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Superman II e III: filmes de autor ou de super-heróis?

O box em Blu-Ray recém-lançado no exterior com todos os filmes de Superman motivou uma revisão, se não completa, ao menos com os melhores filmes do personagem. Mas para compreender o valor e a importância dos primeiros títulos da franquia é preciso voltar no tempo e conhecer suas origens no cinema. Seus produtores, os ingleses Alexander e Ilya Salkind (responsáveis, entre outros filmes, por O Processo, de Orson Welles), haviam obtido muito sucesso com a versão do romance clássico de Alexandre Dumas, Os Três Mosqueteiros, que havia sido concebida inicialmente para ser um épico de 3 horas de duração, sendo depois dividido em duas partes, lançadas separadamente e com um ano de intervalo: Os Três Mosqueteiros e Os Quatro Mosqueteiros — A Vingança de Milady, ambos a cargo da direção de Richard Lester. Um procedimento semelhante ao que Quentin Tarantino faria anos depois com Kill Bill, e que com um verdadeiro frenesi imposto por Lester e a excelência da adaptação, deu origem não a um, mas dois ótimos filmes, custando, entretanto, um processo aos produtores, devido ao elenco ter sido contratado para um filme, e ter participado de dois. Com o êxito, os Salkinds aportaram no cinema americano tendo em mente repetir o sucesso, seguindo a mesma linha de aventura e humor, encontrando nos gibis o personagem do Super-Homem, e encararam o desafio de levá-lo às telas.

Que fique claro que adaptar uma história em quadrinhos naquela época era complemente diferente de fazê-lo hoje em dia: ainda eram os tempos da Nova Hollywood, e o público predominantemente adulto e inteligente, décadas antes da era dos multiplexes. Portanto, a primeira preocupação dos Salkinds foi com a concepção e roteiro da adaptação (atualmente essa parece a última etapa e a menos importante num filme de super-heróis), recorrendo a Mario Puzo, que estava em alta pelo livro e roteiros dos dois O Poderoso Chefão (pelos quais recebeu o Oscar na categoria), para conceber uma história que pudesse ser dividida em dois filmes. Para escrever o roteiro com Puzo, foram contratados alguns dos principais roteiristas da Nova Hollywood, a dupla Robert Benton (que depois se tornaria importante e premiado diretor) e David Newman, responsáveis pelo surgimento da Nova Hollywood ao conceberem Bonnie & Clyde — Uma Rajada de Balas, e que depois escreveriam o western Ninho de Cobras (de Joseph L. Mankiewicz) e homenageariam as comédias screwballs com Essa Pequena é uma Parada (de Peter Bogdanovich). Muito dos primeiros Superman deve bastante a qualidade de seus roteiristas (que inclui ainda Leslie Newman, esposa de David). Com um elenco estelar em mãos (liderado por Marlon Brando e Gene Hackman), a acertada escolha de Christopher Reeve como protagonista, o trabalho de fotografia de Geoffrey Unsworth (de 2001: Uma Odisséia no Espaço), a trilha apoteótica de John Williams (que emula o Assim Falava Zaratustra, de Strauss, não o prólogo, famoso por 2001, mas trechos posteriores), as duas primeiras partes de Superman começaram a ser rodadas simultaneamente, dirigidas por Richard Donner (então considerado uma revelação após A Profecia), para serem lançadas com um ano de intervalo.

Superman — O Filme estourou nas bilheterias como era o esperado, mas depois de Donner ter filmado sessenta por cento do segundo filme, desentendeu-se e foi despedido pelos Salkinds, que chamaram Richard Lester para assumir a direção (Lester já participara da produção do primeiro como supervisor e auxiliar de Donner). Durante muito tempo discutiu-se em fóruns e em tudo quanto é lugar quem seria o verdadeiro realizador de Superman II, mas se haviam dúvidas, elas se dissiparam quando há poucos anos foi lançado um director’s cut com o que seria o corte do Donner pro filme. Lester refilmou quase todas as cenas dirigidas por Donner e completou as filmagens, sobrando de Donner apenas as cenas que filmara com Gene Hackman, que se recusou a continuar no elenco, sendo utilizado um dublê e alguém com voz parecida com a de Hackman para dublá-lo em algumas das cenas em que fosse necessário. Cerca de vinte por cento de cenas filmadas por Donner foram preservadas, só que reeditadas e remixadas por Lester.

Ganhador de uma Palma de Ouro em Cannes por A Bossa da Conquista, na década de sessenta, Richard Lester num primeiro momento pode parecer um tipo improvável num blockbuster, só que ele abraçou a série com todo o empenho. Lester sempre praticou cinema de autor, mas seus filmes na maioria das vezes nunca deixaram de ser comerciais. Os filmes que realizou com os Beatles, Os Reis do Iê-Iê-Iê e Help, foram revolucionários pelo ritmo frenético, pela montagem inventiva e alucinada, por retirarem os Beatles de um pedestal e apresentá-los mais de carne e osso, brincando com a imagem dos integrantes do quarteto, trazendo-os para mais próximo de nós. Ambos foram referência e inspiração para os filmes de estreia de realizadores como Francis Ford Coppola, William Friedkin e Bob Rafelson, que surgiriam pouco depois. Os filmes com os Beatles possuem um toque de aventura, mas também são dotados de um humor físico (Buster Keaton é um dos heróis confessos de Lester) e irreverente, gags ininterruptas, dentro de um conjunto vertiginoso. Muitos desses elementos foram transportados para os dois Mosqueteiros que dirigiu, nos quais tira o pó que poderia sair das páginas emboloradas dos livros de Alexandre Dumas, aliando um notável sentido de aventura com humor que não raro beira o pastelão.

Diante de Superman II e III, Lester também não recuou e imprimiu a sua assinatura e estilo não muito diferente de como se estivesse dirigindo um dos filmes dos Beatles. Fica a questão: seriam então filmes de autor ou de super-heróis? A resposta: os dois. Muitos cineastas autorais, ao assumirem produções milionárias, não raro se descaracterizam e se deixam levar por concessões ao mercado. Ou então se veem sem liberdade para tocar o projeto como gostariam. Não foi o que ocorreu com Lester, que trabalhou com tranquila liberdade nos seus Superman, e impôs sua visão de cinema neles, mais ou menos como tantos autores que investiram sua marca e sensibilidades pessoais nos mais diversos gêneros e filmes de grande público (western, terror, suspense, comédia, etc.).

Eis que Superman II é esta coisa rara: um filme de super-herói tanto quando uma obra autoral, e idolatrado tanto pelos fãs do personagem como pelos admiradores do cineasta (entre os quais há um consenso de que o filme é a obra-prima final de sua carreira). Embora seja em parte uma extensão do primeiro filme (que já possuía bastante humor e aventura), Superman II sofre menos sem o gigantismo e a necessidade de mostrar e explicar as origens do personagem, podendo ir direto ao ponto, como se o primeiro fosse somente um longo prólogo para este. E mais importante: sem uma contemplação mitológica que havia no trabalho de Donner (que se pode dizer, era um equivalente anos setenta a filmes épicos mais antigos como Ben-Hur), Lester uma vez mais retira seu herói do pedestal, de um excesso de seriedade e reverência que por vezes pesava no filme original.

Após um breve resumo dos fatos do filme anterior (com Lester refilmando os trechos com os três vilões de Krypton e os de Susanna York como a mãe do Super-Herói), o longa começa em plena ação com o Super-Homem tirando uma bomba da Torre Eiffel, e ao jogá-la para o espaço, a sua explosão provoca a libertação do general Zod (Terence Stamp) e seus comparsas, os vilões que haviam sido expulsos de Krypton e presos em outra dimensão.  O filme passa a se desenvolver em três eixos através da montagem em paralelo: a vinda e posterior dominação dos vilões sobre a Terra, a fuga de Lex Luthor (Hackman) da prisão, e a relação de Clark Kent (Reeve) e Louis Lane (Margott Kidder) na redação do Planeta Diário e depois nas Cataratas do Niágara, aonde vão para cobrir uma matéria. Lester vai construindo seu filme mesclando tensão, aventura e humor, como nas tiradas sempre cheias de irresistível sarcasmo do personagem de Hackman e o ajudante atrapalhado vivido por Ned Beatty. Há cenas cômicas exageradas que antecipam o pastelão de Superman III, como a em que Clark Kent é atropelado por um táxi e a dianteira do carro é amassada enquanto o personagem cruza calmamente a rua (ou no final, com o estrago provocado por Clark em um bar). Já as sequências passadas na redação do jornal, com toda a velocidade da construção impecável dos diálogos, lembram as clássicas comédias screwballs dos anos 30, remetendo à parcerias de Howard Hawks e Cary Grant, como Jejum de Amor, com as faíscas que surgem da interação entre Clark e Lane, e seus colegas e ambiente de trabalho.

É um filme de síntese na franquia de Superman, entre a aventura recheada de ação da primeira parte, e o humor exagerado da terceira. Ambas as tendências estão presentes em equilíbrio em Superman II, com os maiores vilões que o herói enfrentaria em toda a série, os rebeldes de Krypton que possuem os seus mesmos poderes. Lex Luthor é um criminoso sem força física ou sobre-humana, dotado apenas de seu intelecto e capacidade de manipulação. Já a dominação de Zod e sua turma na Terra é gradual e absoluta, como a de qualquer ficção apocalíptica em torno de invasores vindos de um planeta distante causando terror e destruição, ganhando uma vitalidade de espetáculo físico, e incluindo visões de guerra e de conflito num microscomo que é só um passo a uma dimensão maior. Cenas como a calamidade provocada pelo vilões soprando ventos de ar contra a multidão na espetacular luta noturna em Metrópolis que ocupa a meia hora final do filme são ao mesmo tempo engraçadas e desesperadoras. Brincalhão como de costume, Lester tripudia com imagens tradicionais como as das faces do Monte Rushmore sendo destroçadas e reconstruídas com as dos rostos dos vilões, ou a ocupação e quebra das paredes e portas da Casa Branca. De memória só consigo lembrar de outro filme (Fuga de Nova York, de John Carpenter, realizado um ano depois) em que uma figura sempre respeitável e imaculada no cinema como o presidente norte-americano tenha sido submetida a humilhações e flagelações com os impropérios que ouve ou o fato de ter que se ajoelhar a um inimigo invasor como em Superman II.

Oposto a isso tudo, a ausência de Super-Homem, numa história de perdas e de renúncias, com um personagem dividido entre a dificuldade (e impossibilidade) de se encaixar numa espécie que não é sua, ao tentar manter um romance com Louis Laine, e o senso de dever de salvar a humanidade. Peter Tonguette, no seu excelente artigo sobre Richard Lester para a Senses of Cinema, chama Superman II de um improvável trabalho de síntese dos elementos que compõem sua obra e de talvez o mais explicitamente romântico dos filmes de Lester, constituindo-se o ápice de uma tendência que normalmente permanecia submersa, porém surgindo claramente em alguns de seus filmes: Petúlia (possivelmente o melhor trabalho do diretor) era um melancólico estudo de encontros, crises conjugais e relacionamentos inusitados em torno de um casal de amantes (interpretados por George C. Scott e Julie Christie) em meio à revolução de costumes, enquanto que Robin e Marian ousava imaginar um romance crepuscular entre um envelhecido Robin Hood e sua amada (Sean Connery e Audrey Hepbun) em mais um trabalho de desmistificação de um herói tradicional em sua filmografia. Tonguette diz que quando o amor irrompe nos filmes de Lester, é sempre dentro de circunstâncias adversas, afetadas pela realidade do mundo exterior, conferindo uma dimensão trágica à visão romântica do diretor. “A cena final de Clark beijando Louis para que ela apague da memória o caso que teve com ele enquanto Super-Homem é dolorosa em seu sentido de perda”, completa.

Mesmo assim, Superman II é diversão incessante, permanecendo ainda hoje como o melhor e mais divertido filme de super-heróis já produzidos. Um dos aspectos mais impressionantes é sua noção de ritmo, assim como seu roteiro quase impecável onde cada cena cumpre uma função específica e brilhante dentro da estrutura do filme. Existe ainda hoje um ideal que sempre dominou a crítica, que tende a associar a qualidade artística ao que seriam “os grandes temas” (herança da literatura), “as grandes imagens” (o peso da pintura) ou os textos redondos e solos de interpretação super-elaborados (herança do teatro). Uma vontade, pois, quase elitista, de arte “inteligente”, e que desconhece que o cinema é de natureza tão particular cuja essência envolve formas, ritmos, harmonias e desarmonias visuais, podendo se manifestar plenamente em filmes B, de gênero ou até num blockbuster, por que não? Certos filmes sofrerão eternamente os mesmos preconceitos. Eles Vivem, por exemplo, dificilmente é reconhecido como a intensa obra política que Carpenter ousou fazer. Assim como alguns de Paul Verhoeven, ou Planeta dos Macacos de Tim Burton. Não são filmes de grife. São aparentemente vagabundos, e necessitam de uma compreensão e entendimento maior do que está por trás de suas imagens violentas (ou bem-humoradas, quando for o caso). O mesmo com Superman II e III de Richard Lester.

Não é difícil gostar de Superman II. Longe de ser fácil, porém, é encarar o terceiro filme sem um misto de espanto e perplexidade, que normalmente se transforma em frustração e aborrecimento em fãs habituados às abordagens mais tradicionais com o personagem. Mas é só estar disposto a uma compreensão um pouco mais ampla da função das ideias concebidas por Lester e seus roteiristas (e é incrível como o diretor consegue executá-las), num entendimento de que não é preciso pensar os elementos em torno das histórias de super-heróis como se fossem processos estanques e pragmáticos, para reconhecer que há todo um projeto e noção de cinema existente em Superman III. Para começar, basta observar a extraordinária e longa sequência durante os créditos de abertura envolvendo diversos personagens (incluindo as primeiras aparições de Clark Kent e Super-Homem) em torno de desastres no tráfego que é digna do cinema de Jacques Tati. O filme todo se constitui de uma série de invenções cômicas por trás da moldura de um filme de aventura como devem ser os da franquia do personagem, que já em seu terceiro capítulo não possuía mais quem pudesse enfrentar se não ele próprio.

Não haveria sentido em repetir todo um esquema e procedimentos que os dois primeiros filmes esgotaram por completo. Superman III vai além e um de seus grandes trunfos é justamente brincar com a imagem fantasiosa que temos dos super-heróis. Robert Vaughn encarna o criminoso multimilionário da vez, e Richard Pryor (comediante popular na TV americana da época, mas veneno de bilheteria no cinema) o seu ajudante atrapalhado, um gênio da informática que antecipa muito dos hackers que viriam com o avanço dos computadores. Os vilões descobrem um tipo de Kryptonita que, em vez de enfraquecer Super-Homem, o torna “humano”, permanecendo com os mesmos poderes, mas com os bons sentimentos substituídos pela ganância, luxúria, desprezo e indiferença. A situação é tratada com humor, mas causa um curto na visão de qualquer espectador: o maior herói do mundo comete travessuras como desentortar a famosa torre de Pisa, acaba com toda a solenidade existente na cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos ao apagar a chama da tocha olímpica diante de um vasto público, se permite se dar aos prazeres da carne com uma ajudante do vilão (que brinca com o estereótipo da loira burra e gostosa lendo e discutindo Kant) ou beber e treinar tiro ao alvo com amendoim e destruir as garrafas do dono do bar. Não é o caso, como fazem os detratores ou mesmo eventuais fãs de Superman III, de reduzir o filme a uma piada (o que seria um desfavor ao filme e ao seu cineasta); trata-se de mais um processo de desconstrução icônica de um mito da cultura pop contemporânea numa aventura satírica como Lester (iconoclasta por excelência) já fizera nos seus filmes com os Beatles. Superman III vai se tornando progressivamente o filme mais insano do diretor desde Help, que também exarcebava essa tendência ao colocar os fab four nas situações mais malucas e inusitadas (especialmente as que envolviam Ringo Starr), destruindo com a imagem imaculada que possuíam aos olhos do público, terminando Superman III por encerrar um ciclo de vinte anos de ótimos filmes do seu realizador.

