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Fitzcarraldo (Werner Herzog, 1982)

Por Luis Henrique Boaventura

A falta de distinção entre o que é ficção e o que é documentário é uma constante em Herzog. Parece não ter havido, como ocorre eventualmente a todo cineasta, a esquize que permite ao olho separar a encenação do que apenas está em cena. Como resultado, esta “falha” congênita sempre fará de seus filmes peças rudes, impuras, onde o documentário é contaminado pela orientação do documentarista (muito além do que é inerente ao gênero) e a ficção é atravessada pelo extradiegético, onde a frieza de um Stroszek afilia-se muito mais a componentes do mundo físico do que Wheel of Time ou O Diamante Branco, arquivos de uma realidade mística e carregada de ideologia. Não ser capaz de enxergar esta linha pode afastar alguns, mas é exatamente o que faz de Herzog não apenas um artista único mas, acima de tudo, um documentarista fidelíssimo do seu tempo (afinal não é a própria realidade fantástica em seus preceitos?).

Fitzcarraldo, o filme em que essa acepção é mais evidente, acaba sempre e de muitos modos narrando sua própria história porque o objeto de sua narrativa é ele mesmo. O discurso em si e a produção deste discurso, em dependência do ponto de vista, são um o fantasma da imagem do outro. A todo o momento a ficção (história da saga do Fitzcarraldo-personagem) parece espelhada por um segundo filme (referente à feitura do próprio Fitzcarraldo); ambos vigiam a mesma ação, dividem atores e cenário, documentam a loucura e a obsessão humanas até que o segundo, no ponto de convergência entre ambos (o arraste do navio morro acima), ergue-se e devora seu duplo diegético.

Se Herzog, um fetichista da realidade, um dedicado inventariante dos objetos da natureza, deu de frente com a Paramount para efetivamente realizar a travessia pela montanha (opondo-se a o que lhe propuseram: uma ordinária mentira de estúdio), foi porque sabia que a mise-en-scène de Fitzcarraldo seria cosida antes pelos objetos, corpos e espaços achados em cena (porque assim está inscrito no espírito do desbravador-documentarista), depois na montagem, panorama em que a posição e comportamento da câmera se veem — se não diminuídos — subordinados a uma organização outra (um organismo), porque também ela é feita refém do que encontrar, privada do controle absoluto que os cânones prescrevem à figura do diretor.

Irmana-se do real e seus dejetos, suas reentrâncias, suas barreiras, a substância do imaginário. Herzog e Fitzcarraldo (o homem), doppelgängers em seus respectivos mundos, contrabandeiam a dureza da ficção para a realidade e da realidade para a ficção num circuito que é franco e translúcido. A marcha do cineasta, tal qual a marcha do personagem, trata de reaproximar universos que em verdade nunca estiveram separados apesar da aplicada disciplina legada do cinema clássico em disfarçar o mundo externo, presumido em cada imediação dos quadros num intercâmbio há muito reprimido. Em Fitzcarraldo, pelo contrário, há esta licença sem expiração que só Herzog parece possuir e que lhe concede trânsito irrestrito entre filme e sua produção, um contexto inédito em que o extracampo é livre para arriscar voos para o que está em cena e o que está em cena para empreender fugas para detrás da câmera, permitindo a um que redefina o outro.

Concebido assim, como documentação da própria insanidade (da impossibilidade aparente de realizar um épico total), Fitzcarraldo dribla prescrições que fundam na ilusão (na encenação) as bases do que define o cinema enquanto arte, expulsando-o para outro rol, não nomeado ainda, dos filmes que se alimentam de si mesmos, que fazem do próprio tour de force o objeto central de sua narração. Fitzcarraldo é o uróboro em método e argumento.

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Woyzeck (Werner Herzog, 1979)

Por Vlademir Lazo

Durante muito tempo, Woyzeck foi um dos títulos de maior prestígio dentre os dirigidos por Werner Herzog, ao menos no Brasil, onde era um dos poucos do diretor alemão disponíveis em home vídeo no país nos anos 80/90. Mas também por ser um dos cinco estrelados pelo que se tornaria o ator-símbolo da carreira do cineasta na época, um de nossos malucos preferidos no cinema, Klaus Kinski.

Não sendo uma de suas obras mais inventivas, Woyzeck ao menos se encaixava dentro do espaço do chamado cinema de arte, com todo o peso que apresenta do começo ao fim. Pesado não como sinônimo de desagradável ou chocante, nem de muito forte, e sim no sentido de que termina sufocado pelos seus próprios contornos. Um pouco como uma continuidade estética e temática de O Enigma de Kaspar Hauser (que talvez não por coincidência também não seja dos melhores trabalhos do seu realizador), em torno do deslocamento de um individuo animalizado e tornado selvagem por não se adaptar a um meio social.

O filme é uma transposição ao pé-da-letra da famosa peça de George Buchner, muitas vezes encenada, em torno de um simplório fuzileiro ridicularizado e atacado por todos os lados na sociedade em que vive. Por mais clássica que seja a obra original, e toda força e potência que pudesse ter num palco, a adaptação excessivamente literal de Herzog nem sempre acrescenta muito ao texto.

O filme se escora demais na atuação afetada de Kinski, que normalmente funcionava nos papéis de loucos amedrontadores de outros títulos de Herzog, mas que como um pobre-diabo vítima de uma série de humilhações (e traições), equiparado pelos demais personagens como a um cão ou outro animal qualquer, só serve para os que têm fetiche pela sua presença em cena, repleta de caras e bocas em Woyzeck, para muito além da capacidade do filme se sustentar por si próprio.

Os maiores trunfos acabam sendo a fotografia (prejudicada pelas cópias de qualidade duvidosa em circulação) e a direção de arte ─ ambas precisas e especificas sem a necessidade de parecerem suntuosas. O que é pouco em se tratando de um cineasta com a reputação do tamanho da de Herzog. Mas deve-se dizer alguns elogios ao trabalho de Eva Mattes (premiada em Cannes), como a esposa que deixa Woyzeck (Kinski) atormentado por não saber se a mulher é ou não infiel. Ela é a sutileza em cena que se contrapõe ao histrionismo de Kinski. Desse contraste o filme inteiro parece uma longa preparação para o seu grand finale, um dos momentos mais furiosos e impressionantes na filmografia do diretor.

No geral, fica a impressão de que os méritos que restam são do texto de Buchner, e de alguns aspectos técnicos ou interpretações, não do filme em conjunto, como se um espírito livre como Herzog se sentisse de mãos atadas sem saber muito que fazer além de adaptar com o devido respeito que a obra original merece. Não espanta que como consequência Woyzeck tenha somente 74 minutos, bem abaixo da média de um longa-metragem. Herzog não tinha mesmo como ir muito alem deles.

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Nosferatu: O Vampiro da Noite (Werner Herzog, 1979)

Por Murilo Lopes

“Os rios prosseguem sem nós”

Vigésimo filme de Werner Herzog, Nosferatu : O Vampiro da Noite é uma adaptação livre da famosa obra de Bram Stoker, Drácula, romance do final do século XIX que conta a história de Jonathan Harker, um jovem que vai à Transilvânia fechar um contrato de venda de uma casa para um homem chamado Conde Drácula. Lá descobre que seu excêntrico anfitrião mora em um antigo castelo onde eventos estranhos acontecem e, pouco a pouco, percebe que é hóspede de um ser realmente maléfico. Entretanto, o ponto da adaptação de Herzog vai um tanto além da grande maioria dos filmes que tomaram a obra de Bram Stoker como base. Aqui, muito além da história de vampiro, Herzog costura, como já é costumeiro em seus filmes, algumas percepções próprias sobre a sociedade, a natureza e o desconhecido.

Tanto as coisas funcionam assim que Herzog não perde muito tempo com apresentações e construções de enredo ou personagens. O diretor pressupõe que o público está familiarizado com o personagem e o que vai acontecer durante a trama. Sendo assim, o filme se torna um belíssimo espaço aberto para o diretor exercitar seu estilo e filmar planos lindos usando apenas luz ambiente. Alguns momentos, como o primeiro encontro de Drácula com Lucy Harker, a chegada de um navio ao porto da cidade ou a macabra festa popular em praça pública, são de uma beleza estética ímpar e evocam a preocupação da geração de cineastas alemães a qual pertence Herzog para com o desenvolvimento de uma identidade cinematográfica nacional.

