Mu, a terra da impossibilidade sonora – sobre Abismu, de Rogério Sganzerla

Por Gabriel Papaléo

“Quem sabe a ameaça vem mais dos silêncios que dos ruídos?”

Ítalo Calvino, Um rei à escuta, em Sob o sol-jaguar.

O cinema caseiro pede anistia, e, indo até as ruas, com imaginação podemos achar as vontades dos deuses. Já no início de O Abismu, o primeiro longa de Rogério Sganzerla pós-Belair, nos deparamos com um interesse e uma proposta de transcendência do diretor: estamos convidados a procurar embates místicos com as paisagens do Rio. É onde está a cidade de Mu, uma terra lendária e perdida à espera do despertar de seu portal mágico, cujos habitantes usaram dos cartões-postais da cidade para construir seu portal. A civilização maia ficcionalizada e transformada para o Brasil do fim dos anos 70, a agonia da espera por dias mais livres, a elegia para uma cultura que não tem mais a estrutura que comporta suas ideias.

Sganzerla e Renato Laclete prendem a câmera ao carro da Madame Zero, vivida por Norma Bengell com um charuto enorme e vão à procura de uma nova religião, andando de carro a esmo, encarnando arquétipos vários, deixando-a desorientada pelo sincretismo. Nessa mesma frequência de luta entre forças místicas aparece a participação de José Mojica Marins como o professor cientista louco, um dos imaginários de ficção-científica cinquentista mais caros à Sganzerla, como um maníaco ganancioso a tentar conquistar o espaço, os portais, as fronteiras, e por que não os corpos. É importante que a cultura popular esteja impressa nos personagens de O Abismu porque, para Sganzerla, o que está em jogo com a invasão de Mu é todo um pesadelo linguístico de exceção cultural – que se assimile tudo que o Brasil tem direito de reclamar para si como identidade antes que os gringos venham tomar essa fronteira mitológica.

Nesse retrato à mão-livre, como pequenas vinhetas de pessoas que entraram em contato com esse divino alienígena quase incompreensível, muito dessa não-linearidade se percebe pelos dispositivos técnicos que Sganzerla usa. Quase tudo é rodado em câmera na mão, as bitolas gastas do 16mm parecem abraçar só a luz natural, e o grão forte e expressivo dá ao filme um teor caseiro que só reforça que Sganzerla está interessado em uma profecia em primeira pessoa, mais íntima, de pequenos contos fantasiosos desse filme-ensaio sobre misticismo, religião, e fé no desconhecido.

E como é o som dessa nova religião em formação? Qual o som egresso de outro mundo? O Abismu é um filme de paisagens e profecias, e a sujeira da imagem encontra no som uma nova oportunidade de agressividade. Sugerem-se barulhos de motor, ruídos descontínuos, diálogos que flutuam pelos ares do Rio sem casar necessariamente com o acúmulo narrativo, bem à forma de manchetes, de quadrinhos, das quais Sganzerla abraça com fervor. Na cena na qual a Madame Zero de Bengell canta de branco, parece que sua voz é de uma consciência alheia, de um som que paira sem controle e sem autor pelo vento. Quase não há diálogos claros em O Abismu, muito porque é um retrato de profetas e de charlatões, de Mojica Marins convocando “os boçais do mundo” a se unir, de Jorge Loredo versando sozinho em meio aos morros. Na unidade sociocultural imposta não existe conversa, existe proclamações, existe monólogos disparados ao vento, e a ousada proposta de som de Sganzerla parece lembrar que “unidade” também pode ser supressão do específico – e não há clareza possível de palavras diante dessa ebulição da consciência diante de contatos místicos.

Os ruídos e distorções são a regra de som e imagem em O Abismu, e talvez a única linha clara sonora é a da guitarra (distorcida) de Jimi Hendrix. Seria essa escolha intencional? O estado do som nos filmes brasileiros sempre leva a dúvida: nossos filmes mal-tratados tiveram o som captado dessa maneira precária ou foram as exibições na sala de cinema (e as subsequentes telecinagens) que não fizeram jus ao meticuloso trabalho sonoro? É dolorosamente comum acharmos cópias de filmes brasileiros num estado bem precário de imagem, mas mais comum ainda é acharmos cópias com o som prejudicado – o que gera a impressão de que o normal para “o filme brasileiro”, essa instituição una e insuficiente, é um som mal cuidado e por vezes de diálogos incompreensíveis. 

Quem procura ver online hoje filmes como “Um Homem sem Importância”, de Alberto Salvá, e “Bang Bang”, de Andrea Tonacci, só os encontra com diálogos estourados, uma mixagem pouco cuidadosa, e passagens sonoras bem confusas para a compreensão da narrativa. São filmes que se propõe abertos ao diálogo com a marginalidade cara aos realizadores brasileiros à época, que entendiam os comos e porquês de num sistema com pouca estrutura para se praticar cinema, o improviso e a possibilidade serem nossas maiores armas de invenção. Nesse movimento, as sementes do que foi desenhado como “cinema experimental” foram plantadas nesse período, que demonstrou que esse cinema, como o curta-metragem é e o digital também se revelou ser, é realizável.

Convencionou-se colocar o franco descaso de certos filmes com som sob a confortável coberta do “cinema experimental”, o estímulo à picaretice que faz com que grandes cineastas que utilizam do som precário para passar sua poética caiam no mesmo saco de oportunistas que pouco se importam com linguagem. Com Sganzerla não é diferente, e o som ambicioso, captado em meio aos ventos do Rio, aos ruídos no diálogo, nos lembra o tempo inteiro que estamos diante de um retrato caseiro, como ensaios filmados – a fina linha entre a “tosquidão” como manifesto estético dita por Paulo Emílio Salles Gomes, e a legítima falta de infraestrutura destinada ao cinema brasileiro e sua técnica. E Sganzerla constroi um cataclisma com isso, mesmo sob modestas pretensões – pelo menos para a abrangência de suas reflexões. Estamos diante de um filme que só foi possível em 1977 dessa forma. E isso passa também pela cuidadosa jornada sonora poluída do filme.

Não por acaso é com a guitarra distorcida de Hendrix em Monterey que Sganzerla termina o filme, embalando a destruição vista por imagens de outros filmes, a chegada de raças alienígenas com suas máquinas transformando o tecido da realidade em cores e líquidos que tiram nosso fôlego e nos absorvem. Mas diferente das músicas do inglês que atravessam o filme, em dado momento ouvimos a voz de Hendrix dublada, retorcida para encaixar na narrativa de Sganzerla, dizendo o quanto “todos vocês me inspiram”, falando sobre a expansão espiritual – a típica profanação misturada com homenagem tão comum ao método do diretor. Hendrix dá seu recado e dali em diante sabemos que estamos diante das trombetas do paraíso, finalmente reconhecendo o contato interplanetário que quem testemunhou tanto o Rio de Janeiro quanto às músicas do guitarrista inglês intuitivamente já experimentou inúmeras vezes.

N. do E.: Apesar do cartaz apresentar o nome do filme como O Abismo, no filme aparece O Abismu, com “u”.

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