O que jaz fosforescente dentro da casca carbonizada

por Lucas Saturnino

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Diz uma lenda do Talmude que, ao nascer, a criança carrega uma vela sobre a cabeça como símbolo de conhecimento ilimitado. No momento de seu nascimento, um anjo apaga a vela e a criança esquece tudo. Durante o caminho de sua vida, ela deve aprender a se lembrar daquilo que havia esquecido.

(Born in Evin, Maryam Zaree)

As lacunas são elementos estruturantes da história de todo cinema nacional. No que pode soar uma proposição paradoxal, o que existe fica mais nítido em face do que não. Como se a cinematografia a que podemos assistir no presente momento fosse composta por fragmentos de uma potência criativa que nunca terá se consumado em sua totalidade e sobre a qual esses vestígios nos estimulam a imaginar. A incompletude intrínseca à produção artística vista como reflexo representativo de uma comunidade nacional não desmerece os frutos concretos da realidade, pelo contrário: valorizam-nos, uma vez que colocam a materialidade em perspectiva frente à possibilidade do desaparecimento. Se uma nação é uma comunidade imaginada, a sua invenção oficial também se dá por meio de silenciamentos seletivos, apagamentos estratégicos e da coação ao contraditório. O caso iraniano é emblemático: do xá aos aiatolás, a censura jamais deixou de existir.

Em seu monumental estudo A Social History of Iranian Cinema (2011/12), Hamid Naficy escreve que o cinema no Irã serviu como metáfora e corporificação para a modernidade em um território de lutas perpétuas, ferozes e desiguais — político-ideológicas e além. Por modernidade, entende-se, em síntese, ocidentalização, racionalização, deslocamento de diversas ordens, intensificação sensorial, mutabilidade sociocultural e quebra de tradições — isto é, uma travessia traumática. O autor resgata a afirmação de Miriam Bratu Hansen de que o cinema seria o mais significativo “horizonte cultural no qual os efeitos traumáticos da modernidade foram refletidos, rejeitados ou renegados, transmutados e negociados”. E Naficy completa: “A política da modernidade iraniana sempre envolveu a política da percepção fílmica, da representação e da contrarrepresentação”[1].

No decurso da revolução de 1978/9, as salas de cinema sofreram o mesmo destino de outros estabelecimentos associados às perversões do imperialismo ocidental como bancos e lojas de bebidas alcoólicas, tornando-se alvos da fúria antissistema na condição de símbolos da decadência cultural e espiritual do regime do xá, de modo que mais de um terço dos cinemas iranianos teria sido destruído no período. O processo de “limpeza” pós-revolucionária também motivou a eliminação de inúmeras cópias e negativos de filmes (ficção e documentário) considerados imorais ou apologéticos à monarquia.

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O caso mais atroz ocorreu em Abadan — uma cidade com cerca de 300 mil habitantes, situada na fronteira com o Iraque, onde a Anglo-Persian Oil Company (antepassada da contemporânea BP) inaugurara uma das maiores refinarias de petróleo do planeta em 1912, e que na década de 1950 viria a ser central nas disputas referentes aos esforços de nacionalização do petróleo por parte do governo do primeiro-ministro Mohammed Mossadegh, deposto em um golpe orquestrado pela CIA em 19 de agosto de 1953. Foram os britânicos os primeiros a trazer o cinema para Abadan: na primeira década do século XX, quando a exploração do petróleo na região ainda se encontrava nos primórdios, uma unidade de cinema móvel teria passado pelo local — numa prática de propaganda que futuramente seria adotada pelo Empire Marketing Board e pelo British Council.

No 25º aniversário do golpe, na noite de 19 de agosto de 1978, quatro homens atearam fogo com gasolina ao Cinema Rex, descrito como uma sala de segunda na parte pobre de Abadan, durante uma sessão de The Deer (Gavaznha, Masud Kimiai, 1974), matando cerca de 400 pessoas, no que se estima ter sido o segundo maior atentado terrorista do século XX não perpetrado por atores estatais em número de vítimas. Os funerais se converteram em protestos sob o cântico de clamores revolucionários e ao evento é usualmente atribuída uma importância fulcral para convulsionar de vez a revolta popular que culminaria com a deposição do regime monárquico.

