos visível em seus gestos imprevisíveis e quase virginais no dividir da cama de solteiro. Quando mesmo na privacidade do quarto são incomodados, reiniciam o movimento e o jogo ao saírem de casa e entrarem no ônibus, a troca de olhares e beijos deliberada, levando ao momento do êxtase em que parecem não controlar mais os próprios corpos e se agarram até parecerem se fundir, e Tam dá ênfase a um plano da mão de Pong escorregando pelo corrimão enquanto carrega Kathy no colo.

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Essa coreografia apaixonada é cortada por Kathy recebendo a notícia de que Shinsuke, seu namorado, está de volta da guerra, retirando a mulher da bolha idílica em que parece viver durante a primeira parte do filme. Tam constrói a sequência como um momento final de filme de terror, os olhos de Kathy aterrorizados pela realidade que agora teria que enfrentar, tendo o homem que ama se tornado um desertor do exército japonês. Até aquele momento nenhum conflito real havia invadido o universo daqueles personagens, todos os desentendimentos resolvidos de maneira rápida e com graciosidade; e mesmo que nada de imediato aconteça com o grupo, nós como espectadores já reconhecemos os maus agouros e o filme assume ares premonitórios. Cada cena de beleza é permeada pela certeza de um acerto de contas, principalmente quando acessamos a verdade de Chiyoko, secretária de um designer de quem Louis é fã e amante da tia de Kathy; que tem a missão de certificar que Shinsuke irá cometer o seppuku.

Logo no título do filme e do navio-personagem, existe a evocação a povos andarilhos, sem residência fixa, que ultrapassam as fronteiras nacionais sempre em busca de horizontes mais promissores. É um desejo de se jogar ao desconhecido no reconhecimento de que fronteiras não passam de meros acordos tácitos entre as nações, linhas imaginárias responsáveis por acolher uns e expulsar outros. Há em Nomad um comentário categórico tanto sobre a influência ocidental quanto a japonesa que pareciam contaminar a vida da juventude honkongiana do início da década de 80 – como o que hoje analisamos como uma faceta do processo assimilatório da globalização – evidenciando até mesmo o olhar muito mais crítico sobre a “invasão cultural” japonesa do que à presença ocidental, principalmente na relação travada entre Pong e Shinsuke. A herança do conflito sino-japonês é articulada no filme como uma disputa de língua e masculinidade, e as influências japonesas no geral são vistas com maus olhos devido ao passado colonialista do arquipélago.

A partir do retorno de Shinsuke, os personagens decidem recomeçar e inventar um espaço em que seria possível viverem suas paixões e dedicarem suas vidas aos interesses do corpo apenas, o anseio de partirem para Arábia como uma meta mais próxima do que antes, pois agora existe algo material, um inimigo claro, que os empurra para fora do berço. O refúgio em um casebre litorâneo se torna uma utopia multicultural, e com ingenuidade acreditam realmente que assim vão escapar do destino que bate à porta. O navio, Nomad, corta o horizonte, um ponto fixo na paisagem, e Kathy vive uma vida dupla ao se encontrar com os amigos na ilha e o taciturno Shinsuke no navio. É lá que confessa a Shinsuke que gosta de Pong porque com ele não precisa pensar, “é físico, só físico”.

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Uma sessão dupla interessante seria assistir Nomad ao lado de O Império do Desejo (1981, Carlos Reichenbach). Ambos os filmes possuem o movimento de explorar as paixões e a sexualidade em uma realidade ilusória na praia, apenas para serem atravessados pela violência e uma brutalidade que não abre brechas para fuga pois encontra os personagens completamente desprevenidos e entregues ao prazer momentâneo. Em um interlúdio dos jovens na praia, vivendo das “coisas simples” como o imaginário burguês idealiza ao compartilharem almoços e camas naquela comunidade recém-criada, aprendemos que Tomato e Louis estão esperando um filho, um gosto do amadurecimento porvir. Shinsuke está entocado no navio distante da areia, excluído e deprimido, seu destino torpe amaldiçoando a alegria daquela nova experiência, mas os sonhos com sua execução contaminam apenas seus próprios pensamentos – os casais na praia não interrompem a oportunidade de viverem uma felicidade efêmera pela certeza da fatalidade iminente. Enquanto descansam sob o sol e compartilham uma garrafa d’água, Tomato reclama do tédio e diz “não fazemos nada para a sociedade”, ao que Louis responde “que sociedade? Nós somos a sociedade.

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Em poucos minutos, Chiyoko, que até então havia se revelado de maneira apenas submissa e dedicada para o grupo, reaparece para terminar seu trabalho. O banho de sangue que se dá em diante só salva o casal que está à espera de uma criança, a fertilidade como uma chance de redenção diante do indizível. Tam interpreta a paixão como um meio e um fim: não existe outra via de acesso ao paraíso além da entrega, a via crucis do corpo. Nomad abraça a potencialidade enganosa da utopia como artifício de uma juventude burguesa, explorando através dos seus corpos um atravessamento cultural que na mesma medida é veneno e cura. A realidade impetuosa que encerra a utopia também abandona os cadáveres na areia, e as águas manchadas de trauma lavam os corpos que ainda permanecem em pé. Nessa articulação complexa, o casal abraçado na praia está de encontro com a vida adulta, esse abismo; e Nomad, o navio à deriva, parte em direção à terra prometida.

