Rio, 360 Graus (Rio Babilônia, Neville D’Almeida, 1982)

Por Anita Gonçalves

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Em “A Frente Fria que a Chuva Traz” (2015), longa mais recente de Neville D’Almeida, o desmantelamento do Rio de Janeiro “Cidade Maravilhosa” se faz por via do tempo fechado, tapando qualquer brecha de luz solar, qualquer eventual perspectiva de esperança naquele espaço trágico e arruinado. Em contraste, “Rio Babilônia” (1982), realizado mais de quatro décadas antes, também partilha da dissolução do estatuto de cidade-paisagem idílica e harmoniosa, mas, dessa vez, através do Sol, irradiante: ao mesmo tempo que queima e incendeia o asfalto, incide sobre e ilumina tudo aquilo que, em ebulição, se vê fora das limitações de uma representação estática, despovoada e sóbria de “cartão-postal”.

Como ponto de partida em “Rio Babilônia”, existe tal imagem do “Rio de Janeiro cartão-postal”, enquadrado perfeitamente através da janela do edifício da Companhia Nacional de Relações Públicas: é o Rio de exportação, disciplinado e devoto aos gringos, fonte geradora dos lucros e luxos dos que ganham com a venda de tal representação de cidade. Mas essa paisagem postal, imaculada e despovoada, será justamente convulsionada, corrompida e superada, havendo, em contrapartida – e que passa a ser central, revelado pela luz do Sol de 40 graus – tudo aquilo que essa imagem pura de “Cidade Maravilhosa” necessariamente esconde. Em um momento de diálogo entre Marciano (Joel Barcellos) e o excelentíssimo Doutor Liberato (Jardel Filho), quando este, aparentemente gozador de um estatuto público de prestígio e imponência, em uma espécie de elogio, diz que a cidade caminha ao progresso, querendo exaltar a paisagem polida e virginal com a qual se depara quando vai ao clube e sobrevoa o mar e os prédios de helicóptero, Marciano rebate: “construíram aquele prédio e esconderam a favela que tem ali atrás”.

Opondo-se a esse ato de “esconder”, “Rio Babilônia” é um filme que repudia o privado e celebra o público, operando primordialmente por meio de uma qualidade, baseada na luz e frontalidade, que impede a existência do privado e obstrui qualquer ensejo de sigilo. O Rio de Janeiro de contrastes e contradições – complexo e diversificado, e sobretudo desigual, ocultado pelos prédios, indústrias, empresas e (especialmente) cartões-postais – é fulcral, sendo aquilo que se desejaria esconder e privar, aqui, o coração das imagens.

Por meio das lentes confrontadoras e nunca mansas de Neville, há uma exposição da desigualdade, da violência e de um povo que passa fome, em meio ao contexto praticamente explícito de crise inflacionária e carestia (“a inflação cai, mas a comida não”, manchete discreta de um jornal). Assim, a cena onde Marciano mostra o “real Rio” à estrela norte-americana Linda Lamar, desobedecendo às próprias limitações territoriais da cidade, capital do estado propriamente dita, e levando-a para a Baixada Fluminense – mais especificamente o momento do saque coletivo à caminhonete que transportava feijão –, é certamente violenta e brutal, praticamente uma cena de batalha que expressa a tamanha fome da multidão; mas também, em um estremecido clamor de “feijão para o povo”, dignifica aquele ato e expressa a celebração do público, fazendo da cena envolta por uma atmosfera eufórica de esperança na potência energética, rebelde e insubordinada de um povo (ainda) oprimido.

Já na cena do Morro da Babilônia, o morro é uma espécie de templo sagrado, genuinamente belo e instigante na orbe fílmica; no entanto, desprezado e violentado por aqueles que não conhecem verdadeiramente sua força divina. É lugar de sincretismo onde Jesus Cristo e Oxalá convivem em harmonia, mas, ainda assim, onde a violência invade e irrompe nas imagens de serenidade. Dona Zica, aqui praticamente feita uma santa, reza a Ave Maria, enquanto o canto que escuta no rádio invade as imagens de violência; e, apesar de sua força sagrada – que no fugaz tempo que perdura nas imagens, já as toma -, tem um policial apontando o revólver em sua cabeça. Mesmo que seja o morro o ponto mais alto, onde o Sol menos incinera, onde a brisa bate mais leve e onde o céu está mais próximo, os policiais atiram e matam a sangue frio; enquanto milionários, criminosos impunes, fazem a festa – até que o asfalto esquenta demais, derretendo as extravagantes armaduras da burguesia.