Por sinal, Lester não deixa de incluir uma música dos Beatles em Superman III, o que pode ser encarado como uma citação bastante direta ao seu trabalho. A canção toca no baile da reunião da classe em que Clark Kent comparece em sua visita de retorno a Smallville (fazendo a ponte com o que é mostrado no primeiro filme), reencontrando Lana Lang (Annette O’Toole), personagem importante dos quadrinhos e do universo do super-herói, que substitui Louis Laine como interesse romântico de Kent (Margot Kidder só faz uma ponta, o que é coerente com os rumos da série, visto que o ciclo da relação de sua personagem com o protagonista também se fechara no final do segundo filme). Superman III possui também outros belos momentos como os estragos provocados pelo computador programado por Richard Pryor (o que inclui um nonsense inacreditável envolvendo um sinal de trânsito). Ou o duelo entre Clark Kent e Superman, sem dúvida uma das melhores cenas de luta de toda a série. No clímax, Lester escancara a relação da indústria com os super-heróis: eles são apenas instrumentos de um jogo de videogame (a própria Atari, uma das principais responsáveis pela popularização dos games, foi contratada para criar animações do Super-Homem para o filme, enquanto o vilão comanda os ataques ao herói como se estivesse num jogo), sendo que no filme inteiro o cineasta investe parcialmente em desestabilizar esta lógica, ousando vestir o uniforme do personagem para satirizá-lo de dentro do seu sistema de produção.

Superman III é o filme maldito da franquia, e o canto do cisne do talento de Lester. Como Popeye, de Robert Altman, nunca foi um filme benquisto por ser uma comédia que subverte completamente a noção dos filmes de super-heróis. A má-recepção de ambos os filmes e os fracassos de bilheterias de outras obras transgressoras ou críticas de grandes diretores daquele período, como O Portal do Paraíso, O Fundo do Coração e O Rei da Comédia, foi um duro golpe no cinema de autor em Hollywood — além de que filmes com super-heróis desde então nunca mais seriam os mesmos. Quanto a Richard Lester, ficou queimado na indústria cinematográfica, e praticamente não pôde mais dirigir, tendo que se contentar com uma terceira parte de Os Mosqueteiros (O Retorno do Mosqueteiro, que foi uma decepção total). O seu velho amigo Paul McCartney o chamou para o que até agora é o seu último trabalho no cinema, o documentário Get Back, feito há exatos vinte anos. Um desperdício.

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O cinema de Artavazd Peleshian

Os filmes de Artavazd Peleshian, cineasta armênio nascido em 1938, são geralmente classificados como documentários, mas meramente por conta do impulso desnecessário de se encaixar tudo dentro de um gênero. Peleshian usa de fato imagens documentais em seus trabalhos — sejam capturadas por ele próprio ou por outros —, mas o que move sua obra não é o desejo de registrar um dado aspecto da realidade. Capturar de alguma forma a realidade é sem dúvida a preocupação central do cinema de Peleshian, porém uma realidade humana mais fundamental e universal, embora não se ignorem suas particularidades históricas. Essa busca pelo universal é de praxe associada à ficção, e se poderia aqui falar sobre como o diretor confunde os limites que separam o ficcional do documental etc., discurso hoje em dia aplicado a praticamente qualquer filme que não se coloque univocamente de um lado ou de outro. Esse discurso é problemático porque ignora outras formas de se fazer cinema que comportem outros registros e objetivos, formas ensaísticas ou poéticas — que são exatamente as que interessam a Peleshian. O objetivo dele não é, novamente, como em algumas instâncias da ficção, buscar o universal no particular; mas buscar o universal com a consciência de que se está sempre no fio da navalha, que um elemento mínimo pode acabar com qualquer pretensão de se falar de outra coisa que não a própria experiência. O uso de imagens documentais se deve, acima de tudo, ao seu status mais do que evidente: imagens ficcionais são classificadas por tais e tais particularidades, mas a seu status ficcional, embora definidor, raramente se alude de forma explícita; mas qualquer discussão sobre uma imagem documental passa por problematizar o próprio fato de ela ser documental. E esse status evidente estabelece o desafio básico que Peleshian faz a si mesmo, porque cada filme seu só adquire significado como todo, como unidade, e portanto é preciso destruir o que quer que cada imagem diga — ou pareça dizer — por si mesma, sendo que a própria forma do filme passa a refletir, dessa maneira, a busca por significados universais, sempre à beira do fracasso por conta das particularidades.

Assim, em Começo, primeiro filme profissional do diretor, de 1967, temos imagens de opressão seguidas por imagens de multidões insurretas, enquanto a trilha sonora é invadida por disparos tão ruidosos que poderiam estar em um spaghetti western, tudo isso iniciando um filme que parece ser sobre a Revolução Russa e seus desdobramentos — subentendendo-se (tanto pelo título quanto pelo contexto da produção) que foi apenas o início de uma sublevação em escala global que trará o fim da opressão etc. Mas os sentidos que vemos nessas imagens de abertura logo estarão sendo colocados em questão, pela trilha sonora ambígua — não se sabe se a música que acompanha as diversas instâncias de multidões ou grupos de pessoas correndo as tenta enobrecer ou satirizar; em outros casos, a equivalência entre o ritmo da música e o da montagem adquire um caráter inegavelmente jocoso —, pelo fato de que muitas vezes não vemos, afinal, para onde correm. Em alguns casos, simplesmente perseguem um trem, o que passa longe de qualquer subtexto “revolucionário”, uma vez que o destino já está dado e é inevitável. Também não demora muito para que multidões sejam vistas acompanhando paradas nazistas e imagens de catástrofes passem a fazer parte da composição. E, nos momentos mais radicais, Peleshian resolve não apenas colocar o sentido em tensão através da montagem e da relação com outros elementos como o som, mas sim remover todo o sentido literal da imagem, através de congelamentos, cenas que rodam de trás para a frente, depois invertem, depois invertem novamente e assim por diante muitas vezes, de slow motions ou acelerações, até não restar nada senão um arranjo visual que beira o abstrato. Ao final, não é fácil estabelecer textualmente qual seria o sentido do filme — como o próprio diretor enfatiza em uma entrevista —, mas fica muito claro que Peleshian quer colocar em tela uma tensão que não se resolve; a última imagem — uma criança cujo futuro será em grande parte definido pelos movimentos coletivos que vimos — deixa apenas uma pergunta: afinal, começo de quê?

Nós, segundo filme de Peleshian, se coloca como um desafio mais complexo. Diferente de Começo, feito quase inteiramente com imagens de arquivo, Nós foi na sua maior parte filmado pelo próprio diretor, e sua escolha por imagens menos “anônimas” que as que usou anteriormente é ao mesmo tempo ousada e perigosa: em Nós vemos paisagens, rituais religiosos, a câmera se aproxima muito mais das pessoas, dos rostos marcadamente étnicos — e até mesmo na trilha há um exemplo de algo que soa bastante como música regional da Armênia. As particularidades se impõem aqui com muito mais força do que em Começo, e pode-se argumentar que Peleshian faz exatamente o movimento de tentar extrair o universal do particular; no entanto, trata-se novamente de amplificar o status de registro das imagens (e a música étnica, que acompanha por sua vez o grupo mais étnico de cenas, faz parte dessa amplificação) para reduzi-lo com o uso da montagem e de manipulações da velocidade e da direção de projeção. O aspecto que se destaca é que, apesar de a matéria-prima ter mudado de imagens captadas por terceiros a imagens captadas com um propósito, a performance de Começo segue intacta em Nós, e é nesse ponto que emerge outra marca típica do cinema de Peleshian (talvez sua marca determinante, que irá encontrar sua plena expressão em Nosso Século):trata-se de um processo de curadoria — ou, como se disse, a performance desse processo, nos filmes posteriores a Começo —, de uma antologia de imagens juntas para expor algum sentido. Uma antologia feita, no caso do primeiro filme, a partir de um arquivo provavelmente muito grande; e, no caso dos demais, de um arquivo virtualmente infinito de imagens, sem existência concreta, mas com uma existência virtual, formado por todas as imagens que o diretor não utilizou e, sobretudo, pelas que não chegou a filmar. Daí se extrai a máxima que rege o cinema de Peleshian: as imagens estão aí, basta saber selecioná-las e organizá-las de forma a descobrir algo, de forma a extrair algum sentido do ruído generalizado. O sentido que Nós busca é ainda menos textual e mais fugidio que o de Começo: afastando-se das pretensões ensaísticas do filme anterior, o filme, como o título sugere, se apresenta como um painel poético do ser humano, seus movimentos vitais — funerais, partidas, retornos, intempéries —, suas relações com o que o cerca — o espaço, as máquinas. Nesse sentido, Nós é muito próximo de Nosso Século, possivelmente a obra-prima do diretor; mas também lança as bases para as duas obras seguintes e suas reflexões sobre a relação do homem com a natureza na formação da identidade, Habitantes e As Estações.

Em Habitantes, isso não fica muito evidente, já que os animais dominam o filme e os humanos aparecem em uma única cena, e como meras silhuetas, que em poucos segundos perdem seu significado para dar forma a mais uma das composições abstratas típicas do diretor. Acompanhada por sons de disparos como os de Começo e colapsada entre cenas de migrações em massa e debandadas de animais, é uma cena que se pode julgar como uma afirmação mais niilista a respeito de nós do que as ambíguas, porém esperançosas, vistas anteriormente — mas é preciso lembrar que anteriormente também estavam presentes multidões em movimento, às vezes com propósito, às vezes não, e na maior parte do tempo difícil ou impossível saber, e os papéis são intercambiáveis, acrescentando mais camadas de ambiguidade e tensão quanto ao significado último do filme. É outra característica marcante de Peleshian: se os filmes se constituem como unidades dotadas de sentido (ambíguo, por certo, mas ainda assim sentido), que não se realizam nas imagens por si próprias, sua obra como um todo também pode ser vista dessa forma; é uma abordagem que tem suas limitações, dado que não se pode negar aos filmes seus sentidos particulares como se nega às imagens, e que dizer que a obra como um todo é “uma reflexão sobre o ser humano” ou coisa parecida é o mesmo que não dizer nada, mas há linhas de tensão que reaparecem filme a filme, algumas em todos, atravessando a totalidade da produção do diretor de modo contínuo.

No filme seguinte, As Estações, a questão da natureza como definidora da identidade é determinante. A cena inicial, de um camponês tentando atravessar um rio levando consigo uma ovelha e resistindo à correnteza, se presta a todo tipo de metáfora, inclusive as mais óbvias, sobre a relação do homem com a natureza impessoal etc., mas devemos nos lembrar de que é um filme de Peleshian e é preciso ver o todo (não que essa observação não esteja presente, mas há mais e ela não é estabelecida unicamente pela imagem inicial); é preciso passar pelas cenas que se seguem, por pastores de ovelhas, por montes de feno, por um casamento, pelas chuvas, pela neve, pela passagem das estações que define de forma expressiva a vida dos camponeses retratados. As Estações e Nosso Século são filmes que fazem um uso notavelmente menor de música que os anteriores, e aqui isso parece se alinhar à irredutibilidade da natureza como tema central. É, por assim dizer, o filme “falho” do diretor, não no sentido qualitativo, mas no sentido de ter essa natureza irredutível como objeto, de ser o momento em que o cinema de Peleshian busca o impossível dentro de seu método. Que tipo de seleção, de montagem e manipulação de imagens pode extrair uma verdade — ou sentido — fundamental da natureza? Werner Herzog, um diretor de estilo e métodos completamente distintos dos de Peleshian, e que também busca uma espécie de “verdade estática”, como ele mesmo define, é outro a admitir a irredutibilidade da natureza: a resposta, para ele, é exacerbar essa característica, é filmá-la como um mundo alienígena e desconhecido.

Peleshian não vai tão longe, mas o olhar para o desconhecido entra em sua obra no filme seguinte, provavelmente o seu melhor, Nosso Século, crônica da era espacial e de nossa época (outra tradução possível do título) de maneira geral, do homem diante do que é incógnito. Há imagens de experimentos primitivos de aviação, de lançamentos de foguetes, de treinamento de astronautas, mas também de explosões atômicas: como de hábito, nada vem sem sua contrapartida, nenhum avanço vem sem seus desastres, e a era espacial que o filme parece a princípio festejar também é a era nuclear, a ponto de as imagens se intercalarem de tal forma que chegam a se confundir, nesse que é o mais longo dos filmes do diretor, e o primeiro a se construir como algo próximo a uma narrativa, com o treinamento dos astronautas e o lançamento da nave espacial ordenados cronologicamente. Essas construções quase-narrativas estarão presentes também em Fim e Vida, os dois filmes seguintes e últimos de Peleshian, em que a passagem do tempo se torna uma das questões centrais (embora se possa dizer que As Estações tivesse uma construção próxima a essa, não se deve esquecer que há uma organização cronológica que aponta para um ciclo, diferente dos outros três, em que o passar do tempo leva a um momento de consumação); no caso de Nosso Século, há tanto a micronarrativa dos astronautas quanto uma narrativa global que se debruça sobre a solidão, o anseio pelo desconhecido, a tentativa humana de se transcender a si mesmo e a natureza (outro tema caro a Herzog), numa oscilação entre fracasso e êxito que atravessa todo o filme, e numa completa dúvida sobre quando é melhor o fracasso e quando é melhor o êxito, até seu final ambíguo em que não se distingue um de outro.

Fim e Vida, que encerram a carreira de Peleshian, foram idealizados para exibição em conjunto e nessa ordem, sugerindo uma volta ao tema cíclico de As Estações, mas não é bem o caso. Em Fim, como que espelhando o primeiro filme, a imagem do trem retorna, mas dessa vez ninguém corre atrás dele; todos embarcaram no trem, incluindo a própria câmera, todos novamente vão na mesma direção, e o uso de música é mais uma vez mínimo, deixando o ruído do trem dominar a trilha. Haverá alguma diferença de status entre a situação nesse filme e a em Começo? Peleshian não procura responder, nem mesmo insinua se há ou não uma resposta: a câmera se limita a observar os passageiros, a paisagem pela janela, culminando numa longa cena em que o trem atravessa um túnel e o clarão ao final encerra o filme e nos joga para Vida, o último e mais curto filme de Peleshian, em que um parto é filmado com closes do rosto da mulher que dá à luz, enquanto soam batidas de coração. A imagem final, com a mãe e a criança fitando a câmera, faz um paralelo com o encerramento de Começo: novamente, olha-se para o futuro à espera do que pode vir pela frente. Como já dito, a sequência de projeção definida por Peleshian pode sugerir uma interpretação cíclica aos filmes; após a representação da morte em Fim, há de novo o nascimento, e a vida continua. À luz dos trabalhos anteriores do diretor, porém, é difícil atribuir um sentido unívoco: Fim e Vida juntos representam a tensão existente em todos os outros, apenas na chave mais declaradamente poética de toda a filmografia de Peleshian, entre vida e morte, entre um destino ainda em aberto e um já definido e inexorável.

É possível extrair um sentido da desordem geral, mas ele será ambíguo, ou fugidio; talvez seja essa a lição deixada por Artavazd Peleshian, e é bom lembrar novamente que ele insistia que os filmes — e sobretudo os dele — não podiam ser reduzidos a palavras, do contrário não haveria necessidade de serem filmes. Se há um sentido, ele nunca será textual, sempre beirará o incompreensível e por isso mesmo está sempre disperso, precisa ser forçado a aparecer de alguma forma, ainda que imprecisa, ainda que breve; os filmes de Peleshian são construções em que podemos contemplar o que pode ser uma verdade fundamental sobre nós mesmos por algum tempo, antes que ela se disperse novamente quando a projeção termina. Nós não a compreendemos completamente, nem conseguimos expressá-la — mas também não a esquecemos.

Filmografia

Começo [Skizbe; URSS, 1967]. 10 min.

Nós [Menq; URSS, 1969]. 24 min.

Habitantes [Obilateli; URSS, 1970]. 9 min.

As Estações [Vremena goda; URSS, 1975]. 28 min.

Nosso Século [Mer dare; URSS, 1983]. 50 min.

Fim [Verj; Armênia, 1992]. 10 min.

Vida [Kyanq; Armênia, 1993]. 7 min.

Há ainda Lernayin parek (1964) e Mardkants yerkire (1966), feitos por Peleshian enquanto estudava no instituto VGIK, em Moscou, e Zvyozdnaya minuta (1972), de Lev Kulidzhanov, em que Peleshian colaborou.