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A paixão pelo poder de alguns encontros resplandecerem frente ao caos: Something Useful (Pelin Esmer, 2017)

Por Lucas Saturnino

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e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão
e eu me perdesse nela

(Herberto Hélder)

O poeta Herberto Hélder leu algures que os gregos antigos não escreviam necrológios, quando alguém morria perguntavam apenas: tinha paixão? O dom da consciência nos sujeita a tentar encontrar algum sentido para a vida e o fato da morte instiga balanços. Quem foi? O que fez? O que deixa ou leva? A sua iminência incontornável suscita medo, reflexão ou mesmo fascínio. Se o que a sucede é o maior dos mistérios, talvez só haja uma certeza quanto ao prolongamento da vida após a morte: além do tácito testemunho do mundo, a permanência dos que partem na memória dos que ficam.

O encontro de três pessoas que porventura jamais se encontrariam é o mote de Something Useful (İşe Yarar Bir Şey, 2017), da cineasta turca Pelin Esmer. Na estação de trem, duas mulheres cruzam-se por acaso, intromissão, simpatia, curiosidade genuína pelo outro e receptividade ao amparo oferecido. Com cerca de 40 anos, a advogada e poeta Leyla é duas décadas mais velha do que a enfermeira Canan. Elas se conhecem em diferentes estágios da vida, conquanto igualmente suspensas entre o dia em que nasceram e aquele em que irão morrer. Something Useful registra estados pendulares, acompanha almas em movimento, jornadas introspectivas que se entrelaçarão. O destino de uma é o presente do passado (a reunião comemorativa dos 25 anos de formatura da turma do secundário de Leyla), enquanto a outra tem um encontro marcado com a morte (a pedido de um médico que trabalha consigo, Canan se comprometeu a ajudar um homem que deseja morrer).

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O homem é Yavuz, que 6 anos antes sofreu um acidente e ficou paralisado, sem os movimentos do pescoço para baixo. Ele havia pedido a um amigo íntimo, o médico com quem trabalha Canan, que o deixasse morrer, mas seu amigo, por amá-lo tanto, foi incapaz de realizar a eutanásia com as próprias mãos. Após muita insistência, e sentindo a firmeza da resolução de Yavuz, ele consentiu em arrumar outra pessoa que pudesse consumar o pedido fúnebre — uma jovem enfermeira precisando de dinheiro. No trem que atravessa o país e a noite, Canan conta a história a Leyla, que se propõe a acompanhá-la.

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A narrativa é sucinta e precisa — e as encruzilhadas existenciais se colocam sem alarde. São três personagens cujo encontro os deixa profundamente afetados uns pelos outros e Esmer estrutura a obra em torno das reações dos atores principais (Basak Köklükaya, Öykü Karayel e Yigit Özsener, magistrais). A câmera muito próxima e atenta às suas expressões faciais, sensíveis e eloquentes. Aos sorrisos gentis de Köklükaya, à perceptível aflição de Karayel e aos olhos penetrantes de Özsener. Um filme fora de moda? Talvez, o que pode explicar o pouco espaço que lhe foi concedido no circuito de festivais.

A câmera procura gestos mundanos. Como Leyla esperando na fila do banheiro ou pedindo passagem para sair do seu lugar no trem e a senhora ao lado se espremendo no assento sem se levantar. Ou a dificuldade das personagens em chamar um táxi. Quando as duas chegam na porta do prédio de Yavuz, são necessários 4 minutos de filme (entre hesitações e campainhas) até que a primeira suba e entre no apartamento. O trabalho do diretor de fotografia Gökhan Tiryaki (conhecido por sua colaboração com Nuri Bilge Ceylan) é digno de destaque, em especial no tocante à viagem de trem, à captura dos humores refletidos gestualmente e ao jogo visual e simbólico com espelhos e reflexos.

É belo o momento em que Yavuz vê Leyla pela primeira vez: “Eu me irei com a benção de uma poeta!”. Leyla, sentindo-se subitamente insegura ao encontrar-se diante do objeto de sua irrefreável curiosidade, observando do alto da janela a indeterminação de Canan em subir, torcendo para não ser abandonada. E, logo em seguida, sendo acalmada pela encantadora música da vizinha, professora de violoncelo — a arte que, ao menos aqui, alivia as agonias e põe as angústias em perspectiva, perpetuando-se no tempo.

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Nesse filme sobre a morte, crenças religiosas não fazem parte da equação. Ninguém se importa com isso. Something Useful nos chega da Turquia secular — a segunda metade se passa em Izmir, uma das mais antigas cidades portuárias do Mediterrâneo. A presença da religião só se manifesta da maneira mais explícita quando o funcionário do trem fecha repentinamente as cortinas da janela de Leyla, interrompendo o fluxo de consciência dela, sob o pretexto de evitar que pedras sejam arremessadas no vidro — “Porque eu sou uma mulher bebendo cerveja?”, confronta-lhe a personagem.

E não é o seu único desgosto em relação ao estado das coisas: Leyla adora contar e ouvir histórias, mas é irredutível quanto a não dar moral para o político que entra no café pedindo votos; ela se levanta e deixa o estabelecimento antes que ele sequer tenha a oportunidade de abordá-la — o que explica a admiração da personagem pelos grafiteiros que, de modo rebelde, inscrevem a sua expressão subjetiva na paisagem do país.

