REICHENBACH 09 novembro 2004 (2)

Por Natália Reis e Ruy Gardnier

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Faz mais ou menos um ano que descobri numa checagem aleatória dos meus lugares favoritos na internet que o “Olhos Livres”, blog que Carlos Reichenbach manteve com afinco entre meados de 2008 e 2010 (para além do “Reduto do Comodoro”, “Olhos Livres ano 02” e “Olhos Livres bônus”), havia sido tirado do ar. O choque inicial – misturado com uma tristeza, como a de quem perde uma fotografia de família – veio principalmente porque eu gostava de pensar, hiperbolicamente, que minha grande colaboração para a memória do cinema brasileiro seria uma espécie de  catalogação e organização dos posts migrados para um novo domínio pago e seguro, sem riscos de se perder no tempo – uma tentativa de preservar o processo cuidadoso de curadoria e rememoração com que o diretor listava raridades, descobertas musicais, músicos e bandas que acreditava que não deveriam ser esquecidos (com uma série própria chamada “Onde foram parar esses caras?”  parte do inventário “999 discos para ouvir antes de morrer”), “gênios” pouco comentados como Jackie Gleeson e ainda os registros cineclubistas das suas “Sessões Comodoro” no Cinesesc (SP) e das suas imersões no “cinema escatológico”.

“Ouça com olhos livres/ veja com ouvidos livres” são expressões encontradas no livro Cinema de Invenção, de Jairo Ferreira, amigo e por incontáveis vezes companheiro criativo do Carlão. Penso que funcionam muito bem como senha ou palavras-chave para se adentrar no universo cinematográfico de ambos e, de certa forma, o registro da presença virtual de Reichenbach, através dos posts intermináveis nos seus blogs – exercício que manteve desde o começo dos anos 2000 –, assumia esse mesmo papel complementar a sua obra. Graças a ferramentas como a “Wayback Machine” do archive.org (que nos permite ver uma versão arquivada do site em momentos diversos de uma linha temporal), hoje é possível ter acesso a muita coisa ali, mas a sensação constante em meio ao cemitério de links desativados do rapidshare que o diretor disponibilizava em toda a sua generosidade (e transgressão) para download dos álbuns que escavava, é a de estar manuseando uma peça frágil que um dia também pode se desfazer.

É difícil traçar paralelos entre cinema brasileiro e memória sem lamentar os processos de deterioração que caminham ao lado de uma história feita também de filmes que jamais poderão ser vistos – perdidos, corroídos ou debandados por museus e cinematecas fora do país. Mas vez ou outra um acontecimento extraordinário como o upload de uma obra rara e já desacreditada em fóruns de pirataria ou a transcrição de uma entrevista até então inédita com um cineasta imenso como Carlos Reichenbach possui o poder de restabelecer parte das nossas esperanças. No final de 2017 uma fita com a etiqueta “REICHENBACH 09 novembro 2004  (2)” chegou até mim de maneira igualmente extraordinária, mas por inúmeros motivos permaneceu intocada até agora. Por ocasião de uma nova edição da Multiplot!, cujo tema é Cinema e Memória, parece mais que propício trazer à tona essa preciosidade guardada por tanto tempo e também uma forma de celebração das conexões e amizades que trabalham para garantir que as memórias do nosso cinema possam ser preservadas. Ainda que seja um fragmento de uma conversa maior, espero que o depoimento a seguir forneça um vislumbre das paixões que consumiam e moviam o Carlão – pelos filmes, pelo fazer cinema, pelos amigos queridos e, claro, pelo gesto de contar suas histórias. Certas informações e nomes precisaram ser checados e graças às contribuições de Paulo Sacramento e Remier Lion, algumas lacunas puderam ser preenchidas. Os agradecimentos logicamente também vão para os três entrevistadores Francisco Guarnieri (que contribuiu igualmente para a identificação de alguns trechos), Guilherme Martins e Ruy Gardnier, que além de ter assumido a transcrição, nos oferece essa breve introdução:

“A conversa aconteceu no dia 9 de novembro de 2004 na casa do Carlão, na R. Piauí, em Higienópolis, São Paulo. Era uma entrevista para a Contracampo e fomos eu, Francisco Guarnieri e Guilherme Martins. O encontro foi mais um papo descontraído do que uma entrevista ao pé da letra. Na minha volta para o Rio de Janeiro, uma série de obrigações tomou a frente nos afazeres e a entrevista acabou nunca sendo transcrita. Das três fitas, só a fita 2 pôde ser encontrada. O assunto da fita 1 girava em torno de Bens Confiscados e Garotas do ABC, que eram seus filmes mais recentes, e dos projetos cinematográficos do Reichenbomber (apelido a partir da coluna online que ele tinha no ZAZ/Terra). Na fita 2, a conversa rumou para filmes extremos, cinefilia na internet, salas de repertório, o futuro digital do cinema e o Quepe do Comodoro, premiação criada por ele para valorizar quem ama cinema. (RG)”

LADO A:

Carlos Reichenbach: Você tem esse tipo de coisa, que falavam tão mal do filme, que eu me preparei pra sair decepcionado, quase mudando de ramo. Uma surpresa atrás da outra, esses caras [que falaram mal] tão loucos? Ou nós estamos ficando loucos?

Francisco Guarnieri: Mas a Olga é um personagem de TV.

CR: Como eu tava dizendo, não vi, não posso comentar, seria injusto.

Ruy Gardnier: Já que a gente está falando dos filmes de cinema brasileiro, tem um filme bastante perdido na década de 90, e que se não me falha a memória é o único filme da década de 90 a fazer um paralelo claro com o Douglas Sirk, e eu acho que nesse sentido lembra muito Bens Confiscados, que é o filme do Amylton de Almeida, O Amor Está no Ar.