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Aurora (F. W. Murnau, 1927)

Aurora representou não apenas a chegada de Friedrich Wilhelm Murnau em Hollywood como o resultado do acúmulo de experiências técnicas e visuais do diretor (e do cinema alemão em geral) na arte muda dos anos 20, com suas perspectivas tortuosas, atmosfera carregada, personagens atormentados e fotografias em fortíssimo preto-e-branco cheias de sombras e de nuances. Murnau vinha de uma sequência de obras-primas e experimentos como Nosferatu, a primeira grande contribuição dele para o cinema (e que ainda hoje permanece, para este que vos escreve, como o melhor filme de terror do cinema), com seu visual aterrador cheio de sombras e cenários góticos, e uma poesia trágica envolvendo os personagens, cuja caracterização de Max Schereck ainda é insuperável em se tratando de figuras de vampiros. Ou A Última Gargalhada,  sobre a glória e a vaidade de um porteiro orgulhoso de seu uniforme bastante vistoso, e sua posterior decadência. Um dos maiores triunfos do cinema mudo, quase sem letreiros explicativos, por recorrer a uma das mais intensas movimentações de câmera e um uso muito bem elaborado do foco, da luz e da montagem inventiva e com a maciça interpretação do ator Emil Jannings, cuja atuação respondia melhor do que qualquer eventual legenda. Os filmes seguintes de Murnau, Tartufo e Fausto, confirmaram a grandeza de seu talento e comprovaram que a Alemanha estava pequena demais para ele, sobretudo por Fausto, com sua espantosa sinfonia técnica e uns efeitos (Fausto e Satã desaparecendo nos ares por cima da cidade, o circulo de fogo) de cair o queixo.

Depois de Fausto, Murnau abandonou a Alemanha e partiu para a América. Os Estados Unidos, atentos ao florescimento do cinema germânico, importaram um grande número de realizadores, atores e técnicos alemães. Murnau não poderia ter começado melhor em Hollywood, aceitando um convite do executivo e chefe de estúdio William Fox, que, expandido sua cadeia de exibição de vinte para mais de mil salas, sonhava com uma obra-prima que distinguisse o estúdio que fundara com o seu nome acima de todas as demais produtoras. Foi quando o alemão dirigiu pela primeira vez em solo americano (com rara e total liberdade de criação) o mais célebre de todos os seus filmes: Aurora. O filme era uma adaptação, feita pelo roteirista Carl Mayer (também um dos mais importantes do expressionismo alemão), de um romance de Hermann Sudermann, que se transformou nas mãos de Murnau numa história de amor e redenção das mais fortes. Um fazendeiro simplório (George O’Brien) envolve-se com uma linda mulher da cidade (Margareth Livingston), uma entre os turistas que visitam à pequena vila de veraneio próximo ao campo. Ela passa a representar tudo o que ele nunca possuiu na vida: agitação urbana, mundana e frívola, em contraponto à sua existência monótona, caseira e rudimentar na casa de campo em que vivia com sua esposa (Janet Gaynor). Uma das grandes sequências é logo no começo, no pântano, com a moça da cidade, onde o marido compartilha de uma intimidade cuja lembrança guiará os seus desejos posteriores, e à qual nunca conseguirá retornar. É uma sequência etérea, quase idílica, os corpos e os movimentos dos atores modelam a luz e a geometria do quadro (como em todo o restante do filme de Murnau). O pântano ali é o purgatório do personagem masculino, dividido entre o céu (a paz que lhe é conhecida ao lado da esposa) e o inferno (a incerteza de um futuro imprevisível com a amante) na Terra. É importante lembrar que o inicio do século XX (em que transcorre a história) marcou o surgimento da era moderna com a crescente migração das pessoas do mundo rural para as cidades, o fascínio pelos frutos da revolução industrial e o inicio da revolução tecnológica, cinema, poluição, barulho, teatro de vaudeville, etc. Era um novo mundo surgindo, em substituição a um mundo antigo condenado a se tornar cada vez mais obsoleto. E esse modo de vida que estava por se perder era representado no filme pela rotina do fazendeiro no campo, ao lado de sua fiel esposa, de feições e modos também humildes, a companheira de tantos anos que se lhe revela sem atrativos, seus hábitos inúteis, sua bondade como sinônimo de fraqueza.

O que era para ser apenas uma relação fortuita e passageira entre o marido e a amante se transforma num desejo de paixão mais duradoura de ambas as partes. O deslumbramento do amor (ou do que acreditavam ser amor), os desejos carnais, o prazer de estar um com o outro fazem com que os amantes não enxerguem as diferenças que há em suas vidas e a impossibilidade de juntá-las. Eles não pertencem ao mesmo mundo, e a vontade de unir um mundo com o outro é um erro dos mais excêntricos. Os dois decidem fugir, sendo preciso, para isso, assassinar, acabar com a esposa do fazendeiro. Já na cena de abertura, no pântano, quando os dois se encontram para tramar o homicídio, o protagonista atravessa o lamaçal entre névoas e brumas decidido a assassinar a esposa, como quem sai do plano real para ingressar num mundo difuso, numa das cenas que também é um dos tantos exemplos da extraordinária maestria dos movimentos de câmera do filme. Alias, durante o filme inteiro as imagens nos dão a impressão de que tudo nos é mostrado com uma câmera meio que flutuante, diria que quase sobrenatural. que sublima a relação dos personagens com o espaço e o ambiente que os envolvem. Um outro grande momento é quando o homem beija e mergulha em caricias com a vamp da cidade, enquanto a cena é intercalada com imagens da esposa chorando ao lado do filho.

Cabe ao desenrolar dos acontecimentos devolverem ao protagonista as noções de vida real que havia perdido. Ao se afastar da amante para voltar a sua esposa para matá-la, ao reencontrá-la, ele adquiri de súbito uma tomada de consciência, um sentimento de pena pela mulher à qual ele julgava não amar mais. A possibilidade de perder sua companheira faz com que ele reflita sobre abrir mão da solidez de sua existência para embarcar numa experiência que, no final das contas, poderia ser das mais efêmeras. Não vale a pena sacrificar a mulher com quem sempre viveu, e mais ainda, a vida que lhe era conhecida, na incerteza de reescrever o seu destino. Não se trata de mostrar o campo como um paraíso perdido, ou encará-lo como oposição à metrópole, como se àquele fosse bom, e esta pérfida e cruel: são camadas que se justapõem, que passam a fazer parte e se impregnando um e outro na existência de cada um dos personagens, como a noite e o dia, mas importando que no meio dos quais irrompe algo que se chama aurora. Esse meio entre dois mundos e espaços é o que contamina o filme de Murnau.

Sendo levado mais pelo que planejara do que propriamente pelo que desejava, o marido busca assassinar a esposa, mas se descobre incapaz do ato. A mulher indignada, reconhecendo no homem a sua frente não o antigo marido mas um estranho, quer sair ela dali e decide ir até a cidade. Desejando reconquista-la, e completamente arrependido pelo que tramara, ele a acompanha. A viagem de bonde que leva o casal do campo para a cidade é outro arroubo técnico fabuloso, com o uso de fusões e sobreposições para descrever as mudanças das paisagens exteriores, e nos permitem enxergar a cidade com os olhos do casal, tudo nos parecendo tão grande e caleidoscópico como o era para eles. As preocupações de Murnau com as qualidades formais fizeram com que ele alcançasse resultados muito próximos da perfeição. O restante do filme é sobre a tentativa do marido em se reconciliar em definitivo com a esposa, e mais do que isso, reencontrar sua identidade perdida, o homem que deixara de ser por causa dos devaneios e ilusões de uma paixão fugaz e inconsequente. É quando Aurora nos faz pensar como um equivalente adulto e naturalista de alguns conceitos de contos infantis em que personagens saem de seu mundo velho e conhecido para uma outra dimensão muito maior do que poderiam imaginar, para então redescobrir o amor pelo lugar (e pessoas) de onde surgiram.

François Truffaut dizia que esse é o filme mais belo do mundo e que ninguém poderia pensar em ser cineasta sem assisti-lo antes. Murnau pretendeu fazer desse filme uma espécie de canção, daí o subtítulo original de “A Song Of Two Humans”. À propósito, feito nos últimos suspiros do cinema mudo, Aurora utiliza um sistema de sonorização chamado Movietone, no qual o som era gravado diretamente no negativo. Com isso, o filme não precisava ter acompanhamento musical ao vivo. Aurora estreou semanas antes do primeiro filme falado, O Cantor de Jazz (que utilizava o processo Vitaphone, onde o som era gravado em enormes discos de cera), mas se reparamos na cena em que os protagonistas estão obstruindo a rua ao se beijarem, além de escutar efeitos sonoros de praxe, você poderá escutar, o que poderá ser considerado umas das primeiras palavras faladas no cinema (“Get out of There ou Get out of Way”).

Depois de Aurora, Murnau não teve mais a mesma carta branca nos estúdios e teve que ceder às pressões comerciais e realizar duas obras comerciais que lhe foram impostas: Four Devils e City Girl, este último retomando muito do que vemos em Aurora. Para fugir de Hollywood, Murnau partiu para o Taiti com o grande documentarista Robert Flaherty (Nanook, Man of Aran) para produzir e realizar Tabu. Os dois acabariam se desentendendo depois de três dias de filmagens, e sozinho Murnau fez a sua obra-prima derradeira. Isso porque três dias antes da premiére do filme, ele morreu em um desastre de automóvel. Na época se falou em uma maldição do sacerdote do Taiti, contrariado com certas cenas. Murnau tinha apenas quarenta e dois anos. Morria consagrado como o maior cineasta do seu tempo, ao lado de Charles Chaplin e Sergei Eisenstein.

Filmes citados

A Última Gargalhada [Der Letzte Mann; Alemanha, 1924], de F.W. Murnau. 77 min.

Aurora [Sunrise: A Song of Two Humans; EUA, 1927], de F.W. Murnau. 95 min.

City Girl [idem; EUA, 1930], de F.W. Murnau. 77 min.

Fausto [Faust – Eine Deutsche Volkssage; Alemanha, 1926], de F.W. Murnau. 116 min.

Nosferatu [Nosferatu, eine Symphonie des Grauens; Alemanha, 1922], de F.W. Murnau. 94 min.

O Cantor de Jazz [The Jazz Singer; EUA, 1927], de Alan Crosland. 88 min.

Os 4 Diabos [4 Devils; EUA, 1928], de F.W. Murnau. 100 min (versão sonorizada) | 97 min (versão muda).

Tabu [idem; EUA, 1931], de F.W. Murnau. 84 min.

Tartufo [idem; Alemanha, 1925], de F.W. Murnau. 74 min.

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Um Dia na Vida (Eduardo Coutinho, 2010)

Troço, e não um filme. Sempre em tom de provocação, é assim que Eduardo Coutinho gosta de se referir a sua experiência cinematográfica Um Dia na Vida. O projeto engaja de fato procedimentos, tanto em sua realização quanto na sua forma de exibição, que o torna um obra singular na filmografia do documentarista. Seu dispositivo poderia ser resumido na condensação em cerca de 90 minutos de trechos da programação e dos comerciais exibidos na televisão aberta brasileira durante um dia. Por questões óbvias de direitos de uso de imagens, é pouco provável que esse filme venha a ser lançado ou exibido comercialmente – até hoje, o filme teve apenas uma exibição pública oficial durante a Mostra de Cinema de São Paulo de 2010.

O que poderia ser um impedimento definitivo para a circulação do filme, acabou se tornando mais uma dobra (uma dobra política, é sempre bom lembrar) do seu dispositivo: o filme continua a ser exibido (de forma clandestina, sem se anunciar o título da obra), sempre em sessões gratuitas e com a presença do diretor para um debate posterior. Assim, a montagem de Coutinho com o material televisivo torna-se inexoravelmente inseparável do discurso do diretor sobre o seu sentido.

Partamos então, em princípio, para o discurso. O projeto nasceu de um desejo de Coutinho de fazer a sua versão no cinema para o livro Passagens, de Walter Benjamim: uma obra de citações, que não produziria nenhum conteúdo novo, apenas montaria com o material existente. Ideia ainda não totalmente finalizada, como indica o início do troço explicando que o material a ser visto a seguir poderá ser o ponto de partida para um projeto futuro. E também, como afirma o próprio diretor, sobre a sua vontade de criar paródias e reencenações em cima dos trechos selecionados – projeto ainda relutante, pois como destaca Coutinho, poucas paródias poderiam ter a força do material selecionado.

Talvez então, mais do que a referência ao projeto de citações do filósofo alemão, fosse necessário evocar a filiação do filme ao maneirismo dos regimes imagéticos contemporâneos denunciado por Serge Daney: onde cada imagem não pode fazer mais do que remeter a uma outra imagem. E a televisão não seria exatamente o local por excelência das imagens auto-referentes com códigos de entendimento e circulação próprios? Vide os diversos programas de fofocas de celebridades (reais ou personagens fictícios, já não há tanta diferença), a repetição das notícias nos jornais no decorrer do dia (dando um caráter cada vez mais auto-importante para os assuntos) e as diversas paródias de outros programas e canais (que se destaca de forma tão gritante no trecho selecionado da MTV Brasil). E aqui, definitivamente, já saímos do reino do discurso para entrar no reino das imagens.

Como aponta Coutinho, é preciso prestar especial atenção à construção do corpo feminino como uma imagem – como um objeto a ser constante e esteticamente construído pela televisão: cirurgias plásticas, dietas, joias caras, cintas que reduzem medidas, programas de transformação radical. Nos anos 1970, o feminismo militante de Laura Malvey já denunciou o cinema como o local em que a mulher é colocada sob o olhar masculino do desejo. O que nos denuncia Coutinho é que na programação da tv aberta brasileira, o corpo feminino é colocado no lugar interminável da auto-flagelação espetacular.

Mas o que Coutinho realiza é mais do que nos mostrar o abismo das imagens sobre imagens da televisão. Seu dispositivo é o da ressignificação pelo deslocamento de contexto – nesse ponto, um verdadeiro ready made de inspiração duchampiana. É preciso tirar o mictório de banheiro televisivo e colocá-lo no local privilegiado da tela grande do cinema. Assim os instrumentos de cirurgia estética do Doctor Hollywood, que poderiam ter um ar inofensivo na pequena tela quadrada, ganham um verdadeiro aspecto de gigantescos instrumentos de tortura ao serem projetados. Ou a passagem do jornalismo espetáculo do terror para o editorial de moda leve e despretensioso, ganha verdadeiros contornos dramáticos ao vermos a expressão abrupta de transformação no rosto da âncora do jornal.

Os exemplos seriam inúmeros, tantos quanto são os trechos que compõem o troço. Ainda que sua montagem seja bastante bem humorada, o diretor não nos deixa esquecer que estamos no mundo dos monstros e no reino do horror. É preciso que se ouça atenciosamente o discurso dos pastores em sua religiosidade absurda – e também que vejamos os rostos dos fiéis/expectadores crentes nesse regime de representação. É preciso acompanhar a transformação estética da mulher mais feia do mundo, que ao final vê-se refletida no espelho como uma cópia da apresentadora do programa (a cópia da cópia da cópia…).

E é sobretudo necessário prestar atenção no regime de representação das narrativas televisivas, da declaração piegas do casal no campo de rosas a heroína de novela mexicana (literalmente) que se desespera em um cemitério, nada pode causar tanto estranhamento como esse deslocamento. A novela, um dos produtos nobres da televisão brasileira, não consegue ser mais do que risível com seus grandes closes (ainda maiores), sua música de fundo (ainda mais alta) e sua montagem didática.

Já estamos definitivamente na paródia ao vermos tais cenas na tela grande. A citação não precisa ser explicada e o absurdo reina. Ainda bem que no cinema esse dia dura apenas 90 minutos.

Filmes citados

Um Dia na Vida [idem; Brasil, 2010], de Eduardo Coutinho.