Se há, portanto, uma dimensão, digamos, transcendental em Something Useful, ela está nas conversas que comovem, nos encontros que transformam, na afabilidade com que os personagens se abrem intimamente aos outros. O esquema cinematográfico operado por Esmer consiste em defrontar o registro dos gestos mais cotidianos com a perspectiva extasiante das conversas que trazem a possibilidade do sublime para um dia qualquer.

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Something Useful também é uma inventiva variação de Janela Indiscreta (Rear Window, Alfred Hitchcock, 1954) — à exemplo do grande plano-sequência de 10 minutos do jantar comemorativo. Leyla e Yavuz observam o mundo através das janelas à sua frente, fronteiras mediadoras entre interiores e exteriores. A diferença entre um e outro é uma questão de mobilidade, que literalmente impõe um limite no horizonte de possibilidades de Yavuz, incapaz de ir atrás das histórias como faz Leyla. Ele não é mais capaz de exercitar a própria curiosidade. E ela, numa pequena gafe de sinceridade desmedida, afirma que perder a curiosidade equivaleria a estar morta.

Assim como James Stewart no clássico de Hitchcock, Yavuz se encontra imobilizado, mas pior: em caráter permanente. A sua janela, de frente para a socialmente estimulante movimentação da bela beira de mar de Izmir, foi o que lhe restou para seus olhos verem em primeira mão — “assistindo vidas saudáveis”. Leyla, ao contrário, está em constante deslocamento, observando as pessoas ao redor, divagando, especulando, fascinando-se — desde o início na estação, quando o desenho de som se abre dos pensamentos interiores que permeiam a mente dela para os murmúrios ambientes do mundo.

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A poeta, contudo, não sai por aí pescando histórias sem gerar tensão. Canan questiona as motivações de Leyla: “Uma jovem enfermeira precisando de dinheiro e um homem aleijado querendo morrer devem render um bom poema, não?”. Surge a questão entre eles: o artista instrumentaliza a curiosidade, as experiências, a compaixão? Voltemos ao primeiro plano do filme: no princípio, a encenação é frontal e mistura-se com a matéria bruta, sendo necessário um enquadramento para formalizar o ponto de vista desejado.

Leyla vai procurando as palavras, experimentando-as, podando o poema. “Você se inspira na vida real?”, pergunta Canan, enquanto as duas brincam de decifrar sombras no teto do quarto de hotel. Something Useful fala de morte para tratar da vida e reflete sobre ambas para debater arte. O cinema de Esmer é um cinema de personagens: Leyla, a poeta consagrada; e Yavuz, o leitor que não conseguiu estabelecer-se como autor. Ela trabalha como advogada, para pagar as contas e também porque queria fazer “algo de útil”. “A poesia não é útil o suficiente?”, rebate ele que, contemplando o próprio fim, se encarrega de deixar as contradições do ser com os vivos que continuarão a alimentá-las.

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Já Canan acredita não entender de poesia. Quem lida com a morte todos os dias não precisa ler sobre coisas fúnebres. Ela sonha em ser atriz, o que, nota-se, certamente não é tão útil quanto o trabalho de enfermeira. O filme tem como base a disposição dramática de dilemas acerca da célebre inutilidade da arte (chamemo-la só aparente ou não) e de qual proveito se tira de existir por existir. “O que eu faria no lugar deles?”, sentimos Leyla formular em pensamento, sem exprimir em voz alta, tal qual uma espectadora exemplar.

No belo poema da conclusão, Leyla escreve sobre “uma ansiedade que remonta à infância”, motivada por palavras que lhe tiram o sono desde a mais tenra idade, como que se referindo à dificuldade de se expressar, encontrar os termos adequados. Yavuz julga que Leyla costuma manejar as palavras para se esconder atrás delas. Mas não naquele momento, pois é justamente a franqueza que faz o encontro dos três ser mágico. E então viver se torna uma questão de prolongar as conversas que valem a pena.

“Hoje não bastou e amanhã você quer fazer algo útil de novo?”. Algo útil, afinal, talvez seja a paixão pelas coisas gerais, como escreve Hélder, ou a paixão pelo poder de alguns encontros resplandecerem frente ao caos, como mostra Esmer. Ao fim, antes que o lirismo inútil da música de Bach dê espaço aos sons ambientes da cidade em dia útil e as personagens voltem se mesclar com a multidão, Leyla lança aquele último olhar que se dedica a registrar uma memória derradeira do que virá a fenecer em instantes.

Como não temos acesso ao contracampo, esse olhar também se dirige a nós, incluindo-nos na conversa, confrontando-nos com as mesmas inquietações dos personagens. A morte, conceito tão intangível quanto concreto, é a epítome do que todos sabemos se tratar, sem que ninguém realmente compreenda o que representa. De qualquer forma, na expressão saudosa de Leyla transparece a sua resposta possível para aquela que é a questão decisiva em tributo à memória dos que partiram: sim, tinha paixão.

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Constelações: O cinema de Helga Fanderl

Por Gabriel Linhares Falcão

Pata por pata, um leopardo realiza seu desfile chegando bem perto da objetiva, e a objetiva chegando bem perto dele. Vai da direita para esquerda do quadro e retorna para o ponto de partida, realizando novamente o movimento repetidas vezes. Seu andar é sensual, sereno, quase flutuante, e seu corpo camufla-se no breu do espaço parcialmente iluminado. A luz forte revela também a terra com pedras que ele pisa, as plantas que o cercam, e nas sombras, barras de ferro de uma jaula que nunca entra em quadro. A câmera de Fanderl é segura, firme, também serena e sensual, e não demonstra nenhum sinal de amedrontamento com o predador diante da câmera.