Cabe observar, ainda, a maneira como Herzog encara os eventos que o enredo desenvolve: muito mais que um vampiro, Drácula é um acontecimento que pode, ou não, ser apenas uma forma dos jovens Jonathan e Lucy encarar um evento muito maior, que foi a chegada da Peste Negra. O argumento de Herzog é que nem a fé, nem a ciência e nem coisa alguma neste mundo são capazes de abarcar todo o entendimento sobre certos fenômenos de ordem natural. Aos olhos do cético Dr. Van Helsing (aqui “diminuído” do costumeiro caçador de vampiros a um simples médico), Lucy está sendo ridícula ao permitir que seus preconceitos e superstições se sobressaiam perante a luz da ciência e da razão. Aos olhos de Lucy, é exatamente o contrário: Van Helsing e todos à sua volta são ridículos por não enxergarem o óbvio ululante, que é influência maléfica de Drácula sobre os eventos que ocorrem na cidade. Aos olhos de Herzog, por fim, os personagens estão apenas buscando explicações para aquilo que não se explica.

Em seu primeiro encontro pessoal com o Conde Drácula, Lucy Harker tem seu momento de lucidez inquestionável ao dizer que estão todos nas mãos de Drácula e que os rios continuam correndo sem eles, pois a morte é a única coisa certa. Neste momento, ela desvela a identidade de Drácula na visão de Werner Herzog: um fenômeno que, consciente ou não, acontece porque acontece, à completa revelia do que pensam os seres impactados por ele.

Com um Klaus Kinski devastador no papel de Conde Drácula, Nosferatu: O Vampiro da Noite é uma visão diferenciada e esteticamente valiosa para um gênero de filmes que, mesmo em 1979, já era saturado. Além disso, é uma fantástica demonstração do que a estética do Novo Cinema Alemão era capaz de proporcionar. Enfim, mais um filme de Herzog que, além de figurar nas rotineiras listas de “filmes obrigatórios”, nos revela um pouco mais daquilo que seu criador pensa, sente e é.

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How much wood would a woodchuck chuck… (Werner Herzog, 1978)

Por Fernanda Canofre

Os primeiros leilões, realizados na Grécia Antiga, tinham como principal produto as mulheres oferecidas para casamento. Os mercadores começavam os lances com um valor alto, para depois ir baixando-o até chegar perto ou no valor mínimo estipulado pelo “dono”. Fechava a compra quem fosse o último a dar lance. A popularidade dos leilões teve seus altos e baixos nos séculos seguintes, mesmo assim o homem foi descobrindo que tudo tinha seu preço e poderia sim ser colocado a venda. No final do século XVIII, depois da Revolução Francesa, os salões e cafés que serviam como espaços para troca de valores ideológicos, de repente passaram também a servir para a troca de valores comerciais, com os leilões de arte. A esta altura, as coisas já haviam se invertido há muito tempo. Não se sabe se antes ou depois de a palavra “capital” ter sido cunhada, mas o valor de um lance não poderia mais decrescer. Tinha de ser um número sempre em ascensão. O produto a venda ia para as mãos do comprador que pagasse o valor mais alto por ele. Analisando de perto a história dos leilões, podemos encontrar uma metáfora para a própria História. Em um mundo paralelo, com código de comportamento e linguagem próprios, encontramos uma micro-sociedade regida pelas leis do capitalismo, mesmo antes de este ter sido batizado. Em How much wood would a woodchuck chuck, Herzog nos concede sua versão documental desta sociedade, já trabalhada na ficção com Stroszek (1977). No filme, a história de um alcoólatra, recém-saído da prisão, que deixa sua terra natal em busca de uma oportunidade nos Estados Unidos, mas acaba descobrindo que o crédito fácil e a felicidade instantânea têm seu preço no sistema, é contada através do drama. Porém, em How much wood, temos Herzog oferecendo uma visão satírica deste mesmo sistema, mostrando que os valores oferecidos por ele são tão superficiais, que deixam o indivíduo social beirar a estupidez.

O roteiro do documentário é estruturado em cima do acontecimento do campeonato mundial de leiloeiros de gado, que acontece em uma pequena cidade no interior dos EUA. Sem narração, apenas colando entrevistas e cenas gerais, não temos aqui a voz de Herzog em off, quase uma marca de seus documentários. Mesmo assim, ao apresentar os depoimentos dos leiloeiros, com seus pensamentos “profundos” sobre a profissão, podemos (quase) ouvir a risada do diretor ao pintar um retrato sobre a superficialidade de um mundo que gira explicitamente em torno do dinheiro. Tudo é tão vazio de conteúdo neste mundo que, mesmo o discurso do vencedor, acaba mostrando que, fora do microfone, sem lances a serem cantados ou produtos a serem vendidos, não há nada mais para ser dito. O campeão faz seu discurso de agradecimento intercalando risadas artificiais, com frases como “that’s nice” ou “it’s been great”. Nada mais a declarar. Realizado para a TV alemã, no mercado norte-americano, How much wood acabou recebendo o subtítulo de: “observations on a new language”. Na tradução para o português, “language” pode significar tanto “linguagem” quanto “idioma” e no filme de Herzog, a palavra serve aos dois propósitos. No mundo paralelo dos leilões, o diretor alemão nos apresenta ao surgimento de uma nova forma de comunicação, onde as sílabas não são compreensíveis, mas o som delas produz sentido para o público que participa do jogo de lances. É uma nova língua falada através dos números, que dispensa quase totalmente as palavras. Dos quarenta minutos de duração do documentário, cerca de vinte são preenchidos com imagens da competição, mostrando os leiloeiros em exercício. Nenhuma trilha, nenhuma narração, nenhum outro som a não ser o das vozes dos homens que comandam o leilão. Temos a sensação de estar em um território cuja língua oficial obedece aos padrões dos números binários, aqueles mesmo utilizados na programação de computadores. Se olhando os números separados, nós, pobres leigos, não conseguimos compreender nada, a programação, produto final criado a partir deles, nos é enfim acessível. Em um ponto do filme, Herzog deixa claro que a compreensão literal não é uma de suas intenções aqui. Aproveitando o fato de que alguns habitantes locais falam um dialeto alemão (conhecido como Pennsylvania Deutch), ele passa a fazer as entrevistas em sua língua, sem se importar com dublagem, legenda ou qualquer outra forma de tradução. Não é necessário, a mensagem do retrato abstrato filmado pelo diretor já está clara.

Mesmo quando os lances do jogo ainda não foram definidos por Herzog, temos já uma clara visão de onde ele pretende nos levar. A primeira cena do filme mostra o depoimento de um leiloeiro, que conta como escolheu a profissão, quais são suas técnicas de treinamento e passa a recitar trava-línguas, seu instrumento de trabalho. É de um deles que vem o título do documentário. Em seguida, acompanhamos praticamente o mesmo depoimento dado por outros competidores. É como se todos os leiloeiros tivessem uma história parecida (para não dizer a mesma) para contar. Herzog não se dá ao trabalho nem de nomeá-los. Se em outros documentários, vemos o diretor usar uma pequena introdução, ou mesmo uma menção aos seus personagens através de narração ou de alguma fala, aqui, ele apresenta perguntas, mas nunca o entrevistado. Só descobrimos o nome do campeão, porque este é anunciado no microfone durante uma festa que está sendo registrada por suas câmeras. Depois de conhecermos os leiloeiros, somos apresentados, através de imagens acompanhadas de uma trilha de música folk americana, à pequena cidade onde o evento acontece. Essencialmente rural, o lugar é também terra de uma tradicional comunidade amish. Conhecidos por renunciar aos confortos da vida moderna, os amishes vivem em grupos fechados, evitam utilizar eletricidade e quase não consomem produtos industrializados. Para eles, a praticidade da tecnologia, faz com que um indivíduo dependa menos da comunidade. Assim, trocam os automóveis por carroças, produzem o próprio alimento, tem escolas fechadas para seus filhos, vestem-se com roupas feitas de tecidos manufaturados. Em um primeiro momento, a presença dos amishes no filme parece servir para lembrar que existe alternativa ao sistema. Logo na cena de apresentação da cidade, a câmera acompanha uma carruagem passeando nas ruas. O plano seguinte começa mostrando vários carros estacionados em frente a uma lanchonete com placa da Coca-Cola e a uma revendedora da New Holland. Aos poucos, o campo vai abrindo e revela uma espécie de garagem de carruagens mais a frente, onde a carruagem que acompanhamos no início é guardada. Uma imagem que contém, além de uma viagem no tempo em 24 frames, a contradição. Nos deparamos com uma nova questão: até quando a alternativa pode resistir ao sistema? Corta para a próxima cena. Dentro do pavilhão onde acontecem os leilões, a plateia parece ansiosa. Em meio aos típicos americanos, de chapéu de cowboy, observamos a presença de alguns homens de barba longa, chapéus de palha, que se vestem um pouco diferente dos outros. Os amishes estão no meio do público, prontos para dar seus lances. Sim, eles também fazem parte do meio capitalista.