CR: Mas o Amylton de Almeida, além de ter sido um grande amigo, foi uma pessoa… Você vai levar um susto! Pra ele, o maior filme do cinema brasileiro era o Filme Demência. Ele fez questão de colocar o Ênio Gonçalves no filme em homenagem ao Filme Demência. A grande crítica do Filme Demência da época em que ele foi lançado é do Amylton de Almeida, que era um crítico importantíssimo, talvez o mais importante do Espírito Santo. Ele era apaixonado por dois filmes, Amor Palavra Prostituta e Filme Demência. Filme Demência então pra ele era o Deus e o Diabo na Terra do Sol. Então havia uma certa ligação. Mas eu não vi o filme, infelizmente eu não vi. Mesmo porque foram tantos problemas que ele teve pra poder concluir, ele morreu no meio do processo. Ele gostava muito de Amor Palavra Prostituta. (…) Ele deu um nome sirkiano. Não duvido que Sirk seja um cineasta que é referência pra ele. E ele tinha uma coisa curiosa porque tinha mais influência da cultura germânica do que eu tinha, por exemplo. Eu sou de família germânica. Até onde eu saiba ele não era, mas tinha muito essa influência. Detectou bem esse aspecto dele que… talvez ele sim teria sido um grande cineasta influenciado pelo Fassbinder. Mesmo porque adorava Douglas Sirk. E tinha essa coisa da cultura germânica. Pra mim talvez o cinema e a cultura que mais me tenha influenciado seja o cinema italiano. O cinema japonês também, mas basicamente o cinema italiano. Minhas grandes referências foram sempre fincadas no cinema italiano. Cada vez eu percebo isso com mais clareza.

RG: O Bens Confiscados tem uma coisa muito interessante de estrutura, que ao mesmo tempo o cenário macro da política fica do lado de fora, fica só passando pelas visitas do assessor ou de alguma coisa que se vê na televisão, mas ao mesmo tempo você vê os efeitos da política presentes na carne dos personagens, sobretudo no da Betty Faria, e ao mesmo tempo você joga a outra face da política, ou a outra face do político, porque afinal apesar de ser um grande ladrão, se coloca na voz da Betty Faria o outro aspecto que dá humanidade a essa pessoa, essa figura, que é o contato humano, o jeito como ele ama as mulheres. Você cria uma ambivalência do personagem, você tenta dar corpo a ele, mais ou menos como uma ideia. Na figura pública e nas opções éticas se pode julgar uma pessoa, mas quando se vê de perto sempre fica sendo mais difícil.

CR: Olha, isso daí inclusive vou te dizer, talvez eu tenha detectado onde nasce isso, isso é indiscutível, talvez seja a herança do cinema do Zurlini. Zurlini talvez tenha sido o cineasta mais influenciado – e assumiu isso inclusive publicamente numa grande entrevista sobre a carreira dele – pela leitura do Tolstoi. Tolstói não à toa é um escritor anarquista. Talvez uma grande referência literária pra mim tenha sido o Tolstoi que dizia que por trás de toda grande história, todo grande drama íntimo, tem um momento histórico traumático acontecendo. E talvez o filme referência pra isso, pra mim, é indiscutivelmente Verão Violento. Onde você vê o fascismo estourando lá dentro e aquele casal dançando. Aquela sequência é genial. Os camisas-negras estão chegando lá dentro e o casal dançando “Tender Moon”, ou algum clássico da música americana. Um pé no fascismo já. E a coisa afetiva, a coisa romântica aparentemente em primeiro plano. Agora, você nunca aceita uma realidade histórica tão latente, ela invade a vida das pessoas pela porta dos fundos. Que marca muito também Dois Destinos, não é? Em nenhum momento do filme, é dito, explicitado, que o Mastroianni pertence ao Partido Comunista. Mas você percebe isso, isso afeta a convivência dele com o irmão. E então é muito legal, quando você vê que no fundo é a história que está dando as cartas. Eu acho que isso da política é nitidamente influência zurliniana, eu não quis fazer um filme sobre a política vista pela porta da cozinha mas a forma como ela age é iminentemente instintiva. Pra mim, no ato de escrever, aliás o que me estimulou a desenvolver esse roteiro, e a trabalhar uma coisa que a meu ver foi a chave para escrever esse roteiro, foi a ideia de escrever um roteiro em que o personagem principal, você não vai ter nem uma fotografia desse cidadão. Esse personagem vai afetar todas essas pessoas o tempo todo, manipular. Mas ao mesmo tempo, sem ficar trabalhando com personagens chavões. O cara tem as duas caras. É uma espécie de Cidadão Kane ao mesmo tempo que é fascinante, é calhorda… Shakespeare é parte disso, né… Grandes filmes sobre grandes personagens, grandes canalhas, e absolutamente sedutores. Isso está dentro da tradição da dramaturgia, acho que não tem nenhuma novidade, é só uma forma de trazer isso para a minha realidade.

02Verão Violento (Valerio Zurlini, 1959)

Como a gente não confia nessa… cultura da corrupção, tráfico de influência. Eu acho que a grande diferença que a gente tem no cinema brasileiro – não sei se foi o Roberto Santos que dizia isso –, quando se vai fazer uma coisa no Brasil, não pode abdicar de uma certa dose de humor. É o que te bota o pé aqui. Tem alguma coisa que tem que ter e é nisso que você percebe o quanto existe o preconceito contra – num geral, a cultura brasileira, a literatura, a música, o cinema. Existe um preconceito fenomenal, fala-se tanto, cobra-se tanto do cinema popular, mas quando se fala em chanchada, todo mundo bota o pé pra trás. Mas bota o pé pra trás no ato. Eu estive vivendo muito essa aflição com Alma Corsária. Eu lembro que muitas críticas diziam assim: “Ah, o filme é bacana, um filme heróico, feito sozinho” (…) elevado a um âmbito do heroísmo. Vai à merda! O filme é outra coisa. Ao contrário. Eu acho que se o filme tem uma unidade, é uma vontade o tempo todo de fazer chanchada, tipo pedir pro Jorge Fernando homenagear o Zé Trindade – uma puta homenagem ao Zé Trindade –, a própria jurada do Silvio Santos [Flor] lembrava a velha comediante, a Dercy Gonçalves quando jovem, até fisicamente lembra, a Dercy Gonçalves novinha.  (Uma convidada entra na casa e os cachorros começam a latir, deixando a conversa inaudível)

RG: Estávamos no preconceito da elite culturalista contra a comédia brasileira.