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As Canções (Eduardo Coutinho, 2011)

Assistir a um filme de Eduardo Coutinho se tornou há algum tempo mais do que uma experiência imagética e sonora, mas também um confronto com o cinema como teoria – mais precisamente, com o campo do documentário. Isto porque a filmografia de Coutinho se confunde com a história do documentário contemporâneo brasileiro: Cabra Marcado para Morrer, é a gênese; de Santa Marta a Peões temos a consolidação da entrevista como local de encontro privilegiado; O fim e o princípio marca a crise desse método (no qual o filme que se procurava não acontece como se previa); finalmente, temos a reinvenção do campo e do dispositivo em Jogo de Cena e Moscou, trazendo para frente da câmera a encenação. Há ainda nessa trajetória um pouco visto e subversivo Um dia na vida, feito a partir de imagens da televisão – paira sobre o filme toda uma questão sobre os direitos autorais dessas imagens e é pouco provável que este venha a ser lançado comercialmente.

Por isso, quem chega em As Canções pode a princípio se frustrar. Não, Coutinho não vai mais uma vez revolucionar o campo documental, não vai questionar a encenação, os jogos de poder entre entrevistador e entrevistado ou as nossas relações com a imagens. Ao contrário, o dispositivo do seu novo filme já estava presente em vários dos seus filmes anteriores, neste seus entrevistados cantam músicas que marcaram sua trajetória de vida de alguma forma. Já havíamos visto isso em Edifício Master, quando um senhor interpreta My way emocionadíssimo, ou em Jogo de Cena, em que a entrevistada volta para encerrar sua participação com Se essa rua fosse minha. Aliás, de Jogo de Cena Coutinho pega emprestado também o cenário: um palco de teatro com a câmera enquadrando apenas uma cadeira, que será ocupada por seus personagens cantantes.

Ainda assim, e talvez justamente por isso, há muito não se assistia a um filme tão belo do diretor. Instalados no dispositivo, mergulhando na memória dos entrevistados e nas nossas memórias reviradas pelas letras da canções flui-se livremente pelo filme e por suas emoções – sem tantas amarras aos procedimentos do diretor. O próprio Coutinho parece esquecer-se de seus métodos para em uma deslizada ou outra cantarolar algum trecho de canção.

As Canções acaba assim sendo um filme bastante singelo, que se interessa profundamente em ouvir e ver seus personagens. Mesmo os que só aparecem por pouquíssimos minutos, apenas para cantar uma música, ou um trecho, sem que possamos saber mais sobre a sua história. Ficam as vozes, quase sempre mais expressivas do que afinadas e os closes dos rostos. Nesse sentido, os rostos enrugados, marcados, são tão narrativos quanto as letras das canções e as histórias de vida.

Se em Jogo de Cena, o que perpassava as entrevistas era o universo feminino, aqui a temática – com poucas exceções é a dos relacionamentos amorosos. Nesse sentido, um dos filmes que mais dialoga com As Canções seria a divertida comédia romântica musical de Alain Resnais, Amores Parisienses. Se o terreno de Coutinho fica entre o samba e uma MPB mais consagrada, com algumas brechas para as composições autorais, Resnais apela para a música pop francesa sem o menor medo de fazer os seus personagens soarem ridículos. O que ambos os diretores sabem é que nas nossas vidas o que há de mais íntimo, de mais doído, de mais saboroso, não deixa de caber perfeitamente na letra daquela canção que todo mundo conhece. Nossas memórias afetivas não deixam de ser a música que faz parte do imaginário coletivo, que todos sabem de cor. E não há do que se envergonhar – pois assim como Coutinho, nós espectadores também nos pegamos cantarolando baixinho.

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Dario em dez mortes

Um breve passeio por algumas das belas cenas concebidas por Dario Argento e suas ideias de cinema (isto não é um top 10).

1. O Pássaro das Plumas de Cristal (1970)

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Aos personagens de Argento não é permitido o privilégio de virar o rosto. A chamada trilogia degli animali, apesar de ser claramente um laboratório para ideias levadas a cabo nos anos seguintes, traz já na primeira morte assinada por Argento o gérmen de sua obsessão e vício: uma imagem como ponto fecundante que dará corda ao giro dos personagens e suas ações, uma imagem que precisará ser pensada, relembrada, desconstruída, para que se possa progredir na diegese. Uma chave (a despeito da gasta associação). Na cena, Sam Dalmas vê do outro lado da rua o que parece um homicídio em curso. Ao atravessá-la, ele fica preso entre duas portas de vidro, entre a rua e a galeria onde a mulher sangra, golpeada no peito com uma faca. Ele não pode entrar para ajudá-la, e não pode sair correndo. Os protagonistas de Argento não têm escolha a não ser acomodarem-se no espaço a que pertencem: entre o mundo que deixam para trás, insípida realidade, e o mundo à sua frente inaugurado pela mão do assassino, belo e misterioso como uma tela de cinema. A este olhar é dada a responsabilidade de mover a roda argentiana, um olhar que não pode agir, mas que também não pode se desviar da ação. Um olhar cujo único poder é o de ver, examinar, remontar.  É o que Argento demandará de seus protagonistas e espectadores ao longo de toda a sua obra.

2. Quatro Moscas Sobre Veludo Cinza (1971)

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A cidade e o caos são corpo e espírito na obra de Argento. Em Quatro Moscas Sobre Veludo Cinza, a morte de Nina é esse fundir de carne, metais e vidro quebrado quando o carro que ela dirige entra embaixo de um caminhão. É ao mesmo tempo à beleza e à ironia que Argento tributa o slow de uma morte que ocorre em décimos de segundo, mas que dilata-se pela mão do artista e pela trilha elegíaca de Ennio Morricone. À beleza porque a hiper-estilização da morte é o que energiza e revolve a mise-en-scène de Dario, sempre disposta a sabotar a narrativa, a inverter a lógica se conveniente for ao efeito que a imagem invoca. À ironia porque é a falta de um pudor maior (inclusive consigo mesmo) que permite a Argento transitar impune por entre a concepção de algumas das maiores atrocidades que se viu em um filme, como conferir lirismo e poesia a um acidente de trânsito, a mais banal das mortes. É o apetite pelo absurdo que faz do cinema uma arte que não imita, mas que compete com a vida.

3. Prelúdio Para Matar (1975)

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De todas as cenas extraordinárias de Prelúdio Para Matar, do petardo surtante do Goblin e da ópera épica e maldita que Argento dirige, é esse vulto de imagem entre os créditos iniciais que mais merece atenção. Uma fagulha do que está por vir. Das heranças do cinema clássico, de Hitchcock e de Tourneur, é certamente um elemento do western de Anthony Mann a peça mais recorrente do cinema argentiano: o passado, esta assombração. Um fato do passado marca e redefine os personagens, que passam a viver em função da lembrança que os atormenta. A diferença, claro, é que em Mann são os protagonistas homens desgraçados que devem superar seus traumas. Em Argento, são os assassinos. Mesmo assim, há aí uma similaridade elementar: como em O Homem do Oeste, Winchester ’73, O Homem dos Olhos Frios; como em Era uma Vez no Oeste (roteirizado por Argento), o trauma é uma licença para matar, e não pode haver nada mais faroéstico do que isso. Com que estranha benevolência Mann, Leone e Argento tratam a morte: em ambos os gêneros (que a têm como objeto) ela não é nunca arbitrária. Aceita-se que Harmonica mate Frank e seus capangas por reparação; aceita-se que o assassino mate em Prelúdio porque ele não tem motivos escusos para tal. “Ele só tentava me proteger”, diz o psicopata para David Hemmings na última cena. Mesmo nas mais violentas formas de cinema do séc. XX, os três diretores cuidaram para que o primeiro sentimento que aquele que mata inspirasse fosse a piedade.

4. Suspiria (1977)

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A limitação do espaço físico surgiu no horror como solução para as condições modestas de filmagem geralmente atreladas ao gênero, mas logo impôs-se como trunfo na impressão do medo e no espelhamento entre espectador e personagem, que, encurralado pelo que o ameaça, divide com o primeiro a aflição de não ter defesa ou possibilidade de fuga. Suspiria se passa quase que inteiramente dentro da escola de dança, e seus personagens são cercados por uma onipresença maligna aonde quer que vão. Ainda assim, mesmo que não haja para onde correr, a ilusão da escapada permanece, a curva seguinte do corredor sempre mente com a promessa de que logo ali haverá uma saída. Por isso é apropriado que a morte do cego ocorra onde tudo o que há sejam espaços por onde fugir. Ele é captado no centro da praça de Königsplatz, em Munique, como se fosse a última alma viva sobre a Terra, sozinho, preso na vastidão do mundo inteiro com o mal que o ronda, tal qual estivesse preso num armário. Num desses arroubos cínicos de Argento, é morto pelo próprio cão-guia, a 30 centímetros de distância. Toda a ideia por trás da “trilogia das mães” (os assassinatos que ocorrem por intermediação de qualquer pessoa ou coisa influenciada pelas bruxas) é o pretexto para criar mortes não necessariamente vinculadas a um indivíduo, independentes de um ponto de vista que se deva representar como o ponto de vista de um assassino serial, uma pessoa. Isso significa concessão para pôr a subjetiva em um pássaro (Terror na Ópera), um mosquito (Phenomena) e até no próprio vento (como é o caso aqui). É uma noção muito romântica de cinema, a crença antes no correr incontido da imagem do que no que quer que seja que a devesse sustentar. Experimenta-se assim uma exponencial rarefação da câmera, desencarnada de um recipiente rígido (seja o corpo de outrem ou o próprio espaço do campo que ocupa), livre feito um espírito para realizar voos e mergulhos (Terror na Ópera, Tenebre). Como ocorre também na cena seguinte.

5. Mansão do Inferno (1980)

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A cor é signo da estilização do horror italiano, marca dessa noção inconcebível de que pode haver beleza em um assassinato, paradigma inventado por Mario Bava e que serviu de liga para todo o desenvolvimento do gênero. É natural portanto o exagero, a feitura de planos impraticáveis, o grafismo das mortes, o azul, vermelho e violeta; porque o campo de ação de um filme de Bava ou de Argento (ou Fulci, Martino, Barilli, Soavi) não pode jamais ser confundido com qualquer coisa exterior à tela que ocupa. O farsesco serve de licença à criatividade do artista e à consciência do espectador. Apesar de a cor no horror italiano ter aparecido no distante A Gota d’Água (segmento de As Três Máscaras do Terror, de 1963), Argento só veio a utilizá-la em Suspiria, e como simples marcação do fantástico, já que se tratava de sua primeira incursão no horror sobrenatural. O uso em Suspiria é primitivo, quase infantil. Somente a partir de Mansão do Inferno que Argento confere às cores a qualidade imaginada por Bava: a de sofisticar um ato por mais grotesco que ele virtualmente seja. Se de O Pássaro das Plumas de Cristal (70) a Suspiria (77) vale a inquietação da câmera no que Argento faz de melhor (guiá-la pelo ambiente), em Mansão do Inferno todas as mortes aproveitam-se antes da força do espaço fílmico e das cores que o inflam a serviço da plasticidade e de nada mais. Todas com exceção de uma (nas imagens acima). No que os demais assassinatos são belos, coreografados, substâncias de um quadro fluxível (e Mansão do Inferno tem as mais belas composições de Argento), a morte de Sacha Pitoëff ocorre num esgoto. Ele deixa para trás a arquitetura irretocável de Roma, deixa os belíssimos enquadramentos que serviram de moldura ao filme até então, e protagoniza uma morte avessa a qualquer apelo estético. Enquanto tentava matar uma porção de gatinhos indefesos, Pitoëff cai na água e começa a ser devorado vivo por ondas e ondas de ratos que vertem dos esgotos. Ele grita por ajuda. De longe, um vendedor de cachorro-quente sai correndo para tentar salvá-lo. Acompanhamos a angústia da espera, o close nervoso de Argento nas centenas de ratos que borbulham uns sobre os outros contra o plano estático do homem que, de longe, apressa-se para chegar a tempo. Quando chega, crava a faca na nuca do desgraçado, rola seu corpo para dentro do esgoto e sai andando tranquilamente. No céu, entre os prédios, a lua é um olho que a tudo assiste; incluindo o leve sorriso do espectador.

6. Phenomena (1985)

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Contra a dureza dos centros urbanos que lhe serviram de universo de O Pássaro das Plumas de Cristal até Tenebre (82), Argento devolve, em Phenomena, o prodígio da morte à sua artífice original: a natureza. A todo o momento os personagens se evadem para longe de uma cidade. Como quem retorna ao útero, o filme repetidamente abandona um cenário urbano em direção a um bucólico, a uma floresta úmida, a uma gorda cachoeira. Assim, como se vê na cena acima, deixando o asfalto de lado para seguir por um pictórico caminho de terra, a câmera não escala telhados de casas e arranha-céus (Tenebre, Suspiria), mas flutua por sobre as copas das árvores mais altas feito folha levada pelo vento. Não há mais o tráfego sujo e confuso de O Pássaro das Plumas de Cristal (correria pelas ruas de Roma), Quatro Moscas Sobre Veludo Cinza (o acidente na cena final), O Gato de Nove Caudas (o atropelamento pelo trem), Prelúdio Para Matar (arrastado pelo caminhão de energia); a perseguição agora transcorre talhando mata e montanha. No final, a rima entre o slow do vidro que se estilhaça com o slow do acidente em Quatro Moscas Sobre Veludo Cinza, a cabeça que rola por sobre o asfalto e a cabeça que rola pela correnteza do rio; o final de um filme, o prólogo de outro, como duas pontas que se acham após uma longa curva de 14 anos.

7. [The Black Cat] Dois Olhos Satânicos (1990)

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Em 1985, Argento tentou levar aos palcos de Roma a irônica Rigoletto, de Verdi (após desistência de Scorsese). Seria o início do que o diretor esperava se tornar uma bem-sucedida carreira na ópera, mas as “distorções” propostas por Argento no libreto do séc. XIX chocaram o tradicional Sferisterio di Macerata. Dario recebeu pelo correio a carta de dispensa, e foi substituído pelo também diretor de cinema Mauro Bolognini. Foi sua primeira decepção pública com a arte. Não por acaso, dois anos mais tarde, Terror na Ópera era lançado. No filme, quem comanda a produção é um diretor de filmes de terror com ideias ultrajantes, o fetiche do assassino é forçar a protagonista a assistir a suas obras, e, no ápice do espetáculo, corvos voam pelo teatro atacando as pessoas da plateia. O filme mais caro produzido na Itália até então foi um fracasso de público e de crítica, selando a crise de confiança dos estúdios nos diretores de horror do país e decretando o fim do cinema fantástico italiano enquanto objeto de apelo comercial. Sua segunda e talvez definitiva decepção; uma nova fase para o horror e uma nova fase para Argento, desde então o único diretor com algum prestígio para continuar trabalhando no gênero. [com o perdão da longa introdução] É essa fase que The Black Cat (a segunda parte de Dois Olhos Satânicos) inaugura. É natural começar a assistir Argento por Prelúdio Para Matar e Suspiria, dois de seus filmes mais histriônicos, e decepcionar-se com sua fase noventista. É certo que não há mais o mesmo brilho nas lâminas, certo que se gasta a vivacidade das cores. É inevitável a evolução do artista. The Black Cat é esse marco de um Argento mais áspero e não menos genial.  O conto de Poe já fora adaptado setecentas e noventa vezes (a melhor versão é de Lucio Fulci), e embora sempre amargo, nunca com a crueza e o requinte minimalista que Argento imprime. Nas imagens acima isso fica muito evidente. O crime central de The Black Cat é uma cena banal de violência urbana, digna de figurar em páginas policiais: uma briga de casal. Não mais psicopatas megalômanos, bruxas milenares que planejam trazer o inferno à Terra. Aqui, o marido se descontrola e mata a esposa com um cutelo de cozinha. Nada mais. Os planos são escuros, erráticos. Keitel parece não caber dentro do quadro. No detalhe, a lâmina que abre e desliza pela carne vagarosamente, único virtuosismo (ou nem isso) a que Argento se permite. No final, o que sobra é um elemento ignorado por toda sua obra e que a partir daqui passa a tomar perturbadora relevância: o corpo sem vida. Até Terror na Ópera, ele não interessava a Argento. O corpo como objeto de seu cinema é aquele dos momentos que precedem a morte, quando mais agitado e vivo do que nunca. É o corpo que debate-se, que luta contra a própria extinção, que sangra e exaure suas forças para permanecer vivo. Há qualquer coisa de belo nesse prelúdio, uma graça inespecífica que sempre fascinou Argento e que ele buscava reproduzir. Em The Black Cat, do primeiro ao último golpe do cutelo se passam exatos dez segundos. São dez segundos contra toda a metade do filme que se desenvolve a partir daí em torno do cadáver: escondido, assombrado, emparedado e, por fina ironia, origem da morte de seu próprio assassino. Definitivamente algo muda no cinema de Dario Argento.

