Memórias de cinema, revolução e uma aristocracia ridícula

Por Bernardo Moraes Chacur

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Em A Última Ordem (Josef Von Sternberg, 1928), um ex-general czarista, interpretado por Emil Jannings, se vê reduzido a figurante em Hollywood, representando a si mesmo em uma produção ambientada durante o fim do antigo regime. Sendo um filme sobre a feitura de filmes, é memória de uma indústria já a pleno vapor durante a transição para o cinema falado. Ao recontar a queda do general, é também registro da revolução de 1917 ou, mais precisamente, de uma certa imagem daquela revolução poucos anos depois dos fatos e poucas décadas antes da União Soviética se consolidar como o grande adversário dos Estados Unidos.

A trama começa com um diretor russo (William Powell), escalando o elenco para seu próximo trabalho e que, após examinar várias fotos, reconhece uma figura do passado, o grão-duque Sergius Alexander, selecionando-o prontamente. Na sequência, encontramos pela primeira vez o antigo aristocrata, na penúria e acometido por tremores incontroláveis. Arrastando-se até os portões do estúdio, o ex-militar se acotovela entre uma legião de maltrapilhos, figurantes miseráveis como ele. Uma vez admitido, o acompanhamos através da verdadeira linha de montagem na qual recebe o figurino das mãos de funcionários maldispostos. Trata-se de uma imagem totalmente desglamourizada de uma indústria que sempre buscou se retratar como a “fábrica de sonhos” e, não por acaso, o filme desagradou os executivos da Paramount, que cogitaram engavetá-lo. Já paramentado, o grão-duque tira dos bolsos uma antiga condecoração e, após ser ridicularizado pelos colegas de elenco, fita-se no espelho. A partir desse momento, a narrativa retrocede a 1917, em um dos fronts russos da Primeira Guerra Mundial.

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Naqueles dias, o general ainda se encontrava confortavelmente instalado em sua posição de prestígio e arrogância. Inspecionando o local onde suas tropas estavam lotadas, interroga dois bolcheviques, que tentam se passar por simples membros de uma trupe teatral. Um deles é o personagem do futuro diretor de cinema, que é açoitado pelo grão-duque. A segunda (Evelyn Brent, com parte das pernas à mostra, apesar da nevasca circundante) torna-se um misto de prisioneira e convidada de honra, situação da qual se aproveita para planejar o assassinato do general.

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Mas, embaraçando tais planos, o aristocrata se revela um verdadeiro patriota aos olhos da revolucionária. Se em um primeiro momento, o general desloca a contragosto um pelotão para a frívola inspeção do czar, posteriormente se recusa a encenar uma ofensiva para entretenimento do monarca, cioso em sacrificar vidas (ou, talvez, recursos militares) em prol do jogo de cena. Pouco depois, a bolchevique cai nos braços do grão-duque que, servido por todos, não perde nenhuma oportunidade de servi-la. Quando a revolução finalmente irrompe, a espiã reassume seu antigo papel e precisa participar dos ataques e humilhações ao amante para poder se colocar na posição de salvá-lo (outra encenação em uma trama repleta delas). Colaborando em sua fuga, contribui antes para a sua destruição moral.

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A representação do levante popular e suas causas é tratada no filme de forma ambígua. Por um lado, o mito de fundação dos Estados Unidos enaltece a insurreição antimonárquica e a vitória do povo comum (evidentemente branco) contra a classe aristocrática e há aqui resquícios dessa retórica. Nas décadas de 1930 e 1940, no embate contra o nazismo, vários roteiros seriam filmados sobre revoltas contra a tirania através dos tempos. Em 1928, contudo, aqueles eventos eram desconfortavelmente recentes – e comunistas. O precedente mais próximo do enfoque adotado em O Último Comando é provavelmente o enquadramento da Revolução Francesa no cinema norte-americano (e que remonta a, pelo menos, Dickens): uma rebelião com princípios justos, mas que degenera em anarquia nas mãos de uma turba de baixos instintos. Vale lembrar que, vinte anos mais tarde, durante o terror dos primeiros anos da Guerra Fria, tanto a escolha do tema quanto o menor gesto de simpatia pela União Soviética poderiam render prisão ou banimento para os envolvidos.

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Com o fim do flashback nos dias de revolução, retornamos a 1927 e ao set de filmagens, onde fica evidente que o diretor, antiga vítima do general, pretende reencenar a agressão sofrida, seja por vingança, masoquismo ou espírito de denúncia (e como pode se esperar de Sternberg, essa motivação não será esclarecida). No meio da gravação da cena, ambientada em uma trincheira, o grão-duque começa a delirar, acreditando-se transportado de volta à antiga pátria e posição e exorta os comandados a uma última investida pela salvação da Rússia. O arrebatamento aniquila o velho peito e o aristocrata/figurante morre no ato. Quando um dos membros da produção lamenta a perda de um “grande ator”, o diretor surpreendentemente replica: “ele era um grande homem”.

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Como podemos entender essa contraditória admiração do bolchevique/diretor pelo algoz, ainda menos explicável que o amor da espiã pelo captor? A narrativa, pelo menos, parece ter menos simpatia pelo personagem: assim como na próxima parceria entre Jennings e Sternberg (O Anjo Azul, de 1930), A Última Ordem é o espetáculo de degradação de uma autoridade. O grão-duque é, na maior parte do tempo, presunçoso e cruel, desmoronando fragorosamente uma vez derrubado de seu pedestal e só volta a exibir alguma dignidade no momento da filmagem, quando se vê cenograficamente restituído de um poder que, aliás, sempre dependeu de uma elevada carga simbólica. Assim, o fascínio dos revolucionários diante de uma figura tão patética parece capturar elementos essenciais da atração exercida pela aristocracia: romântica, inconsistente e atrelada a figuras incapazes de justificar a veneração recebida.

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Balzac, que se declarava reacionário e monarquista, era o romancista preferido de Engels e Marx. Para os filósofos, a simpatia do escritor à “classe condenada a desaparecer” não o impediu de “os ter descrito como não merecendo melhor sorte”[1]. Trabalhando em outro registro e explorando outro contexto, Sternberg executa uma variação ainda mais irônica dessa dinâmica entre elegia e sátira: deixa a nostalgia por conta de alguns personagens, enquanto se entrega sem maiores reservas à demolição da Velha Ordem.

 

Agradecimentos aos editores da Multiplot pelo espaço e paciência

[1] Seguem as citações completas:

Não há dúvida que, em política, Balzac era legitimista. A grande obra que deixou é uma elegia permanente, lamentando a decomposição inevitável da alta sociedade; todas as suas simpatias vão para a classe condenada a desaparecer. Mas, apesar disso, a sátira nunca é tão contundente nem a ironia nunca tão amarga como quando põe em ação, precisamente, os aristocratas, esses homens e mulheres por quem sentia uma simpatia tão profunda”. (Karl Marx, em correspondência à Margaret Harkness em 1888).

O fato de Balzac ter sido forçado a ir contra as próprias simpatias de classe e contra seus preconceitos políticos, o fato de ter visto o fim inelutável de seus tão estimados aristocratas e de os ter descrito como não merecendo melhor sorte, o fato de ter visto os verdadeiros homens do futuro no único local onde, na época, podiam ser encontrados – tudo isso eu considero como um dos maiores triunfos do realismo e uma das características mais notáveis do velho Balzac”. (Friedrich Engels, na mesma correspondência)

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