Missão Madrinha de Casamento (Paul Feig, 2011)

Existe atualmente na comédia televisiva americana uma espécie de “política do constrangimento”. É através dela que programas como Curb Your Enthusiasm, The Office e, em menor escala, Parks and Recreation encontraram seu modo operante característico. Aos poucos, vão sendo dadas pistas de como se desenrolará a situação que causará vergonha alheia no espectador, onde inevitavelmente estarão envolvidos os personagens principais das respectivas séries. A quase totalidade do episódio se dá na prática dessas ações, muitas vezes já antecipadas pelo público, mas que deverão gerar os momentos de maior deleite cômico na série em questão. Não que isso tenha sido “inventado” por essas séries, mas elas servem como um exemplo atual do funcionamento de tal lógica. E o sucesso desta “política” começa cada vez mais a ser difundida para o cinema, mas não necessariamente perdendo a linguagem da televisão contemporânea. Bridesmaids é a síntese perfeita dessa constante.

Dirigida por Paul Feig, diretor conceituado de séries, inclusive de vários episódios da extinta Arrested Development (outro bom exemplo dessa comédia da vergonha), além das já citadas Parks and Recreation e The Office, além de ser co-roteirizada – e estrelada – por Kristen Wiig, uma das mais relevantes atrizes do grupo atual do Saturday Night Live, Bridesmaids é filho da televisão, até o último frame fotografado. O produtor executivo, Judd Apatow, um dos expoentes mais representativos da comédia americana cinematográfica atual, também veio da TV, onde produziu a genial Freaks and Geeks, e de onde veio parte do seu séquito de amigos que hoje em dia é responsável pelos melhores produtos cômicos vindos dos EUA (entre eles, Paul Feig). Acontece que a diferença entre Apatow ou Greg Mottola, pra citar outro membro do grupo proveniente de Freaks and Geeks, e Paul Feig é que os dois primeiros se graduaram verdadeiramente no cinema, desenvolveram e foram aguçando um tipo de linguagem conceitual para além do sistema cômico da TV, e podem ser tidos como cineastas “autorais”, mesmo quando fazem filmes irregulares (como é Funny People, por exemplo). Feig não detém do mesmo controle sobre sua obra, depende mais da graça da situação que de um bom desenvolvimento da mesma; depende mais de seus atores que de uma construção mais elaborada da mise-en-scène, que não esteja estritamente ligada ao constrangimento absoluto.

Certas situações do filme deixam uma nítida impressão de que ficou perdido dentro delas o tempo do corte, onde a dilatação de algumas cenas que buscam as gargalhadas por um tempo maior perdem, em si mesmas, suas funções dentro do todo narrativo. O maior desses exemplos é a seqüência do avião, em que a personagem de Kristen Wiig, bêbada e descontrolada, executa uma série de atos abomináveis que geram a expulsão de todo seu grupo de amigas da aeronave. Em algum momento da longa série de situações, a graça deixou de existir e a sensação de repetição se instaurou, e o que resta é somente aguardar o final da “esquete”. Existe também uma necessidade praticamente irrelevante em transformar o último ato do filme em uma catarse muito bem delimitada, seguindo a natureza superficial das comédias românticas triviais, que faz com que se perca um pouco da admiração pelo que vinha sido realizado até então.

Mas não se engane com esses poréns, pois Bridesmaids está muito acima da média e é terrivelmente engraçado. Ainda que não consiga escapar do seu berço de televisão, Paul Feig conta com o auxílio de atores afiadíssimos, ou melhor, atrizes. Esse é o maior trunfo do filme, ser um produto quase que totalmente protagonizado por personagens femininas, mas com um perfil masculinizado, destemidas, muitas vezes toscas, perdedoras assumidas e que são constantemente colocadas em situações nada dignas (não existe essa piedade, por serem mulheres, portanto o filme não é nem feminista, nem machista), uma delas especialmente escatológica: a já antológica seqüência da prova do vestido de noiva. É o cinema dos Farelly encontrando a humanidade natural da turma de Apatow e que, mesmo seguindo um sistema articulado pela linguagem de televisão, dispõe de alguns dos momentos mais engraçados do cinema nos últimos anos. Se for sobre isso que comédias devem tratar, Paul Feig segue bem!