8. Síndrome de Stendhal (1996)

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Se antes a estilização e vigor absurdos das mortes lhes emprestava qualquer coisa de impossível, de fabuloso, a nudez da violência em Síndrome de Stendhal (a grande obra-prima pós-Opera do diretor) é a nudez da própria máquina fílmica de Argento, mais narrativa do que exatamente gráfica, mais chocante do que propriamente bela. A tortura é o elemento centralizador da ação, não mais o assassinato em si. Se o cinema acostumou o espectador à encenação da morte, certamente não o preparou para o estupro. É a linha que Argento cruza em Stendhal. A cena em que o estuprador tira uma lâmina de barbear da boca e corta os lábios de Anna é simples e arrepiante como sua referência em Um Cão Andaluz. Não há o distanciamento sempre tão bem determinado entre o que é fantástico e o que é próprio do universo do espectador. É da inversão que Argento opera. Se no giallo típico nos vemos naturalmente do lado do assassino (porque a finalidade do giallo é a conclusão do ato que ele enseja. A falta da morte é um coito interrompido), em Stendhal é na posição de Anna que Argento nos coloca, sempre montando o estuprador sobre a câmera como se o montasse sobre o espectador. É esse ângulo inferior, em parte subjetivo, que muda tudo em Stendhal. Quando a câmera volta à sua posição original, desaparece o Argento de Tenebre ou Prelúdio, some o senso estético, o prazer fílmico. Só olhamos porque somos forçados a olhar. Cada movimento do estuprador e cada grito de Anna são de um desconforto que as mais violentas mortes de Argento não tencionaram provocar. Na cena acima essa ilustração: o serial killer força Anna a vê-lo estuprando e matando uma mulher. No detalhe, o olhar através do buraco da bala.

9. Jenifer (2005)

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Não costumam funcionar as tentativas de encaixar Jenifer e Pelts em uma análise de filmografia de Argento. Os médias não parecem ter sido feitos há apenas alguns anos, mas também não poderiam jamais ser filmados nos anos dourados do terror italiano, quando cada milímetro de película era fruto de uma ideia meticulosa de cinema que o diretor defendia. Assistindo a cenas como o passeio pelo casarão em Prelúdio Para Matar, ou a organização das fotografias em Quatro Moscas Sobre Veludo Cinza, percebe-se um Argento comprometido até a alma com seu conceito de uma arte sensorial acima de tudo e uma arte que deve remontar-se, refletir-se, para poder contar a si mesma, diletante e espontânea. O cinema de Argento é o do reprojetar a imagem na memória para ressignificá-la. É o único modo de se progredir no filme. Em Suspiria, por exemplo, Suzy sabe que viu algo importante na noite em que chegou à escola de dança, mas não consegue lembrar o que é. Quando estanca em sua investigação diante de uma parede aparentemente sem saída, ela repassa na cabeça a imagem da estudante gritando. Ela disse alguma coisa, algo fundamental. Como não pôde ouvir, devido à tempestade, ela lê os lábios e adiciona o som à imagem (De Palma fez o contrário em Um Tiro na Noite), podendo finalmente seguir em frente na trama. Este é o tronco do cinema de Argento e está presente, em maior ou menor grau, em todos os seus filmes (incluindo Giallo), com exceção exatamente de Jenifer e Pelts. Mas era essa mesma a proposta da série Masters of Horror: dar aos diretores convidados uma válvula de escape para qualquer compromisso que precisassem manter com estúdio, produtor, público ou, talvez acima de tudo, com eles mesmos. E assim acontece: Jenifer é cinema que simplesmente flui com a leveza dos filmes que parecem se fazer sozinhos. Talvez por isso mesmo ambos sejam as obras mais próximas do gore que Argento já dirigiu (a morte na armadilha em Pelts é inacreditável). Mesmo assim, mantem-se uma sofisticação imanente, e é essa classe que lhe confere de verdade, em estado puro, o que se pode chamar de terror. Na cena acima.

10. Giallo (2009)

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Se falamos até aqui do papel do trauma e da remontagem na obra de Argento, pode-se dizer que Giallo é o único filme que desenvolve-se sobre estes elementos. Não com base neles como todos os outros, mas sobre, a respeito deles. Uma reflexão de Argento nem tanto sobre o giallo em si, mas sobre sua contribuição ao gênero. Há duas cenas dispostas nas imagens acima (cinco imagens cada): a primeira se passa na memória do investigador (anos 70/80), a segunda no presente. A morte, na primeira, é a morte dos primeiros anos de Argento: há uma preocupação atmosférica, ângulos fantásticos, o assassinato através da lâmina da velha faca dos gialli setentistas. Tudo, do filtro amarelo às velas, rosas, candelabros (até a fenda do vestido), sugere o óbvio: o passado é belíssimo. A lembrança do protagonista, um elemento que atravessou toda a filmografia de Dario, é a lembrança do próprio diretor. Giallo só permite a Argento respirar a velha fase pré-Opera através desse fio de recordação. Como grande esteta do horror, época das cores bavianas, das falsas subjetivas e das mortes sonorizadas pelo Goblin, resta o que já há muito se passou. A esse Argento jovem e louco para experimentar, Dario reserva o trauma do protagonista, um relicário. Mas Giallo não foi feito ou tampouco se passa nos anos 70. Do lado de fora desse abrigo, Argento não registra nenhuma perseguição furiosa do assassino por sua vítima. “Yellow” (nome do psicopata) não mata: captura as lindas mulheres para trabalhar vagarosamente seus corpos numa gélida mesa de cirurgia. Sua obra consiste justamente em arruinar o que é belo. O instrumento não é mais a lâmina da faca, mas tesouras, seringas e alicates, e o mais importante: Argento priva o espectador da ação. O único momento em que vemos o resultado do que o psicopata opera é quando ele próprio as aprecia: por fotos digitais abertas num monitor. Volta o interesse pela carne apenas, pela imobilidade; o corpo e nada mais que o corpo é o objeto de fetiche do assassino, o trabalho sobre a pele como se fosse uma tela ou uma pedra para o escultor. Extirpando o valor do movimento e trancafiando-o no porão da memória, Argento diz alguma coisa sobre o cinema que fazia e sobre o cinema que faz. Não há sequer o interesse pela morte. Como se vê na última cena, Yellow não mata a personagem, apenas a tranca num porta-malas. A morte dela é consequência das decisões do investigador, encerrando assim um sombrio paralelo com Prelúdio Para Matar (filme-síntese do olhar argentiano): o protagonista transformado em assassino, e os créditos, secos, postos sobre a poça de sangue de sua vítima.

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Jam Session #1 – Prelúdio para Matar

Daniel Dalpizzolo e Robson Galluci debatem a obra-prima Prelúdio para Matar, um dos principais (e certamente o mais influente) filmes do mestre do horror italiano Dario Argento. Como o próprio nome do artigo, roubado das sessões musicais improvisadas de jazz, insinua, é um artigo sem uma estrutura exata, que através de seus desvios temáticos e da linguagem despojada tem por objetivo proporcionar um exercício livre de pensamento e de exposição de ideias, apresentado na íntegra aí para vocês.

Daniel: Provavelmente não existe maneira melhor de começarmos a falar sobre Dario Argento do que tratando sobre Prelúdio para Matar. Não por ser o filme mais popular do diretor, mas sim porque é a partir dele que percebemos em Argento um real diferencial em relação aos demais cineastas ligados aos filmes de horror e suspense ou aos gialli e aos filmes policiais. É a quinta obra para cinema dirigida pelo italiano, mas os trabalhos anteriores, mais especificamente os três filmes que compõem a Trilogia dos Bichos, são filmes predominantemente narrativos, o que não os torna maus filmes, claro, mas os diferenciam daquilo que, ao nosso entendimento, Argento faria a partir de Prelúdio para Matar — e que se tornaria a essência autoral, o diferencial deste diretor tão peculiar. O Pássaro das Plumas de Cristal, por exemplo, o primeiro de Argento, é completamente dependente da sua história e da tensão que esta história cria pra resolução do mistério, e também da própria resolução desse mistério. Mas essas coisas pouco importam a Prelúdio para Matar. Importam ao protagonista, sim, mas a Argento e ao espectador muito pouco, e menos ainda ao resultado do filme enquanto experiência. Se a velha é a assassina ou se fosse um alienígena doidão, simplesmente não faz diferença. A história soa mais como um pretexto pra que o filme nos envolva numa atmosfera específica, que nos leve pelos fluxos sensoriais que ele constroi através das imagens e da trilha sonora brilhante do Goblin, que combinadas causam um efeito quase indescritível, embora a gente se esforce a todo instante para colocá-lo em palavras. E são esses fluxos que fazem os filmes do Argento serem experiências tão intensas e tão empolgantes.

Robson: E a história é tanto um pretexto que há aquela enorme volta ocasionada pela inserção do livro no enredo — absolutamente do nada —, com os objetivos muito claros de incluir mais um assassinato e culminar na sequência em que o Hemmings explora a mansão, uma das mais emblemáticas do filme. Mas o interessante é que, por mais que dessa vez toda essa quebra da narrativa, esse desrespeito à lógica sejam meramente utilitários, com função de preparar terreno ou fornecer pretextos pra algumas cenas, mais tarde o Argento vai começar a usar isso conscientemente, transformar em outra marca do seu cinema. Começa já no filme seguinte, Suspiria, construído em torno daquela espécie de vazio narrativo, um prólogo, um epílogo e só. Quebrar o filme no meio vai acontecer em Phenomena. Mansão do Inferno tem aquela estrutura de dois jogos de resta-um consecutivos, que como que ajeitam as peças para que a narrativa aconteça, mas os dois jogos são a única coisa que constitui o filme — de certa forma, a narrativa acaba quando está pronta para começar. E nem é preciso falar de Tenebre. Então Prelúdio, conscientemente e inconscientemente, já traz em si praticamente todas as questões e procedimentos que vão nortear o cinema do Argento dali em diante, e, para mim, na maior parte do tempo é a instância mais bem acabada desse cinema.

Daniel: As próprias grandes cenas de Prelúdio para Matar (de Argento de uma maneira geral, mas em especial nesse aqui) me parecem, cada uma delas, composições trabalhadas de maneiras particulares, e como você diz, já usadas de um jeito conscientemente desconexo, como se cada uma tivesse vida própria, como se não importassem ao todo da forma como a gente vê tradicionalmente nos filmes (se alguém quiser arriscar falar do “roteiro” de Prelúdio para Matar vai dar com a cara no chão, porque é um traçado cheio de becos sem saída). Os assassinatos e as sequências de tensão de Prelúdio se constroem muito mais por suas lógicas específicas de ambientação (a relação do personagem e da câmera com o cenário em que se encontram etc.) do que pela lógica tradicional das narrativas de cinema — como por exemplo o filme te preparar uma personagem por quem “torcer” antes de sua morte, seja por alguma ligação dela com o protagonista ou com a história central, seja por alguma simpatia que se crie com essa personagem. Aqui não há isso. As vítimas entram em cena e logo depois morrem, e são sequências extasiantes, que convertem a violência em algo prazeroso e que fazem você querer ver mais gente morrendo, por mais indecente que isso possa parecer (e o plus do filme talvez esteja aí, em seguir um protagonista mas te dar essa oportunidade de ansiar pelas mortes e vibrar com elas, e ao mesmo tempo também dilatar ao máximo o tempo entre uma morte e outra, te deixando ali na tensão à espera delas).

Robson: Inclusive usando o artifício da câmera talvez-subjetiva, que é um grande insight e serve tanto pra criar suspense, na oscilação que indica que o personagem pode estar sendo observado, quanto pra colocar o espectador nessa posição que se confunde, por vezes, com o assassino. E mesmo quando não faz isso, ao evidenciar a presença física da câmera dentro da cena, o Argento no mínimo intensifica o papel de voyeur do espectador — não há como escapar de uma parcela de “culpa”, seja na identificação visual com o assassino (explicitada no plano final), seja na consciência de que o fato de o espectador estar ali pra ver é o que possibilita a imagem e assim por diante. Claro, isso vem do Hitchcock, mas o Argento encontrou uma solução formal muito boa pra colocar a questão em seus filmes sem nem ignorar a precedência do Hitch, nem simplesmente copiá-lo. E outra coisa que me chama a atenção nas grandes cenas de Prelúdio — para falar a verdade, nas grandes cenas de vários dos gialli do Argento — é como ele sempre tenta evitar a artificialização da imagem que se baseie em qualquer coisa que não a câmera (nem sempre com sucesso, é claro). Nos gialli ele não usa, por exemplo, a iluminação estilizadíssima do Bava, ou os cenários meio barrocos (e sim em Suspiria e Mansão do Inferno). Não que a abordagem do Bava seja pior ou qualquer coisa parecida. O ponto é que o Bava foi um dos fundadores do giallo, uma influência com que o Argento teria que lidar de alguma forma, e é um aspecto notável como ele se esforça em vários sentidos pra encontrar, criar um estilo próprio em Prelúdio e que depois ele segue praticando no gênero. Citações ao Edward Hopper à parte, na maior parte do tempo a mise en scène (estava demorando pra usarmos a expressão) é criada unicamente a partir do modo como os elementos são posicionados no quadro. É estranho falar isso se referindo a um filme do Argento, mas dá uma impressão de naturalismo em certo sentido: tem um piano e um banco ali, não são um piano e um banco notáveis, são absolutamente comuns, e a iluminação também é comum, discreta — até elegante, fazendo uso inteligente de luz e sombras, mas nunca beirando o expressionismo como em Olhos Diabólicos, do Mario Bava —, e o Argento encontra o ângulo exato de onde filmar aquilo e tornar a imagem única, incomum, e nem um pouco naturalista. Ou não propriamente o ângulo, porque a câmera se mexe muito, mas o fluxo ideal, como ir de um plano a outro da forma perfeita. É um cinema de movimento puro, objetos em movimento e o movimento da câmera registrando isso. Dá até pra traçar um paralelo maluco com o John Woo.

Daniel: O paralelo que eu traçaria com maior facilidade é mesmo com Sergio Leone. E essa sequência do piano é perfeita pra exemplificar no que Prelúdio para Matar tanto se parece com Era uma Vez no Oeste, por exemplo, um filme que embora seja um western classicão, com todas as características do gênero presentes e sendo utilizadas com muita força, é quase que algo à parte nesse gênero. De um modo geral por serem filmes em que tanto os resultados estéticos quanto o efeito que eles causam no espectador, cada um à sua maneira, me parecerem ser semelhantes — de uma forma quase lírica. Mas também por ambos serem filmes que utilizam a montagem dos planos, o corte de uma imagem pra outra, não exatamente como um ponto de corte da imagem (não me refiro a elipses, mas à mera progressão da ação que é encenada no filme), mas como uma equação de adição, que vai fazer com que a sensação de tempo daquela sequência se dilate (e é interessante o que você disse sobre ser um cinema de movimento puro, pois esse movimento no caso do Argento — e de Leone — está em como o diretor enxerga/filma a cena, e não exatamente na ação filmada, como geralmente deve ocorrer). Por alguns momentos, soam como se fossem diferentes recortes de uma ação congelada (o fato de o primeiro assassinato ser visto por nós muitos minutos antes de ser visto pelo protagonista no filme também ajuda a fortalecer essa sensação). A troca dum plano pro outro não necessariamente significa que a sequência avançou; a ação pode permanecer exatamente onde está, e conforme isso se acentua a tensão de cena também se acentua. No caso da sequência do piano (também um baita exemplo pro que já foi comentado a respeito de grande parte das cenas serem quase inúteis umas às outras, sobreviverem sozinhas etc., afinal a sequência é mais uma que não acrescenta absolutamente nada ao filme, mas que é fatal pra nossa experiência com ele), que é realmente a minha favorita nesse sentido: o David Hemmings tá lá tocando o piano dele, a câmera invade a janela, observamos ele anotando notas, as teclas as executando (os closes são excepcionais, os recortes da ação fazem praticamente perder a noção do todo por alguns segundos, naquela busca pelo ângulo ideal que você comentou), a câmera deslizando pela partitura até que ele ouve um barulho estranho, o pó de reboco caindo sobre o piano, a câmera subjetiva deslizando sobre a laje como se fosse a visão do assassino… enfim, e tudo que se segue (rola até close em gotas de suor na face). A cena se sustenta em uma ação que parece durar o dobro do que ela de fato deve durar, e é algo que prende o olhar duma forma impressionante. Pode parecer bobagem pra alguns, mas são nesses detalhes que alguns grandes filmes se distanciam dos trabalhos médios: um diretor como Argento (ou como Leone) pode se dar ao luxo de pegar uma cena que pode ser descrita em cinco linhas de roteiro e transformar em cinco minutos de cinema pulsante, que não se restringe a simplesmente contar uma história (que é uma das funções do filme, mas nem sempre é a principal, e aqui definitivamente não é), mas sim a envolver o espectador nessa áurea particular em que o filme se instala. Praticamente todas as cenas de Prelúdio para Matar me causam esse efeito, e não tem nada mais prazeroso que se perder em um filme assim.