O leopardo se revela cada vez mais concentrado. Anda em círculos e sempre olha para frente, sugerindo uma atormentação, possivelmente pela situação do encarceramento. O animal não mira sequer um instante para Fanderl e sua câmera. Apesar da inquietação, as eventualidades além da jaula parecem não o afetar. Tanto quanto o ambiente extra imagem não desestabiliza Fanderl, nem implica na unidade do filme; não há um mundo para além do pictórico na película, nem se quer a jaula importa. A concentração é total; existe apenas a diretora e o leopardo.

Leopard (Helga Fanderl, 2012)
Leopard (Helga Fanderl, 2012)

As cores escapam. Um amarelado que parece extrapolar a forma do animal, como pintado à mão, e o verde forte das poucas plantas reflete no pelo branco da parte inferior do leopardo. A cor de seus olhos parece uma mistura em aquarela de todos os tons que passam pelo quadro; em constante mutação a cada volta.

O animal com toda sua elegância parece aos poucos cansar. Suas piscadas vão pesando. O olhar concentrado está cada vez mais perdido, sem direção, apesar da retidão. A câmera de Fanderl gradativamente altera seu comportamento: há mais cortes e as imagens se fecham em diferentes partes do bicho. A alteração é sensitiva. Pouco a pouco a maneira de filmar se ajusta às intuições perceptivas do instante; uma comunhão cada vez mais íntima entre sujeito e objeto, regida pelo olhar de Fanderl. A única ordem imutável presente em todos os seus filmes é a montagem na câmera Super 8, que permite, nas palavras da diretora: “concentrar e mergulhar no fluxo do tempo, filmando, por assim dizer, tempos e eventos que acontecem no tempo, buscando o “gesto” que pudesse integrar a complexidade de tudo o que acontece no “aqui e agora” quando filmei e pela expressão da reciprocidade entre o que está acontecendo em mim e fora de mim.[1]

A maioria de seus filmes consiste em apenas um rolo de Super 8, com cerca de 3 minutos cada, e são exibidos publicamente em grupos organizados pela própria diretora, compondo uma obra maior. Seus filmes são registros diretos do presente e dos infinitos tempos contíguos nele. Um olhar atento que captura manifestações do instante explicitando as peculiaridades, como desenhos muito bem definidos, e por um acúmulo de gestos e tempos, elabora filmes densos em que todo contraste é evidente pela clareza das especificidades. O leopardo faz sempre o mesmo movimento no mesmo espaço, mas nos é revelado uma infinidade de detalhes que divergem, seja pela alteração do objetivo ou do subjetivo. A reciprocidade entre estes aumenta no decorrer do rolo, e as mais leves imprevisibilidades vão sendo impressas por Fanderl na película. Todo registro objetivo é também um registro da experiência sensível da diretora no mundo – este que parece desaparecer durante seus filmes.

Estamos sempre vendo pela primeira vez; tanto na unidade, neste processo de investigação minucioso do presente pela montagem na câmera, quanto nos filmes compostos, em que a organização das obras curtas sublinha ainda mais as especificidades de cada uma destas, criando um drama formal intenso por meio das discrepâncias. Em Konstellationen (2013)[2], por exemplo, são necessários seis filmes curtos em preto e branco para finalmente conhecermos as cores em Leopard (2012), sendo que estas, como já descritas, parecem escapar do domínio das formas esparramando-se pelas rápidas imagens; como uma evidência do processo físico natural em que a luz rebate nos objetos que toca antes de encontrar a lente da câmera. A cor também está nascendo diante de nossos olhos ainda inocentes.

Vemos o vegetal pela primeira vez em uma árvore seca e sombria, para em um fragmento posterior sermos apresentados às folhas coloridas já no chão.[3]

Vemos grandes estruturas metálicas, pela primeira vez artefatos feitos pelo humano, por meio do reflexo da água, para no mesmo fragmento a chuva dar fim a solidez imaginada.[4]

É comum a ocorrência de variações internas nos filmes de Fanderl, pequenas mudanças de configuração/comportamento decorrentes da intuição, do acaso e da experimentação de diferentes velocidades da Super 8. Em Bläter fliegen (2001), a diretora captura pássaros que se alimentam em uma árvore. O foco de captura são os animais, a câmera se movimenta preferencialmente pelo eixo e abusa do zoom para alcançar os ligeiros pássaros. Quando as aves vão embora e o foco se torna a árvore, a diretora começa a se movimentar ao redor para capturar diferentes ângulos. O tronco, que antes parecia firme ao chão assim como Fanderl, agora desliza levemente pela imagem como se flutuasse. Não só diferentes “tempos e eventos que acontecem no tempo”, mas também diferentes materialidades são descobertas nessa progressiva soma; o cinema de Fanderl não é regido pelas leis materialistas, pelo contrário, encontra suas próprias ordens cosmológicas pela principal evidência imaterial que nos é permitida: a experiência sensível.

