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Feliz Aniversário (Pierre Étaix, 1962)

Por Luis Henrique Boaventura

Nada dos metódicos 12 minutos de Heureux Anniversaire denunciam que este se trata apenas do segundo filme de Pierre Étaix (em colaboração com um jovem Jean-Claude Carrière). Do grau de elaboração das cenas externas à montagem rigorosa de alternação de ritmos, rostos e objetos, Heureux Anniversaire é imaculado em sua cadeia de gags e atemporal enquanto parábola da vida urbana.

Pierre Étaix é o marido que luta contra o tráfego de Paris (caótica e despojada de qualquer traço de romance) para comprar presente, flores, champagne e não se atrasar para o jantar de aniversário de casamento que a esposa prepara tão docemente no refúgio do apartamento. O curta abre com um plano fechado sobre a mesa com taças, guardanapos e dois noivinhos de bolo. A câmera acompanha as mãos dela pousarem cada talher sobre a mesa como se fossem feitos de areia, junto de dois pães, uma garrafa de vinho e um pequeno presente escondido entre as folhas do guardanapo sobre o prato dele. Do presente dele o corte nos joga para o presente dela, carregado apressadamente com os dois braços enquanto ele atravessa a rua e quase se choca com um carregador de uma empresa de mudanças. Fora do apartamento o ritmo se rebela e os personagens ficam todos vulneráveis a uma corrente outra, indeterminada e alheia à sua vontade.

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Heureux Anniversaire choca dois mundos (de tempos distintos): dentro e fora. As pessoas dentro de casas e estabelecimentos são impassíveis até o momento em que a rua as reclama, como com o homem que fazia a barba em paz aparentemente infinita até ter sua vida transformada em um inferno pela busca por uma vaga para estacionar, ou o guarda relaxado, sem farda, que passa o tempo à janela. Mesmo as pessoas paradas no tráfego não estão paradas, pelo contrário. São dois os tempos: o tempo de dentro, debaixo de um teto, jaz fingido sob comando do homem; o tempo de fora, sobre asfalto, corre à absoluta revelia de sua existência. Na primeira cena, são as mãos da esposa que regem a câmera, dócil e à espera dos gestos que ela escolhe fazer. Do lado de fora, o marido é um entre tantos personagens perseguidos sem descanso no fast-forward alucinado de uma corrida de barreiras — que não são, aliás, carros e outras máquinas, mas os próprios personagens, obstáculos deles mesmos.

Montado e coreografado à perfeição, Heureux Anniversaire abraça Tati, Keaton e inevitavelmente Chaplin, mas corre em esfera própria; não se trata mais da opressão do modo de vida convertido em armadilha, mas da tentativa de controlar o que não aceita controle. O tempo é esta inocente invenção do homem que deu terrivelmente errado e se voltou contra ele, uma máquina numinosa e trituradora dos vivos. Afinal, mesmo a paciência inabalável da esposa é derrotada por um par de taças de vinho, e a única companhia dele para o jantar são os restos mortais de um girassol decapitado.

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Django Livre (Quentin Tarantino, 2012)

Por Kênia Freitas

I’m not real. I’m just like you. You don’t exist, in this society. If you did, your people wouldn’t be seeking equal rights. You’re not real; if you were, you’d have some status among the nations of this world. So we’re both myths. I do not come to you as reality. I come to you as myth, because that’s what black people are: myths”.
Sun Ra em Space is the Place

On the hundred-and-fiftieth anniversary of the Emancipation Proclamation, it’s worth recalling that slavery was made unsustainable largely through the efforts of those who were enslaved. The record is replete with enslaved blacks—even so-called house slaves—who poisoned slaveholders, destroyed crops, “accidentally” burned down buildings, and ran away in such large numbers their lost labor crippled the Confederate economy. The primary sin of “Django Unchained” is not the desire to create an alternative history. It’s in the idea that an enslaved black man willing to kill in order to protect those he loves could constitute one”. Jelani Cobb, The New Yorker, 2013

“Eu não venho até vocês como realidade. Eu venho como mito, porque é isso que as pessoas negras são: mitos”. É com este discurso que Sun Ra se apresenta à juventude negra no filme Space is the Place, de John Coney (1974). O filme, um misto de auto encenação, blaxpoitation e ficção científica, narra a trajetória do viajante interplanetário Sun Ra e sua arkestra na tentativa de resgatar os negros norte-americanos de sua condição marginalizada no planeta Terra. Artista impar da música americana, o jazzista encarna – nesse caso, tanto no filme como na vida performática – a criação do seu próprio mito e da sua autofabulação como potência criativa e libertária. E, desde então, reforça o questionamento de qual o lugar do herói negro no cinema americano.

