Aurora (F. W. Murnau, 1927)

Aurora representou não apenas a chegada de Friedrich Wilhelm Murnau em Hollywood como o resultado do acúmulo de experiências técnicas e visuais do diretor (e do cinema alemão em geral) na arte muda dos anos 20, com suas perspectivas tortuosas, atmosfera carregada, personagens atormentados e fotografias em fortíssimo preto-e-branco cheias de sombras e de nuances. Murnau vinha de uma sequência de obras-primas e experimentos como Nosferatu, a primeira grande contribuição dele para o cinema (e que ainda hoje permanece, para este que vos escreve, como o melhor filme de terror do cinema), com seu visual aterrador cheio de sombras e cenários góticos, e uma poesia trágica envolvendo os personagens, cuja caracterização de Max Schereck ainda é insuperável em se tratando de figuras de vampiros. Ou A Última Gargalhada,  sobre a glória e a vaidade de um porteiro orgulhoso de seu uniforme bastante vistoso, e sua posterior decadência. Um dos maiores triunfos do cinema mudo, quase sem letreiros explicativos, por recorrer a uma das mais intensas movimentações de câmera e um uso muito bem elaborado do foco, da luz e da montagem inventiva e com a maciça interpretação do ator Emil Jannings, cuja atuação respondia melhor do que qualquer eventual legenda. Os filmes seguintes de Murnau, Tartufo e Fausto, confirmaram a grandeza de seu talento e comprovaram que a Alemanha estava pequena demais para ele, sobretudo por Fausto, com sua espantosa sinfonia técnica e uns efeitos (Fausto e Satã desaparecendo nos ares por cima da cidade, o circulo de fogo) de cair o queixo.

Depois de Fausto, Murnau abandonou a Alemanha e partiu para a América. Os Estados Unidos, atentos ao florescimento do cinema germânico, importaram um grande número de realizadores, atores e técnicos alemães. Murnau não poderia ter começado melhor em Hollywood, aceitando um convite do executivo e chefe de estúdio William Fox, que, expandido sua cadeia de exibição de vinte para mais de mil salas, sonhava com uma obra-prima que distinguisse o estúdio que fundara com o seu nome acima de todas as demais produtoras. Foi quando o alemão dirigiu pela primeira vez em solo americano (com rara e total liberdade de criação) o mais célebre de todos os seus filmes: Aurora. O filme era uma adaptação, feita pelo roteirista Carl Mayer (também um dos mais importantes do expressionismo alemão), de um romance de Hermann Sudermann, que se transformou nas mãos de Murnau numa história de amor e redenção das mais fortes. Um fazendeiro simplório (George O’Brien) envolve-se com uma linda mulher da cidade (Margareth Livingston), uma entre os turistas que visitam à pequena vila de veraneio próximo ao campo. Ela passa a representar tudo o que ele nunca possuiu na vida: agitação urbana, mundana e frívola, em contraponto à sua existência monótona, caseira e rudimentar na casa de campo em que vivia com sua esposa (Janet Gaynor). Uma das grandes sequências é logo no começo, no pântano, com a moça da cidade, onde o marido compartilha de uma intimidade cuja lembrança guiará os seus desejos posteriores, e à qual nunca conseguirá retornar. É uma sequência etérea, quase idílica, os corpos e os movimentos dos atores modelam a luz e a geometria do quadro (como em todo o restante do filme de Murnau). O pântano ali é o purgatório do personagem masculino, dividido entre o céu (a paz que lhe é conhecida ao lado da esposa) e o inferno (a incerteza de um futuro imprevisível com a amante) na Terra. É importante lembrar que o inicio do século XX (em que transcorre a história) marcou o surgimento da era moderna com a crescente migração das pessoas do mundo rural para as cidades, o fascínio pelos frutos da revolução industrial e o inicio da revolução tecnológica, cinema, poluição, barulho, teatro de vaudeville, etc. Era um novo mundo surgindo, em substituição a um mundo antigo condenado a se tornar cada vez mais obsoleto. E esse modo de vida que estava por se perder era representado no filme pela rotina do fazendeiro no campo, ao lado de sua fiel esposa, de feições e modos também humildes, a companheira de tantos anos que se lhe revela sem atrativos, seus hábitos inúteis, sua bondade como sinônimo de fraqueza.

O que era para ser apenas uma relação fortuita e passageira entre o marido e a amante se transforma num desejo de paixão mais duradoura de ambas as partes. O deslumbramento do amor (ou do que acreditavam ser amor), os desejos carnais, o prazer de estar um com o outro fazem com que os amantes não enxerguem as diferenças que há em suas vidas e a impossibilidade de juntá-las. Eles não pertencem ao mesmo mundo, e a vontade de unir um mundo com o outro é um erro dos mais excêntricos. Os dois decidem fugir, sendo preciso, para isso, assassinar, acabar com a esposa do fazendeiro. Já na cena de abertura, no pântano, quando os dois se encontram para tramar o homicídio, o protagonista atravessa o lamaçal entre névoas e brumas decidido a assassinar a esposa, como quem sai do plano real para ingressar num mundo difuso, numa das cenas que também é um dos tantos exemplos da extraordinária maestria dos movimentos de câmera do filme. Alias, durante o filme inteiro as imagens nos dão a impressão de que tudo nos é mostrado com uma câmera meio que flutuante, diria que quase sobrenatural. que sublima a relação dos personagens com o espaço e o ambiente que os envolvem. Um outro grande momento é quando o homem beija e mergulha em caricias com a vamp da cidade, enquanto a cena é intercalada com imagens da esposa chorando ao lado do filho.