Mesmo que sempre evite comparações[5], Helga Fanderl aproxima sua maneira de filmar (montagem na câmera, estruturação formal e rítmica no ato de filmagem, reciprocidade entre sujeito e objeto e risco elevado de erro por conta dos procedimentos adotados) à caligrafia zen:

Esse estado de espírito é muito intenso e excitante. É como se todas as condições mentais, emocionais e técnicas tivessem que ser percorridas e coincidirem na ideia de fazer um bom filme. Às vezes, esse tipo de filmagem é um gesto que me lembra a caligrafia zen. Não há possibilidade de corrigir e alterar. A obra revela o estado de espírito no momento de sua criação.” Helga Fanderl[6]

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Strom (2010)

 Impossível não cair no clichê de que é possível ouvir sons nos densos filmes silenciosos de Fanderl. Os demarcados contrastes que se ampliam de fragmento em fragmento, nos apresentam diferentes intensidades sensíveis e imaginativas, acumulando memórias de primeiros contatos neste mundo que começou no início da projeção. Em Konstellationen (2013), como não perceber o estrondo das cataratas do fragmento Strom (2010)? O contato é ainda mais chocante pois havíamos sido apresentados primeiramente ao silencioso nado da tartaruga em águas invisíveis aos nossos olhos em Aquarium (2009). O único indicativo pictórico de um registro aquático, além dos animais presentes, são algumas bolhas e características ondulações luminosas. Luz esta que se torna um privilégio do aquário comparado aos pássaros que se alimentam em uma árvore seca completamente negra contra o céu nublado no chapado Blätter fliegen (2001), de um preto e branco quase binário. Os fogos de artifício de uma Torre Eiffel vulcânica, em Feuerturm (2009), deixam rastros nos grãos da película que nenhuma luz natural vista até então ousaria rabiscar. Gradualmente conhecemos a luz a partir de polivalentes luzes; uma infinidade de haikus luminosos se formam nestes micromundos abertos. No fragmento final, encontramos em cataratas que habitam os céus, um milagre: em meio ao vapor que sobe da queda d’água, surge um arco-íris. Toda ação filmada retorna à luz.

[1] Em HAMLYN, Nick. Layers and Lattices: Films of Helga Fanderl, in Sequence, issue number 1,No.w.here Publications ISSN 2048-2167, 2010.

[2] Konstellationen é um projeto contínuo realizado pela diretora de 1992 até 2016, em que novos curtas eram adicionados. Este texto se baseia na versão de 2013 exibida no Festival Internacional de Cinema de Toronto 2013, que segue a seguinte ordem de curtas: Blätter fliegen (2001), Gasometer I (2010), New Hope I (1992), Aquarium (2009), Geburtstagsfeier (2004), Feuerturm (2009), Leopard (2012), Laub (2010), Rost (2010), Container (2011), Gläser (2011), Gelbe Blätter (2011), Strom (2010).

[3] Respectivamente, Bläter fliegen (2001) e Laub (2010)

[4] Gasometer I (2010)

[5] Fanderl, ex-aluna de Peter Kubelka e Robert Breer, revelou nos Extras do DVD Fragil(e), que “influências existem, mas não no sentido direto, mais indiretamente”. Continuando, cita Dziga Vertov (em especial Um Homem com uma Câmera), Jean Vigo (em especial À propos de Nice e L’Atalante), Gregory J. Markopoulos (em especial Ming Green, também montado inteiramente na câmera), Robert Beavers (em especial Work Done) e também Jonas Mekas.

[6] Entrevista com Helga Fanderl por Andrea Piccard, em Cinemascope nº 55

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A doutrina dos afetos

Por Chico Torres 

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O artista está sempre em conflito com a sociedade e, portanto, em conflito consigo mesmo. Um conflito que, no âmbito pessoal, não se resume a “sonho versus realidade”, mas diz respeito a algo mais substancial em relação à constituição do próprio sujeito. Em certo sentido, o artista é um excluído não apenas por exercer o seu ofício, mas por ser aquilo que é, por se apresentar como um diferente: ele é a diferença em meio à repetição, e justamente por isso fascina e incomoda.

Em A ponte das artes (2004), filme de Eugène Green, vemos esse tipo de conflito que se liga mais especificamente à natureza do artista e o modo como o seu ser está unido irreversivelmente à sua paixão. O filme apresenta a evolução de duas almas que, por conseguirem viver apenas sob o influxo de seus afetos, servem como uma alegoria do Barroco, mais especificamente sobre a relação entre vida e morte, porque ao mesmo tempo que emancipa – revelando novas possibilidades para a existência – também se realiza em uma dimensão devastadora e trágica.

Temos a história de dois casais como a espinha dorsal do filme: Pascal e Christine, Manuel e Sarah. Christine e Manuel, os coadjuvantes, servem como ilustrações não apenas do lado mais pragmático da vida, mas também do fascínio e negação que essa dimensão barroca e artística exerce em um mundo marcado pela praticidade. Christine, uma estudante de filosofia, é extremamente racional e objetiva. Já de imediato, a sua personalidade centrada tenta se impor à melancólica e displicente postura de Pascal, jovem insatisfeito com suas obrigações acadêmicas, e que se vê arrebatado pela poesia de Michelangelo. Christine exige que Pascal amadureça, que busque concluir seus objetivos, mas Pascal não consegue se encontrar naquele universo acadêmico no qual a arte está encarcerada em representações falsas e pedantes.