Se o cinema clássico narrativo tem seu marco inicial justamente com O Nascimento de Uma Nação, filmado por D.W. Griffith em 1915, um filme que enaltece a ação da Ku Klux Klan e em que os personagens negros caricaturados são representados por atores brancos com o rosto pintado, vai ser necessário quase meio século para que houvessem consideráveis conquistas na representação negra no cinema hollywoodiano. Os anos 1960 trazem o grande apogeu das lutas pelos direitos iguais entre brancos e negros nos EUA e a década seguinte representa a guinada significativa da representação, com o cinema de blaxpoitation se firmando como extremamente popular.

Eis que, quase um século depois de Griffith fundar a nação e 40 anos depois de Sun Ra querer fugir com todo mundo para o espaço, temos o Django Livre de Quentin Tarantino. Fossemos falar de um filme de outro diretor, talvez não fosse necessário um prólogo tão extenso, mas em se tratando de Tarantino não há como fugir das influências, citações, homenagens e dobras das imagens. O Django de Tarantino tem Sun Ra e Griffith; Jackie Brown e Coronel Hans Landa; Shaft e o homem sem nome – não necessariamente apenas estes ou nesses pares.

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Assim temos Django (Jamie Foxx), um escravo que será liberto pelo caçador de recompensas alemão Dr. King Schultz (Christoph Waltz), após ajudar esse em uma das suas missões. Da empreitada nasce uma parceria, na qual Django se compromete – já como homem livre – a trabalhar ao lado de Schultz como caçador de recompensas por alguns meses, em troca do ajuda deste para procurar e resgatar sua esposa Broomhilda (Kerry Washington), ainda escrava. A jornada dos dois vai findar em “Candyland” uma famosa plantação do aficionado por mandingo Calvin Candie (Leonardo DiCaprio), por quem Broomhilda foi comprada.

Com essa trama Tarantino constrói um filme que tem dois movimentos principais: 1) a autofabricação de Django como um herói, com a ajuda do Dr. Schultz e 2) o resgate de Broomhilda. Com essa estrutura, o diretor/roteirista responde então a pergunta sobre o lugar do herói negro como um local inexistente a priori, que é preciso criar dentro das imagens e da narrativa.

E aqui existe uma diferença de referencial que ressalta as maiores falhas do filme e, ao mesmo tempo, potencializa o que o filme tem de instigante. Esse desencontro é o de pensar o filme a partir da História como uma imagem (nesse caso, a história dos negros nos EUA) ou da História dos negros, dos personagens negros, no cinema dos EUA.

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Como subversão histórica no cinema, o filme se mostra politicamente como um dos mais fracos do diretor – principalmente porque em momento algum consegue coletivizar a catarse do espectador diante das imagens com a dos personagens. Se em A Prova de Morte, as mulheres em equipe conseguem inverter o jogo da opressão e se tornam caçadores do seu perseguidor e em Bastardos Inglórios, os planos de Shosanna e do tenente Aldo Raine culminam no mesmo cenário explosivo, Django seguirá o herói individualista lutando pela sua causa pessoal. Ainda que como linha de fuga ou o homem em um milhão, a trajetória do escravo armado em resgate da sua heroína não estremece a estrutura histórica na qual Tarantino planta o seu filme. Nesse sentido, Django se aproxima mais da noiva de Kill Bill I e II, do que de qualquer outro personagem do diretor.

Nesse ponto, para além das críticas sobre o racismo do filme na utilização – excessiva? provocadora? – da palavra “nigger”, esse é minimamente simplificador em relação a representação da escravidão. Ao mesmo tempo em que Tarantino não abre mão de mostrar as violências diversas as quais os negros eram submetidos; os seus personagens negros, com exceção de Django e Broomhilda, não parecem questionar/revoltar-se com a própria condição – mesmo quando por alguma ação involuntária dos protagonista esses conseguem algum possibilidade de fuga ou sublevação, a reação maior é a de apatia. Assim, quando o referencial do filme é a História da escravidão, este com seu herói autocentrado não faz muito mais do que perpetuar a ideia de que não haviam conflitos permanentes. A subversão histórica do filme mais do que isso, com sua imagem de escravidão normalizada, acaba por apagar a ação dos escravos heróis que lutaram pela sua liberdade e pelas de outros – alguns inclusive usando armas. E de que como esses heróis negros americanos só puderam existir a partir da luta pelo coletivo, e não do mito do self-made man. Retomando a citação de Jelani Cobb que abre esse texto: “O pecado primordial de Django Livre não é o desejo de criar uma história alternativa. É a ideia de que um escravo negro disposto a matar para proteger aqueles que ama poderia constituir uma”. Como subversão ou reescrita da História, Django Livre torna-se uma nova/outra história conservadora.