Robson: Sergio Leone é um paralelo mais próximo mesmo, e como o Argento trabalhou com ele em Era uma Vez no Oeste, é certo que o modo como Leone abordava a tradição do gênero teve seu efeito no Argento. Era uma Vez no Oeste é um western despido de tudo que não seja a essência do gênero, é exatamente essa busca pelo western essencial. Qual é o formato mínimo de um western? O homem em busca de vingança, o vilão mercenário, a consciência do ‘”fim do western” como gênero (que já tinha se tornado um elemento comum na época de Era uma Vez no Oeste) etc. Fora essa estrutura mínima, não há nada, e aí se abre espaço pra tudo isso que você citou, a distensão do tempo, o olhar detalhista pra cada grão de poeira, pra cada rosto marcado, um filme que transcorre em slow motion sem que haja nenhuma sequência de fato em slow motion. Outro filme assim é Corrida sem Fim, do Monte Hellman, que é o road movie mais primordial que se pode imaginar, não resta nada além da estrada (inclusive no título original, Two-Lane Blacktop), nada além de seguir pela estrada. Essa coisa toda de essência e tal é fugidia, é claro. São tentativas cujo sucesso é incerto, mesmo depois de concluídas, vai que algum dia alguém consegue ir mais fundo no que define um desses gêneros, ou talvez não seja sequer possível chegar a um fundo, nem exista um fundo — mas isso é outra questão. Voltando ao Argento, me parece que Prelúdio é isso, essa busca pelo giallo mínimo. Lembro que conversamos uma vez sobre como, fora o sangue vermelhão, as mortes no filme são muito pouco gráficas, e nem são tantas assim, considerando a sua duração de mais de duas horas no corte original. Prelúdio é, quase em sua totalidade, atmosfera. E são filmes — os três, e devem haver outros exemplos, quem sabe algo do Jean-Pierre Melville, mas conheço pouco sua filmografia pra afirmar — que se destacam muito pela sua estética. Se pensarmos, é natural: despojando o filme de tudo que não seja absolutamente necessário pra conformá-lo em um dado gênero — de qualquer ligação com a realidade, da necessidade de encadeamento lógico, de explicações psicológicas etc. — é preciso trabalhar a imagem pra preenchê-lo. Não tem como se esconder atrás de outra coisa, da complexidade narrativa, filosófica, da trama intrincada. E é um procedimento que se firmou — não necessariamente buscar a essência, mas usar elementos já previamente codificados, até mesmo excessivamente codificados, e que portanto não exigem nenhum trabalho adicional, como muletas pra armar um esqueleto mínimo do filme e se concentrar sobretudo na forma. Por isso o cinema de gênero, pelo menos desde os anos 60, se transformou num lugar acolhedor pra diretores que queriam fazer experiências estéticas. O homem atrás de vingança é sempre o mesmo, vem de uma tradição, não importa arranjar-lhe um motivo pra vingança que seja melhor, que tenha mais nuances que o motivo dos antecessores, e sim filmá-lo de uma forma única. O assassino de luvas pretas também, basta estar ali, com suas luvas pretas (mas alguns diretores e produtores de gialli custaram a entender isso, dadas as longas e elaboradas e inúteis explicações que surgem no final de muitos filmes da época, inclusive no próprio Prelúdio para Matar). Com uma série de elementos assim já dados de antemão, o diretor se vê livre pra se preocupar sobretudo com a imagem, e o Argento foi um dos caras que ajudou a solidificar isso, a legitimar essa abordagem, antes de a crítica dar qualquer atenção a ela. Transcender o gênero mergulhando fundo nele. A peculiaridade é que Prelúdio para Matar, diferente de Era uma Vez no Oeste, foi feito com o gênero a que se conformava ainda no auge, o que provavelmente é a causa de alguns erros de julgamento do Argento e de problemas no filme (como a própria explicação psicológica e certos problemas de ritmo que sabotam parcialmente a jornada do diretor em direção ao núcleo do giallo).

Daniel: E por mais que seja um filme de certo modo revolucionário para o próprio giallo ou para os filmes de horror (lembro que John Carpenter, por exemplo, diz que pensou em Halloween depois de ver Prelúdio para Matar; e todos já devem saber da importância de Halloween pro gênero slasher e pra quase tudo que envolve o cinema de horror norte-americano dos anos 80, talvez o que mais obteve sucesso diante do grande público, e que é a base maltratada pelos filmes genéricos de serial killer que surgiam em calhamaços em Hollywood até pouco tempo), o maior beneficiado com essas experiências estéticas/narrativas/sensoriais que o Argento fez aqui é justamente o próprio cinema do Argento. Isso de buscar a essência da experiência com um filme, e trabalhar cada sequência até que o limite da relação entre a imagem e o espectador fique a ponto de se estilhaçar, é uma característica que se vê nos melhores filmes de Argento, especialmente os dessa fase prolífica entre Profondo Rosso e Terror na Ópera, e que, aliás, encontra um ponto máximo no próprio Terror na Ópera, que talvez seja o filme do Argento com a concepção estética mais surtada e emblemática, levando algumas questões do cinema dele às últimas consequências — em especial isso que também já foi colocado de as origens do ponto de vista adotado pela câmera se confundirem entre o olhar do assassino, o nosso olhar/desejo, ou um olhar neutro, de um terceiro observador, que no caso seria a própria câmera, da forma como geralmente é trabalhada. Em Prelúdio para Matar já existem vários planos-ensaio que nos lembram daqueles longos travellings pelos corredores do teatro, ou da cena do apartamento, que talvez seja a mais longa do filme e que é o grande ápice de Terror na Ópera (e onde mais fica evidente essa habilidade de dilatar/confundir o tempo e misturar essa sensação de desconforto com a própria tensão da ação). É um filme que merece uma conversa especial só sobre ele, até por delimitar um marco na filmografia de Argento. Mas, pra finalizar, o fato é que a discussão sobre Prelúdio para Matar ser ou não a obra máxima de Argento (por vezes penso que sim, mas o cara fez Terror na Ópera e Tenebre e isso não me permite afirmar nada) é ínfima diante do que realmente interessa quando se vê o filme: é uma obra-prima fundamental pro cinema, por todas essas discussões que possibilita e pela intensidade da experiência que nos permite viver.

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Do You Like Hitchcock: A influência de Hitchcock na obra de Dario Argento

Em mais de um momento já tentaram tachar o italiano Dario Argento de “novo Hitchcock” ou ao menos de um de seus sucessores cinematográficos. A afirmação não diz muito porque o diretor se insere mesmo é dentro de uma longa tradição do cinema de horror italiano (e por tabela, europeu) que passou a se desenvolver com força a partir de meados dos anos 50. O interessante é observar como Dario Argento trabalha toda uma herança deixada pelo legado da obra de Hitchcock depois que ela foi reavaliada pela crítica (o próprio Argento foi crítico no jornal Paese Sera) e assimilada por diferentes realizadores em diversos filmes subsequentes. Parte da obra de Argento estaria ao lado da de Brian De Palma como as que mais fundo refizeram algumas das obsessões do cineasta inglês, partindo de materiais que por vezes eram grandes pastiches dos filmes de Hitchcock, além dos jogos de perspectiva e simulações, e manipulação do olhar e dos elementos de suas tramas para mexer com os nervos do espectador e construir thrillers nos quais possam se deleitar com as estruturas da técnica e linguagem cinematográficas. O próprio Argento desde os seus primeiros filmes cultiva um gosto pelo suspense mais acentuado que o de outros mestres do terror italiano de sua época. De certa maneira, alguns de seus títulos (e outros de De Palma) lidam em relação ao suspense hitchcockiano algo próximo do que os westerns de Sergio Leone (lembrar que Argento foi co-roteirista de Era uma Vez no Oeste) fizeram com o faroeste clássico norte-americano, levando essas respectivas influências a níveis extremos, como que irrompendo um cinema que devia antes ser reprimido ou apenas insinuado, e amplificando o choque e a violência.

Mas é no Antonioni de Blow-Up – Depois Daquele Beijo que Argento deve, em parte, mais tributo. Os primeiros filmes dele nos anos setenta já evidenciam essa referência fundamental. Entretanto, não é preciso se esforçar muito para recordar que Blow-Up foi a mais importante assimilação do cinema europeu de algumas questões hitchcockianas derivadas nas especulações sobre as aparências e na busca e reconstrução da imagem a partir de uma premissa de suspense. O que influenciaria nas pesquisas formais dos três primeiros trabalhos de Argento (O Pássaro das Plumas de Cristal, O Gato de Nove Caudas e Quatro Moscas no Veludo Cinza), cujas variações seriam aperfeiçoadas até a depuração absoluta que resulta em Prelúdio Para Matar, a obra-prima do italiano, e um dos tantos filmes inspirados diretamente em Blow-Up (como A Conversação e Um Tiro na Noite). Por tabela, todos partem do legado deixado por Alfred Hitchcock. Outro marco do suspense (e terror) europeu que também encontra correlato com a obra de Hitchcock (e antecipa um bocado os filmes de Argento) é A Tortura do Medo, com toda a sua obsessão pela imagem, o caráter doentio, as mortes em série, a figura do psicopata, o voyeurismo.

Já em Hitchcock, o cinema de horror de fato se mostra visível em seus primeiros filmes nos anos sessenta, Psicose e Os Pássaros. Desapontado pelas repercussões relativamente mornas de alguns de seus filmes mais ambiciosos (os imediatamente anteriores O Homem Errado e Um Corpo Que Cai), o diretor compreendeu que o público àquela altura clamava por espetáculos de horror mais explícitos. Com um orçamento modesto e parte de sua equipe de televisão (não parece coincidência que todo mestre do suspense/terror contemporâneo como o próprio Argento ou John Carpenter terminem cedo ou tarde por rodarem seus trabalhos na televisão, onde pode existir mais liberdade para lidar com algo próximo do que seria o verdadeiro filme B e mais enxuto e livre das amarras do cinemão atual), Hitchcock criou nos estúdios da Universal um modelo como Psicose (bem como o horror apocalíptico de Os Pássaros) que seria incontornável para o gênero pelas décadas seguintes. Os já mencionados títulos que compõem a chamada trilogia dos animais de Argento compartilham de algumas das obsessões do cinema de horror de Hitchcock, como a presença constante de animais como figuras ameaçadoras ou como centros de um mistério (os pássaros empalhados que decoram o ambiente mórbido em que vive Norman Bates em Psicose; os predadores em Os Pássaros).

Alusões ao mestre do suspense podem ser encontradas ao largo da filmografia de Argento, porém elas apenas se escancaram na homenagem brilhante que é Do You Like Hitchcock? (título internacional de Ti Piace Hitchcock?), um de seus trabalhos mais recentes. Do You Like Hitchcock? é um thriller paranóico e um filme cinéfilo como nenhum outro do mestre italiano. Seu personagem é um estudante de cinema, seu quarto é repleto de cartazes clássicos e mais de uma cena importante do filme se passa na videolocadora do bairro em que mora. Argento mistura idéias e recria cenas dos filmes de Hitchcock numa quantidade ainda maior que Brian De Palma tenha feito em qualquer um de seus trabalhos inspirados no diretor inglês. Do You Like Hitchcock? é a versão bem particular de Dario Argento para Janela Indiscreta conjugado com elementos de outros títulos clássicos de Hitchcock. Giulio, o protagonista, gosta de bisbilhotar fazendo seu olhar penetrar, por meio de um indiscreto binóculo, nas janelas do prédio em frente, onde numa dessas janelas enxerga uma bela garota que nunca tinha visto antes. Ela percebe que está sendo observada, mas pouco se importa. Argento se deleita nas composições e cruzamentos entre a arquitetura de cada espaço e a geografia local, sobretudo nos dois prédios vizinhos e nas visitas a locadora, onde Giulio se esbarra com a moça, chamada Sacha, que dialoga com uma outra garota, loira, sobre Pacto Sinistro, que na Itália é chamado de “Delitto per Delitto”.

Quando a mãe de Sacha é morta (numa cena de assassinato cuja preparação e consumo é filmada e decupada de maneira espetacular), Giulio não resiste em investigar por conta própria o crime não solucionado pela polícia. É quando as referências aos filmes de Hitchcock vão se tornando cada vez mais abundantes: as sequências em que Giulio trafega pelas ruas perseguindo alguma das personagens femininas (que remetem a Um Corpo Que Cai), a cortina do banheiro (Psicose) e um desfalque na empresa em que trabalha uma das personagens (Psicose e Marnie),  Disque M Para Matar perto do final, ou quando o protagonista levado pelo jogo de aparências das imagens com que se depara em sua busca ligando os pontos da trama chega a conclusões derivadas da premissa da troca de favores de Pacto Sinistro. Alucinação, prova, impressão?  O que faz o personagem central é interpretar, de uma janela a outra, as aparências que lhe oferecem à visão, e ao longo do filme, numa intrincada relação homem-mulher equacionada em termos de ação e suspense,  provar para a sua namorada que as suas suspeitas sobre as duas garotas procedem, ou seja, que ele interpretou corretamente as cenas que observou nos eventos que ocorrem no prédio em frente e em suas jornadas investigando e vigiando as moças (as duas garotas não deixam de ser um equivalente feminino das duplas de homossexuais que ocupam o centro dos crimes de Festim Diabólico e Pacto Sinistro). Sacha começa como pura fantasia masculina para se converter como a projeção do mal pela instância de culpa e crime, expondo-se a um desnudamento moral completo. Idéias tiradas de outros filmes de Hitchcock vão se alastrando no de Argento, mas a composição é original: ele sempre encontra formas de usá-las de maneira bem particular dentro de seu refinamento estilístico e sofisticação estética e visual combinados com níveis de delicioso entretenimento. Vale mencionar também que a ótima trilha é composta pelo veterano Pino Donaggio, ex-colaborador de Brian De Palma em alguns de seus filmes mais hitchcockianos, e cujos acordes por vezes emulam os de Bernard Herrmann (o compositor clássico dos filmes de Hitchcock).

Do You Like Hitchcock? é uma grande brincadeira em cima da obra de Alfred Hitchcock empreendida com toda a seriedade e domínio narrativo do diretor italiano, que desde o começo de sua carreira foi capaz de trilhar seu cinema sem sentir a sombra da influência de mestres como Hitchcock que tanto marcaram a formação de seu estilo. Mas tampouco Dario Argento se furtou à herança deixada pelo vasto repertório de imagens que o realizador inglês nos legou e que o tornaram possivelmente o cineasta mais citado, estudado, analisado e imitado de todos os tempos.

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As Praias de Agnès (Agnès Varda, 2008)

Por Vlademir Lazo

As Praias de Agnès começa enunciando uma autópsia. Ao escolher falar de si mesma, Agnès Varda resume seu mais recente (e, segundo ela, último) filme da seguinte maneira: “Se abríssemos as pessoas, encontraríamos paisagens. Mas se abrissem a mim, encontrariam praias.” A realizadora francesa normalmente filmou ao longo de sua carreira sobre os outros, os que a intrigaram, motivaram, ou lhe apaixonaram, quase sempre documentando vidas comuns em filmes de ficção (ou em documentários como Os Catadores e Eu). Dessa vez, do alto de seus 80 anos, preferiu falar também de si mesma, montando um ensaio sobre sua vida (e mais que isso, um painel de mundo desde sua infância e juventude) e obra. As praias de Agnès Varda.

