A Dama do Lotação (Neville D’Almeida, 1978)

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Por Gabriel Papaléo

A leitura de Nelson Rodrigues sempre prezou pelo escândalo, e é comum – ainda que equivocada a meu ver – a noção de que seus arquétipos e suas teses são datadas, que não existe espaço para elas no cenário contemporâneo brasileiro atual, mas a forma que retrata as neuroses de uma burguesia carioca, e o como expõe as vísceras dos desejos e perversões reprimidos reflete um segmento da sociedade que não parece ter mudado, e sim se higienizado, sob seus obscuros desejos de poder. Num canal tão disposto a abraçar a aspereza e a putaria de Nelson como Neville D’Almeida, a dramaturgia aflora bem diante da encenação abertamente declamada. Em A Dama do Lotação, Neville sequestra Nelson para imaginar as maneiras que Sônia Braga dribla o eixo familiar de aparências onde os ideais de masculinidade são passados como legado de defesa, de uma atitude sexista sobretudo de medo.

E o que move esse legado é a fanfarra da hipocrisia, propulsionada especialmente pelos chavões do que as instituições esperam dos choques entre homens e mulheres. A amizade masculina falida, alvo no qual o diretor se diverte ironizando, é vista sob a mesma desconfiança até que a psicanálise, na figura de Claudio Marzo forçando a ideia de fidelidade e amor pelo marido em Solange mesmo que ela grite por violência, clame pelo expurgo. Segundo o diretor, nenhuma instituição segura essa fina camada que une os indivíduos sob suas capas de autoridade, e o desejo estimula as perversões sem categoriza-las como tais, sempre buscando esconde-las em algum subterfúgio moral, intelectual, ou financeiro.

Na sequência na qual Solange, Carlinhos e seus amigos vão na boite Barbarella da época, a tensão é por debaixo da mesa, escusa, no segredo, implorando por um desejo oculto. O perigo do flagrante permanece o motor das ações de Solange diante da recusa inicial do sexo, uma intuição em reação aos julgamentos de Carlinhos e seu pai. “A esposa deve ser frígida”, o pai afirma, porque sabe que sexo bom é aquele controlado pela instituição, seja ela qual seja (nesse caso, a família). A castidade imposta muito tem a ver com esse medo, essa tensão do desafio, de homens tão reféns do desejo feminino que tremem diante da possibilidade das mulheres perceberem seu poder sexual – uma variável impenetrável da fragilidade dos seus poderes autoproclamados. O que escapa de Carlinhos é o que motiva o desejo de Solange.

Não por acaso, Solange sempre reforça que os homens com quem transa são “piores” que seu marido, porque no limite esses sexos só existem para que tolere melhor a realidade do seu casamento. Existe um acordo de civilidade entre os homens que aqui interagem, seja Carlinhos com seu pai, seja Carlinhos com seu amigo, seja o motorista do ônibus com o cobrador, que prevê secretamente que as relações horizontais e confiáveis são apenas entre eles, como se o suposto mistério feminino fosse cruel o suficiente para não ser digno de confiança. A questão mais engraçada da sátira multifacetada que Neville propõe é que algo nunca discutido entre esses homens é que os seus desejos são a única forma de quebrar esse elo civilizado, de que secretamente esses homens entendem que relação alguma resiste ao desejo do pau; e assim Solange consegue dar pro pai do marido, pro melhor amigo do marido, e literalmente nada muda.

O que escapa à sátira, pontualmente, são as relações femininas que Neville filma. Como em Matou a Família e Foi ao Cinema, parece que existe uma atenção dramática especial, mesmo diante da crítica de classe, a relações que escapam dos homens que buscam o controle. A bela cena de tensão entre a mãe de Nuno Leal Maia e sua amiga (e amante) Matilde é um toque de mergulho no melodrama sem a ironia que atravessa todas as outras relações do filme. Nesse sentido Neville parece estar filmando Nelson Rodrigues até quando não está, mas diferente do carnaval cataclísmico de Rio Babilônia, aqui o diretor deixa seus comentários sociais diretos escorrerem por entre a dramaturgia, mais pontuado, ainda que não mais sutil. Essa atenção às neuroses da classe média perdida não furta o diretor de filmar o Rio de Janeiro contrastante, visto pelas janelas dos ônibus, na janela fechada do carro, na praia cheia que nunca acessamos – sempre sob o ponto de vista de Solange, sempre diante da progressão do seu arco dramático de pouca transformação e muita autopunição.

Evitar as perversões do outro na suposta civilidade da cidade culmina no desligamento de Solange dos planos familiares, do que se espera dela, e portanto tudo deve acabar numa praia vazia, da última foda com Sônia Braga e Paulo Villaça, felizes em estarem isolados, diante de uma utopia apenas deles depois de se conhecerem num ônibus, descartável como qualquer relação a qual Solange se submete em busca de sentir algo, de ser punida por seus atos. Seja chamada de segurança, seja de medo, seja de raiva de classe, o fio que liga o emocional dessa classe média retratada é o da vontade de sumir da cidade.

Esse mal-estar de classe é por todo momento refletido diretamente na forma que se lida com sexo, como se esse fosse um canal apropriado de intimidade para não se ter vergonha ou culpa de implorar por violência, por punição. Solange busca ser a mulher de todos principalmente porque quer sofrer alguma consequência que seja de seus atos; a questão é que no Rio de Janeiro, se você é de berço, se você é abastado, se existe privilégio de classe que seja, a possibilidade de que se arque com alguma responsabilidade é muito pequena. Cabe à dama explorar seu prazer implodindo as noções de masculinidade e família dos que a machucam sem sua autorização.

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