How much wood é uma crônica de Herzog em cima da sociedade do consumismo que acaba também nos consumindo. Um exercício intimista, que usa a forma para transmitir o conteúdo que o diretor não encontrou na fala oca de seus personagens. Talvez a melhor expressão do que Herzog parece tentar dizer aqui esteja mesmo nos personagens que não falam. Durante os vinte minutos onde acompanhamos a exibição dos talentos dos leiloeiros, narração frenética correndo na garganta treinada, temos o vídeo preenchido também por algumas imagens dos animais que estão sendo colocados a leilão. Planos de animais são recorrentos no universo documental herzoguiano. Enquanto a plateia se divide entre avaliar os produtos e os homens que batem o martelo, os animais só obedecem as guias de portão de entrada e saída no circo que não compreendem. O leiloeiro tenta fazer uma média melhor do que seu concorrente em letras emitidas por segundo, sem nem prestar atenção ao que está sendo oferecido. Os bezerros correm meio sem direção pela pequena arena, tentando escapar do barulho produzido pela verborragia que se despeja alguns metros acima deles, do local onde foram fechados, da superpopulação das arquibancadas que abafa o lugar. Obviamente, como animais, eles não têm idéia de que naquele mundo são um produto e hoje estão exibindo seu valor a quem interessar possa. Não, caro espectador, isso já não é mais uma metáfora.

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Stroszek (Werner Herzog, 1977)

Por Vlademir Lazo

Como nos filmes com Klaus Kinski, os que Herzog quase na mesma época fez em parceria com Bruno S também assumem à imagem e semelhança de seu ator principal, como uma fusão entre intérprete e personagem em cada uma das obras em questão. No lugar do irascível e doidão intérprete de Aguirre e Nosferatu, os trabalhos com Bruno S se contaminam com a calma loucura muito prestes a estourar, interiorizada quase todo o tempo, mais como um desajuste social do que como opção (como recorrente em Kinski). Bruno fora um achado na escolha de representar o personagem-título de O Enigma de Kaspar Hauser: dotado de leve deficiência mental, tendo passado grande parte de infância e adolescência em reformatórios, ou apanhando da mãe em casa, depois de conhecê-lo em um documentário sobre músicos de rua Herzog quis fazer um prolongamento a Kasper Hauser dedicando outro filme de ficção a ele, e transformando Bruno S. em Bruno Stroszek, criando um fio narrativo muito tênue em que se desenvolve este personagem e outros dois que lhe acompanharão em um e outro lado do mundo.

São eles a prostituta Eva (Eva Mattes) e Scheitz (Clemens Scheitz), um velho também esquisito, seu vizinho. Stroszek os encontra logo após sair da cadeia. Passa seu tempo tocando acordeon pelas ruas, e sua ingenuidade e distante noção de mundo o deixam ser enganado por quem quer que seja. O trio parte para os Estados Unidos em busca do sonho americano, o que ao chegarem lá se mostra como uma realidade gracial e inatingível. Não é crítica a uma suposta sociedade norte-americana, é mais uma volubilidade dos sonhos, presentes em nossa mente se vistos de uma perspectiva relativamente distante, mas que se desfazem como brumas ao vento perdendo sua espessura quando muito próximos.

Se há critica em Stroszek, ela é a da realidade do homem afogado em um universo com o homem sucumbindo numa mesma matemática de números e capital. O roteiro foi escrito em quatro dias, o que mais que uma prova da genialidade de Herzog, indica na verdade que para muitos dos grandes diretores um filme vai se fazendo mesmo enquanto ele é filmado, com o script servindo como linhas gerais para o que se está sendo feito (o que não serve para os que submetem um filme acima de tudo ao trabalho de roteiro). Portanto, quem esperar historinha em Stroszek vai quebrar a cara. O filme é muito lento, se desenvolvendo em situações em torno dos três personagens, entre a esperança e a desesperança, a alienação e o sonho. As paisagens gélidas também dão o tom de todo o filme.

Não é dos filmes mais empolgantes de Herzog, porém se revela dos melhores com sua sequência final. Não somente pelo momento em si, mas pelo que ele ilumina (e completa) tudo o que veio antes, no que o filme tem de circular em sua estrutura, de um movimento constantemente girando ao redor de si mesmo sem sair do lugar. É quando Stroszek é tomado de grande emoção. Herzog considera esta a melhor cena que ele já filmou, dizendo se tratar de uma metáfora (o que é bem óbvio), mas sem exatamente saber do quê, o que por sua vez só expande o sentido que ela pode ter sem encerrá-la num único significado. O Joy Division citaria essa cena em diversas faixas que compõem o álbum póstumo “Still”, lançado em 1981 (aliás, impossível não mencionar que é o famoso filme que Ian Curtis reviu no dia em que se suicidou, inclusive às vésperas da primeira turnê da banda nos Estados Unidos, o que tem muito a dizer com a situação retratada no filme de Herzog). Se faz pensar melhor no filme como um todo, por outro lado não saberia dizer se nos leva a decidir tão convictamente revê-lo inteiro para sua melhor compreensão (e apreciação). Ai vai depender do interesse de cada um.

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O Enigma de Kaspar Hauser (Werner Herzog, 1974)

Por Kênia Freitas

O que é um ser humano? Essa parece ser a questão central de Herzog em O Enigma de Kaspar Hauser. No início do filme vemos um jovem acorrentado em um porão. O seu único contato social é com um homem que o alimenta e em determinado momento o ensina a escrever o seu nome: Kaspar Hauser. Um dia esse mesmo homem misterioso leva Kaspar até a cidade de Nuremberg deixando-o plantado na praça da cidade com uma carta na mão, que explica brevemente a história do rapaz e o oferece como voluntário à cavalaria.

A figura causa um estranhamento imediato, o seu corpo mal consegue se manter ereto, Kaspar não responde às perguntas dos moradores e autoridades da cidade — logo todos percebem que ele não sabe falar e não faz ideia alguma do que seja a vida em sociedade. De caso pitoresco à aberração, ele não se encaixa naquela sociedade do século XIX e, sobretudo, à sua definição do que seria um indivíduo. A inventividade de Herzog em filmar essa história verídica de uma criança selvagem está em por em questão nossas convenções sociais e as fronteiras que estas criam entre ilusão e realidade, falso e verdadeiro — temas centrais no cinema do diretor alemão.

Nesse sentido, um dos personagens fundamentais da trama é o escrivão que, desde o momento em que Kaspar é encontrado até a dissecação do seu cérebro após seu assassinato, registrava minuciosamente a vida dessa figura pitoresca. Mas o próprio escrivão e o seu ofício nos soam aberrantes em sua obsessão de documentar, tornando evidente que entre todas as instituições sociais do século XIX uma das mais importantes era a discursiva. O ser humano era mais do que um corpo científico, uma fé religiosa e um conceito filosófico, mas também a interseção de todos esses discursos pelo registro oficial.

Mais do que um ser sem linguagem ou convívio social, o Kaspar de Herzog é um indivíduo sem instituições e suas convenções. E, quando inserido nelas abruptamente, um ser no qual as suas relações de poder e força não repercutiam. É o que o diretor nos mostra repetidamente durante todo o processo de adaptação do personagem à sociedade. Kaspar é confrontado pela lógica da Igreja, do Estado (que o transforma em espetáculo), da filosofia e da aristocracia. E, em cada um desses momentos, sua inadequação é gritante. Ele possui uma lógica de pensamento que não se enquadra. A música, os sonhos, a poesia e a natureza são as linhas de fuga que tornam a sua existência suportável para ele mesmo. E a violência de um assassinato a facadas parece ser a única forma de, de fato, penetrá-lo.

