Olhar de Cinema: O Sonho do Inútil (José Marques de Carvalho Jr.)

Por Geo Abreu

Um traço que podemos encarar como característico do cinema produzido nesses anos pandêmicos é a atenção ao material de arquivo como fonte, fato interessante se pensarmos no nível individual a partir da quantidade de imagens produzidas no mundo todos os dias e o dilema que se impõe diante da necessidade de arquivamento e destinação desse material, enquanto num nível coletivo, mais do que nunca é preciso lutar por condições de preservação e memória do cinema brasileiro. E aqui, amigues, cada uma deve encontrar o local de criar uma barricada, trabalhando diligentemente para digitalizar materiais, expor internacionalmente a situação dos principais acervos, criar programas para restaurar, exibir e produzir memória sobre filmes pouco conhecidos e assim por diante. 

Em Sonho do Inútil o cineasta José Marques de Carvalho Jr assume a posição de revisitar a história de um grupo de amigos que alcançou sucesso produzindo vídeos de aventuras domésticas e autoflagelo, mixando os arquivos desse período com imagens produzidas no reencontro com as figuras que compunham o grupo. 

A condução desse trânsito entre passado e presente produz momentos de perturbação no fluxo da narrativa, deixando o espectador a deriva em alguns momentos pois, além de algumas quebras temáticas, há um choque provocado pela construção precária das distinções entre as imagens daqueles personagens nos diferentes momentos em que a narrativa se desenrola, fato que segue até que se firme o bloco do reencontro entre o diretor e seus amigos, que ganham tempo de tela para falar de suas trajetórias enquanto finalmente são postas em relação suas imagens antigas e atuais. Inclusive minha aproximação com o filme se deu pela desconfiança de que aquela história fosse se desdobrar numa pegadinha de falso documentário, algo que só se desfez a partir dos blocos de apresentação do cotidiano atual dos personagens e do tom sóbrio assumido a partir dali.

No final das contas tudo isso me manteve atenta à ação, a espera pelo encontro com um jogo que se mostrou menos opaco do que eu pude supor, sublinhando a importância do audiovisual como ferramenta de encontro, amizade e pesquisa num contexto em que parecem existir roteiros pré-definidos a respeito de quais histórias aqueles rapazes poderiam contar. 

No mais, interessante observar que a reputação criada pelo grupo com seus vídeos engraçados se manteve no tempo, transformando-se em atenção dada aos trabalhos posteriores do diretor, que podem ser acessados no canal do YouTube que leva o nome dele – JmarquescarvalhoJr – e cujos números de visualizações/curtidas fazem pensar sobre outra dinâmica de produção de caminhos para desenvolvimento de uma carreira no cinema brasileiro, que passa tanto por experimentação de formatos, relação direta com a distribuição e a recepção dos filmes. 

Entre a atualidade desse modo de habitar o ecossistema do audiovisual e o tom de saudade de um passado simples de brincadeiras entre amigos, O Sonho do Inútil nos faz pensar em juventude, a vida nos subúrbios das metrópoles brasileiras e na força simbólica de portar uma câmera.

Visto no Olhar de Cinema

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