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Vendredi soir (Claire Denis, 2002)

Lentamente as coisas vão aparecendo em Vendredi soir, de Claire Denis. Lentamente, porque a câmera direciona seu foco para o que quer ver no momento do plano, nada mais. Se for necessário, Denis cortará abruptamente um plano que, na percepção do espectador acostumado a “entender” as “regras” do cinema, não poderia ocorrer daquele modo. Da mesma maneira, somos levados a presenciar uma alternância sem fim entre o close e o amplo, nos aproximamos e vemos de fora na mesma frequência ritmada, bem humorada, bonita e estranha da noite de sexta da mulher que vai se mudar no dia seguinte, mudar para uma nova casa, dividida com um homem que jamais será captado pela câmera. Uma vida a dois.

Mas o filme de Denis é sobre “um”, sobre aquela mulher e seu olhar para o mundo que a rodeia, para o homem que ela conhece naquela noite. O conhecer dos dois é relativo, pois o tanto que eles serão capazes de partilhar no tato, faltará na fala. Ou será que não? Denis faz de seu filme um instrumento da percepção imagética, sensorial, mas muito menos da palavra dita, porque as informações ali, seja sobre ela, ele, suas vidas, parecem pouco importar. Em Vendredi soir importa mesmo a luz, a visão, o desejo.

E desejo aflora abundante, em cada pequena parte de pele da mulher que vemos, do homem que a possui, na plateia que os observa, quase intrometida. Seria um exercício de constrangimento estarmos ali observando aquela intimidade nascendo, caso Vendredi soir não fosse tão desprovido de seriedade sobre si mesmo, caso acreditasse que as coisas estão finalizadas nelas mesmas, que respostas são mais importantes que o ato de simplesmente não se perguntar. Por duas vezes, pelo menos, somos convidados a partilhar a mente daquela mulher, em seu delírio — muito humano — a respeito do homem desconhecido e de sua pretensa atitude distante dela, em circunstâncias distintas. Porém, logo em seguida, retornamos para a realidade do convívio dos dois, pois não deveria haver entre eles qualquer tipo de divagação, abstração além da permitida na licença de ambos de suas próprias vidas.

O que acontece de fato é que a câmera de Denis capta vida em cada frame, ainda que não seja a vida conhecida daquelas duas pessoas. Para quem assiste ao filme, aqueles momentos de interação correspondem à vida real, o único modo possível da existência de ambos, na tela de uma sala de cinema. Seria romântico se Denis permitisse este entendimento. Mas não, Vendredi soir não é sobre romantismo, não é sobre constância, mas sobre um momento, sobre fragmentos muito bem delimitados pela duração de um plano, pelo corte seguinte, por alguns fades que nos levam para a escuridão. Porém, antes da conclusão são capazes de guardar mais alguns momentos de uma imagem, de uma memória, dilatada, que sai junto de cada um de nós depois que o filme acaba. O cinema deveria funcionar assim, não é mesmo? Pois bem, Claire Denis dá conta!

Filmes citados

Vendredi soir [idem; França, 2002], de Claire Denis. 90 min.

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Carta de uma Desconhecida (Max Ophüls, 1948)

Anos atrás, estive num debate com o crítico de cinema e cineasta Eduardo Valente, a respeito do lançamento de seu primeiro longa, No Meu Lugar. Questionado sobre a opção pelos planos fixos predominantes na obra, Valente respondeu que “não movia a câmera porque não sabia”. Não sei bem dizer se é mais difícil fazer um filme com planos fixos ou um filme com movimentos inventivos, porém, me parece seguro dizer que o “saber” do movimento, defendido por Valente (e por outros tantos artistas envolvidos com o cinema), está plenamente conectado com a obra de Max Ophüls. E Carta de Uma Desconhecida é um canto de louvor à maravilha da movimentação.