CR: Nossa, é uma coisa inacreditável. Por mais democrático que possa parecer, na hora que você toca na questão da comédia, é uma loucura, porque os preconceitos baixam mesmo. É tudo muito bonito quando é visto à distância, tipo pobre, visto de longe. Mas eu lembro quando teve a grande retrospectiva da chanchada, foi há uns 30 anos, foi na Universidade de São Paulo, na sala de projeção, eu perdi um mês da minha vida. Perdi nada, ganhei um mês da minha vida. Ia todo dia lá porque eu não conseguia deixar de ir. Era impressionante como… foi uma geração que não se reciclou mais. Eu não tenho a menor dúvida de que uma mostra dessa como a do Remier [Cinema Brasileiro – A Vergonha de uma Nação, nde *] é utilidade pública. Os filmes mais próximos da pornochanchada nem são tão interessantes, mas aqueles filmes da década de 50 ninguém viu. Eu tenho loucura pra ver esses filmes. Tem coisas audaciosíssimas que vão ser exibidas.Tem O 5º Poder do [Carlos] Pedregal. Filme feito pelo Radar [Leovegildo Cordeiro], filme feito em elogio ao Esquadrão da Morte, considerado o filme mais fascista jamais feito no Brasil, um filme que faz totalmente a apologia do olho por olho… O nosso William Lustig.   Com música do Remo Usai. Wilson Grey como assistente de direção. Deve ser genial. Deve ser uma coisa do outro mundo. A chance de poder ver Massacre no Supermercado, melhor filme do J.B. Tanko. Acho que é a hora inclusive de se quebrar muitos tabus. Isso que falta, eu acho que tem toda uma geração que não se reciclou, não viu chanchada. Houve, assim, a coisa de papel. Eu quero ver o sujeito ir lá, ficar durante um mês todo dia vendo filme do Zé Trindade, do Ronaldo Lupo. É impressionante, porque de uma certa forma, queira ou não queira, o cinema de gênero também precisa de um aprendizado, exige um certo aprendizado. Perder o preconceito, quebrar tabus exige um certo aprendizado. Eu acho que tem um pouco essa função, tudo isso que ele [Remier] está fazendo, é por aí mesmo. Existe nitidamente uma diferença entre o chamado cinema trash e o cinema transgressor. Ed Wood é um horror, é uma bosta. Estou falando de filmes transgressores e existe uma diferença da água pro vinho, uma mínima inteligência percebe isso. Então você tem uma coisa de afinar gosto.

O fato de também estar preparando… Não sei nem se eu vou terminar fazendo… Mas é um projeto que eu venho desenvolvendo há um ano e meio, de fazer um filme sobre censura, na verdade não é sobre censura, mas é sobre imagem interditada. Imagens interditadas. Então durante um ano e meio eu tentei descansar um pouco a visão. Eu sujei meus olhos. Escatologia, barra pesadíssima. Puro cinema interditado propriamente dito. Os filmes mais ignóbeis jamais feitos. Teve uma pesquisa inclusive, você deve ter visto, lá no Cineclick. Os filmes mais nojentos. A partir disso eu resolvi fazer um documentário de longa-metragem, só com material comprado – tenho dois contatos inclusive, na Itália e na França, pra ir atrás dos filmes, pra ver quanto custa os direitos de Emmanuelle na América, de uma série de filmes teoricamente que não sejam snuff – e aí você de uma certa forma, é muito engraçado – e isso é uma teoria que se aprende mais vendo filme ruim do que filme bom, e que escola de cinema tinha que mostrar é bosta mesmo, o pior do cinema e não o melhor do cinema, porque o cara nunca vai fazer mesmo, né? Do melhor e do pior do melhor, ou o melhor do pior, sei lá, qualquer coisa. Foi um exercício de um ano e meio, quase dois anos, de ver tudo. “Ih, esse filme foi proibido em 60 países, 70 países”, eu vou atrás, vou comprar, fazer a cópia, entendeu? Cansei de ir em locadora de filme pornô pra poder ver até onde a mente humana foi capaz de chegar. Porque no fundo o documentário é sobre isso, sobre exatamente essa ideia do que o que é vetado aqui não é ali. Se eu mostro um braço aqui, não diz nada, e filmar o braço da atriz principal no Irã, entendeu, é pecado mortal. Tudo isso começou com essa descoberta, dei uma grande entrevista para um casal de críticos iranianos, lá em Pesaro, e eles ficaram muito impressionados por causa do sucesso do Abbas Kiarostami, e o outro lá, Mohsen Makhmalbaf: “Eu quero entender isso em São Paulo”. Aí esse casal de críticos iranianos veio fazer uma entrevista. Isso num calor de 40 graus. Fizemos a entrevista. Eles tinham visto Alma Corsária, foi lá que o filme ganhou um prêmio de melhor filme, eles queriam publicar uma foto e perguntaram: “Por favor, você não tem material fotográfico do filme?” Aí eu escolhi material fotográfico e a primeira fotografia que eu dei era uma fotografia da Carolina Ferraz em cima de um prédio, que é o símbolo do filme. Dei pra eles, assim. Aí eles falaram: “Desculpe, eu não posso reproduzir essa foto”. “Por quê? Só tem ombro aqui”. “Por causa do braço de fora”. Só então eu me dei conta que a mulher dele estava com a blusa até o punho, e isso com um calor de 40 graus. Quer dizer, não publica a foto da Carolina Ferraz porque estava com o ombro de fora. Uma das grandes razões de fazer o documentário é exatamente sobre isso