O governo do xá culpou os islamistas e os islamistas culparam o governo do xá. Em todo o caso, “os grupos de oposição […] incitaram claramente a destruição dos cinemas […] ou se referiram a tais ações em termos de júbilo e aprovação” e “testemunhos e documentos compilados após a queda do xá também estabelecem uma ligação clara entre os incendiários e líderes clericais anti-xá”, escreve Naficy, que compara o caso ao assassinato do presidente norte-americano John F. Kennedy no tocante ao acúmulo de perguntas não-respondidas e obscurecidas por sucessivas investigações problemáticas.

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Dos quatro supostos incendiários, apenas um foi julgado e condenado à morte em 1980. Em depoimento no tribunal, ele confessou a sua participação no crime, que teria cometido com o objetivo de inflamar a população contra o regime, se declarando um ex-viciado em heroína (precisamente a temática abordada em The Deer) que largara o tráfico e as drogas após ingressar em um grupo de estudos islâmicos, abraçar a religião e subsequentemente aderir aos protestos revolucionários. Contudo, lhe foi negado o direito à defesa profissional e nenhuma das testemunhas ou colaboradores apontados pelo réu foram chamados a depor, o que Naficy entende como uma forma de evitar a qualquer custo expor o potencial envolvimento de figuras religiosas no atentado.

Ao menos dois dos três incendiários restantes morreram no incêndio e é possível que o terceiro, desaparecido, tenha escapado caso também não tenha morrido no local. Outras cinco pessoas foram executadas (incluindo o dono e o gerente do cinema, acusados de cumplicidade) e muitas mais presas em um julgamento envolto em grande controvérsia. Ironicamente, as sessões da corte islâmica em Abadan tiveram lugar no cinema Taj (hoje Naft — ou “petróleo”), um imponente edifício em art déco onde os funcionários da antiga petrolífera britânica outrora podiam assistir aos filmes exibidos em sua língua materna, sem a presença de iranianos, que de início estiveram proibidos de frequentá-lo.

II.

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Inspirado pelo atentado ao cinema Rex é o filme Careless Crime (Jenayat-e bi deghat, 2020), dirigido por Shahram Mokri, que se utiliza dos fatos conhecidos para compor uma ficção metalinguística, flertando com o realismo mágico, como se fantasiasse: era uma vez o cinema que aqui jaz obstinadamente reenfeitiçando a própria sorte…

Em cenas orientadas esteticamente pela efervescência de uma percepção perturbada, quatros homens suspensos no tempo planejam incendiar um cinema, que pode ser o malfadado Rex ou o agouro de uma repetição contemporânea da tragédia. Noutra linha narrativa, enigmaticamente simultânea e assincrônica à primeira, em registro mais dado ao realismo cotidiano se representa a organização e realização de uma sessão de cinema numa espécie de instituição cultural, vista a partir de diferentes núcleos de personagens que vão se cruzando até o clímax, quando as duas cronologias confluem. Ainda há uma terceira, inclinada ao artifício: o filme dentro do filme (também chamado Careless Crime, também assinado por Mokri), sobre um míssil que caiu e não explodiu no interior do país, onde duas mulheres preparam uma projeção (ritual?) ao ar livre de The Deer.

Careless Crime é um filme obcecado com a ritualística da sala de cinema e, por consequência, com suas fraturas, as quais adquirem ressonâncias para muito além do seu contexto original em razão da pandemia global do coronavírus e do quão condenado pode parecer toda essa representação das “preliminares” de uma sessão de cinema enquanto experiência coletiva na data em que escrevo (março/abril de 2021). A aura fantasmática do cerimonial se duplica: a sala de cinema sendo não só espaço físico de crise simbólica da identidade nacional como também espaço simbólico de crise material da modernidade cinematográfica que havia desestabilizado aquela identidade antes do mais.

Na aparente transição temporal que separa as tentativas dos incendiários, podemos observar a experiência da espectatorialidade cinematográfica sofrendo uma indiscutível conversão ao migrar dos estabelecimentos de rua e circuito para os museus, cinematecas e demais instituições culturais. Na grande sala em torno da qual gravita a ação, o cinema iraniano encontra-se entre o ânimo continuador da juventude e a deferência museológica simbolizada pelos abundantes cartazes de obras clássicas, que já não convidam a assistir sua programação, mas estampam a magnitude de um determinado patrimônio artístico.