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Já Manuel, um simples programador, sem ligação alguma com o universo intelectual e artístico, é fascinado por Sarah, uma cantora lírica que está debruçada sobre a obra de Monteverdi, mas que se vê em um crescente estado depressivo por causa da postura tirânica do maestro com o qual trabalha. Manuel tenta resgatá-la, explicitando o seu amor e o seu desejo de constituir família, mas Sarah está perdida por não se sentir devidamente reconhecida em seu ofício. Por outro lado, independentemente desse fato, há em Sarah o estigma barroco da ruína, da catástrofe. Esse aspecto é reforçado quando ela, em uma festa de final de ano onde jovens dançam rock’n’roll em um salão, percebe cair a sua máscara social, que é como se tivesse caído todo o escopo de sua existência, fazendo com que ela se perceba um ser completamente vazio.

Sarah e Pascal, afinal, possuem almas barrocas. Mesmo que queiram viver as coisas desse tempo, algo os leva a uma suspensão e esvaziamento da vida por precisarem ceder às pressões sociais, por não poderem ser exatamente o que são. Nesse sentido, as instituições e os lugares de poder são colocados de modo extremamente caricatural e perverso, para reforçar, através da presença desabusada do grotesco, a ideia de que para ser artista não é suficiente dominar a técnica, mas também possuir dignidade para viver aquilo que a arte procura despertar na alma. O maestro, chamado por Sarah de “o inominável”, e outros poderosos do universo da música, são seres que conseguem falar e tocar o Barroco com grande virtuosismo, mas são incapazes de senti-lo de modo genuíno e, portanto, incapazes de expressá-lo verdadeiramente. Já Sarah, em seu silêncio e dedicação, sente tanto em sua alma essa dignidade artística que na mesma intensidade que transborda toda verdade barroca através de sua voz, sofre por ser incapaz de suportar as injustiças cometidas pelo maestro nos momentos de ensaio, que percebe o poder artístico da cantora e imediatamente trata de apagá-lo. O suicídio de Sarah, aos olhos de Manuel (que representa o olhar normativo), é uma atitude drástica e inesperada, mas ganha um maior significado se for pensado como alegoria do aspecto trágico do Barroco que pouco a pouco se revela no espírito da cantora.

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Pascal é também tocado pelo suicídio e por motivos semelhantes, mas a voz de Sarah, ouvida através de um disco com a música de Monteverdi, o faz declinar. Todo o verdadeiro transbordamento de Sarah revela a Pascal uma nova chance para a sua vida, ainda que seja sob uma perspectiva de busca, uma recherche. E mais uma vez se desenrola essa dimensão barroca, agora como promessa de redenção, como procura constante por um sentido superior da existência, ainda que tal sentido seja um ideal inalcançável. Esse encantamento da vida surge através da música e do silêncio, que se dão como uma presença ancestral e poderosa da arte, em seu sentido mágico. Seja com o teatro japonês, ou quando Pascal vagueia por Paris e cruza com um acordeonista que toca música tradicional francesa, ou quando em seguida dialoga com uma cantora curda que, como uma aparição, canta em uma rua vazia alguma canção do seu povo, o que se tem é uma dimensão da arte vivida através de tradições profundas, contrastando com a arte institucionalizada ensinada nas universidades e nos conservatórios, representada no filme através do bizarro.

A doutrina dos afetos, técnica desenvolvida no Barroco que tinha como objetivo expressar emoções precisas através da música, tocou a alma de Pascal ao ouvir Monteverdi e o canto de Sarah, o transportando para uma dimensão existencial ligada ao mistério e à beleza. O encontro entre os dois, sobre a ponte das artes, constrói, em uma única cena, as alegorias que são trabalhadas ao longo de todo o filme: relação entre vida e morte e o papel da arte como essa ponte que transita afetos, sejam eles destrutivos ou redentores. Mostra, fundamentalmente, que o artista é maior do que o seu ofício e que a dimensão espiritual da arte ultrapassa as convenções estabelecidas socialmente.

 

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Enclausuramentos sentimentais, físicos e fílmicos e a paixão fantasma em “Manji” (1964)

Por Anita Gonçalves

“E, quando enfim comecei a temer que os nossos corações explodissem, senti-me de súbito firmemente apertada nos braços dele.

Gota a gota, gota a gota… que dizem eles? Gota a gota, gota a gota… Ah, já sei, Mitsuko, Mitsuko, Mitsuko…, chamam a pessoa que me é tão querida. Tokumitsu, Tokumitsu… Mitsuko, Mitsuko… Sem ao menos me dar conta disso, eu já tinha apanhado a caneta e escrito nos dedos da mão esquerda incontáveis Mitsukos, um a um, desde o polegar até o mindinho.”

(Voragem, Junichiro Tanizaki)

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Em Manji (1964) de Yasuzo Masumura – adaptação do romance de mesmo título (1931) de Junichiro Tanizaki (em português, traduzido como “Voragem”) – temos, como premissa, uma história de amor proibido entre duas mulheres. No centro de tudo, Sonoko, a narradora que conta sua história a sensei (um suposto escritor), e Mitsuko, por quem Sonoko se mostra devota e perdidamente apaixonada, não havendo palavras que de antemão a descrevam, apenas seus olhos e sua beleza hipnótica. Juntas, elas vivem um relacionamento íntimo e intenso que se torna cada vez mais enclausurado, complexo e tempestuoso devido a um emaranhado de fatores externos e, sobretudo, internos (e fílmicos) que influenciam, amplificam, acometem a relação e os sentimentos que a constituem. A partir do contexto claustrofóbico que ambienta o filme e reitera seu caráter trágico, estamos diante de uma situação progressiva de desconfiança incessante e ausência de discernimento, marcada pela prevalência e comando dos sentimentos, do espectro da paixão revelado nas imagens, nos corpos, gestos e expressões emocionados.