 

03Alma Corsária (Carlos Reichenbach, 1993)

Esse projeto eu ainda tenho, se chama “Cinema Interditado”. Um projeto todo feito com material de arquivo, de filmes etc. e tal, e claro que tem que ter o filme sobre Maomé [The Message, de Moustapha Akkad], que é proibido de passar, que só passa no aniversário… Que não passa no Oriente. E daí pra frente essa coisa mais louca e mais violenta… A primeira coisa por trás do filme é quebrar tabus. Tem que ir até o fim. Eu estou falando tudo isso porque eu senti com muita clareza, a minha visão do cinema mudou muito. O nível de exigência também mudou. Eu tive que sujar, como se estivesse realmente quase ferindo o olho mesmo. Como se estivesse passando uma lixa na visão pra poder aperfeiçoar ela. Vi da coisa mais bárbara, mais ignóbil, das imagens mais torpes, mais malfeitas e ao mesmo tempo violentas e sublimes. E acho que isso talvez tenha me tornado mais rigoroso talvez até com meu próprio cinema. E eu posso dar certeza pra você, alguém uma vez falou “Tem alguma coisa curiosa, tenho uma impressão que mudou, tem uma coisa visual diferente nos seus dois últimos filmes em relação aos filmes anteriores”. Deve ter sim! E foi esse exercício. Foram três anos dedicados a isso. Antes de filmar [Garotas do ABC], antes inclusive de ter tido o infarto. E acho que nesse nível também, a minha coordenação aumentou profundamente com relação a certas coisas, muito mesmo, até certos filmes que hoje eu admiro muito, passei a admirar…

RG: Por exemplo?

CR: Canibal Holocausto [de Ruggero Deodato].

RG: Tinha visto antes?

CR: Era fascinado, mas não admitia que gostava. Acho que pra muita gente isso aconteceu. Não é só pra mim não. Tanto que hoje o cara é mestre. Até três anos atrás era um cara da contrafação. É muito louca essa questão. Eu vou te dizer como muda a noção. Nunca me passou pela cabeça que um dia eu tivesse coragem de ver vinte, trinta filmes do Jesús Franco, um cineasta horrível. Eu precisei ver trinta filmes do Jesús Franco pra ver duas obras-primas. O resto é muito ruim, muito ruim. Em todos os sentidos, ele era porco pra filmar. Bota porco nisso. Mas quando ele acerta, talvez pelo fato de ter trabalhado com todos os grandes…

RG: Quais são esses dois?

CR: Succubus é uma obra-prima. Succubus acho que inclusive é Mulholland Drive antes de Mulholland Drive. Esse vale a pena. O outro é Cartas de Amor de uma Freira Portuguesa. É uma beleza de filme. Um filme simples, ao mesmo tempo extremamente delicado… E tem uns filmes intermediários que são muito interessantes, que por incrível que pareça, são os filmes mais comerciais, filmes de “woman in prison”, etc. e tal, que são até engraçados, que têm um charme interessante. Mulheres lindas, como a Ursula Buchfellner, que é uma deusa. E tem também uma coisa que ele faz com a mulher dele [Lina Romay], que é muito interessante porque não importa se o filme não é bom, o que é genial é a coisa da postura de vida mesmo. Ele, em certo sentido, é o Mojica europeu. Sem dúvida nenhuma.

04Cartas de Amor de uma Freira Portuguesa (Jesús Franco, 1977)

RG: Mistura de Mojica e Raul Ruiz, essa coisa de filmar um atrás do outro.

CR: Mas ao mesmo tempo tem esse tipo de coisa. Uma das coisas que é absolutamente fascinante é como ele é apaixonado pela genitália da mulher dele. Ele faz filmes que no fundo nada mais são do que uma grande elegia à genitália da Lina Romay. É uma relação de amor. Tem um filme que é o tempo inteiro ela andando pelada por um castelo, isso passa a ter uma beleza… É engraçado porque você precisa realmente… até pra você aprender a gostar da coisa, precisa um aprendizado. Precisa perder todo o preconceito, uma carga de preconceito. Mas ele tá dá uma… Eu posso dizer com tranquilidade hoje que todo esse conhecimento, esse interesse, apurou o meu olhar. Hoje eu sou muito mais exigente comigo mesmo, com a minha estética, com a minha forma de enxergar o cinema e o mundo, a partir de um processo de aprendizado do olhar. Como se tivesse que lixar o olho. E digo mais pra você: eu comprei o domínio da “olhos livres” [risos]. E ao mesmo tempo você fica até mais exigente, você consegue diferenciar, diferenciar o cinema ruim… Filme que é ruim é ruim e acabou, de gente sem talento, mediocridade, não faz sentido ficar lambendo a nuca de medíocres. Não tem nenhum sentido, quando é ruim é ruim. É ruim como quando você tem filmes artísticos entre aspas, que são ruins, são piores até. Até hoje eu encontro pessoas que me perguntam: “Por que você gosta do Mojica?” Entendeu? Só quem gosta do cinema pode gostar do Mojica. Não tem explicação. Uma vez perguntaram uma coisa assim, não lembro, se colegas quando eu fazia faculdade de cinema: “Por que você gosta do Fuller?” E eu sempre fui apaixonado pelo Fuller. Olha, não sei se eu te contei essa brincadeira. Há uma forma de se descobrir, é um vestibular pra cineasta: o cara vai ser um bom diretor? Então mostra um filme do Fuller. Se ele não gostar, ele não vai ser cineasta. É uma condição sine qua non. Fuller é o cinema. Já dizia Godard [risos].