A estrutura do filme, ainda que aparentemente simples, traz consigo surpresas narrativas. A ação de se narrar a história através da leitura de uma carta, recebida logo no início do filme pelo personagem que motivará toda a narrativa (e que se mostrará cíclica), poderia parecer superficial demais, assim como também parecem, em alguns momentos, os sentimentos dos personagens retratados em cena. Porém, de certo modo Ophüls convida o público a perceber além da superfície, a olhar adiante, forçar a visão por entre as sombras, caminhar até a “verdade”, por assim dizer. Assim sendo, ainda que não seja um filme noir, Carta de Uma Desconhecida precisa se dispor de um jogo entre o claro e o escuro para estabelecer a conexão com seu público. E do público ele pede a possibilidade de seguir no encontro do sentimento, da pureza do amor de Lisa por um homem que ela conheceu inteiramente, até mais que ele próprio, ao mesmo tempo em que o idealizou de tal forma que seu destino só pode ser inevitavelmente trágico.

Um enquadramento fixo não daria conta, no filme de Ophüls, de atribuir significado à dubiedade da relação que se estabelece entre Lisa e Stefan, seu amado. Para tanto, é necessário se mover, a câmera buscar uma melhor maneira de enxergar o que pode não estar sendo visto em cena, postura tomada por Stefan ao longo de todo o filme. Até mesmo Lisa parece só ter noção da condição de sua relação fantasiosa no clímax do filme, não obstante de um tom catártico sublime, atingindo o ápice da elegância num melodrama, jamais vista antes numa tela de cinema. Lisa, enquanto compreende que seu sentimento não poderia ser compartilhado, entende também que ele foi absoluto e completo, e que a acompanhará enquanto sua mente for capaz de se lembrar.

É irônico falar em memória, sendo que a grande tragédia de Carta de Uma Desconhecida está atribuída a ela, ou melhor, à falta dela — ou à impossibilidade de enxergar para além do que é visto. A existência de Lisa esteve resguardada às sombras por quase todo o tempo em que conviveu com Stefan, questão assinalada nos posicionamentos da personagem diante dos encontros com seu amado, sempre atrás de uma barreira (seja uma porta, uma parede, ou a escuridão de uma escada). E mesmo quando ela estava diante dele, seu posicionamento físico era notado somente superficialmente. A incapacidade de Stefan de ver Lisa é a maior virtude que Ophüls demanda de seu público: todos sabem o que ela é, o que ela sente por ele e que tipo de homem ele é para ela, tudo por ele não conseguir percebê-la. O amor de Lisa e Stefan está condenado à inexistência, por conta da percepção da superfície, mas é através dela que o público compreende o sentimento de fato.

O ritmo narrativo é imposto pelo fluxo da lembrança, estabelecido pela carta, que muitas vezes prefere passar por cima de um acontecimento dolorido, ainda não cicatrizado (como a perda do filho, por exemplo), simplesmente porque o mais importante é a progressão. Mesmo trabalhando com elementos do texto que dispõem de pistas que serão recompensadas mais à frente na trama, Max Ophüls exerce mesmo seu domínio sobre a idéia da sucessão da ação, uma gerando a seguinte. Carta de Uma Desconhecida, ainda que notadamente um melodrama apoteótico, é um filme fluido, coeso, principalmente por se ligar de maneira tão próxima à perspectiva de sua narradora (em um determinado momento, a câmera toma sua posição, se torna subjetiva, acompanhando o movimento do balanço em que ela está, de onde observa o quarto de Stefan, antes mesmo de saber como ele é). Por conta disso, os dois maiores momentos do filme são praticamente a repetição de um mesmo plano: um plongée em meio às sombras, do alto de uma escada, observando um homem e uma mulher seguirem para um ato de paixão. Na primeira vez, sob a perspectiva de Lisa, o plano revela sua natureza devastadora, motivando a primeira ruptura narrativa; na segunda vez, ele observa Lisa, agora espelhada na posição que outrora ela almejava, mas que em pouquíssimo tempo também culminará em uma nova ruptura. Ainda que com percepções diferentes, a câmera capta duas vezes a efemeridade de um envolvimento entre duas pessoas.