O filme expõe as paixões, prazeres e fraquezas, tidos como motivo de constrangimento, de figuras de um “corpo dominante”, despindo-as, tornando-as dominadas, vulneráveis e enfraquecidas, submetendo suas representações por meio da qualidade fílmica de um cinema que enfrenta e subverte a realidade. No ato final do assalto que interrompe a performatividade da festa privada da elite, filma-se, com irreverência, e aqui sim, capturando, como reféns, seus convidados da cabeça aos pés, exibindo aquelas figuras de forma tão crua, fora de seus pedestais, sem terem como recorrer aos seus estatutos, pois estão atadas e amedrontadas. Em “Rio Babilônia”, no tocante a uma certa condição frontal e humana das imagens, o que interessa é o que está debaixo dos vestidos das madames e dentro das calças dos doutores.

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O prazer generalizado, enrustido nos discursos e publicizado e liberto nas imagens, paira sobre todo e cada plano, frustrando esforços para delegá-los à esfera privada, constrangida e retraída em si mesma, inexistente e ofuscada pelo clarão solar em “Rio Babilônia”. A sacanagem de exportação, higiênica e restrita, é desacatada, e a sacanagem manifestada é a do prazer público, sujo e belo, sem limites e sem cortes. Aqui, empresários, industriais, diplomatas, parlamentares, carregando ridiculamente seus insustentáveis títulos e esbanjando decadentemente seus luxos, são desnudados, desvirginados e destituídos da postura e formalidade que asseguram e legitimam sua imponência; e têm suas taras expostas, por meio de orgias com prostitutas de luxo em apartamentos trancados a sete chaves – mas que o Sol não esconde e a câmera não perde por esperar em expor.  E o povo extasiado também se deleita, livremente, sem que forças conservadoras de “Rio Babilônia”, fracas e impotentes, sejam capazes de acobertar, conter e domesticar: o sexo público e popular e sua beleza e força indomáveis penetram nas imagens, as quais proporcionam e impulsionam que extrapolem qualquer limitação. Contrapondo-se ao despovoado e sóbrio cartão-postal, o filme tem como força motriz as pessoas e suas paixões pulsantes, movidas a calor e reveladas pela luz que o Sol emana.

Com exceção das imagens que fazem a burguesia nua de refém, vulnerabilizada e ridicularizada, o enquadramento menos aprisiona e mais dá vazão àquilo que é expresso – e menos capturado – nas imagens: as pessoas em transe e suas manifestações flamejantes de amor, prazer, paixão. Sem seguir normas que precedem e determinam com exatidão o que está no quadro e subvertendo qualquer ordem possivelmente pré-estabelecida, a câmera se adapta e submete-se ao movimento que filma, anda junto e conflui com a liberdade daquilo que está manifestado nas imagens.

Nesse sentido, o filme renuncia muitas vezes da narrativa perfilada a um só eixo para dar lugar à expressão genuína do êxtase e da embriaguez; do batuque, do samba, da atração na cena do lançamento do perfume, por exemplo, onde mesmo durante o discurso de Paulo Villaça, o empresário bronco, Pat Cleveland, a Linda Lamar, requebra e mal serve ao que foi contratada, acena e se encanta, olhando e sorrindo para o que está fora do quadro; e nada sai como foi esperado e encomendado. O bronco grita: “eu tô pagando!”, enquanto a festa explode – para além da dimensão imagética do quadro –, totalmente fora de seu controle.