Tudo se inicia na escola de pintura para mulheres onde Sonoko estuda – mulher da elite, parece que a arte lhe serve mais como um passatempo, livramento do tédio e do seu próprio casamento, com o qual se mostra muito insatisfeita. É nesse contexto que o filme apresenta uma aula durante a qual as alunas desenham a Deusa Kannon (Deusa da Misericórdia) a partir de uma modelo-viva. Nessa circunstância, o corpo da modelo – do qual não se espera ser mais do que uma base à perscrutação, ao estudo – ao ser filmado por Masumura, consagrado nos planos, anuncia a dimensão do desejo e da reverência que paira sobre todo o filme e conduz a experiência da narradora. Nesse contexto, uma infidelidade estética no desenho de Sonoko cativa a atenção do professor, que nota nele um semblante distinto daquele que possui a modelo. Sonoko justifica-se ao professor: “Eu concebi meu rosto ideal (…) Era para mostrar a espiritualidade da Deusa da Misericórdia”. Ela havia desenhado, inconscientemente, quase como uma sina, Mitsuko Tokumitsu, também aluna da escola. Assim, o que marca esse prelúdio emocionado do encontro das duas personagens e determina, dali em diante, a dinâmica conturbada e intensa do relacionamento e a própria narrativa e experiência de Sonoko, são a primazia – desde o princípio – dos desejos, imaginários, ideais e sentimentos (da subjetividade) da narradora e a ambivalência das personagens. No caso de Mitsuko, mistificada por um lado e submetida à condição de “criação” por outro. No caso de Sonoko, detentora da linguagem falada, uma vez que é a narradora da história, mas também subjugada aos próprios sentimentos, uma vez que sua experiência é fundada e inteiramente movida por eles.

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Por outro lado, existe a influência externa e a obrigação social: a partir do ocorrido na aula de desenho, boatos sobre um suposto romance secreto entre Sonoko e Mitsuko começam a se alastrar na escola, induzindo um primeiro encontro das duas e contribuindo, ao que parece, à concretização do relacionamento apaixonado. No entanto, essa influência externa não surge apenas como pretexto da união, mas, pelo contrário, também como um empecilho ao relacionamento, na forma das obrigações e convenções sociais. Diante de um Japão cada vez mais ocidentalizado, além da obrigação matrimonial de Sonoko, ela e Mitsuko estão inseridas em uma sociedade que julga como imoral o amor entre mulheres e que se torna refém tanto da noção de separação entre vida pública e vida privada como também da ótica judaico-cristã acerca do tópico sexual. Isso implica na privação do desejo, no constante medo acerca do julgamento moral e, apesar de uma primeira idealização do âmbito privado das relações por parte das personagens (cultivam no dia a dia costumes e condutas ocidentais), em um relacionamento enclausurado que só existe entre as limitações das quatro paredes, distante dos olhares e julgamentos da sociedade.

Essa questão encontra a própria câmera observadora de Masumura, que compreende e circunscreve muito bem o suposto espaço privado e a vida secreta, ao mesmo tempo que questiona essa condição pelo simples fato de filmar (ou buscar filmar) a relação, de retratar o que não deveria ser contemplado, o que deveria ser omisso e velado. Nesse sentido, as cenas de sexo do filme são apenas sugestivas; o erotismo, na forma do desejo, está sempre implícito nas imagens. Frequentemente, é uma câmera que espia os corpos através daquilo que pauta, sutilmente no plano, a noção de aposento como aquilo que limita e retém: através de cortinas, de mobílias desfocadas não identificáveis, biombos, do shoji e fusuma – que ganham aqui uma dimensão de parede/barreira muito forte (diferente da sua função de fundir espaços privados distintos e torná-los unos e públicos, reforçando a dinâmica coletiva da vizinhança, em “Bom Dia” de Yasujiro Ozu, por exemplo).

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 Mesmo possuindo um caráter de câmera espiã em algum grau, o que lhe pressupõe uma relação intrínseca com o mundo externo (alguém que espia, a própria concepção e condição do realizador), a câmera aqui não representa uma determinada “sobriedade” em relação à dinâmica tempestuosa que domina o quadro, não possui um senso de convicção e de estabilidade sobre a atmosfera de incerteza e de instabilidade. A câmera é tragada para o universo das paixões sobre e a partir do qual Sonoko – com sua condição poética inicial de “criadora” – narra. Masumura pactua com ela e busca criar imagens em primeira pessoa; imagens que imprimem sua paixão, seus sentimentos, suas impressões e sua narrativa pessoal/sentimental – como se tudo isso, por sua vez, determinasse o quadro.

Ao mesmo tempo que Sonoko possui um aparente controle sobre o que consta nas imagens, sobre a linguagem falada que é transmutada e recriada em linguagem cinematográfica, ela é uma personagem regida pelos próprios sentimentos e submissa a eles. O enquadramento de Masumura, aliado à passionalidade de Sonoko, dá ao enclausuramento pela paixão e sentimentos uma dimensão arquitetônica e física (a partir da ausência de espaço), intensificando a sensação claustrofóbica e reiterando a ausência de contexto através dos enquadramentos fechados, do plano-sentimental-espacial: apesar de o contexto histórico, cultural e social do Japão ser como um subtexto motivador à questão do enclausuramento, ele se vê praticamente aniquilado no plano, o qual corpos, expressões e gestos emocionados ocupam quase que totalmente; ou como se os sentimentos, por serem tão intensos e excessivos, fossem demasiadamente volumosos para o pequeno espaço fílmico (marcado pela limitação das quatro paredes/do plano), tomando o oxigênio e espremendo as personagens, deixando-as imensas e sozinhas no quadro e no quarto, asfixiadas, insanas.