Os filmes de Mokri, cujo interesse por circuitos e circularidades alude a prismas estéticos e filosóficos, são experimentos que buscam nivelar a representação ao real convencional como método de desestabilizá-los mutuamente, aspirando à energia vital que nasce do encontro entre a formalização estrutural e o risco de sua incongruência. Em Fish & Cat (Mahi va gorbeh, 2013), a técnica do single take é manipulada com o propósito quase paradoxal de ratificar o tempo do relógio, igualando-o ao da ação fílmica, para assim então colocar esse tempo do relógio em xeque. Já no distópico Invasion (Hojoom, 2017), a reconstituição de um crime maniacamente subordinada à fidedignidade dos fatos descamba na convulsão do cognoscível, que se turva entre a mimesis e a reduplicação.

Em Careless Crime, mantém-se a concepção da expressão cinematográfica como coexistência (maníaca, convulsiva, disruptiva) do sistema com o ruído; e retornam, com variações, as referidas questões trabalhadas nos filmes anteriores: a perspectiva de um fechamento que acaba se baralhando entre a mimesis e a reduplicação do golpe original, além do distúrbio no tempo do calendário como sintoma dessa inconclusão traumática.

Assim, a narrativa assincrônica interpela o fenômeno da modernidade descontínua (em termos de tempo e espaço, contrato social e identidade, razão e causalidade), vivenciada pelo sujeito histórico (individual e coletivo) como convulsão vertiginosa. Vão se acumulando no presente as sequelas de temporalidades que não cessam de o preceder, consoante a compreensão de que o tornar-se é a ação de continuar tornando-se (sujeito, nação etc.). Em se tratando de escopo, Mokri vê no fragmentário um meio de acessar o holístico. De qualquer forma, se Careless Crime é capaz de nos envolver no experimento, isso se deve ao modo como articula em seu âmago o fascínio primordial do enigma.

O eixo é o trauma e o trauma é o marco fundador da cultura cinematográfica purificada em chamas, entre outros expurgos recalcados no processo de exploração do espaço de mobilidade da República Islâmica. Nesse quadro, a ritualização da memória ferida não desconsidera o choque das expectativas terapêuticas que possam existir no ímpeto por detrás do gesto com as manifestações inconstantes de um distúrbio autorreflexivo — “esta rebelião contínua a que chamamos de dramaturgia”, como diz Nasim Ahmadpour, a roteirista de Careless Crime[2] —, dando origem à catarse, se tanto, mediada pela própria inconclusão.

O respiro encantatório fica por conta do filme dentro do filme, onde a memória do cinema iraniano consegue ser projetada em uma idílica nascente sem que haja a interferência de quaisquer reflexos na tela, como notam incrédulos os personagens, enquanto a harmonia do ambiente magicamente desimpedido os congrega em comunhão, olhares convergindo tal e qual é condição sine qua non do utópico, por mais efêmero que seja. E se as bruxas fossem cineclubistas? E se elas zanzassem por aí disseminando a dádiva dos olhos livres como missão e bruxedo? O feitiço das projecionistas é justamente dar a ver — no passado, esse lugar suspeito, raiz de toda melancolia, desfavorecido pelos seus tantos pecados desvelados — o que jaz de fosforescente dentro da casca carbonizada.

III.

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O incêndio do cinema Rex também é evocado no início de outra obra recém-lançada sobre a história do cinema iraniano: Filmfarsi, de Ehsan Khoshbakht (2019), um melancólico filme-ensaio sobre a cinematografia do período pré-revolucionário, imerso na angústia diante da iminência de um duplo perecimento: o oblívio social e a obliteração material — ambos politicamente induzidos pelo atual regime iraniano, receoso quanto à circulação de imagens e significantes não produzidos sob o seu domínio, explica Khoshbakht (que, além de cineasta e escritor, é codiretor do festival Il Cinema Ritrovato, em Bologna).

Filmfarsi conduz o público em uma viagem pelo purgatório das imagens em desuso como quem nos convida a gozar do que ainda arrisca ser a derradeira orgia dos mortos-vivos às vésperas do desmemoriamento enfim irreversível, reunindo imagens cuja sobrevivência dependeria da circulação de fitas VHS e rips derivados, esses vetores miraculosos de uma existência desfigurada, transmissores do próprio conteúdo no limite do esfacelamento.