Cabe ao desenrolar dos acontecimentos devolverem ao protagonista as noções de vida real que havia perdido. Ao se afastar da amante para voltar a sua esposa para matá-la, ao reencontrá-la, ele adquiri de súbito uma tomada de consciência, um sentimento de pena pela mulher à qual ele julgava não amar mais. A possibilidade de perder sua companheira faz com que ele reflita sobre abrir mão da solidez de sua existência para embarcar numa experiência que, no final das contas, poderia ser das mais efêmeras. Não vale a pena sacrificar a mulher com quem sempre viveu, e mais ainda, a vida que lhe era conhecida, na incerteza de reescrever o seu destino. Não se trata de mostrar o campo como um paraíso perdido, ou encará-lo como oposição à metrópole, como se àquele fosse bom, e esta pérfida e cruel: são camadas que se justapõem, que passam a fazer parte e se impregnando um e outro na existência de cada um dos personagens, como a noite e o dia, mas importando que no meio dos quais irrompe algo que se chama aurora. Esse meio entre dois mundos e espaços é o que contamina o filme de Murnau.

Sendo levado mais pelo que planejara do que propriamente pelo que desejava, o marido busca assassinar a esposa, mas se descobre incapaz do ato. A mulher indignada, reconhecendo no homem a sua frente não o antigo marido mas um estranho, quer sair ela dali e decide ir até a cidade. Desejando reconquista-la, e completamente arrependido pelo que tramara, ele a acompanha. A viagem de bonde que leva o casal do campo para a cidade é outro arroubo técnico fabuloso, com o uso de fusões e sobreposições para descrever as mudanças das paisagens exteriores, e nos permitem enxergar a cidade com os olhos do casal, tudo nos parecendo tão grande e caleidoscópico como o era para eles. As preocupações de Murnau com as qualidades formais fizeram com que ele alcançasse resultados muito próximos da perfeição. O restante do filme é sobre a tentativa do marido em se reconciliar em definitivo com a esposa, e mais do que isso, reencontrar sua identidade perdida, o homem que deixara de ser por causa dos devaneios e ilusões de uma paixão fugaz e inconsequente. É quando Aurora nos faz pensar como um equivalente adulto e naturalista de alguns conceitos de contos infantis em que personagens saem de seu mundo velho e conhecido para uma outra dimensão muito maior do que poderiam imaginar, para então redescobrir o amor pelo lugar (e pessoas) de onde surgiram.

François Truffaut dizia que esse é o filme mais belo do mundo e que ninguém poderia pensar em ser cineasta sem assisti-lo antes. Murnau pretendeu fazer desse filme uma espécie de canção, daí o subtítulo original de “A Song Of Two Humans”. À propósito, feito nos últimos suspiros do cinema mudo, Aurora utiliza um sistema de sonorização chamado Movietone, no qual o som era gravado diretamente no negativo. Com isso, o filme não precisava ter acompanhamento musical ao vivo. Aurora estreou semanas antes do primeiro filme falado, O Cantor de Jazz (que utilizava o processo Vitaphone, onde o som era gravado em enormes discos de cera), mas se reparamos na cena em que os protagonistas estão obstruindo a rua ao se beijarem, além de escutar efeitos sonoros de praxe, você poderá escutar, o que poderá ser considerado umas das primeiras palavras faladas no cinema (“Get out of There ou Get out of Way”).

Depois de Aurora, Murnau não teve mais a mesma carta branca nos estúdios e teve que ceder às pressões comerciais e realizar duas obras comerciais que lhe foram impostas: Four Devils e City Girl, este último retomando muito do que vemos em Aurora. Para fugir de Hollywood, Murnau partiu para o Taiti com o grande documentarista Robert Flaherty (Nanook, Man of Aran) para produzir e realizar Tabu. Os dois acabariam se desentendendo depois de três dias de filmagens, e sozinho Murnau fez a sua obra-prima derradeira. Isso porque três dias antes da premiére do filme, ele morreu em um desastre de automóvel. Na época se falou em uma maldição do sacerdote do Taiti, contrariado com certas cenas. Murnau tinha apenas quarenta e dois anos. Morria consagrado como o maior cineasta do seu tempo, ao lado de Charles Chaplin e Sergei Eisenstein.

Filmes citados

A Última Gargalhada [Der Letzte Mann; Alemanha, 1924], de F.W. Murnau. 77 min.

Aurora [Sunrise: A Song of Two Humans; EUA, 1927], de F.W. Murnau. 95 min.

City Girl [idem; EUA, 1930], de F.W. Murnau. 77 min.

Fausto [Faust – Eine Deutsche Volkssage; Alemanha, 1926], de F.W. Murnau. 116 min.

Nosferatu [Nosferatu, eine Symphonie des Grauens; Alemanha, 1922], de F.W. Murnau. 94 min.

O Cantor de Jazz [The Jazz Singer; EUA, 1927], de Alan Crosland. 88 min.

Os 4 Diabos [4 Devils; EUA, 1928], de F.W. Murnau. 100 min (versão sonorizada) | 97 min (versão muda).

Tabu [idem; EUA, 1931], de F.W. Murnau. 84 min.

Tartufo [idem; Alemanha, 1925], de F.W. Murnau. 74 min.

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