Como formula Michel Foucault no seu belo texto, A vida dos homens infames, o registro incessante da vida do homem comum por meio do processo de documentação oficial acaba por gerar uma nova relação entre o poder, o discurso e o cotidiano: uma nova mise en scène. E assim cabe a Kaspar, a cada momento, um papel diferente: primeiro, o prisioneiro com o qual o Estado não sabe o que fazer; em seguida, a atração de circo e, por fim, o pupilo esforçado de um pensador. Obviamente, nenhum desses papéis o convém.

E, nesse momento derradeiro de sua trajetória, o personagem começa a finalmente a compreender as engrenagens daquela sociedade e as suas representações. Sua recusa a qualquer mise en scène é então ainda maior. Kaspar, que no período de encarceramento não distinguia entre sonho e realidade, afirma ao seu tutor que sua atividade preferida é a do sonho. Como muitos dos personagens de Herzog, ele está no domínio do delírio e da ilusão.

Domínio que aos poucos contagia o filme. Somos levados por Herzog para as imagens do sonho recorrente do personagem, da sua história inacabada — um deserto com uma caravana perdida guiada por um homem cego. Tanto quanto Kaspar, somos inadequados aquele tempo e as suas instituições, isso é o que nos grita o filme o tempo inteiro. Nós também preferimos o cinema do delírio, que assim como seu personagem, Herzog pouco pode desenvolver nessa história. Resta-nos a figura cômica do escrivão e das suas certezas discursivas, tão risíveis no prisma das nossas novas convenções — último truque do diretor, que por fim põe em joga nossa própria ignorância. Se Herzog não abandona uma questão ao longo de sua filmografia é a de que: o que é um ser humano e quais são os seus limites.

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O Grande Êxtase do Escultor Steiner (Werner Herzog, 1974)

Por Daniel Dalpizzolo

“Eu queria estar sozinho no mundo. Apenas eu, Steiner, e mais nenhuma coisa viva. Nenhum sol, nenhuma cultura. Eu, nu sobre uma pedra alta… E então não sentiria mais medo”.

Já no plano de abertura, Werner Herzog não se inibe de denunciar o fascínio com que filma o personagem título de O Grande Êxtase do Escultor Steiner. Quando o corpo do esquiador Walter Steiner decola pela rampa de neve e é suspenso no ar para o salto, o diretor evidencia não apenas a condição de documentarista para a qual foi contratado, mas sobretudo a de um admirador. Neste instante, a opção pelo slow motion dilata a relação entre tempo e ação e transforma o voo de Steiner em um momento de êxtase não só para o personagem, cuja dedicação ao esporte que pratica é notável de uma maneira inusual, mas para o próprio filme — e também para o diretor, que entre tantas maneiras possíveis para iniciá-lo opta justamente por entregar, antes mesmo da aparição do título, a imagem-chave de sua narrativa: o corpo de Steiner rompendo as cores do céu, flutuando há metros do solo. A música de Popul Vuh, grupo com participação fundamental nas trilhas-sonoras de Herzog durante as décadas de 70/80, complementa esta breve e imersiva composição sensorial que, em um plano de 40 segundos, produz uma eficiente síntese da força e dos interesses deste espetacular documentário.

Steiner é o primeiro trabalho de Herzog em média-metragens documentais para a televisão, precursor de algumas operações que se tornariam corriqueiras na metodologia adotada pelo cineasta para seus trabalhos de documentarismo — tanto na televisão quanto no cinema. A mais notável, naturalmente, é a presença de Herzog à frente das câmeras e na trilha de narração extra-diegética, transformando a si e seu contato com o objeto filmado em elementos narrativos imprescindíveis para atingir a expressividade almejada — procedimento que aqui, curiosamente, fora imposto pela produtora de televisão que o contratou, mas que se torna fundamental para a potência do filme. Com esta característica, a partir de O Grande Êxtase…, Herzog construiria toda uma linha de documentários pela qual busca registrar pessoas reais que se aproximem da idiossincrasia de alguns personagens representados por sua ficção, especialmente aqueles interpretados por Klaus Kinski; homens que vivem sob um híbrido de loucura, sonho e obstinação, e que sustentam o estereótipo de personagem herzoguiano, não raramente apropriado como definição instransponível de seu cinema — apesar de representar com mais justiça um certo e fundamental recorte dele.

A estrutura de O Grande Êxtase… evoca uma grande reportagem de televisão sobre a tentativa de Steiner, carpinteiro alemão que produz seus próprios esquis e fora duas vezes campeão mundial de sky-flying, de quebrar o recorde mundial do esporte. Para acompanhar o treinamento e a prova em que o atleta desejava obter essa façanha, Herzog instala equipamentos cinematográficos de última geração e, assim, registra em mais de um ângulo o trajeto que Steiner fará no ar, desde o início do salto até que seu corpo toque novamente a superfície da neve. Percebemos não se tratar de um documentário tradicional quando, em uma das primeiras cenas, o próprio diretor, posicionado exatamente como um repórter de televisão à frente da câmera, nos oferece uma explicação sobre o método utilizado para registrar a ação, detalhando o modelo e a posição das câmeras em torno da pista. Alguns minutos depois, já durante o treinamento de Steiner, a presença de Herzog na narrativa justifica-se definitivamente em um momento emblemático: do alto de um pico, o repórter-cineasta acompanha uma queda brusca do esportista durante o pouso, ainda sem detalhes sobre a violência e as consequências do impacto do corpo na neve. A nós, espectadores, resta apenas a opção de acompanharmos sua reação atônita ao acidente, quando Steiner salta mais de 10 metros além do calculado e quase atenta contra a própria vida.

Impossível não relembrar, neste instante, de outro momento emblemático de um dos documentários mais recentes de Herzog, O Homem Urso, quando o próprio Herzog também é filmado reagindo a um trágico acidente de seu personagem; no caso, a cena em que reproduz e ouve pela primeira vez o áudio que registra a morte de Timothy Treadwell, personagem central do filme, um ecologista que abandona a sociedade ocidental civilizada para viver ao lado dos ursos do Alaska por mais de dez anos — até ser morto por um deles. Herzog, a partir desta cena de Steiner, abre caminho para uma série de produções que atingiria seu ápice com O Homem Urso, na qual, mais que a representação destas figuras estereotípicas acolhidas por seu cinema, nos convida a acompanhar uma relação quase simbiótica entre artista e objeto documentado, desafiando em certas situações os limites entre um e outro. Embora encarada por alguns com certa desconfiança, especialmente pela manipulação evidente do diretor sobre seus temas e personagens, há de se convir que esta diluição entre documentário e criação gera um interessante fascínio ao seu cinema: um fascínio que, para além do tema registrado em tela, nasce da consciência de que estas narrativas ganham vida quando gestadas a partir de Herzog, e não meramente por Herzog.

É a partir de Herzog, e com o aproveitamento eficiente das suas opções estéticas — o slow motion, a trilha-sonora ousada, a estrutura metalinguística —, que a incidentalidade poética dos voos de Steiner se amplifica, e é nestas imagens tão simbólicas para o cinema do diretor — cujos desafios dos homens às suas próprias forças, à morte e aos limites da natureza terrestre sempre foram interesses muito caros — que o filme ganha contornos distintos dos que provavelmente possuiria nas mãos de qualquer outro autor. Acompanhar as imagens de Steiner em busca do salto perfeito é acompanhar também o esforço de Herzog para conceber um filme capaz de registrar na celuloide a essência deste homem, de transformar sua idiossincrasia em lirismo e seus pequenos voos em uma libertação do corpo à gravidade da Terra, atendendo enfim ao sonho atribuído ao personagem durante o filme — apesar do próprio Steiner, o homem, sofrer intervenções pontuais de Herzog na construção deste mito, como a imposição da cartela final, que apresenta uma citação supostamente dita por dele, mas que fora forjada por Herzog para sustentar a força do mito e do que desejaria expressar através dele.

Steiner fala ao espectador do seu grande desejo de poder voar — um voo livre, como o de um pássaro— quase como um objetivo possível, apesar da sua evidente limitação biológica. E, se o grande êxtase do esquiador é este de estar suspenso ao ar, com o corpo flutuando solitariamente na direção do vento, o filme de Herzog se encerra acima de tudo como uma liberdade poética ofertada pelo diretor à existência de seu próprio personagem. Preservado o registro de seu salto através do cinema, Steiner pode, nos recortes de vida que pulsam pelos planos de O Grande Extase…, permanecer voando para sempre.