Carta de Uma Desconhecida se alia a outros grandes filmes que tratam também sobre amores perdidos, que talvez nunca nem tenha “pertencido” aos heróis e heroínas, sendo os melhores exemplos Noites Brancas, de Luchino Visconti e Amantes, de James Gray (ambos adaptações de um conto de Dostoievski). Não por coincidência, todos os filmes guardam uma maneira semelhante de enxergar o amor como um sentimento, acima de tudo, projetado, inventado, mas nem por isso irreal. Também não parece ser coincidência que todos os filmes tenham como característica mais notável o rigor de seus movimentos, a câmera funcionando como cúmplice e confessor de seus protagonistas, onde a prática do virtuosismo nunca está ligada à gratuidade, mas sim à necessidade dos personagens em constantemente mudar de posição, encontrar um novo caminho. Do mesmo modo fazem os filmes, um movimento fundamental para que se tornem alguma outra coisa maior para quem os vê. Assim sendo, Max Ophüls movimenta sua câmera, não somente porque sabe (e como sabe!), mas porque ela precisa pensar junto de mim. Isso faz dele um gênio!

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Lola Montès (Max Ophüls, 1955)

Por Thiago Macêdo Correia

Em um dos atos de rememoração praticados ao longo de Lola Montès, a lembrança de um momento passado entre Lola e o compositor alemão Franz Liszt, com quem vivia um caso, é ativada a partir da finalização de uma partitura musical, feita por Liszt. Lola está deitada, protegida por uma tela vermelha, supostamente adormecida e com uma expressão sereníssima. Liszt segue até ela para mostrar a música que ele acabara de compor, a “Valsa do Adeus”. Simultânea a seu movimento, é executada a canção. Quando percebe que Lola não o responde, Liszt rasga a partitura em alguns pedaços, ao que o som da música é interrompido. Assim que Lola começa a falar com ele e depois se despede, levanta de seu leito e vai até o chão recolher os papéis com a partitura. A cada momento que pega um pedaço de papel, uma camada da melodia volta a tomar conta do filme, em um movimento crescente de harmonia, tanto pela própria música, quanto pela ligação entre imagem e som. Essa sequência descrita, assim como outras tantas isoladas, poderia por si só dar conta da magnitude do filme de Max Ophüls. Porém, a união dos elementos de virtuosismo praticada pelo cineasta faz de Lola Montès não somente sua obra máxima, mas um dos maiores exemplos de excelência artística, em qualquer arte imaginável.

Do mesmo modo que O Nascimento de Uma Nação, O Encouraçado Potemkin e Cidadão Kane são constantemente citados em listas de melhores filmes de todos os tempos, muito por conta do caráter vanguardista de suas construções narrativas, criando ou reinventando artifícios cinematográficos que revolucionaram o modo de fazer cinema, Lola Montès merece o mesmo reconhecimento. Não foi neste filme que Max Ophüls estabeleceu seu trabalho típico de movimentação de câmera, mas foi nele que tal movimentação atingiu o status de inovadora. Lola Montès é decupado de tal modo que todo o cenário, perfeitamente construído e trabalhado por uma arte de grande refinamento, seja explorado inteiramente. Em vários momentos, o filme de Ophüls é exibido não somente de modo frontal, com a câmera captando a ação à sua frente, mas seguindo esta ação em toda sua complexidade, em um balé de posicionamento e acontecimentos que vão se sucedendo de modo inquieto, assim como a personalidade de sua protagonista — assim como a personalidade do próprio Ophüls. Um plano fixo em Lola Montès não daria conta da própria necessidade do cineasta em viver dentro daquele mundo, através dos percursos de seus personagens e de sua câmera fabulosa a segui-los.

Por conta disso, nascem em Lola Montès planos cinematográficos antológicos, como o movimento de 360º empregado pela câmera no centro do picadeiro, mostrando Lola inteiramente e ocultando o mundo a seu redor. Há também a frequente observação vertical da ação, partindo de um ponto inferior e evoluindo a ação até o máximo possível do movimento ascendente. De baixo para cima, a câmera de Ophüls descobre um novo modo de ver o mundo e contar uma história. São embasbacantes os planos coreografados no circo, principalmente aquele em que a trajetória de Lola rumo ao topo da cadeia aristocrática social é narrada pelo mestre do circo, enquanto a própria Lola sobe cada vez mais em direção ao ponto mais alto da estrutura circense. Quanto mais alto Lola chega, mais perigosa poderá ser sua queda e Ophüls capta tudo sem permitir o corte, sem conceder o close. Lola Montès é um filme encenado em planos abertos, longos e fluídos, pois, mais ainda que no existencialismo de Lola, a importância narrativa está nas modificações que ela provoca no mundo que a abriga.