Há momentos, relativos a essa falta de controle, cujo caráter se aproxima do documental, onde meninos passam na frente da câmera e tapam a paisagem postal e turística, até então caucasiana, da praia, ou até mesmo cenas nas quais existe uma interação disruptiva das figuras com a câmera. São momentos consonantes a essa permeabilidade do enquadramento que permitem que as figuras e seus corpos em quadro se expressem livremente, quase como se não estivessem, como se, apaixonadas, impetuosas e em ebulição, transcendessem ou enfim sublimassem. Aqui, o rigor se faz no deixar fluir aquilo que está em quadro, criando uma situação fílmica que se pauta pela liberdade e pelo inesperado, sempre esquivando-se de qualquer tendência de um quadro-postal estático, ordenado e controlado.

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Somado a esse caráter libertino do quadro, ao longo do filme, ocorrem mudanças bruscas e repentinas de atmosfera fílmica, sobretudo de gênero e de encenação, pois cada cena, e até mesmo cada plano, possui um certo grau de autonomia e liberdade expressiva em relação ao todo, assumindo a imprevisibilidade, sem se ater a um único eixo narrativo que pode parecer ser proposto de início. Esse todo, o filme em si, é multifacetado e livre, desprendido de qualquer coisa que beira restringi-lo a um único fio condutor disciplinado e bem-comportado. Entretanto, não se opera exatamente por meio de um abandono da narrativa, mas por uma narrativa que não determina os trilhos, que não necessariamente dita o que está por vir, constituída por cenas-expressões transitórias desse Rio de Janeiro fílmico que aqui se constrói: esse lugar babélico, complexo e exorbitante, onde as pessoas que vivem ou que passam por ele, são o que verdadeiramente o constituem.

Ao longo dos sete dias sagrados, o boêmio Marciano, em seu itinerário insubordinado e caótico, cruza com inúmeras figuras – como patinadoras, eruditos, traficantes, jornalistas, capangas, artistas, mães e filhos, prostitutas, empresários, estrelas, cafetinas, deputados, estrangeiros, etc – que, mesmo quando passageiras, são extremamente centrais e expressivas em cada cena onde surgem e em cada plano em que aparecem, vulnerabilizadas e/ou, sobretudo, libertadas.

A beleza existe, revelada pela luz e pelo calor que arde na cidade do caos, lado a lado com a violência e brutalidade incendiária que essa luz inerentemente também revela. A beleza em “Rio Babilônia” não é comportada, apelativa e precisa – como a paisagem despovoada e imutável do cartão-postal. É a beleza humana de um povo apaixonado e suado, frágil e forte, exposto frontalmente, iluminado pelos raios solares e pelo enquadramento que menos limita e mais liberta. É uma beleza subversiva e insubmissa às tentativas de controle, as quais, na forma de discursos, acabam por se tornarem superadas pela linguagem confrontadora do filme, que faz desses meros discursos, insuficientes e falso moralistas, medíocres e pequenos demais frente a expressividade e exorbitância das imagens incineradas e iluminadas, libertinas e sagradas.

Como uma promessa final, por via do poema de Neruda (na voz de Christiane Torloni) e do Sol que alvorece e preenche a última imagem do filme, “Rio Babilônia” tem fé. Fé na potência humana, inquieta e desobediente do povo, e, apesar da descrença no chapado cartão-postal, esperança – que no filme se realiza – de que um dia o Cristo haverá de abraçar a todos, de que um dia, ó Rio de Janeiro, “para todos os teus filhos, não só para alguns, dês o teu sorriso, espuma de náiade morena”. Além disso, crê em Deus; mas um Deus que não está acima de tudo e todos, ou apenas ao lado dos ditos pudicos (pois não há quem seja), mas dentre a gente mundana, humana, livre e extasiada, e emergido nas imagens ousadas e devassas, que – assim como os antigos babilônios, próximos aos deuses com seus monumentais e altivos templos – se aproximam dos céus, através do Cristo Redentor eminente, dos sagrados e frescos morros e da própria sublimação das paixões por meio da libertinagem e depravação da ordem. Nas palavras de Jairo Ferreira: “Mestre do cinemão, gênio no experimental, Neville agrada a Deus fazendo o que o Diabo gosta”1.

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1 Jairo Ferreira em “Neville D’Almeida, retaguarda da vanguarda”, no livro “Cinema de Invenção”, 1986.

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