A primeira imagem de Filmfarsi é a de uma mulher com véu, coberta pelo xador (a veste chegou a ser proibida pela monarquia Pahlavi como medida de modernização forçada e após a revolução islâmica tornou-se obrigatória para uso feminino em público). Ela está perceptivelmente transtornada, ocupando a posição de testemunha em um tribunal, onde, acuada pelos microfones, jura sobre o livro sagrado. O julgamento é o da tragédia do Rex.

Na sequência, Khoshbakht traça um paralelo entre o velamento compulsório das mulheres iranianas e a manipulação da história nacional, a ofensiva contra um passado (in)comum por meio da oclusão de uma herança cultural indesejada — o cinema varrido para baixo dos panos como indigno da esfera pública, dito degenerado e corruptor. “Os cinemas se transformaram em valas comuns [para o enterro] da consciência coletiva”, proclama ele, enquanto a visão das numerosas salas incineradas preenche a tela.

Khoshbakht afirma que todos os filmes incluídos na montagem se encontram proibidos no Irã e explica que sua geração só os pode descobrir através de fitas VHS ilegais — daí ter denominado Filmfarsi de obra em “VHSscope”, colagem confeccionada com base na textura inconfundível do videoteipe de resistência (pois difunde ao passo que, bem longe do público, o passado vai se desintegrando em latas de película enferrujadas).

Cunhado pelo crítico Amir Houshang Kavousi, o termo “filmfarsi” se refere ao cinema popular iraniano produzido entre os anos 1950 e a revolução de 1979. Segundo Kavousi, o filmfarsi era fundamentado em um mashup de diversos cinemas populares estrangeiros até que disso fosse produzido algo que passasse a ilusão de ser singularmente iraniano — em certo sentido uma concepção próxima à de antropofagia cultural. Além do mais, o conceito propõe que o filmfarsi seria um simulacro zombeteiro de “cinema nacional” ao invés de sê-lo propriamente, pois o modo de produção mambembe característico da época deixaria a dever seja em matéria de “cinema” ou em sua contraparte “nacional” — como se no resultado estivesse sempre patente a “precariedade” e o “fora do lugar”.

Khoshbakht busca reivindicar as plateias descontinuadas tanto quanto os próprios filmes, enquadrados em seu contexto (social e emocional) de relação com o público: o choro, o riso, as reações extremadas da psique de um coletivo esquizofrênico. Ele observa que os futuros revolucionários também terão sido espectadores daquele cinema. Então “como puderam se enfurecer contra a imagem que eles haviam criado para si mesmos?”.

Os filmfarsi desagradavam o regime e as cabeças pensantes de ambos os lados da oposição, dividida entre religião e modernidade, na medida em que, funcionando como espelho, expunham a esquizofrenia do país a olhos vistos, alienando o público da imagem oficial de nação que o xá desejava passar e também afrontando os projetos concorrentes de seus críticos, fossem religiosos ou modernizantes. Essas disputas se faziam presentes, por exemplo, na representação do corpo feminino: para além da clássica dicotomia entre a mãe e a puta, surgiu nos filmes a figura bipolar da mulher que trajava o véu e a minissaia em simultâneo, combinando finalidades contraditórias no mesmíssimo look.

O lamento é direcionado a um cinema popular interrompido, reprimido, enterrado vivo. À parte a relação sentimental com o VHS de um lado e a questão do olhar orientalista de outro, a dinâmica de Filmfarsi se assemelha a Once Upon a Time in Beirut (Kanya Ya Ma Kan, Beyrouth, Jocelyne Saab, 1995): à sombra dos 15 anos de guerra civil libanesa, duas garotas de 20 anos encontram um tal de Mr. Farouk, guardião de películas como tesouros, que lhes (re)apresenta Beirute — cidade que elas só conheceram devastada — através do cinema, onde bruxuleante a memória do que foi perdido mantém-se palpável.