Em um dos momentos iniciais do filme, quando Sonoko mostra a sensei uma fotografia das duas juntas, o rosto de Mitsuko ganha um plano só seu, como se ela estivesse não só encarando a câmera que a fotografou em determinado momento, mas encarando, sobretudo, a câmera espiã de Masumura. Mitsuko se revela através dos olhos e da beleza de Ayako Wakao, atriz por quem Masumura é aficcionado e que, através do que ela concede de si às imagens (sua beleza, seus gestos, suas expressões), define em absoluto a personagem que interpreta: hipnotiza a câmera (Masumura) como hipnotiza Sonoko; sabota a ordem fílmica e supera sua mera condição de personagem diegética através da atriz. Assim, Mitsuko estabelece um contato com o que há através da câmera, com o externo/extraplano, com o que não sofre do enclausuramento pelo plano-espacial-sentimental.

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Como seu olhar (e a própria Sonoko) em sua narrativa sugerem, já se pode presumir o suposto feitio manipulador de Mitsuko, enquanto Sonoko exprime uma certa ingenuidade e vulnerabilidade. Nesse contexto, o que justifica a subversão da ideia de “criação submissa à criadora” é, paradoxalmente, o fato de Mitsuko só existir no filme enquanto criação idealizada de Sonoko (o rosto ideal da pintura), reflexo de seus desejos e, principalmente, por se tornar sua própria paixão: assim como os sentimentos de Sonoko a aprisionam, Mitsuko – a nível deles – também possui um domínio definitivo sobre sua amante. Isso é o que vai pautar toda a experiência e maneira com a qual Sonoko encara o relacionamento, no sentido de sua devoção (deusificação) e submissão à amada.

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Assim, pode-se discorrer também sobre a atmosfera desatinada do filme. Quanto menos noção de espaço, de ambiente, de contexto – ou seja, quanto maior a claustrofobia, a asfixia, a supremacia dos corpos emocionados e do âmbito privado sobre o âmbito público – menor é a capacidade dos personagens de discernir sobre o caráter e as intenções uns dos outros. Sonoko, a única voz que podemos realmente ouvir (enquanto narradora), atinge um estado tormentoso de receio e angústia, constantemente questionando a índole de Mitsuko. Tudo se acentua com a entrada de outros dois personagens no relacionamento (Watanuki – pretendente de Mitsuko – e Kotaro – marido de Sonoko -, formando um quadrado amoroso), o que deixa todos cada vez mais espremidos no quadro lotado de sentimentos que se entrecruzam e se mesclam com intenções secretas (das mais amáveis às mais perversas), complexificando o relacionamento e encaminhando-o ao seu fim trágico. Nesse sentido, o exagero melodramático que aqui existe pode tanto marcar a intensidade do amor, do desejo e da paixão – dos sentimentos no geral -, como tornar uma mentira ainda mais mentirosa, encenada.

O clima constante de dúvida e desconfiança não se limita ao universo enclausurado do filme, excede e atinge a experiência do próprio espectador: nem em Sonoko – por narrar movida e possuída pelos sentimentos, inseguranças e ideias próprias sobre cada uma das figuras – devemos confiar. Sonoko é realmente ingênua e Mitsuko manipuladora? Como podemos garantir que, enquanto narra, Sonoko, que também se mostra perversa em vários momentos do filme, não deturpa ou omite fatos? Devemos confiar nas imagens e no que é exibido nelas?

Masumura, pactuado com Sonoko e, portanto, movido e movendo o filme pela paixão e por tudo que ela magnetiza, não nos dá respostas. Ao real detentor da linguagem aqui vigente não interessa o valor crível da imagem e sim seu potencial expressivo: amplifica a narrativa à expressão fílmica dos sentimentos, desejos, ideias, paixões. Temos aqui a estética que emerge da vazão que tem a dúvida não-elucidada, da claustrofobia estimulante à propagação indomável dos sentimentos: a expressividade e a beleza dos corpos, gestos e rostos emocionados; até mesmo a poesia plástica nas cores, na caligrafia e nas estampas das correspondências trocadas pelas amantes.

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O final trágico conjecturado: em determinado momento, quando o relacionamento está configurado em um triângulo amoroso entre Sonoko, Mitsuko e Kotaro – emocionados e totalmente alheios à realidade -, todos os fatores externos (e internos) fazem do suicídio passional a única saída. Esperançosa de que enfim encontraria na morte um estado puro e eterno ao amor, Sonoko é surpreendida pela desilusão: a única que continua viva e cativa; a união das amantes não sublima. (Teria Mitsuko a enganado?)

Prenunciando o desfecho desde o início, Sonoko narra sua experiência, sobrecarregando no coração inquieto e no corpo cansado todo o acúmulo sentimental do filme; apaixonada por uma aparição profetizada por sua narração. Criadora do que ali alguma vez existiu ou não existiu, ela permanece tomada pelas incertezas e, sobretudo, enclausurada à sua paixão – Mitsuko, Mitsuko, Mitsuko… -, que agora é mais do que memória ou saudade: um fantasma sagrado que a assombra, quimérico e imenso nas imagens.

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