RG: Ele fala isso do Nicholas Ray [risos].

CR: Sim, mas são os dois. A dupla do cinema independente. E nesse processo eu não tenho a menor dúvida que você inclusive vai aperfeiçoar o nível de exigência… Eu vejo um filme e… Outro diz estava comentando com o Julio Bressane, da última vez que ele esteve aqui, que as pessoas estavam cortando os filmes como se cortam bichos, pessoal tava botando a lente como se a lente fosse um lápis, um pincel mágico, essa coisa que sai tinta pra tudo que é lado. Não se estava usando a caneta. Cinema tem que ser usado pra entender, não obviamente por causa de grana, mas é preciso ter uma caneta Parker, desenvolver a caligrafia. E as pessoas estão fazendo borrões. Uma coisa assim, ágrafa. No fundo, no fundo, eles não sabem onde vão pôr a câmera. É uma coisa assim, caramba, você olha certos filmes e se pergunta: Que lente que o cara usou? Que estupidez! Mas essa é a questão, que é um nível de exigência que se soma a um aprendizado sistemático, que pode aperfeiçoar. Mas isso até o cineasta mais genial do mundo que é o Kubrick dizia isso. Não tem outra maneira de aprender cinema do que vendo filmes. Tem que ver 1500 filmes no mínimo. Acho que foi numa entrevista que ele falou isso. Mas tem um número lá, estratosférico. Não deve ser muito mais do que isso. “Já viu dois 1500, 2000 filmes?” “Não vi nem duzentos”.

RG: Você estava falando de todos esses filmes, e mais recentemente você está fazendo um papel de exibidor, inclusive, não só de diretor, mas também exibidor. Está fazendo uma sessão mensal no CineSesc e você também já mostrou o desejo de criar um cinema para também exibir os filmes, pra poder lançar certos filmes.

CR: Eu acho que todo cineasta tem vontade de fazer um cinema, na verdade. Ter o seu cinema e… O cineasta-cinéfilo, né? Como chama aquele italiano que tem um cinema… o de Caro Diário?

RG: Nanni Moretti.

CR: O Nanni Moretti! O Moretti tem cinema, tem vários diretores que têm salas de cinema na Europa. Uma salinha só, pra perder dinheiro. Foi o único que exibiu Abbas Kiarostami lá, na Itália, etc. e tal. Essa ideia que todo mundo promete e não cumpre, de fazer um cinema de repertório. No momento que alguém criar uma sala que conseguir estabilizar uma prática da sala de repertório, que nem sala francesa, pelo menos durante 5, 6 anos… O meu projeto de vida é fazer um cinema de repertório por excelência. Inclusive pra exibir os meus filmes. Eu quero restaurar uma cópia, por exemplo, de Amor Palavra Prostituta que nunca foi exibida integralmente no Brasil, mas você vai saber que toda terça-feira, como se faz em Paris, toda terça ao meio-dia, ou às 3 horas da tarde, você vai poder assistir Amor Palavra Prostituta. Aí não vai ter um chato pra não dizer “Porra, não tem cópia pra ver”. “Tem cópia sim, vai lá na quarta-feira às duas horas da tarde e vai ver!” Mas eu gostaria de fazer isso com filmes comprados também. Comprar umas duas cópias no máximo. Foi em Paris que eu descobri como funciona isso. Eu sempre tive loucura pra poder ver o filme do Curzio Malaparte, um escritor que fez um único filme, acusado de fascista, aquela coisa toda [Il Cristo proibito, 1951]. Você vê que é uma coisa mitológica, um Cristo interditado. Esse é um filme que eu gostaria de trazer, que você vai descobrir, de repente, que tem um filme que nem Deus e o Diabo na Terra do Sol que foi feito em 1953, porra. Um cara correndo no deserto na direção do mar. Excepcional, lindíssimo, com Raf Vallone. Uma série de filmes que as pessoas não vão trazer. Não adianta, não vão trazer. Tem que ter uma sala pra poder fazer cinema de repertório. Eu quero deixar um tempo pra pessoa não poder mais reclamar, deixar o filme passando um ano, você vai ter à sua disposição pelo menos em um dia. “Ah, eu quero rever Filme Demência”. “Vai lá sábado duas horas da tarde que vai estar passando, uma cópia que eu mandei fazer especialmente”. Isso é cinema de repertório. E ao mesmo tempo você poder importar filme japonês, por exemplo. Trazer Sugawa, que nunca passou… Comprar uma cópia, duas cópias e fazer uma coisa pra cinéfilo mesmo, um cinema onde eu possa ter um espaço como espectador, pra realmente satisfazer a minha ânsia de espectador. Eu tenho certeza que vai dar certo. Entende? Todas as sextas-feiras dedicar só a filme de horror, de ficção… [fim do LADO A]

LADO B:

As pessoas originalmente se comprometem a fazer uma sala de cinema diferente, e é muito engraçado como acaba virando uma sala que apenas fica fazendo circular às vezes filmes pelos quais não se têm muito interesse. Por que não criar um dia em que você passa só filmes…. O que a gente percebe nitidamente é que até esses cinemas de repertório perderam o sentido da sua existência. Daqui a pouco está passando Guerra nas Estrelas, porra. Não tem muito sentido. Até tem sentido, na verdade, mas não é essa a ideia. É por isso que está surgindo cada vez mais essa necessidade. E ao mesmo tempo se o cara [de outros circuitos] quer te arrancar fora, “Porra, vai pro Cine Comodoro”.

RG: Essa ideia desse cinema inclusive pra salvar do esquecimento esses lançamentos de resistência visual do cinema brasileiro, como o próprio Garotas do ABC ou O Prisioneiro da Grade de Ferro, que o Paulo [Sacramento] teve que alugar um cinema pra passar, ou filmes que vão na segunda semana direto pra duas sessões.