Captado em Cinemascope, formato exigido pelos produtores e acatado a contragosto por Ophüls, Lola Montès se vale de uma invenção do próprio cineasta, junto de seu fotógrafo Christian Matras, para utilizar o máximo possível das impossibilidades de se filmar de modo tão ampliado. Dentro de uma mesma cena, pode acontecer o “fechamento” do enquadramento do Cinemascope, quando já não é possível captar o todo e se faz necessário perceber uma ação mínima. Para isso, Ophüls e Matras usavam duas partes iguais de veludo preto, diminuindo o espaço enquadrado até um formato próximo do clássico 4:3, semelhante a um quadrado (que até 1953 era a única opção possível no cinema). De repente, em um mesmo plano, é possível perceber o esplendor do Cinemascope (apesar da relutância do cineasta, certas sequências são impossíveis hoje de conceber sendo tão belas caso não fossem tão extraordinariamente captadas no formato) e ter um tom mais “intimista” de uma observação mais restrita, mais próxima dos personagens. Constatar este acontecimento e não ficar completamente arrepiado é o mesmo que não compreender a genialidade da estrutura narrativa de Lola Montès.

Porém, foi exatamente isso que ocorreu à época de seu lançamento. O filme escandalizou o público e foi completamente mal compreendido pela crítica, até o ponto em que os produtores decidiram recolher a cópia e dar um novo corte, linear, fato que deixou Max Ophüls irremediavelmente abalado (e, segundo consta, foi um dos motivos de sua morte prematura, menos de dois anos depois do lançamento de Lola Montès nos cinemas). Hoje em dia é possível entender os motivos para o escândalo social, já que o filme retrata a trajetória de uma mulher vista pela sociedade de sua época como uma espécie de cortesã, mas que de fato nada mais era que um espírito livre, alguém capaz de tomar as rédeas de seu caminho e fazer de si o que bem pretender. Lola era excessivamente evoluída para sua época, estava muito à frente de seu tempo e percebia perfeitamente a disparidade entre sua postura e o que era considerado correto para o restante da sociedade. Sua vida é revisitada no filme em um exercício metalinguístico completamente particular: ao mesmo tempo em que os acontecimentos que pontuaram sua biografia são encenados no circo, com a própria Lola servindo como “animal” a ser observado pelo público disposto a pagar para vê-la, Lola os relembra em sua mente e o filme intercala os pontos da memória com aqueles que estão sendo desenvolvidos no picadeiro. Entre a abstração realista da memória e a realidade pitoresca do fato presenciado, Ophüls esgota as possibilidades de inventividade, seja da já muito reverenciada câmera, seja do discurso ambíguo, irônico e triste do destino de Lola.

A mulher que se tornara célebre por viver livre passa a ser vendida como uma atração circense, uma anormalidade para os padrões da época em que viveu (e também para a França dos anos 50, que recebeu o filme com intolerância), tendo sido construída e destruída pela própria mídia, da qual foi vítima e algoz. Pela impossibilidade de acatar uma vida livre da atenção alheia, a ponto de deixar de existir aos olhos do mundo, Lola se anula e passa a ser personagem de si mesma, se humilha e também é humilhada em troca de atenção e luz, único modo conhecido por ela de existir para o externo: sob a forma de imagem. Max Ophüls abrange todo o leque da complexidade da personagem, da tragédia de sua existência, da riqueza de sua vida, em uma obra estupenda, que não pode nunca ser descrita sem que o máximo do superlativo seja utilizado. Para os dias de hoje, quando alguns dos grandes artistas incompreendidos têm finalmente o reconhecimento tardio a respeito de suas obras, Lola Montès merece ser acolhido pelo público como um dos exemplos mais retumbantes em como contar uma história, enquadrar, mover uma câmera, articular um discurso, inventar uma linguagem, enfim, como fazer cinema.

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