A melancolia intrínseca ao cinema: tirar companhia de onde só há fantasmas. Khoshbakht lamenta que sua atriz favorita (Irene Zazians, ou Iren, falecida em 2012) tenha sido banida pela revolução e então a traz de volta, em espectro, para um último close-up. Às telas, ela só havia retornado uma única vez: em Shirin, de Abbas Kiarostami (2008), no qual uma centena de atrizes são filmadas assistindo à representação de um antigo poema persa que o espectador nunca vê — vê-se só as reações dos rostos delas: olhares, emoções etc.

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Khoshbakht nota em tom jocoso que embora o país tivesse uma das mais ricas literaturas sobre o amor, teria sido incapaz de representá-lo nos filmfarsi. Os olhos de quem os viam, porém, é que nunca deixaram de estar lá, preenchendo essas e outras lacunas.

IV.

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Maryam Zaree é uma atriz alemã que nasceu na prisão de Evin, em Teerã, designada aos presos políticos do regime iraniano, onde seus pais, então jovens militantes de esquerda, estiveram detidos devido ao engajamento político. A mãe de Zaree foi presa já grávida da filha, que nasceria no encarceramento em julho de 1983. Dois anos e meio depois, as duas obtiveram a liberdade e rumaram ao asilo político na Alemanha. O pai só seria libertado em meados dos anos 1990 e também buscaria refúgio no mesmo país. O que se passou na prisão, como foram seus primeiros anos, ela não sabe, não lembra, nunca lhe contaram.

Born in Evin (2019) é o primeiro filme dirigido por Zaree (conhecida pelo trabalho como atriz em Transit e Undine, de Christian Petzold, além da série 4 Blocks) e se fundamenta na busca por descortinar o não-dito acerca do que terá significado nascer na prisão, algo que os pais dela jamais quiseram ou se importaram em esclarecê-la. Zaree também faz uso do vídeo para exibir imagens limadas da consciência coletiva iraniana, deixando-nos espiar os vídeos caseiros de uma família feliz diferente das outras — formada por um pai preso, uma mãe exilada e uma filhinha que não está entendendo quase nada.

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A dinâmica é simples e livre de dispositivos: acompanhamos Zaree de conversa em conversa, intercalando o afetuoso e o truncado. Se há um centro gravitacional no filme, são as expressões — reações — faciais dela. A rigor, os seus interlocutores nunca lhe fazem grandes revelações — não há clímax à nível de novas informações sobre o passado. Até pode-se achar que os mais velhos estão enrolando-a — é o que as pessoas fazem, pois, quando não veem sentido na abordagem frontal de uma determinada questão, seja lá por qual motivo. Além do que, as respostas convenientes ao processo de narrativização dos problemas muitas vezes simplesmente não existem — restando, abissais, as lacunas.

As lacunas são formativas, confundem-se com o que tomamos por realidade manifesta. O encoberto, por sua vez, não costuma reemergir na forma de discurso clarificante. É elusivo e impreciso, revelando-se nas entrelinhas do diálogo, nas maneiras de enunciação, nas digressões da convivência, nos limites da transparência, na linguagem corporal. A câmera (em belíssimo trabalho de Siri Klug) se detém no cicatrizado ao invés de ficar só sondando o lancinante, como seria usual em iniciativas similares, e a atenção do olhar à riqueza das expressões faciais que vão se acumulando no percurso é extraordinária.

O comovente é a delicadeza dos rostos roubados à morte. Quase todas as pessoas em Born in Evin, praticamente sem exceção, só não estão mortas por detalhes — dos que já tiveram a vida no fio da navalha aos que poderiam nem sequer ter nascido. E, entretanto, ali estão. A fisicalidade dos sobreviventes retratados é a fonte humanista da beleza que transborda graciosa, imponente e encantadora. Trata-se de uma política de contrarrepresentação.

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Zaree se vê na necessidade de inventar uma nova gramática para endereçar sua história. A iraniana lhe é estrangeira, além de uma impossibilidade prática — nenhuma imagem é autorizada aos derrotados, de forma que eles deixem de existir na consciência coletiva do país. Quanto à alemã, só lhe resta fazer chacota com o trabalho de atriz “étnica” na Europa. Logo no início, ela se representa vestindo um longo véu islâmico — como se estivesse se preparando para uma filmagem, que, caso não seja real, poderia ser — e diz: “A geração dos nossos pais não fugiu do Irã para que os filhos tivessem que interpretar estereótipos racistas nos mais estupidamente nonsenses dramas televisivos alemães”.