CR: E sobretudo também trazer filmes que não vêm pra cá. Eu quero saber por que um filme como Apaixonadas, do Tonino De Bernardi, faz um sucesso absurdo na Itália, que a plateia canta junto, os italianos tudo cantando a música napolitana junto, você viu?

RG: Vi.

CR: E ninguém traz, bicho. Ficam trazendo merda, filmes fraquíssimos, que não dizem absolutamente nada. E recuperar mesmo, também. Um certo cinema de gênero. Se tivesse saúde também, e com disposição pra poder fazer, também estou desenvolvendo um projeto com o Eugenio Puppo, e fazer uma mostra internacional de cinema extremo. Mas isso voltado pro autor. “Ah, acabou o cinema autoral?” Eu quero o cinema autoral de volta, é em cima disso que eu quero trabalhar. Trazer de volta. Porque a ideia não é “exibir filmes”. Não é exibir 5 mil filmes que ninguém vai ver um terço. É trabalhar o autor. Trabalhar o essencial de determinados autores. Trabalhar com dez, doze autores por ano, e só. Mas assim: autores que façam um determinado tipo de cinema que vai desde o cinema mais autoral, radical, até a experiência mais extrema mesmo, entende. Vai de Lustig a Stephen Dwoskin, o mais experimentalista dos cineastas do mundo todo… Faz cada miuraço [risos]. Mas assim, deslumbrante, ele faz um cinema altamente experimental. Conseguir trazer uma mostra que traga os filmes dos accionistas austríacos, do cinema de transgressão americano. Um cinema que ninguém nem conhece. Não conhecem Nick Zedd, não conhecem o cinema do Richard Kern. Cineastas que fazem uma coisa que radicaliza o discurso, vão desde uma coisa underground e que esbarra no pornográfico. Esse é o verdadeiro cinema de transgressão. E quem vai trazer isso? Se eu não for trazer, ninguém vai trazer. Então eu acho que é muito instigante, esse trabalho tem sido muito legal.

05Submit to me (Richard Kern, 1985)

Agora o que é engraçado, foi a descoberta da relação que se desenvolve na internet. Na verdade, pra mim foi a grande descoberta desses últimos dois, três anos. Eu comecei fazendo uma coluna no Terra, passei depois a fazer uma coluna no Cineclick, até realmente descobrir a força que é ter um site, ter um blog. Eu acho que o blog hoje é indiscutivelmente… Por isso que eu tenho brigado muito em instituir esse prêmio, que eu vou pagar do meu bolso, um prêmio de prata pura, não vou fazer um troféu pra segurar porta, é preciso que tenha um puta de um conceito por trás. A ideia da coisa é essa, o conceito, na verdade, que fica. Solicitei a uma grande escultora, que é a Elaine Morrone. O conceito é fazer uma figura que só você sabe o que é, um passarinho, sei lá o quê. Que não é nada, ao mesmo tempo. O cara vai acabar usando pra segurar porta, depois, de qualquer forma. A quantidade de gente que eu vi botar troféu pra segurar porta…. Mas esse é o conceito.

O que tem na internet que é fantástico de descobrir é como você se relaciona. Quatro mil pessoas de quatro em quatro, cinco em cinco dias, nem os meus filmes fazem mais isso. É óbvio que isso te obriga a suprir conteúdo. Mas ao mesmo tempo você consegue ouvir a resposta imediata ao próprio filme que está no cinema. A própria relação com o filme que está no cinema. Por exemplo, ontem eu recebi um telefonema do pessoal do Centro Cultural São Paulo, que quer fazer uma mini-retrospectiva semana que vem, pô. Como eles têm direito, inclusive, porque eles são meio co-produtores de Alma Corsária, Dois Córregos e do próprio filme novo, Bens Confiscados. Iam acabar fazendo retrospectiva com três, dois filmes, sendo que eu tenho uns quinze. Dá pra fazer com quatro ou cinco. Mas tudo bem, vai poder passar Filme Demência, que estão cobrando que seja exibido. Tem um cara que fica toda hora reclamando no blog, “Quero ver Filme Demência”. Mas é até interessante, através dele eu sei que tem pessoas que querem ver. E eu posso também divulgar, é lá que eu vou divulgar: “Quem tá enchendo o saco pra ver Filme Demência, vai ver no Cine Centro Cultural São Paulo, tal dia”. Você tem a comunicação imediata, essa comunicação direta e espontânea. O cara acabou de ver teu filme e escreve pra lá. É prazeroso. É uma coisa que dá trabalho. Você conhece a experiência, pode falar melhor que ninguém. Mas ao mesmo tempo é importantíssimo pra dar subsídio pro que eu vou fazer daqui pra frente. Foi através do blog que nasceu o projeto do documentário. Sério. Nasceu através de uma conversa via blog. Através dele nasceu essa coisa do prêmio, a Sessão Comodoro também. No fundo, no fundo, está sendo um investimento muito interessante. E uma experiência formidável. E eu acho que essa coisa que o blog tem que é fantástica, e é isso que eu estou insistindo com o pessoal pra premiar, é entender o blog como os nossos antigos cadernos de cinema. Eu nunca me esqueço, quando eu fiquei amigo do Jairo Ferreira, a gente ficava trocando caderno. Ficava vendo o que ele escrevia com 16 anos de idade, “Olha aqui, você viu o filme do Edouard Molinaro?” Esses filmes que ninguém fala mais hoje. Os pais da nouvelle vague, né. Jacques Bourdon, já ouviu falar?

RG: Não.