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Aguirre, a Cólera dos Deuses (Werner Herzog, 1972)

Por Kênia Freitas

Aguirre é um desses filmes em que Werner Herzog condensa de forma sublime o melhor do seu cinema – e desse mistério que é a construção de um filme. Temos já, mesmo se tratando de um filme na primeira década de sua carreira, uma temática ao qual o diretor alemão voltará recorrentemente ao longo da sua obra: o poder da natureza em disputa com a potência do homem, a força esmagadora do ambiente contra o desejo de conquista desenfreado do ser humano.

Nessa expedição colonialista do século XVI, Herzog coloca em relação o ser humano como uma força de racionalidade, ou pelo menos, racionalizante (mesmo que de abstrações, ambições e delírios) e a natureza como o incomensurável e inconquistável (as águas do rio que não se deixam navegar, a espessura da floresta impenetrável, o nevoeiro que não permite enxergar e as montanhas ingremes dificilmente escaladas). Nesse sentido, o diretor coloca em questão esse que foi um dos grandes projetos da modernidade (e do seu cinema): a natureza como essa força intangível a ser superada pelo ser humano – e que as grandes navegações, já traziam em seu germe. Uma superação quase nunca possível e, ainda assim, almejada.

É assim que encontramos a expedição liderada pelo conquistador espanhol Gonzalo Pizarro em busca de Eldorado, a lendária cidade de ouro no Peru. A grandiosidade da empreitada esbarra em diversos problemas estruturais do grupo em plena floresta amazônica do século XVI. Nobres, soldados, escravos, um padre e duas mulheres são uma comitiva pesada demais para conseguirem avançar no terreno desconhecido e inóspito. A densidade da floresta toma conta dos planos. A umidade do rio turbulento engole as cenas. Os longos planos de espera e contemplação diante daquele ambiente exuberante materializam a impotência daqueles homens e mulheres frente à natureza e ao seu destino.

Diante da impossibilidade de seguir nessas condições, o grupo se divide em uma comitiva de cerca de 40 homens. Mas o subgrupo chefiado por Don Pedro Urzúa logo é tomado de ataque por Dom Lope de Aguirre. A loucura da missão materializa-se então na loucura de Aguirre, interpretado genialmente por Klaus Kinski. Esse filme marca, aliás, a primeira parceria conturbada entre o ator e o diretor – que ainda farão juntos Nosferatu (1979), Fitzcarraldo (1982), entre outros filmes do cineasta.

Seguimos então nessa expedição rumo ao nada – rumo à loucura. Loucura de Aguirre, de Herzog, de Kinski, da expedição, da natureza e do filme. Aos poucos, os movimentos aberrantes da câmera tornam-se comuns – em uma espécie de contaminação de humores. Da calmaria entediante com seus longos planos, a câmera também enlouquece, se desequilibra, dança. A cena da cabeça cortada que canta até dez nos instala definitivamente na insanidade que indiscerne os planos do filme – trata-se da loucura de quem, afinal?

Mas a loucura que obceca Herzog estava também na própria estrutura daquele grupo: nobremente protocolar em plena terra de ninguém. “Eu solenemente tomo posse dessas terras, seis vezes maior do que a Espanha” – declara Don Fernando de Guzmán ao se tornar rei da terra imaginária de Eldorado, em um momento em que o grupo está de fato perdido. Nesse ponto, o homem como potência racionalizante já perdeu a batalha contra o incomensurável. Estamos no terreno da pura abstração materializada em um quase realismo fantástico – mas na austeridade do cinema de Herzog. Afinal, o que é um trono senão madeira coberta de veludo? Como manter o protocolo aristocrata em uma terra sem leis – ou submetida fortemente as leis da natureza? Qual a validade de um julgamento do qual já se sabe a sentença? Ou de uma insurreição que leva do nada à coisa alguma? É o banheiro improvisado dentro da balsa, ela também já improvisada, que ressalta não a civilidade do humano, mas o absurdo de suas crenças, culturas e, sobretudo, dos seus códigos. São as mãos e bocas esfomeadas que precisam esperar o rei de terra alguma se alimentar para devorarem loucamente os seus restos.

Como se contaminado pela umidade do cenário, aos poucos o filme se transforma. Os longos planos silenciosos mais do que a espera passam a representar um medo invisível, uma inevitabilidade da catástrofe final que se prolonga arrastadamente. A mesma circularidade do caminho torna-se a da câmera. Na disputa entre poder e potência, os homens são completamente esmagados, em um processo gradativo de engolimento.  Realidade e ilusão, por fim, se misturam, pois já não há ponto de vista neutro e não enlouquecido.

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Terra do Silêncio e da Escuridão (Werner Herzog, 1971)

Por Kênia Freitas

O documentário narra a história da cego-surda Fini Straubinger. Fini, que no filme já é uma senhora idosa, sofreu um acidente aos nove anos — caindo da escada do terceiro para o segundo andar e sofrendo um grande impacto nas costas e na cabeça. Desde então, ela passou a sentir uma constante dor e a perder a visão aos poucos. Aos 15 anos, a garota passa a ser obrigada a ficar na cama direto. E, três anos depois, começou a ter problemas para escutar. Sem um tratamento específico, Fini ficou na cama por quase 30 anos – até ser “acordada” e passar a atuar na instrução e cuidado de outros deficientes auditivo e visuais.

Sim, esse poderia ser um documentário apelativo e piegas, no qual a deficiência física dos seus personagens fosse apenas um caminho simples para o sentimentalismo fácil. Por sorte, as marcas do cinema de Werner Herzog levam essa história para outras dimensões. Mais do que um filme sobre a sofrida trajetória dessa mulher excepcional, da quase vegetação ao ativismo constante na luta pelo tratamento de outros cego-surdos por toda a Alemanha, o diretor faz também um filme sobre o tato como experiência. Assim, tocar o mundo (os animais, as plantas, o avião) e tocar aos outros (os toques das mãos como forma de comunicação e de contato privilegiado) passam a ser questões vitais para a câmera do diretor. A sua âncora é a presença de Fini (do seu corpo e acima de tudo da sua voz) e o seu guia é a maneira da personagem lidar com o mundo.

Uma escolha nem sempre bem sucedida em termos fílmicos, porque o cinema acaba sendo um dispositivo que não contempla o assunto, pois não é tátil — é justamente sonoro e visual — não fazendo parte daquele universo. Apesar dessas dificuldades de apropriação e tradução, Herzog consegue fazer um mergulho nesse mundo que não é exatamente triste e nem piedoso, mas bastante desconcertante.

É a própria Fini quem nos diz que a terra da escuridão e do silêncio é multicolorida e barulhenta, ao contrário do que poderíamos supor, mas também é extremamente solitária. Por isso, o uso constante do toque como uma compensação, inclusive como uma espécie de língua construída pelo deslizamento dos dedos na superfície da mão. “Quando você solta a minha mão, é como se estivéssemos a quilômetros de distância”, é o tipo da explicação de Fini que nos faz compreender o quão pouco poderemos saber sobre o seu mundo e a sua existência. Distância que se torna ainda mais pulsante com a experiência fílmica.

Para além das imagens e sons que precisam se converter em vivência tátil — o que Herzog consegue resolver com a presença marcante de Fini, sobretudo com a voz over compartilhada entre ela e o diretor na narração do filme —, é preciso lidar com outras questões conceituais. Para começar, cego-surdos de nascença têm dificuldades de aprender ideias abstratas.

É assim que encontramos em determinado momento das viagens de Fini um rapaz que viveu até os 22 anos sem ser “acordado”: cego e surdo de nascença com o contato social restrito ao seu pai. Estamos no terreno do quase não-humano, questão tão cara em diversos filmes de Herzog. A imagem daquele corpo isolado se debatendo dentro de si nos remete imediatamente às cenas inicias do O Enigma de Kaspar Hauser (1974), filme que o diretor viria a realizar três anos depois.

Um pouco como Hauser e os acorrentados do Mito da Caverna de Platão, cada uma dessas pessoas precisam ser trazidas à luz. Mas nesse caso, uma luz que só pode ser compartilhada pelo toque e não pelas imagens. Temos, então, um documentário que não funciona como um espelho ou uma troca, pois se a imagem que Herzog captura de Fini — e tantos outros cego-surdos – nos toca profundamente, nós continuaremos sempre a quilômetros de distância.

