A voz, essa sobrevivente

Por Rubens Fabricio Anzolin

Começo pelo princípio: o verbo. Capitu e o Capítulo (2021), assim como boa parte dos filmes recentes de Júlio Bressane, é uma obra falada. Ou melhor dizendo: uma obra declamada. Uma obra em que qualquer respingo de verdade irá se revelar senão através da encenação, elemento inerente a qualquer ruído sonoro que a escrita antropofágica de Bressane privilegie. Em Capitu e o Capítulo, ouvimos o barulho do mar, que sobrevoa soberano as paredes de uma casa depauperada. Há também um piano afiado, no interstício das cenas picotadas dos outros filmes do cineasta. Por fim, temos ainda o violino, tocado com esplendor por um músico fleumático, em riste, enquanto os pensamentos de Bentinho (Vladimir Brichta) encontram-se cada vez mais e mais em direção ao delírio. Nenhum destes ruídos, no entanto, é capaz de dar conta da realidade, são todos sons de um mesmo fingimento, de uma mesma peça de arte amorfa que é Capitu e o Capítulo. Aliás, o grande trunfo do cinema de Bressane talvez repouse justamente nesse distanciamento moral com o mundo, muito político, por sinal, em que o cinema de tão irreal e alastrado torna-se cada vez mais verdadeiro. À parte o desvio, voltemos à Capitu, e principalmente ao  que interessa: a voz de Capitu. É somente na voz, aquela mesma que sai da boca afiada de Mariana Ximenes e do clamor exotérico de Enrique Diaz (Casmurro) em que podemos confiar. Em um filme como este, cerceado por estímulos tão deformados, a voz é a única verdade da mentira de Bressane.

Existe uma cena, logo no início do filme, em que dois homens são vistos de cima, conversando, apenas através de seus chapéus. Neste ínterim, nada se escuta, e tudo o que nos é proposto pela imagem é exatamente isto: a suposição. Algo muito parecido se dá logo a seguir, quando Capitu circula com um giz na parede a sombra do rosto do marido. Isto é: para Capitu, o que importa é menos a imagem real de Bentinho, mas sobretudo a imagem projetada pela luz que atinge o marido. No universo de Bressane, a sombra sempre foi um portal para o enlevo, o desatino, já que ela, mais que tudo, é um atributo da escuridão, local onde tudo pode se formar à face do olho, a partir da incerteza da luz. Pensemos no monólogo de fundo vazio de Sedução da Carne (2019), interpretado por Mariana Lima, ou mesmo no Casmurro/Machado de Enrique Diaz, rarefeito às fantasmagorias de uma literatura brasileira fadada ao apodrecimento precoce (como Junqueira Freire ou Castro Alves). Personagens regados ao invisível do preto, à liberdade das masmorras, e que são por isso formas não-absolutas, um tanto quanto indecifráveis. Se em Capitu e o Capítulo Mariana Ximenes contorna o perfil das sombras de Bentinho, idealizando um objeto em falso, é justamente porque a sombra não é Bentinho, mas sim sua projeção, sua deformidade. 

Tal projeção, aliás, concebe-se finalmente neste contraste de uma imagem sem voz: Vladimir Brichta pode elucidar a insanidade que acomete Bentinho: sua voz sobrevive à deformação da pele, aos olhos arregalados, à suposição da traição que o ator encarna. Já a sua sombra (aquela que Capitu projeta) permanece como sendo silente – eis uma voz em falso, uma miragem. A sombra de Bentinho é muda, inane, resultado exclusivo do que se projeta a partir do seu rosto. Sua sombra não tem voz, coisa que permite ao desenho sonoro de Capitu e o Capítulo contornar o imaginário de seus personagens na mesma medida em que Júlio Bressane cria costuras de sonoplastia nos entre-lugares: as cenas de seus filmes anteriores, a praia carioca, as orquestras que permeiam muito mais o imaginário do filme do que o filme em si. A partir daí, assimilar que Capitu prefere enxergar não a Bentinho, mas à sua sombra, é essencial: pois gradativamente o personagem vai aderindo à perturbação de sua própria imagem, de sua altivez sonora – coisa que a cena do corvo, mais ao final do filme, dá conta de comprovar, quando o delírio enfim toma desdobramentos reais, num esgoelar-se a si mesmo violento que os olhos não podem ver – apenas supõem, com os ruídos do animal fazendo as vezes da garganta do personagem. Quando se perde a imagem da mentira, nem mesmo o campo sonoro resiste à tentação de também querer-se um enganador.