CR: Aí tinha aquela coisa: “Eu vi Sombras na Areia”. Sabe aquela coisa assim, “Dou cinco estrelas” [risos]. Hoje o blog supriu isso. Uma coisa que eu acho fantástica. Você vê o blog do Ailton Monteiro, por exemplo. Atingiu não sei quantos mil leitores, uma coisa de trezentos, quatrocentos mil. E há quatro anos que ele faz. Foi um dos primeiros caras a fazer. Tirou o cara lá da reclusão absoluta, lá em Fortaleza, não tinha nada pra fazer, pra ver ou se comunicar. O que é fantástico é como o cara apurou o gosto. Não há a menor dúvida de que o crítico, o cara apura o gosto escrevendo, entendeu. E eu acho que o blog hoje tem essa função. O que eu pedi pros meus jurados foi levar em consideração de que blog não é uma coisa profissional, e que o blog tem esse sentido de aperfeiçoamento mesmo. E é muito interessante, o blog que já ganhou o prêmio de público – só não está veiculando porque eu pedi pra não veicular, mas todo mundo já sabe – é feito por um grupo de estudantes de jornalismo da Casper Líbero. São seis, sete, oito caras que se juntaram para escrever sobre vários assuntos, inclusive cinema, é um grupo de estudantes de jornalismo e os caras exercitam a atividade crítica. É do cacete, na verdade. Se você for observar, no começo, até a visão do Igor, que é o crítico oficial, você nota nitidamente de um ano pra cá o apuramento do gosto, a percepção de que o cara está escrevendo cada vez melhor, com gosto cada vez mais afinado, mais exigente. E acho que essa é a grande função do blog hoje. O júri do Quepe do Comodoro tem dois professores universitários, o André Setaro que é professor da Universidade da Bahia, e blogueiro também; além dele o João Luiz Vieira; a Lúcia Valentim Rodrigues, que é redatora da Folha de São Paulo, que tem acompanhado todo o processo desde o começo, desde que a gente começou as sessões lá no CineSesc], e que está fazendo um puta movimento aqui em São Paulo, uma das grandes organizadoras do São Paulo Centro; um menino que foi webdesigner que é o Estevão [S. Augusto]; e o Paulo Sacramento. São pessoas que não têm blog, que não tem site, que não têm nenhum vínculo com algum veículo. Infelizmente tivemos que pedir que o Daniel Caetano [risos] saísse para não prejudicar a própria Contracampo. Ele me ajudou muito para poder fazer as indicações, mas ele mesmo me mandou uma carta preocupado com isso. E eu insisto com os membros do júri de que blog não pode ser considerado como um site profissional, ele não pode perder essa característica de ser um caderno de anotações, é como você faz. Você faz a sua anotação pra não esquecer o filme que você viu. Quando eu era moleque, eu tinha trinta cadernos, e naquela época eu já fazia assim: “diretor… produtor…”. Como dizia o Jairo Ferreira na época, quando a gente tinha 14 anos a figura mais importante do filme era o produtor. “Sam Spiegel!” Não tinha aqueles caras? [risos]. É impressionante como o cara afina e apura o gosto, realmente com a coisa da prática cotidiana. Isso é muito legal. Isso é a coisa mais genial que tem nessa coisa do blog mesmo. Eu nunca me esqueço uma vez. O Ailton tem uma coisa genial, uma vez ele me mandou uma coisa, publicou um texto enorme, e me mandou. É o contato que ele tem com o mundo, não tem a menor dúvida. O cara que mora em alguma cidade desse tipo, meio fim do mundo, que mora em Dois Córregos [risos], essa é a forma dele se comunicar com o mundo.

RG: O meu blog de música [pracoisanenhuma.blogspot.com] funciona nesse esquema, porque eu ouço música que vai desde a coisa mais extrema de free jazz até a música experimental conceitual minimalista japonesa e não tenho um amigo que fala de tudo isso, então jogo lá. Aí você cria uma persona de internet com a qual você dialoga.

CR: É fantástico. No fundo, no fundo, em algum momento você vai encontrar um cara que tenha a sua identidade. Por incrível que pareça, por mais esdrúxulo que seja, o assunto pode ser a coisa mais estapafúrdia possível, de repente tem um cara que também gosta daquela coisa estapafúrdia e pronto. Aliás, grandes amizades criadas nesses últimos anos foram graças a isso. Uma delas o fato de ter feito uma conferência sobre o Brian Wilson. Chamava-se “A genialidade como carma”. Sala lotada, foi na Funarte, e não tinha um cara de cinema. Tinha gente do México, engenheiro, arquiteto. E eu acho que existe essa possibilidade de você sintonizar com alguém em outra chave.

Só complementando a coisa que eu acho fantástica do Ailton Monteiro. Ele escreveu um texto gigantesco sobre Tarkovski, e ele mandou um aviso: “Ufa! Faz quatro anos que eu tento escrever sobre esse cara, e finalmente eu consegui” [risos]. É genial! Eu realmente mandei uma carta dando os parabéns a ele. Tomadas as devidas distâncias, esse foi o meu problema com o Jesús Franco. Eu não conseguia gostar de porra nenhuma. Até descobrir que tinha esses dois filmes que valem a obra inteira do cara. Isso que o Julinho [Bressane] chama de cinema inocente, né. O cara é genial quando você menos espera. Por isso é preciso tomar um cuidado danado com um cara que você tá vendo… você percebe que tem alguma coisa a mais. Mas não acontece, não acontece. Mas quando você vê o vigésimo filme: “Não tá acontecendo nada…” E aí você pensa, “Esse cara é chato pra cacete”. Eu fico imaginando o que deve acontecer com alguém que não embarca num Tarkovski da vida, no Straub, nada mais radical. Você quer uma coisa pra fazer um teste de resistência, é o Empédocles, A Morte de Empédocles [Straub/Huillet, 1987], eu fiz esse teste de resistência com os alunos lá. Aí depois, quando eu fui conversar com amigos em comum, falei assim: “Mas você não viu o Crítias?” “Crítias, que Crítias?”. “O Crítias, esse cara [William Berger] é o maior comediante, é como se fosse o Ronald Golias”. É a mesma coisa que fazer aqui no Brasil e chamar o Ronald Golias pra ser o Crítias. Aí você vê os alemães se esborrachando de dar risada. Você imagina aquele texto histórico, falado pelo Ronald Golias, que seja, né. [risos] Deve ser de rachar o bico. É impressionante, naquela projeção, só os alemães riam. [risos]. Às vezes a gente vai entendendo a coisa aos poucos, né. É claro que exige uma, uma… Eu fiquei realmente sensibilizado, realmente para ele [Ailton] foi uma batalha ganha conseguir entender e gostar de Tarkovski. Falou assim: “Eu ganhei dez anos da minha vida”. Isso é uma coisa que você só vê em blog, não tem mais os cadernos, os famosos cadernos. Acho que você manter esse tipo de coisa… Tem três aqui [risos]. Mas ele, por exemplo, ele exercita isso no blog. Você carrega caderno?