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Fata Morgana (Werner Herzog, 1971)

Por Daniel Dalpizzolo

Fata Morgana inaugura uma fórmula que seria reaproveitada por Herzog em filmes como Lições das Trevas e Além do Infinito Azul — e representa também um breve índice das intenções do diretor no documentário, e da liberdade com que ele costuma manipular suas narrativas dentro do gênero. A partir de imagens registradas na região do Saara, na África, o cineasta compõe uma aventura impressionista que se desprende da veracidade intrínseca ao registro documental para, com reforço da narração em off, reconfigurar suas imagens sob a esfinge de uma ficção-científica distópica, originando uma antologia de miragens que nos deixa a sensação de estarmos o tempo todo observando nosso próprio mundo sob a ótica de um ser alienígena — num contato primário cheio de mistérios e obstáculos cognitivos, propícios ao imediato estranhamento.

É a partir deste radical desafio estético que Herzog elabora seu primeiro ensaio sobre a natureza exploradora e dominante do homem — não apenas em relação ao mundo em que vive, o qual desafia e depreda constantemente, mas também entre sua própria espécie, segmentada por traçados territoriais, culturas, línguas e crenças distintas. Fata Morgana traz em seus planos do continente africano pequenos fragmentos do nosso mundo contemporâneo, através de indícios da opressão vivida pelos povos africanos sob a ação do colonialismo europeu — apresentada simbolicamente logo nas primeiras imagens, formadas por diferentes takes da aterrisagem de um mesmo avião branco em um aeroporto do deserto, fundindo-se mais à paisagem a cada corte com a abstração provocada pela massa de calor que emana do solo, até torná-lo um elemento indissolúvel do cenário — e da miséria que se alastrou pelo continente após os conflitos.

São, em suma, recortes da paisagem árida do deserto que preenchem o mais amplo dos três capítulos em que se estrutura o filme, intitulado ironicamente como Criação. Embora seja imprimido um significado controverso à superfície destas imagens (acompanhadas por uma narração de trechos do Popol Vuh, livro que retrata o mito maia sobre a criação do mundo), Fata Morgana parte de um comentário desiludido sobre os caminhos percorridos pelo homem nesta jornada muitas vezes desenfreada – e não raramente nociva – de desenvolvimento, especialmente na sociedade pós-industrial, refém da produção em massa, da constante evolução tecnológica, da ambição pelo poder e pela dominação, do desejo de posse irrefreável. Se o cinema de Herzog costuma olhar para a natureza terrestre como uma estrutura selvagem, bela e ao mesmo tempo ameaçadora, em Fata Morgana – ou Lições das Trevas, ou O Infinito Azul, ou muitos outros filmes – também não deixa de observar que a hostilidade pode estar presente em igual medida tanto nela quanto nos próprios homens. Se seu cinema é geralmente lembrado por refugiar-se em personagens outsiders, loucos e sonhadores – características também observadas no próprio cineasta -, cujas idiossincrasias não costumam ser facilmente aceitas pelos padrões sociais, Herzog também permite ao espectador um contato com sua visão sobre a estrutura desta sociedade da qual eles tendem a se segregar — seja para viver com os ursos, como o Timothy Treadwell de O Homem Urso, ou dirigir patrolas na Antártida, como o filósofo entrevistado logo ao início de Encontros no Fim do Mundo.

Em Fata Morgana, especificamente, Herzog comunica este olhar desiludido para nossa realidade através de um híbrido entre criação e destruição, civilização e ruína, os homens e o espaço que os situa no tempo. A narrativa evoca um filme de ficção-científica justamente como forma de agregar um sentido duplo ao espaço filmado. O deserto do Saara, com sua imensidão de colinas e planícies, é a representação da natureza crua da terra como palco possível tanto para a vida quanto para a morte — dependendo muito, e especialmente, de como lidamos com ela. Em muitos dos longos travellings do filme, seguindo esta lógica, o deserto não se apresenta sozinho. Acompanham-no os rastros de morte e ruína, representados não apenas pelas carcaças de animais estiradas na areia, mas por signos que evidenciam a passagem do homem pelo local em um sentido pouco harmonioso — sabe-se, através de subversões, que estes vestígios não representam o desenvolvimento sustentável e equilibrado, mas sim os conflitos bélicos ocorridos no continente, de forma semelhante a tantas outras partes do mundo.

A criação e a destruição, mais do que justapostas, são fundidas em uma mesma percepção, apropriada pelo filme através desta ótica peculiar de quem olha para a realidade com um misto de estranhamento e miopia, como que em contato com uma série de miragens (por sinal, tradução do termo Fata Morgana). Herzog condensa assim a passagem dos homens pela terra — ou, pelo menos, a dos ainda capazes de sentir alguma indignação. E dela parte para o Paraíso, como reflete o título do segundo dos três capítulos do longa (que se encerra com outro mais curto, intitulado Idade Dourada), quando o filme entorta de vez em seu radicalismo estético, intercalando canções românticas do cantor folk canadense Leonard Cohen com frases e reflexões cada vez mais desiludidas. “No paraíso, os homens chegam mortos ao mundo”, é o que salienta a narração em um dos momentos derradeiros da apoteose herzoguiana de Fata Morgana — e é basicamente esta a sensação que sobrevive da experiência com o filme. Se alguns anos depois, em Lições das Trevas, o alemão colocaria o homem em contato com o apocalipse na terra, aqui, em um dos seus primeiros longas, já nos conduz a um passo mais próximo dele, deixando-nos à deriva, sem proteção e despojado de esperança, à espera do fim do mundo.

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Handicapped Future (Werner Herzog, 1971)

Por Fernando Mendonça

Se Werner Herzog é um dos diretores mais lembrados na procura por abordagens que o cinema tenha feito sobre a deficiência física é porque, além da tematização do assunto recorrente em vários de seus filmes, a dificuldade imposta sobre o corpo humano e a manutenção da sobrevivência sempre foram motivações centrais da carreira em questão. Handicapped Future, filme encomenda de caráter institucional, por mais que prescinda das investigações estéticas típicas ao cineasta, não deixa de representar um ponto nevrálgico de sua produção (em particular a dos anos 70), relacionado ao estranhamento dos seres que superabundam no imaginário fílmico por ele construído, de Também os Anões Começaram Pequenos (1970) a Terra do Silêncio e da Escuridão (1971), de Kaspar Hauser (1974) a Stroszek (1977) — lembrada a excelência do trabalho conjunto entre Herzog e Bruno S. nestes últimos filmes, exemplos do que podemos chamar de uma ‘deficiência metafísica’ a ser refletida pelo gesto do diretor, em diluir as limitações naturais do ator ao corpo dramático narrativo.

Filme que antecipa e, segundo Herzog, justifica a existência de Terra do Silêncio e da Escuridão, o média-metragem em que aqui nos detemos guarda forte proximidade com seu trabalho posterior, especialmente na figura da primeira garotinha que é entrevistada. Dentre suas declarações, ela revela que só consegue sonhar de olhos abertos, que suas noites são sempre solitárias e, conseqüentemente, desprovidas de qualquer movimento onírico. As dimensões da visibilidade aí colocadas, futuramente prosseguidas pela mulher cega que conduzirá Terra do Silêncio, concentram uma série de problemas continuamente revisitados por Herzog dentro do cinema. A inadequação dos corpos no mundo que todos os seus filmes — a exceção nos parece impossível — refletem, condicionada a limites anatômicos ou mentais de ordem involuntária, pois uma quase violação ao ser, é colocada em cena por Herzog com o intuito de sempre transformar sua condição primeira, pela materialidade do cinema, numa nova realidade física. Assim, a menina que fala de seus sonhos (da vontade de andar, por exemplo) para a câmera é alguém que concretiza seus desejos na superfície da imagem. Não se trata de ficção, mas de uma instauração do movimento pela sensibilidade de Herzog em concretizar a voz e o anseio de seus entrevistados.

Abrir os olhos para sonhar, como bem sabemos, não deixa de ser um reflexo do princípio cinematográfico que funde tempos e realidades dentro de uma sucessão de imagens. Seja a menina de Handicapped Future ou cada um dos demais que aparecem no filme, sejam os personagens dos outros títulos que citamos pela relação a este trabalho, sejam as crianças que brincam com amigos imaginários em outro curta fundamental do diretor (Ninguém Quer Brincar Comigo, 1976), cada um destes experimenta na tela aquele fragmento de tempo que as pálpebras levam para saírem da escuridão e permitirem o contato entre o olhar e o mundo. São pessoas, personagens e situações que manifestam a recorrente potência do cinema — não só de Herzog, mas especialmente nele — em fazer vir à luz, emergir do caos a ordem. Cinema que resiste ao fechar dos olhos. E por isso, sonha.