Há muito tempo, inclusive, que me parece que o cinema de Júlio Bressane passa por essas paredes da suposição, jogos teatrais enigmáticos e espaciais que revelam sobretudo aquilo que transborda a mente de quem vê. Um local em que apenas a voz é imune ao delírio, pois nela reside a certeza da fala. Coisa parecida já tinha sido fabricada nos teatros de guerra de Cleópatra (2008) e Beduíno (2016), à base de monólogos, e que retorna de modo fulminante em um filme mais silencioso como Garoto (2015), quando as sombras das pedras e a melodia da natureza dão o tamanho da tensão do mundo.

Diante de tais formulações frequentes no universo do cineasta, o imprescindível está no fato de que a camada sonora invade o mundo na ausência da imagem, na presença da escuridão. A partir do momento em que nada se vê – ou que aquilo que se vê também se perde, se indiferencia – a melodia passa a fazer parte da bagunça, restaurando a desordem natural do mundo. Enfim, soa-me ser este o resultado final do procedimento bressaniano: se o fundo é o vazio, se as imagens chocam-se constantemente, a sonoplastia funciona para adulterar ainda mais esta bagunça, forjando à fórceps um imaginário caótico. No entre-meio destes jogos de delírio, dessas brigas de casais e das reconciliações inesperadas está a voz, esta sobrevivente. Por isso mesmo é curioso que um filme como Beduíno (2016), por exemplo, seja basicamente uma grande DR: pois tudo que se imagina e repele no outro está no campo da indefinição, da deformação e do ruído, enquanto tudo aquilo que é capaz de conciliar os dois amantes pertence apenas ao coro da declamação, ao que nasce com o ator, ou seja, à voz.

É nesse sentido que Capitu e o Capítulo dá continuidade a um ciclo de cinema que cada vez mais se interessa por uma arte da mancha, uma arte do ruído. Investigar no plano as deformações da imagem, do rosto, dos corpos. Afinal, se Dom Casmurro sempre foi sobre o distúrbio emocional que é o ciúme – sobretudo acerca daquilo que as imagens e os sons do ciúme produzem no inconsciente, de maneira quase elementar -, Capitu… é um pouco sobre esse distúrbio que está na imagem, no rumor, nos espelhos distorcidos, na pintura de olhos (que remetem tanto à mãe de Bentinho quanto a uma miragem de Capitu) que vigia e rege tudo ao redor. Uma mesma sensação que, inclusive, encontra-se no pseudo-narrador de Enrique Diaz (que interpreta Casmurro e assina como Machado), numa espécie de piscadela de olho de Bressane em fazer um dois de um, como se fosse ele todo, enfim, uma coisa só. E como se o torpor que emerge de Vladimir Brichta fosse exatamente fruto daqueles papéis destroçados de Diaz/Casmurro/Machado, resultado de uma noite incólume, banhado nas incertezas da escuridão de uma poesia brasileira já ferida e derrotada, encolhida em um sono de morte.

Em síntese, Capitu e o Capítulo é antes de mais nada um filme sugestivo, lacunar, de portas abertas, mas que mais e mais se anula e imbrica na mesma medida em que existe. Um pouco como o narrador de Dom Casmurro, mais sugestivo que acertivo, mais especulativo que taciturno, que quanto mais projeta mais se perde na própria miragem, transformando culpa e desejo em coisa única, indistinta, fundamental. Mecanismo deveras similar, vale lembrar, à relação dupla que estabelecem Sancha (Djin Sganzerla) e Capitu, seja pela fisionomia ou pelos cabelos louros que facilmente se confundem aos olhos de Bentinho. No cerzir dos panos, depois de toda a deformidade, depois de todas as lacunas lacunas, depois da imagem perder os sentidos, os contornos, depois de virar pintura, transe, sombra, retornaremos à voz, à declamação, à poesia maldita de Álvares de Azevedo que Diaz tão lindamente refaz. Pois o que unicamente permanecerá no cinema de Bressane será sempre a voz, ilesa aos enganos, aos desvios sorrateiros da imagem, às flores murchas que tomam conta do cenário, ao espelho deformador. 

Quando enfim Sancha colocar um véu sobre a câmera, como quem borra aquilo que se vê de uma briga de casal, como quem produz a mentira, ficaremos não com a sombra de Capitu, não com seu perfil errático, desmedido, mas sim com a sua voz, inane à mentira, certeira nas palavras, limpa e clara como no cinema dos grandes cineastas, que fazem da poesia sobretudo aquilo que se escuta como resultado do corpo, como se o cinema fosse um livro que pudesse ser visto. Ficaremos com Capitu, mas na certeza de que toda ela é uma aberração, um monstro, um desvario, um objeto indefinido ao mesmo tempo que é tudo. 

E depois não restará mais nada. Nem mesmo os créditos. Entrará um samba agudo, uma câmera na mão, e Júlio Bressane derrubará ao chão toda a nossa fantasia, todo teatro de fantoches. Já que, afinal, o cinema é apenas uma mentira. Das boas, é verdade. Mas ainda assim uma bela de uma mentira.

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