É o caleidoscópio de diversas épocas, ou como a série de espelhos estendidos ao livre na praia logo no início do filme. Uma sucessão de viagens por uma máquina do tempo através de praias remotas ou próximas: as origens de Agnès na Bélgica, o período numa comunidade de pescadores, a adolescência no Mediterrâneo (seu habitat depois que a família se retirou de Bruxelas durante a Segunda Guerra), a saída da casa dos pais, o trabalho como fotógrafa, o começo no cinema e na Nouvelle Vague e os encontros com outros realizadores, os percursos pelo mundo, o engajamento às lutas feministas e o matrimônio com Jacques Demy. Porém, mais do que compartilhar dados e informações particulares, As Praias de Agnès nos convida a contemplar os fragmentos que formam os retalhos de vida das personalidades em cena, colando memórias pessoais, intimas e coletivas, fazendo um mosaico plural e individual ao invés de uma autobiografia. Uma autópsia de seu mundo e sua existência.

Há que se ressaltar que em toda essa entrega não existe o menor traço de narcisismo ou auto-indulgência por parte da realizadora, por mais que no final saiamos do filme com a impressão de que sua existência foi notável. Um trabalho escrito sobre a trajetória especifica da cineasta que tivesse unicamente como fonte As Praias de Agnès não teria mais que um parágrafo ou um punhado de linhas. Pois em seu filme, Varda se interessa menos por páginas de seu passado que por imagens, sempre o imaginário como um sentido de beleza ou estilo, um olhar para fazer cinema. Um olho, uma câmera, uma imagem, como é proferido em dado momento perto do final de As Praias de Agnès.  Em Os Catadores e Eu, onde já aderira à tecnologia digital, Varda se autointitulou como “catadora de imagens”, à procura de pessoas e personagens, ao mesmo tempo em que filma o seu próprio envelhecimento ─ o que mencionaria em Dois Anos Depois, onde também recorda as lembranças das filmagens de Jacquot de Nantes, o trabalho que fez em homenagem ao marido Jacques Demy, que, já doente, escrevera suas memórias de infância e juventude e pedira que ela as filmasse (em As Praias de Agnès a cineasta fala de como alguns acontecimentos da infância de Demy podiam ser claramente vistos em cenas de filmes dele). São esses os núcleos emocionais da maioria dos trabalhos mais recentes de Varda (dedicada a restaurar e preservar a filmografia do marido e realizar documentários sobre as obras dele) e de pelo menos quase toda a metade final de As Praias de Agnès.

O casal se conhecera no Festival Internacional de Curta-Metragem de Tours, em 1958, onde ambos apresentavam alguns de seus primeiros trabalhos, e permaneceram juntos até o falecimento de Demy em 1990. As Praias de Agnès em parte é um diário de viagens pelo tempo e a memória de Agnès Varda por antes, durante e depois de sua convivência com o marido. Muitos outros filmes de memórias ou cineautobiografias ganhariam muito (em termos de amplitude e extensão de fatos e informações) se tivessem saído em livros, porém As Praias de Agnès não poderia existir se não como cinema. Sejam as praias, as fotografias, recriações de lembranças antigas ou a sua própria casa que muito serviu de locações para filmes seus e do marido, são todos esses espaços privilegiados para os seus emaranhados de jogos e poesia pura, e que pode ter como síntese, a construção de uma espécie de instalação onde uma casa tem as paredes feitas de filme. É quando Agnès Varda diz se sentir em casa.

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Missão Madrinha de Casamento (Paul Feig, 2011)

Existe atualmente na comédia televisiva americana uma espécie de “política do constrangimento”. É através dela que programas como Curb Your Enthusiasm, The Office e, em menor escala, Parks and Recreation encontraram seu modo operante característico. Aos poucos, vão sendo dadas pistas de como se desenrolará a situação que causará vergonha alheia no espectador, onde inevitavelmente estarão envolvidos os personagens principais das respectivas séries. A quase totalidade do episódio se dá na prática dessas ações, muitas vezes já antecipadas pelo público, mas que deverão gerar os momentos de maior deleite cômico na série em questão. Não que isso tenha sido “inventado” por essas séries, mas elas servem como um exemplo atual do funcionamento de tal lógica. E o sucesso desta “política” começa cada vez mais a ser difundida para o cinema, mas não necessariamente perdendo a linguagem da televisão contemporânea. Bridesmaids é a síntese perfeita dessa constante.

Dirigida por Paul Feig, diretor conceituado de séries, inclusive de vários episódios da extinta Arrested Development (outro bom exemplo dessa comédia da vergonha), além das já citadas Parks and Recreation e The Office, além de ser co-roteirizada – e estrelada – por Kristen Wiig, uma das mais relevantes atrizes do grupo atual do Saturday Night Live, Bridesmaids é filho da televisão, até o último frame fotografado. O produtor executivo, Judd Apatow, um dos expoentes mais representativos da comédia americana cinematográfica atual, também veio da TV, onde produziu a genial Freaks and Geeks, e de onde veio parte do seu séquito de amigos que hoje em dia é responsável pelos melhores produtos cômicos vindos dos EUA (entre eles, Paul Feig). Acontece que a diferença entre Apatow ou Greg Mottola, pra citar outro membro do grupo proveniente de Freaks and Geeks, e Paul Feig é que os dois primeiros se graduaram verdadeiramente no cinema, desenvolveram e foram aguçando um tipo de linguagem conceitual para além do sistema cômico da TV, e podem ser tidos como cineastas “autorais”, mesmo quando fazem filmes irregulares (como é Funny People, por exemplo). Feig não detém do mesmo controle sobre sua obra, depende mais da graça da situação que de um bom desenvolvimento da mesma; depende mais de seus atores que de uma construção mais elaborada da mise-en-scène, que não esteja estritamente ligada ao constrangimento absoluto.

Certas situações do filme deixam uma nítida impressão de que ficou perdido dentro delas o tempo do corte, onde a dilatação de algumas cenas que buscam as gargalhadas por um tempo maior perdem, em si mesmas, suas funções dentro do todo narrativo. O maior desses exemplos é a seqüência do avião, em que a personagem de Kristen Wiig, bêbada e descontrolada, executa uma série de atos abomináveis que geram a expulsão de todo seu grupo de amigas da aeronave. Em algum momento da longa série de situações, a graça deixou de existir e a sensação de repetição se instaurou, e o que resta é somente aguardar o final da “esquete”. Existe também uma necessidade praticamente irrelevante em transformar o último ato do filme em uma catarse muito bem delimitada, seguindo a natureza superficial das comédias românticas triviais, que faz com que se perca um pouco da admiração pelo que vinha sido realizado até então.

Mas não se engane com esses poréns, pois Bridesmaids está muito acima da média e é terrivelmente engraçado. Ainda que não consiga escapar do seu berço de televisão, Paul Feig conta com o auxílio de atores afiadíssimos, ou melhor, atrizes. Esse é o maior trunfo do filme, ser um produto quase que totalmente protagonizado por personagens femininas, mas com um perfil masculinizado, destemidas, muitas vezes toscas, perdedoras assumidas e que são constantemente colocadas em situações nada dignas (não existe essa piedade, por serem mulheres, portanto o filme não é nem feminista, nem machista), uma delas especialmente escatológica: a já antológica seqüência da prova do vestido de noiva. É o cinema dos Farelly encontrando a humanidade natural da turma de Apatow e que, mesmo seguindo um sistema articulado pela linguagem de televisão, dispõe de alguns dos momentos mais engraçados do cinema nos últimos anos. Se for sobre isso que comédias devem tratar, Paul Feig segue bem!

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Sob o Sol de Satã (Maurice Pialat, 1987)

Sob o Sol de Satã, baseado no romance de Georges Bernanos, trata da história de um padre em conflito, que duvida de sua própria vocação e da possibilidade de que ela faça alguma diferença num mundo que ele vê mergulhado no Mal, mas em momento nenhum a imagem sugere ou busca qualquer espécie de transcendência de si mesma. Para falar do conflito espiritual do padre Donissan a imagem precisa se bastar, o que é o mesmo que dizer que tudo o que há de concreto na imagem precisa se bastar; ou ainda, que tudo está na imagem. Se em Robert Bresson (que também adaptou Bernanos) as lacunas propositais — sobretudo na encenação, mas também na construção dos espaços — sugerem o que não pode ser captado pela câmera, em Sob o Sol de Satã a abordagem talvez seja ainda mais radical: o que não pode ser captado pela câmera é excluído do próprio campo semântico do filme.

Tal escolha se reflete até mesmo na seleção dos atores, em especial Gérard Depardieu e o próprio Pialat, ambos com forte presença em cena. E se estende para o uso do som, como demonstram os muitos diálogos e monólogos que parecem ter sido transportados diretamente do livro para a tela, vários deles longe de qualquer pretensão de naturalismo e assumidamente expositivos, sobretudo nos casos em que personagens falam sobre si mesmos. Não se trata de literalidade excessiva na adaptação ou de amor pela linguagem, tampouco de falta de sutileza no trato dos personagens, mas antes outro aspecto da proposta de concretude e não-sugestão de Pialat.

Essa concretude, porém, não se basta, e é exatamente a ineficácia de sua própria forma o material básico que compõe Sob o Sol de Satã. O filme é dividido em duas seções, separadas entre si pela peregrinação de Donissan por uma estrada rural e seu encontro com Satã, em carne e osso, em que o padre descobre que lhe será concedida a graça de olhar para alguém e enxergá-lo da forma mais absoluta, assim como ele enxerga a si mesmo. Mas a questão que emerge desse encontro é até que ponto alguém pode conhecer a si mesmo: antes disso, o que acompanhamos são os conflitos de Donissan consigo próprio enquanto tenta achar um propósito para sua existência e alguma esperança de que o mundo não esteja irremediavelmente destruído, de que o Mal não seja nossa essência mais fundamental. Enquanto ele se considera indigno ou incapaz para o sacerdócio por conta de suas dúvidas, muitos fiéis o veem como um santo, e seu tutor se espanta pela forma como consegue cativá-los sem sequer se esforçar para tal.

Assim, quando, na manhã seguinte à sua conversa com Satã, Donissan se encontra com a jovem Mouchette, sua visão absoluta do que ela é e fez na primeira parte do filme pode ser factualmente certeira — a única concessão possível da abordagem de Pialat —, mas sua interpretação e reação a isso são outra história; o discurso que oscila entre um pessimismo profundo e a graça redentora que ele faz à moça tem consequências imprevistas, e novamente Donissan se vê às voltas com suas questões sobre o sentido de sua vida e a possibilidade de fazer alguma diferença quando mesmo a comunicação parece tão inelutavelmente fraturada. Pode-se dizer que o maior ponto da estética de Pialat, de tentar, em grande parte do tempo com sucesso, confinar todos os sentidos e significados possíveis dentro da imagem, é encenar justamente essa fratura, em que cada frame morre imediatamente após ser projetado, cada elemento físico, cada palavra, não consegue transmitir nada além de sua literalidade mais óbvia.

De modo que o único milagre possível em Sob o Sol de Satã é uma ressurreição, menos por seu efeito sobre os personagens que por seu efeito na forma do filme. Um corpo que morre, como o de Mouchette, é só mais um elemento que não pode comunicar nada além de si mesmo, mas um corpo que volta à vida não pode significar senão mais do que si mesmo: o milagre ao fim abre uma fenda no tecido construído até ali, faz desabar a estética cuidadosa de Pialat. Isso é evidentemente o desejado desde o início, o momento em que o filme destrói a si mesmo numa tentativa última de significado ou sentido, muito como o próprio Donissan na mesma cena. É daí em diante que o diretor se liberta das amarras autoimpostas e ousa cenas de maior poder sugestivo e metafórico, como a nuvem que se afasta, permitindo que a luz do sol ilumine Donissan. Ou na cena final, em que o padre morre dentro do confessionário em um momento indeterminado, mas os fiéis, inconscientes disso, seguem fazendo suas confissões — se a chance de ver os outros como a nós mesmos pode ser traiçoeira, resta ouvir como esses outros veem a si mesmos, na esperança de que alguma comunicação se torne, algum dia, possível.

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Mais Forte Que a Vingança (Sidney Pollack, 1972)

Segundo um comentário de Phillipe Paraire ao faroeste no cinema americano, o período conturbado dos anos 70, com suas crises e questionamentos sociais, encontrou nesse gênero um retorno do homem à natureza, uma renovação do espírito quando em comunhão com seu ambiente original. De acordo com ele, o western clássico, famoso por tornar célebres em todo o mundo os grandes espaços do sudoeste nos EUA, lograva então transformar de fato a presença da natureza como personagem principal da narrativa filmada, renovando a tradicional manipulação cênica do gênero. Com Jeremiah Johnson — porque ninguém merece a tradução brasileira —, Sidney Pollack se junta a nomes de sua época, como Arthur Penn (Pequeno Grande Homem) e Robert Altman (Quando os Homens São Homens) para restituir com sua arte o lugar do humano no mundo.

Em linhas gerais, o personagem de Johnson (dos maiores trabalhos que Robert Redford já fez, e que o próprio reconhece como seu favorito) nos é apresentado como um homem branco que abandona o centro urbano para se tornar um montanhês solitário, um eremita errante que simplesmente deseja ser esquecido por todos, vivendo apenas consigo próprio. Todos os fatos e ações percorridos no decorrer do filme são um pretexto para retratar a sobrevivência desse homem. O retrato ficcional biográfico (que posteriormente marcaria a história das HQs inspirando o personagem Ken Parker) aí atinge proporções míticas, sendo assistido em onipresença pelas incontáveis montanhas nevadas que o rodeiam e observam, incólumes.  “A montanha é implacável” afirma um velho montanhês, mas não é isso que incomoda Johnson. A vida que assusta nosso herói, aquilo que ele toma por perigo concreto, é justamente tudo o que ele viveu até então. Sua subida pelas montanhas e o processo de reaprendizagem para sanar necessidades básicas de sobrevivência são a maneira que ele encontra para realizar aquilo que a vida comum não pôde oferecer.

Uma seqüência que merece ser lembrada em especial é a que vemos Johnson encontrar uma família executada e socorrer a mulher e a criança que sobreviveram a um massacre. Em seu início, Johnson descobre o acontecimento trágico a uma distância no espaço que não lhe permite riqueza de detalhes. Nós, como espectadores, apreendemos esse instante dentro do esquema clássico de ação e reação; assim, o que vemos são três intercalações entre o fato visto e o sujeito que vê, sendo que, a cada corte de retorno ao fato visto, nos aproximamos da encenação muito além do verossímil olhar de Johnson, ocorrendo dessa maneira a restituição da autonomia à câmera e do poder privilegiado inerente ao espectador. A mulher enlouquecida dirige palavras apenas aos mortos e o menino calado permanecerá mudo por todo o filme, não nos dando a descobrir se seu silêncio é proveniente de uma deficiência natural ou do choque da tragédia. Quando Johnson encontra o menino escondido, sua primeira pergunta é: “Garoto, você viu tudo?” Não há resposta. Acompanhamos a dor do enterro com uma câmera que se distancia em respeito, vemos a mulher entregar o menino para Johnson, ainda sem proferir uma palavra, e no decorrer do filme atravessamos outras peripécias de Johnson, como a conquista de uma índia, que presenteada pelo pajé (seu próprio pai), também não saberá se comunicar, por não conhecer o inglês dos brancos.

Retornemos então à pergunta não respondida de Johnson ao menino: “você viu tudo?”. Nós não vimos. Não vimos a vida de Johnson antes de subir a montanha, não vimos a família do menino ser executada, não vimos como se deu a execução da própria família de Johnson (a índia e o menino) que se dará posteriormente no filme, e não veremos se Johnson algum dia irá encontrar resposta para esse grito interno que o atormenta. Ao colocar numa balança tudo que foi realmente apresentado aos olhos do espectador e aquilo que foi apenas sugerido ou compreendido elipticamente em Jeremiah Johnson, podemos nos perguntar se a experiência fílmica se dá pelo que é efetivamente exibido ou pelo que se completa na dinâmica do imaginário de quem assiste. Afinal, o que é ‘permitido’ dentro da imagem de cinema?