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Também os Anões Começaram Pequenos (Werner Herzog, 1970)

Por Vlademir Lazo

O mundo sob o ponto de vista dos anões. Em seu segundo longa de ficção, Werner Herzog reduz seu universo a um reformatório constituído somente por pigmeus, todos com comportamento semelhantes à delinquentes, retardados ou desajustados sociais. Num ambiente com ares de colônia penal isolada, em resposta a um simples pedido negado pelo pedagogo da instituição, o grupo de internos esboça uma fuga. Enquanto um deles é pego pelo diretor-responsável, os demais iniciam uma rebelião, tomando conta do local e confinando o diretor (o próprio pedagogo) num canto do seu gabinete.

A partir de então Também os Anões Começaram Pequenos se converte na maior coleção de bizarrices e estripulias na filmografia de Herzog, num processo orgíaco de vandalismo e irresponsabilidade, um ciclo de violência contra animais ou objetos da instituição (ou de uns contra os outros), instaurando um mundo sem regras ou ordem, entre o grotesco e a crueldade, o choque e o ridículo.

Vemos os anões rebeldes numa procissão em que carregam um macaco crucificado por eles próprios. Organizam rinhas de galos para testemunharem os animais se digladiando até a morte. E degolam galinhas e as jogam pelo ar, ou arremessam-nas através dos vidros das janelas. Uma sequência se repete ao longo do filme: a caminhonete girando perpetuamente em círculos, sem que ninguém esteja em seu volante, como que a representar um mundo sem direção e controle que anda ao redor apenas de si próprio, sem recuar ou evoluir além de seus limites.

O filme inteiro se esmera em sequências de destruição, nas quais a ação descontrolada do elenco de anões causou o atropelamento real de um deles, o mesmo que se incendiaria numa das cenas com fogo, sendo salvo pelo próprio Herzog que se atirou em cima dele. Conta-se inclusive que Herzog prometeu aos anões que pularia num campo de cactos se eles conseguissem fazer o filme. Promessa cumprida pelo cineasta.

As coisas não param por ai: alguns anões cegos que mal conseguem se defender são sacaneados e vilipendiados pelos demais. Cortam as linhas telefônicas, apedrejam por todos os lados. Fazem guerra de comida e flores são regadas com gasolina e incendiadas. E escolhem entre eles próprios os dois mais frágeis e pequenos e forçam-nos a um casamento e noite de núpcias à vista de todos, quando o noivo é ridicularizado, pois muito velho, pequeno e débil não consegue subir para a cama. Tenta escalar, e subir em pilha de revistas masculinas. Até que terminam por folhear as revistas pornôs.

A câmera de Herzog também registra e incorpora ao filme momentos que não constavam no roteiro, mas ocorreram de imprevisto durante as filmagens e o cineasta não pôde deixá-los de fora: o canibalismo das galinhas, que devoram e carregam ratos em seus bicos, e perseguem uma outra de sua espécie (já sem uma das patas) até a morte. Ou os filhotinhos de porcos ainda mamando na mãe que morrera, com os anões ao redor.

As acusações de blasfêmia e de animais explorados fizeram com que Também os Anões Começaram Pequenos fosse banido em alguns paises e pouco exibido na época do seu lançamento. Rodado numa das ilhas Canária (no mesmo local onde Herzog filmaria no mesmo período alguns documentários, entre os quais Fata Morgana), numa paisagem árida que parece afastada do mundo (o que é reforçado pela textura da fotografia em preto-e-branco), faz pensar num encontro de um Zero em Comportamento (1933) trocando a poesia do filme anárquico de Jean Vigo pelas aberrações de Freaks (1932), de Tod Browning.

Embora não seja genial como o de Browning, o filme de Herzog vai além ao apresentar todos os seus personagens como diminutos, feios, esquisitos e aberrantes, alguns quase com a aparência de deformados. O universo é somente deles, e não há o contraponto para impedi-los de se destruírem a si próprios. O alemão com que vociferam suas falas, e as risadas que lançam, os tornam mais monstruosos, ao mesmo tempo em que acentua o que possuem de engraçados.

Não deve haver filme de Werner Herzog que provoque mais gargalhada (ainda que sempre com uma carga de sobressalto) do que essa comédia de humor negro do começo de sua carreira, sem que ele se reduza somente a uma piada em cima de um ponto de partida bastante bizarro. Revê-lo, entretanto, faz com que ele não resulte num impacto semelhante ao da descoberta. Sua loucura toda provoca um afastamento, ficando aquela coisa incessante que só desperta interesse de longe. Mas o espanto jamais cessa defronte de suas imagens. No desfecho, justamente o que deveria ser o mais lúcido de todos os personagens joga a pá de cal e comete as loucuras finais que coroam Também os Anões Começaram Pequenos como o trabalho mais inclassificável de Werner Herzog.

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The Flying Doctors of East Africa (Werner Herzog, 1969)

Por Robson Galluci 

Nos créditos iniciais, The Flying Doctors of East Africa se apresenta como “um relatório de Werner Herzog”, e é de fato um dos documentários formalmente mais convencionais da carreira do diretor. Não encontramos aqui as imagens surreais e pouco familiares da natureza, a narração impressionista e dada a evitar quaisquer referências históricas concretas, a sensação de que o que nos pareceria tão comum e banal há minutos atrás agora exibe diante de nosso olhar uma face desconhecida e talvez mesmo incompreensível. Pelo contrário: o filme é muito econômico o tempo todo, direto, sem os desvios de foco e arroubos poéticos habituais em outras não-ficções de Herzog, sempre buscando a imagem exata, o corte preciso onde necessário para que o autodenominado relatório seja vítima do mínimo ruído possível, para que haja ambiguidades apenas onde isso é inevitável, em suma, para que a situação muito concreta retratada — os esforços do Flying Doctors Service of East Africa (existente até hoje, com o nome de African Medical and Research Foundation) para levar tratamento médico adequado a regiões remotas do leste africano — seja apreendida pelo espectador da maneira mais “pura” e menos mediada que se conseguir.

O ruído que Herzog busca evitar na forma do filme acaba sendo, no entanto, o grande tema de The Flying Doctors of East Africa, ainda que ele tente dar um tratamento mais generalizado ao material de que dispõe. Assim, embora pontuadas por depoimentos impressionantes a respeito do tipo de trabalho médico que pode se mostrar necessário (e a entrevista com um cirurgião plástico a respeito da operação feita em uma mulher atacada por uma hiena é particularmente marcante), ou momentos de estranhamento cultural mais tipicamente herzoguiano como a recusa dos massai a subir escadas, as cenas que sobressaem e formam o núcleo do filme envolvem justamente os problemas sérios de comunicação entre os médicos (em sua maioria europeus) e os africanos, problemas que podem decidir a vida ou a morte dos pacientes — Herzog chega a presenciar duas mortes causadas pelo fato de as famílias fornecerem alimentos ou água a feridos, com a crença de que isso é necessário para que se fortaleçam.

Mas os percalços de comunicação não se restringem ao anedótico, como pode parecer que ocorrerá após alguns depoimentos e comentários de Herzog a respeito da dificuldade do trabalho. Não demora muito e vemos um garoto que, rejeitado pelos pais por ter sido levado para uma área urbana onde recebeu tratamento médico (o motivo para a rejeição desconhecido), foi entregue para a adoção e se recusa a falar, e brinca apenas com as crianças surdas-mudas do abrigo para onde foi levado (lembremos que em breve o diretor filmaria Terra do Silêncio e da Escuridão), trazendo à questão outras camadas, inclusive a da identidade. É quando a faceta de relatório começa a ceder ao Herzog que surgiria em Fata Morgana (1971), já perseguido pelas mesmas dúvidas e inquietações, dando-se conta de que o que desconhecemos vai muito além do que podemos pensar; desconhecemos o próprio mundo.

Essa tomada de consciência acontece quando se descobre que nem mesmo desenhos figurativos são ferramentas universais de comunicação: a ilustração de um olho não é entendida por todos como um olho — alguns identificam um peixe ou um sol. Numa tomada de posição súbita (diante dos quarenta minutos de reportagem razoavelmente desapaixonada que a antecederam), Herzog comenta como nossa inépcia é tão grande que não alcançamos sequer uma comunicação básica depois de séculos de domínio colonial. Grande parte de sua obra subsequente terá um ponto de partida nessa inépcia, que pode mesmo ser estendida à falsa sensação de familiaridade construída após séculos de exploração e conquista da natureza, sensação essa que Herzog destrói filme após filme; e investigará em que circunstâncias, se elas existem, os homens podem conhecer verdadeiramente a si mesmos e o universo.