A princípio, ela tenta fazer isso através de uma chave performática, só que as ideias nem sempre funcionam. Ao final, não se inventa nada e a questão da performance deixa de ser central conforme vamos assistindo Zaree submergir em seu íntimo. A câmera operando como sismógrafo que mensura a permanência sinuosa do trauma em cada face filmada — à exemplo do choro preso que se converte em lágrima irrefreavelmente derramada.

Já é um clichê afirmar que tal filme é “sobre trauma” e decerto hoje existem demandas (comerciais e políticas) para que essas narrativas sobre trauma sejam produzidas, em massa, nas artes, tornando natural a suspeita em relação a estetização cosmeticamente terapêutica da matéria, sem nem entrar no mérito de iniciativas mais condenáveis.

O caso de Born in Evin é curioso: Zaree não teria crescido com a plena consciência dolorosa do trauma e parte do ímpeto por trás da realização do filme até parece se originar de certa culpa internalizada em relação ao próprio esquecimento, que, embora a tenha protegido, não poupou mais ninguém. Para além da ausência do pai em parte da infância, ela conta que só adulta descobriu uma memória traumática incrustada (inconsciente) dentro de si: no Marrocos, teve um ataque de pânico causado pela declamação de versículos religiosos no sistema de som de um ônibus; mais tarde, o seu pai lhe explicou que a reprodução ininterrupta de versículos religiosos era um dos métodos de tortura aplicados em Evin.

A questão pode não ser tanto descobrir a verdade quanto finalmente encontrar o seu preço. A moral, então, aqui, passa a ser sofrer juntos uma dor que é ou deveria ser coletiva — como consciência essencial à faculdade de sentir. O filme é uma carta de amor (dela aos pais) e, como tal, procura dar forma às coisas para avivar o mais difícil de expressar.

V.

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À 00:20 de 14 de novembro de 2020, foi dado o upload: uma cópia da versão restaurada de The Deer (Gavaznha, Masud Kimiai, 1974) apareceu em um célebre fórum de tracker privado para compartilhamento de filmes. Aos familiarizados com as condições prévias de disponibilidade de The Deer, era como um milagre: a qualidade da imagem cristalina, 1080p, AR apropriado, duração completa, final original, sem cortes. A restauração foi produzida com base na telecinagem de uma versão em película quase completa do filme, conquanto duas breves cenas só tenham podido ser recuperadas das fitas VHS.

O filme tinha aparecido ali pela primeira vez em agosto de 2013: a versão censurada, sem legendas, qualidade horrorosa de som e imagem, proveniente de um DVD iraniano ao que tudo indica ilegal. Os esforços de legendagem para o inglês começaram um ano depois. Alguém, nesse meio-tempo, encontrou um corte mais longo no YouTube (2h vs. 1h42) — é o único upload do perfil, um CAMrip, datado de 03/02/2013 (em abril de 2021, conta 474 mil views). Porém, um dos falantes de persa do fórum advertiu que o áudio dessa versão estava fortemente editado, censurado. Levantou-se, então, a possibilidade de que fosse customizada uma montagem amalgamada a partir das duas cópias.

O corte censurado ressurgiu com melhor qualidade após um usuário comprar outro DVD bootleg em meados de 2015. Naquele setembro, a primeira versão das legendas em inglês foi concluída — e revisões foram sendo feitas nos anos seguintes. O corte original apareceu assistível pela primeira vez em abril de 2016. Já em agosto de 2020 foi encontrada uma cópia colorizada em um grupo de Telegram, novo método de compartilhamento de arquivos no Irã (nos comentários, linkou-se uma notícia sobre estudantes que teriam desenvolvido um software, baseado em inteligência artificial, de coloração de imagens).

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The Deer é o tipo de coisa que não interessa a ninguém que deseja cultivar uma imagem de nação. Trata-se de um melodrama masculino cujo foco é o reencontro de dois amigos de infância desfigurados pela passagem do tempo no cenário imundo de uma sociedade corrupta, repressiva e letárgica, onde o fracasso é nacional, geracional e generalizado. De um lado, o viciado em heroína que inspira asco em todos à sua volta; do outro, o assaltante de bancos que, escondido da polícia, assiste impotente à vida passar na janela (codificado de forma a remeter a um guerrilheiro de esquerda, dado inexplícito devido à censura).