No fim do filme, Johnson encontra uma nova família refugiada no lugar em que encontrou a mulher louca e o menino mudo ao início de sua jornada. Lá, foi construído um monumento semelhante a um túmulo em homenagem ao mito que Johnson se tornou para as pessoas da região. O homem que o encontra diz: “Você é ele”, num misto de pergunta e afirmação. Completa: “Nós nunca o vimos. Nunca sequer o ouvimos. Alguns dizem que já está morto, outros que jamais morrerá.” São palavras que completam a lenda. Que reafirmam o sabor experimentado por todo o filme em se estar diante de uma odisseia de um Ulisses moderno. Em nossa memória permanece a lembrança de um personagem, de uma experiência que não termina de ser exibida enquanto lembrada, pois a resposta aos questionamentos levantados talvez esteja no limiar de nosso inconsciente, todo ele carregado de imagens que acumulamos pelo cinematográfico. Imagens que excedem um exemplar de gênero para alcançar um lugar em nós que, quando em contato com o que há de essencial no cinema, se permite transcender. Numa memória que não se encerra.

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A Religiosa Portuguesa (Eugène Green, 2009)

De onde emana a beleza dos filmes? Está na fluidez dos atores; na precisão dos olhares; na angulação da câmera e no enquadramento escolhido pelo diretor para expressar com a força necessária os sentimentos da encenação? Acredito, particularmente, que sim. E se, apesar da subjetividade artística, estas são características em geral (e muitas vezes de maneira equivocada) medidas por um padrão formal de técnica e de qualidade, o primeiro contato com o cinema de Eugène Green funciona como um choque, um despertar ao mesmo tempo estranho e fascinante que, mais do que encantamento por sua expressividade poética inenarrável, nos possibilita ver o cinema funcionando de outro modo, em outro ritmo, em outro tom.

Não foi com A Religiosa Portuguesa, último de seus longas, que este primeiro contato aconteceu comigo — foi na verdade através de A Ponte das Artes, filme que desde então vive forte na memória como uma das experiências mais emblemáticas e bonitas que já tive. Mas, tanto neste quanto naquele filme, a concepção artística de Green obedece rigorosamente às ideias de encenação que compõem este seu cinema único, genuínamente d’auteur. Um cinema onde os planos não necessariamente precisam raccordar para serem colagens perfeitas; onde os atores recitam seus textos encarando frontalmente o espectador; onde a câmera, nosso guia eterno, rasga o espaço cênico ao meio para nos colocar em locais até então insuficientemente explorados.

Exploração, aliás, é uma palavra-chave para A Religiosa Portuguesa. O filme parte da chegada de uma atriz francesa, apresentada por um intertítulo como uma “mulher solitária”, à cidade de Lisboa, onde filmará cenas da adaptação de uma clássica história de amor proibido entre uma religiosa portuguesa e um oficial francês. Através da narrativa hipnótica de Green, acompanhamos esta mulher, frustrada pela quantidade incontável de amores fracassados (e que ela trata por profanos) pelos quais tem passado, a explorar diversos bares, ruas, becos e demais cenários da capital portuguesa, topando com personagens que, assim como ela, também parecem à deriva no mundo, em uma substancial busca por significados e razões.

É através deste conjunto de encontros que a exploração e a busca se transformam em contatos, e consequentemente em experiências — que, enfim, é a essência do que mantém a vida, e também o filme, em movimento constante. A viagem a Lisboa é vista por Green como uma jornada espiritual, com uma devoção encantadora à cidade e à cultura portuguesa, como se elas recebessem do diretor um poder mítico potente o suficiente para levar respostas ou conforto às ânsias de sua personagem, que nos cenários sempre fotografados de forma apaixonada e reverente se depara com belas apresentações artísticas e com obras de arte e de arquitetura, mas também com homens deprimidos, crianças órfãs, amores efêmeros, reencarnações que atravessam séculos e, finalmente, com um duplo de si em uma mulher que materializa a imagem da personagem que ela interpreta no filme encenado dentro do filme.

É neste momento fatídico do encontro na igreja que A Religiosa Portuguesa nos mergulha no ápice do cinema de Green, em uma longa sequência de mais de 12 minutos que, ao lado de outras como a tentativa de suicídio, a apresentação dos três tenores e o final à beira do rio, todas de A Ponte das Artes, certamente é, à sua maneira particular e embasbacante, uma das mais expressivas que podem ser encontradas no cinema recente. E simplesmente deve-se poupar palavras a ela, por dois motivos: primeiro, para não antecipar a resolução dos temas centrais e nem desgastar a beleza sem igual do diálogo que ocorre entre as duas personagens; segundo, porque nada seria suficiente, nem mesmo a reinvenção do vocabulário, para transmitir o que se sente quando em contato com uma cena de tamanha grandeza.

A encenação de Eugène Green, acreditem, ainda vai além de todo este poder mítico e da beleza estranha e desconcertante. Também à exemplo de A Ponte das Artes, A Religiosa Portuguesa é repleto de observações e easter eggs fascinantes, que amplificam a experiência para além de seu arco dramático existencialista (como a participação da equipe de outra obra espetacular filmada recentemente em Portugal, Aquele Querido Mês de Agosto, cujo diretor, Miguel Gomes, atua em uma ponta). Especialmente as cenas com o personagem do diretor do filme dentro do filme, que mais do que ser um alter-ego de Green, é de fato interpretado pelo próprio diretor — personagem que rende algumas digressões divertidíssimas e que dão à história um contraponto bastante espirituoso, como na hilária cena da danceteria, em que ele bebe uns drinks e tenta seduzir umas loiras dançando vergonhosamente na pista.

A brincadeira de Green com sua própria imagem vai longe: o filme que faz, para estranhamento da equipe, é um projeto teoricamente incompreensível: são apenas dois atores, que não contracenam juntos e não possuem sequer uma linha de diálogo. “É um filme experimental”, tenta resumir a atriz à sua maquiadora momentos antes de filmar, procurando clarear as coisas pra coitada, completamente perdida ali. “Ou seja, chato”, recebe de volta. “Espero que não seja. Gosto muito dessa história”, retruca, sem convicção. Momentos depois, já atuando, os olhos da protagonista se enchem de lágrimas e contrariam o script do diretor. Após cortar a encenação ele questiona: “Porque você chorou? Não era pra chorar”. Ao que ela responde: “Veio naturalmente, não pude evitar. Quando você estiver na sala de montagem verá que esse é nosso melhor take”, numa provação muito interessante do ato de filmar.

Seja na tragédia de sua protagonista ou na comédia autoparódica de seu diretor, A Religiosa Portuguesa é este processo interminável de buscas, de experiências, de questionamentos e de transformações, que atua tanto na vida de suas personagens quanto no cinema em que elas habitam. Diante disso, a nós, espectadores, somente resta experimentar o sublime e viajar nesta intensa experiência pela arte transgressora de Eugène Green.

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O Profeta da Fome (Mauricio Capovilla, 1970)

Clássico do Cinema Marginal brasileiro realizado por Mauricio Capovilla no final da década de sessenta, O Profeta da Fome também costuma ser apontado como um dos últimos representantes do Cinema Novo. Essas disparidades quanto ao seu posicionamento no quadro do cinema nacional da época refletem o quanto o filme é rico e amplo de referências cinematográficas (e até literárias, como se verá mais adiante). É também possivelmente o melhor dos filmes (junto com O Abismo, de Rogério Sganzerla) em que José Mojica Morins atuou sem dirigir. Por sinal, a obra de Mojica como diretor também parece ter influenciado Capovilla na realização dessa película, ao ponto da persona cinematográfica de Mojica ser fundamental para a concepção do seu filme (na mesma época, Capovilla faria uma participação como um dos jornalistas no fictício debate sobre drogas ilegais num programa de TV em O Ritual dos Sádicos, obra máxima de Mojica Marins). Em O Profeta da Fome, Mojica tem a voz dublada por Paulo Cesar Pereio.

Para nos transportar ao universo da história, Capovilla optou por uma estrutura bastante rígida, claramente dividida em três partes (que se desdobram em um prólogo e dez capítulos). Tudo começa de modo sombrio, escuro e tortuoso em um circo ambulante de condições bem precárias, no qual a principal atração é o aventureiro e faquir Alikhan interpretado pelo Mojica. A cena de abertura é antológica, sem diálogos, com a luta do faquir e o domador de um falso leão pela posse de um pedaço de pão (o domador é interpretado por Mauricio do Valle, o Antônio das Mortes dos filmes de Glauber Rocha). As imagens são como uma apresentação da atmosfera lúgubre do filme, com um aceno quase impressionista, que carrega num clima pesado de filme de terror. Mas essa primeira parte de O Profeta da Fome não é um filme de terror, mas um drama com elementos de horror, decadência e miséria, que nos remete diretamente a uma atmosfera muito próxima do clássico Noites de Circo, de Ingmar Bergman. Alikhan é obrigado pelo dono do circo a se superar a cada apresentação: engole giletes, pregos e cacos de vidro. É enterrado vivo e é coagido a comer carne humana diante da platéia. A reação do público nunca é a esperada pelo dono do circo, pois o espetáculo não atrai mais o encantamento das plateias modernas. Essa tragicomédia circense não escapa do desfecho trágico anunciado: as tensões acumuladas desencadeiam um violento conflito que culmina num incêndio que destrói o circo, quando Alikhan se recusa a ir até o fim no número no qual comeria uma pessoa, o que desperta a revolta do público.

Os únicos que escapam da tragédia são o faquir, sua esposa e Lion Tarner, o domador, perdidos na imensidão da mata. A sorte os faz encontrarem um violeiro cego, que os acompanha na travessia da floresta. A partir daí começa as constantes mudanças de ambiente no filme, e particularmente essa segunda parte do filme lembra muito Deus e o Diabo na Terra do Sol. Depois que surge o violeiro cego, este passa a contar através dos versos de cordel acompanhado de sua viola o trajeto dos protagonistas em seu périplo na floresta. Infelizmente, os versos são meios toscos (sem a mesma riqueza poética e capacidade de síntese das canções de Deus e o Diabo, por exemplo), mas o tratamento de imagens compensa essa deficiência: a fome, o desespero e as incertezas provocam um conflito entre Lion Tarner e Alikhan, que oferece um olho em troca de pão, e que só escapa da morte pela providencial intervenção de sua esposa, que aniquila o domador pelas costas. Finalmente, o casal chega à cidade mais próxima. O recurso para driblar a fome não tarda: Alikhan deixa se crucificar pela esposa, para despertar comoção e o interesse do povoado, que passa a enxergá-lo como um ser provido de poder divino. Uma espécie de santo. Mais uma vez O Profeta da Fome remete a Deus e o Diabo, com suas fortes denúncias sobre o misticismo no Nordeste. Por sinal, uma das inspirações confessas de Capovilla para a idéia do seu filme é o manifesto A Estética da Fome, assinado por Glauber.

A popularidade que Alikhan alcança desperta a preocupação da Igreja e das autoridades locais, e a policia desmonta a farsa encarcerando o faquir na prisão. Na cadeia, Alikhan descobre um novo poder: o de suportar a fome. O terceiro ato do filme é com o protagonista e sua esposa chegando até a cidade grande, onde Alikhan se dedica a bater o recorde mundial de horas inteiras sem comer. Uma óbvia referência a O Artista da Fome, de Franz Kafka. Uma espécie de industrialização da fome, de sua desgraça transformada em espetáculo, em atração popular. O circo moderno. O filme deixa de ser um retrato da miséria nacional, incapaz de ser superada pela imaginação ou fantasia, abandonando o realismo para abraçar o absurdo até as últimas consequências. A obra também deixa um pouco de lado o protagonista abrindo o filme em outras direções, com uma espécie de documentário sobre o capitalismo selvagem no mundo, com citações diversas, como as dos Beatles, futebol, o homem na Lua, etc. O filme passa do regional para o universal, sem abandonar sua essência tupiniquim.

O filme de Capovilla gira em torno da dicotomia pão e circo, como uma espécie de antevisão dos realitys-shows de TV trinta anos antes de eles existirem. Por outro lado, é incrível como o filme se apropria da figura de Mojica ao ponto de torná-lo indissociável da obra. O sangue humano, a crueza expressiva, a ridicularização das crenças místico-religiosas da população dialogam com a filmografia do mestre do terror brasileiro. Da mesma forma, não seria exagero supor que O Profeta da Fome tenha influenciado uma das obras que Mojica dirigiria logo em seguida, Finnis Homis – O Fim do Homem, com o qual guarda fortes semelhanças e que é um de seus melhores trabalhos (mas inferior ao filme de Capovilla). O Profeta da Fome representou o Brasil no Festival de Berlim em 1970, mas quase sempre permaneceu por aqui como um filme invisível.

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Melancolia (Lars Von Trier, 2011)

Apesar de Von Trier, Melancolia é um filme que se esforça para subsistir enquanto experiência de cinema. A arquitetura do espetáculo, pela eficácia de seu último minuto, confirma uma obra que pede a tela grande e os recursos mais avançados de projeção e sonorização existentes. Há no encontro dos dois planetas, e na escatológica destruição daí proveniente, uma abordagem catártica que, de tão eloquente, torna compensados os demais 135 minutos roubados do espectador. Pois em Melancolia tudo acontece apesar de algo menor.

Não há spoiler possível para este filme. Na verdade, tudo já foi dito sobre Melancolia, tudo já foi visto. Seja na carreira pregressa do diretor, retomada aqui de maneira estéril em referência a diversos de seus filmes, seja no resumão que ele faz nessa nova mania de prólogo antiliterário  (aqueles minutinhos iniciais que, desde Anticristo, comprovam um Von Trier capaz de sobreviver fazendo comerciais de shampoo), todas as cartas são colocadas na mesa assim que vemos o nome dele estampado no cartaz de divulgação.

Numa análise técnica, podemos situar seu novo trabalho como a elaboração perfeita de uma fórmula, pois tudo funciona muito bem: o roteiro tem um excelente ponto de partida, o elenco está afinadíssimo na incorporação de caricaturas sociais rasas, a fotografia deslumbrante concorda com todos os excessos da produção, a começar pela excepcional edição de som, esta sim, das maiores que o cinema já provou. Mas é constatando o resultado final de Melancolia que nos lembramos uma vez mais de que cinema não é fórmula matemática, de que a lógica interna da representação carece de um brilho próprio, um deslocamento, um vir a ser que necessita da encenação (mise en scène) enquanto recurso que não pode ser burlado, falsificado ou padronizado como Von Trier o pretende.

Definir um estilo não é valer-se sempre das mesmas telas e fontes de créditos (Woody Allen quem o diga), não é impor a imagem de si como algo maior que a imagem-filme (ou então Godard nada seria), assim como homenagear alguém não consiste em escrever dedicatórias vazias a um nome (porque nunca, nunca a memória de Tarkovski em Anticristo será justificável). Acima de tudo, Melancolia se sustenta como uma homenagem de Von Trier a si próprio e ao movimento que um dia iniciou, a autorreferência de um cinema que já enfrentou seu apocalipse (quantas vezes será preciso lembrar Anticristo aqui?) e não conseguiu ressurgir.

Nesse sentido podemos tomar como exemplo a primeira metade de Melancolia e sua óbvia relação com Festa de Família, filme manifesto do Dogma ao qual Von Trier faz questão de tornar pastiche em sequências que acentuam, sob qualquer aspecto, suas limitações junto ao olhar da câmera. Pois se no marco dos anos 90 a câmera procurava o movimento espontâneo do mundo, agora vemos o contrário, sendo a câmera quem não se deixa encontrar; é ela quem foge.

Fica difícil nutrir qualquer esperança para um cinema que se autodestrói, que passivamente se rende ao que há de mais previsível no mercado alternativo do cinema, este nicho de festivais e premiações facilmente contentável. Se Melancolia assumisse o posto de último filme de seu diretor certamente teríamos um dos mais belos e incisivos testamentos já feitos. Os contornos seriam outros. Mas há maus ventos dizendo não ser este o caso, o que não nos impede de continuar encontrando nele um paralelo ao final de mundo retratado, o encerramento de um olhar, o derradeiro espasmo de um cinema, a força de um último acorde que precisa ser lembrado, pois inesgotável. Não negamos, Melancolia realiza algo, ele fica, mas tudo apesar de Von Trier.

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