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Sinais de Vida (Werner Herzog, 1968)

Por Fernando Mendonça

O primeiro longa-metragem de Werner Herzog, plenamente inserido no espírito que dominava o cinema alemão dos anos 60 (o novo cinema, estabelecido desde 1962, através do Manifesto de Oberhausen), é trabalho de Modernidade latente, fruto de um honesto zeitgeist que hoje podemos avaliar como marco definidor não só de um movimento nacional, mas de uma trajetória particular com o cinema, um novo olhar. Em Sinais de Vida, Herzog não economizou na entrelinha, carregando suas imagens de ambigüidade e sarcasmo, além de sinalizar que sua chegada na arte não trilharia caminhos que se distanciassem da resistência, fazendo de cada filme determinado retrato de inconformismo. Rejeição aos tempos moldados pelo homem, mas também sua subserviência, seu apego pela incontornável matéria.

Desdobramento direto de um pequeno filme que realizara no ano anterior (A Defesa sem Precedentes do Forte Deutschkretz, 1967), Sinais de Vida desenvolve-se sobre a ruína de quatro personagens que se refugiam, durante a guerra, num forte grego isolado e vazio. O soldado Stroszek (Peter Brogle), junto a sua esposa e outros dois soldados feridos, enraíza-se nesta dimensão do espaço como um caractere beckettiano, à espera do acontecimento porvir em tempo indeterminado. Tais circunstâncias, desoladoras pelo grau de sobrevivência forçada que evocam, são preenchidas por um movimento pautado pelo ócio, pela diluição das funções sociais em detrimento de certo conforto necessário à ininterrupta passagem dos dias. Um filme em que o aguardar se faz ato, em que o tempo escorre como fina areia pela imagem-ampulheta.

Assim como no curta de 67, em que quatro homens invadiam um castelo abandonado e se colocavam à espera de um ataque nunca concretizado, os indivíduos agora encarcerados não conseguem evitar o desapontamento pelo cessar bélico — à semelhança do que também veremos em O Deserto dos Tártaros (Valerio Zurlini, 1976). Enquanto aguardam os rumores de guerra que nunca chegam, eles procuram afazeres que motivem a permanência em seus corpos: pintam o forte, traduzem inscrições antigas, criam cabras, hipnotizam galinhas, inventam armadilhas para capturar baratas, tudo para impedir que a insanidade venha encontrar morada em seu meio.

Mas o inevitável não é coisa que se previne. E os primeiros sinais de que algo não está bem encaixado na rotina que estes seres criam, começam a aparecer. A ruptura definitiva dos níveis de consciência até então preservados por Stroszek, dá-se num cenário que é dos mais emblemáticos para o que compreendemos ser a representação moderna: numa vistoria pela erma região circundante, o soldado se depara com uma árida paisagem reservada para o funcionamento de moinhos de vento. Por meio de alguns cortes no jogo de campo e contracampo, Herzog conclui de uma vez por todas o caráter quixotesco de seu personagem, em planos que prefiguram o olhar do homem e a perspectiva dos moinhos, instaurando a crise que o fará atirar contra eles e completando a loucura que desde o início do filme espreitara. Em decorrência, Stroszek assumirá seu colapso mental voltando-se contra os companheiros e tomando o controle do forte somente para si, assim como do armamento, das bombas e munições que nele estão guardadas; ameaçando implodir o local e, consequentemente, causando pânico em toda a cidade.

Ao contrário do que uma primeira impressão sobre Sinais de Vida possa causar, Herzog não pretendeu com seu filme entregar um mero dispositivo da loucura humana, do abalo típico e muito conhecido que as situações de guerra afligem a seus sobreviventes. É primeiramente no ato de sobreviver, não importam os meios, em que ele se concentra. Se há uma instabilidade no universo — deste filme, de todos os seus filmes — aqui delineado, ela está muito mais relacionada ao espaço do que aos seres que o ocupam. O absurdo e a violência que encerram os últimos atos de Stroszek — e isto vale para o protagonista de Sinais de Vida, assim como para o homônimo da obra-prima que o diretor assinou em 1977, como para o refugiado de O Sobrevivente (2006) — refletem uma deterioração que antes o afetou pelas condições de vida encontradas. Se a guerra não é concretizada, nós a criamos. Se as ameaças são deixadas de lado, nós as retomamos. Esta é a premissa de Herzog diante de um cinema que não pode mais aceitar a passividade das formas, que não pode responder ao calado mundo do séc. XX com um mesmo silêncio. De certa maneira, Sinais de Vida não deixa de ser um filme sobre a loucura da guerra; mas o louco é Herzog, e a guerra, todo o cinema que ele fará a partir daí.

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Breves apontamentos sobre alguns filmes em cartaz: L’Apollonide, Sleeping Beauty e Slovenian Girl

Acompanhar o circuito de estréias de nossos cinemas nos permite empreender uma relação entre alguns filmes que nos últimos cinco, seis meses foram lançados nas telas brasileiras tendo o tema da prostituição como eixo principal. Ainda que sejam filmes distintos, nem sempre coincidentes nos tons e personagens, ou na maneira de olhar/filmar o espaço, certos pontos em comum podem ser encontrados nos seus desejos de utilizarem-se das sagas bastante particulares de suas personagens femininas para refletir a maneira como o cinema enxerga valores (ou a falta de) no sexo e nas relações entre homens e mulheres quando pautadas pelos encontros amorosos (se é que podem ser chamados assim) quando estes são decorrentes do trabalho e obrigação.

Isso vale para L’Apollonide – Os Amores da Casa de Tolerância  − o melhor dos filmes em questão, diga-se −, Beleza Adormecida e Slovenian Girl, todos filmes relativamente comportados, em que os homens não raro são vistos como doentes ou pérfidos, e as prostitutas frustradas, com um clima pesado se impondo em cada um deles pela recorrência dos momentos mais sórdidos (um pouco menos em Beleza Adormecida, filme mais amorfo, e consequentemente mais inofensivo). Eles giram numa busca e consolidação de um desconforto muito grande pensados como um fim, não como um meio, e com um desconforto existindo de fora pra dentro, não ao contrário, como ocorre em obras de críticos implacáveis das relações sociais como as de um Claude Chabrol. Pensemos aqui, por exemplo, na empregada doméstica interpretada por Sandrine Bonnaire em Mulheres Diabólicas, encarada quase como um bicho perto de seus patrões, mas que vai se impondo como personagem tridimensional e com vontade própria, o que intensifica a plenitude de sua presença, sem que isso signifique escapar da tragédia, que afinal ocorre porque ela assim o quis e decidiu, ao invés de uma protagonista como a de Slovenian Girl que só se move unicamente presa dos fios que seu diretor-titereiro engendra.

Curioso também pensar como o sexo é tratado nessas produções mais recentes citadas acima. São filmes assexuados que por mais que exponham peles e suas mulheres ao natural, tratam de reduzirem-nas a seios e bundas como pedaços de carnes expostos como mercadorias, como se não houvesse possibilidade de sensualismo em ambientes em torno do meretrício (somente um louco se excitaria com as cenas de nudez ou de sexo em L’Apollonide ou no Slovenian Girl, especialmente). Nisso se reconhece um moralismo na escolha de pintar certos ambientes e contextos como degradantes ou doentes. Os filmes de Mizoguchi sobre a prostituição tampouco eram defesas ou apologia desse meio, e se suas personagens pertencessem a ele certamente não era porque o quisessem, porém o cineasta jamais recusou tratá-las com dignidade, em seus filmes não a sentimos como seres inferiores por estarem numa escala mais baixa do quadro social, em nenhum momento é forçado um sentimento de pena, nojo ou desprezo diante delas (não é por nada que eles resultam em alguns dos mais belos filmes feministas já feitos). Enquanto o tal Slovenian Girl está mais para um filhote do cinema do dogma dinamarquês no verniz com que modela suas imagens para torná-lo respeitável e legitimar o vazio com que lida em relação a sua suposta crueza e brutalidade do mundo. Não há descanso ou respiro no filme, e o trabalho da atriz (Nina Ivanisin) que faz a personagem-título é unicamente o de sustentar a mesma expressão trágica e coitada o tempo inteiro. No final das contas o cinema é que sai perdendo.

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