The Deer é um ponto de conexão entre o filmfarsi e o cinema novo de Mehrjui, Beizai e companhia. Os créditos iniciais foram criados por Kiarostami e consistem na justaposição de arames farpados e sementes de dente-de-leão, acentuando no plano-detalhe o contraste entre a beleza e a feiura, a degeneração e a inocência, como observa Naficy. A desolação também se sobressai por efeito da alternância entre close-ups e planos gerais, à medida que, seja na distância ou na intimidade, já não se distingue esperança nas perspectivas.

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No papel do toxicômano arruinado, a performance de Behrouz Vossoughi é brilhante, tão impactante que a repressão estatal o elegeu como o principal responsável por aquela desmoralização. Além das sessões de interrogatório e ameaças de morte, o filme já lhe havia rendido, antes, o prêmio de melhor ator no festival de Teerã, entregue pela Imperatriz Farah em pessoa. Vossoughi, grande estrela popular no período, até hoje vive no exílio.

“Nós sabemos que essas coisas acontecem no país, mas não é necessário representá-las no cinema!”, teria reagido indignada a irmã do xá, Ashraf Pahlavi, ao assisti-lo. The Deer foi severamente mutilado pela ação da censura e o final modificado para atenuar a brutalidade policial. Após mais de um ano bloqueado na censura, ele estrearia apenas em janeiro de 1976, tornando-se um fenômeno de público e sendo exibido continuamente até o fatídico incêndio do Rex. Poucas semanas depois do atentado, na chamada “sexta-feira negra” de setembro de 1978, o exército do xá abriria fogo contra manifestantes reunidos em frente ao Cinema Nahid, em Teerã, onde The Deer ainda se encontrava em cartaz.

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Como os filmes que viriam a ser banidos após a revolução sobreviveram? Uma vez que o poder ainda não havia sido centralizado por completo durante os dois primeiros anos da República Islâmica, algum espaço de manobra persistiu brevemente no meio da confusão transicional. Assim foi possível que à época um certo alguém anônimo percorresse os estúdios, telecinando o material em 35mm e criando cópias disso em vídeo. As fitas então passaram a ser vendidas junto à crescente diáspora iraniana na Califórnia, pois o home video demoraria a se popularizar no Irã — e posteriormente seriam através desses mesmos bootlegs, diz Khoshbakht, que os filmes retornariam ao seu país de origem[3].

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Para Khoshbakht, os filmfarsi são caracterizados pela tensão — tensão que está presente nas narrativas e na estética; repercute na produção e na exibição; atravessa a técnica e a cultura; reporta-se aos artistas, aos personagens e aos espectadores. Naficy faz diversas alusões a espelhos: ao cinema que fabrica e reflete as imagens distorcidas da identidade nacional, em crise mediante as perturbações de reflexos afrontando espelhos. Nas cópias clandestinas, essas tensões e distorções são também literais em face da precariedade da imagem. E assim a visão de cada versão desfigurada de The Deer acaba se firmando como monumentalização momentânea em homenagem às ruínas insurgentes daquela cultura cinematográfica desmemoriada.

Questionado sobre o enigmático título de The Deer, Kimiai cita uma memória dos tempos de escola: um professor seu dizia que “os cervos têm pernas feias e lindos chifres, mas o que os salva do perigo é a sua velocidade, e isso graças às pernas disformes e esqueléticas, enquanto o que os enrasca são logo seus longos e formosos chifres”.

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[1] As referências da primeira seção se encontram em “A Social History of Iranian Cinema”, de Hamid Naficy (Duke University Press, 2011/12). As da última seção, no tocante a “The Deer”, também. Sobre modernidade, ver o volume 1. Sobre “The Deer”, volume 2. Sobre o incêndio do cinema Rex, volume 3.

[2] http://www.iranart.news/Section-cinema-4/11055-nasim-ahmadpour-playing-with-literature-and-dramaturgy

[3]  https://soundcloud.com/user-596073675/24-filmfarsi-the-deer-with-ehsan-khoshbakht

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