FG: Eu carrego caderno. O problema é que eu estou sem computador. Então eu voltei a ter caderno, mas o caderno é um acessório pro blog. E o blog também funciona como…

CR: …como caderno de cinema, esse é o sentido da coisa. Essas coisas todas eu acho que têm uma relação interessante aí. Com toda sinceridade, eu acho muito mais interessante do que ficar fazendo filme miliberbê, etc e tal. Mais um, entende. Tem outra coisa que eu estava outro dia comentando com o Inácio [Araújo]: agora a coisa do cinema virou assunto. Virou cinema de assunto, não sei se está entendendo o que eu estou falando. “Você viu aquele filme?” “Vi”. “O que que é legal?” “O assunto”. “Vamos falar de filme.” “Qual deles?” “Qualquer um deles.” Agora o cinema é o assunto.

FG: Qualquer filme sobre tal assunto seria bom. Parte desse princípio aí.

CR: Pois é, é evidente. Qualquer cara que fosse passar 3, 4, 5 anos com uma câmera dentro de um… – não vamos citar os nomes – não teria como não fazer um filme interessante. O resto é punheta técnica, de ficar discutindo o suporte, não sei se você tem acompanhado essa discussão absolutamente bizantina. [risos] Bicho, desde que eu comecei em cinema essa discussão existe. Quando surgiu o Super-8, era a panaceia pra qualquer coisa. Quando surgiu o vídeo, era a panaceia para qualquer coisa. Agora continuam com a mesma conversa fiada. Essa é a grande questão. Essa discussão é muito mais complexa, tenho discutido muito dessa questão com pessoas que realmente entendem, como o Zé Luiz Sasso, o próprio Paulo Sacramento tem acompanhado isso muito bem, que é essa questão do suporte, da mídia, porque nós estamos comentando com pessoas que realmente lidam com a questão da mídia. Tudo na verdade é uma coisa que, sabe, a Kodak tem que deixar, os americanos têm que abrir as pernas pra Sony, pros japoneses, etc e tal, se não não vai acontecer nada, vai continuar a mesma coisa. Definitivamente não somos nós que vamos resolver esse problema. O que eu acho muito grave é achar que a panacéia tá numa quarta figura. Isso que me incomoda. Porque hoje a situação da exibição digital, da exibição eletrônica, faz aparecer a quarta pessoa. Se não bastasse o produtor ter que negociar com o distribuidor e com o exibidor, agora vai ter também o emissor de sinal. É mais um cara pra te dizer se o seu filme é uma bosta ou não é. Eu não quero mais isso. E se tem um problema da discussão, ainda é a questão, que é a grande discussão hoje no mundo inteiro, das majors, é a questão da pirataria. Porque a mídia já foi inventada. Todos nós que já sabemos tecnicamente, quem conhece minimamente a técnica, já sabe que a mídia já foi inventada, que é o optical disk, etc e tal, que grava um volume monumental de informação, mais que o negativo até. Já existe a mídia, o negócio já existe. Só que a patente é japonesa e o americano não deixa entrar. Aí começa a desenvolver e já faz, enfim, uma briga pra cada um deter os direitos sobre essa mídia. Essa discussão, ela é bizantina porque já começa velha. Sinto muito, ela não está nas mãos de quem faz filme.

RG: É o peixe grande que tá decidindo.

CR: Pois é, infelizmente. Então enquanto isso…

RG: A não ser que façam uma patente linux disso tudo, uma tecnologia livre como linux.

CR: E você acha que vão deixar? Eu fico aqui nesse desespero dessa discussão, é um desespero que vem acompanhando o cinema desde a década de cinquenta. Enquanto isso, o sistema de exibição brasileiro já saiu da mão de famílias e foi pras majors. Noventa por cento dos circuitos brasileiros hoje ficam pra americano. Acho que só o Severiano Ribeiro que continua mantendo família, não é isso? Mesmo assim, deve ter até parceria já com… [major]. Mas essas coisas, mal ou bem, têm que ser ditas. Tem que ser levantadas. Porque fica uma coisa da panaceia, da questão do digital, da MiniDV, a 24p… Nada tá resolvido no fundo. Ninguém vai parar o cinema pra poder dizer “Vamos primeiro descobrir qual vai ser… [o formato digital a ser utilizado]”. E enquanto isso os caras tomam conta do mercado brasileiro. Do jeito que querem, da forma como querem. O que eu acho é que tem fazer filme… Do jeito que der, fazer o máximo possível. No momento que você tiver a produção de mais de cem filmes, aí dá pra ir pro pau, pra briga.

RG: Depende do filme, também.

CR: Mas mesmo assim é uma coisa que eles vão decidir lá, qual vai ser o seu suporte amanhã. Porque antes não dava pra fazer produção por causa disso, né… [fim do LADO B]

*Nota do editor

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