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Há, no entanto, uma outra possibilidade de entrada no filme: a de Django Livre tendo como referencial não mais a História afroamericana, mas essa no/pelo cinema. E, nesse sentido, tendo como o desafio essencial a reinvenção do herói negro nas telas. Ou seja, a fundação de um novo mito – que Tarantino tentará construir entre o western spaghetti e o cinema de blaxpoitation. E cada uma das duas partes da trama vai corresponder um desses gêneros: a construção do herói como homem sem nome do faroeste spaghetti e o resgate da mocinha pelo herói já consolidado e com cada vez mais senso de humor do blaxpoitation. É como se Tarantino fizesse surgir de uma narrativa tradicional branca, um filme do gênero consolidado pelo cinema negro. Nessa estrutura o self-made man individualista não só faz sentido, como é necessário. E cenas como a emboscada cômica da Ku klux klan aos protagonistas ganham o peso de uma necessidade de refazer nas imagens o nascimento do cinema americano – dessa vez como pura farsa.

Podemos dizer assim que Django é um personagem que se faz durante o filme, enquanto o filme em si migra de registro. Cabe aqui, ainda, a crítica à narrativa como uma forma nuançada de “fantasia branca de resgate” em que Schultz, o branco civilizador, vai ensinar Django a se tornar um herói – emprestado ao ex-escravo inclusive a mitologia alemã da mocinha a ser resgatada das montanhas pelo destemido cavalheiro. Desde a primeira ação conjunta entre os dois, na caça dos irmãos Brittle, o alemão sugere que Django encarne um personagem (o vallet) e aconselha: “uma vez no personagem, você não pode sair dele”. Mas, talvez, o maior legado de Schultz para Django não seja o da mitologia ou a da profissão, mas o modus operandi do falsário e a lição de que homens como ele (um estrangeiro de ideias libertárias) e Django (um escravo liberto caçador de recompensas) só podem sobreviver naquela sociedade por um processo incessante de reinvenção e autofabulação de si.

De Django escravo liberto pouco saberemos. Vemos deslizar por sua pele como as roupas extravagantes que passa a utilizar, uma sucessão de personagens. Assim, na segunda parte da trama, na execução do plano para libertar Broomhilda, Django novamente se faz passar por algo que ele não é – o mais baixo na sua escala de consideração: um capataz negro. Porém desse personagem não vemos Django se desfazer até a chacina final. Em determinado momento, Schutz questiona Django sobre a sua agressividade excessiva na interpretação do algoz, ao que Django retruca que esse é o seu mundo e que ele está no controle das ações. Passagem do filme que marca que se o alemão era o explorador bem intencionado em sua missão de resgate, Django é o pupilo que está disposto a superar o mestre em seu próprio jogo. Ainda assim, é preciso que o mestre morra para que o pupilo complete a sua transmutação: de homem sem nome a vingador bem humorado de blaxpoitation.

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Detona Ralph (Rich Moore, 2012)

Por Murilo Lopes

Um dos fenômenos mais divertidos da era pós-banda larga (absolutamente em minha opinião, claro) tem sido a “legalização social” dos video-games. Explico: durante a década de 90 era muito legal jogar, claro, mas ainda era uma atividade um tanto quanto destinada aos pré-adolescentes sem grandes aptidões físicas para o futebol ou algum outro esporte qualquer. Se você jogava Super Mario World no final de semana com seus primos, tudo bem. Agora, se você passava o contraturno da escola apenas na frente do Super Nintendo… bem, alguma coisa não estava muito certa. Enfim… o ponto é que essa geração de “nerds” cresceu e, de alguma forma, se organizou na internet e descobriu que eram muito mais numerosos do que parecia inicialmente. A partir daí, cria-se o cenário no qual o mundo da diversão eletrônica se torna um negócio altamente rentável e em constante expansão E evolução. As pessoas abraçaram o video-game e hoje já dá para sair às ruas usando uma camiseta do Donkey Kong e falar, com lágrimas nos olhos, sobre a imensa nostalgia de tempos em que as coisas eram mais simples.

Quando soube do lançamento da animação Detona Ralph, de Rich Moore, o que eu esperava era, mais ou menos, isso que escrevi no primeiro parágrafo. Um “filme de video-game”, cheio de referências a clássicos e falas espertinhas que levariam hordas de marmanjos às salas de cinema para ficar apontando para a tela e encontrando menções a seus personagens preferidos. Um negócio meio parecido com filme de Pokémon, onde parece que o papel da pimpolhada é proferir, em voz alta, o nome de cada um dos monstrinhos a cada aparição deles na tela. No final das contas, eu não estava errado. Em suas quase duas horas, Detona Ralph desfila toneladas de referências aos mais variados games e estilos. Algumas inspiradíssimas, outras sutis, outras escancaradas. Neste sentido, o filme serve, sim, como fonte para o espectador colecionar as tais referências e mostrar que “manja tudo de video-game”. Mas ainda bem que o filme não é só isso.

A trama gira em torno de Ralph, o vilão de um antigo jogo de fliperama. Cansado de ser o “cara mau” e acabar derrotado pelo protagonista do jogo (Conserta-Felix), Ralph decide dar uma guinada em sua vida e ser um herói, pelo menos uma vez. A busca de Ralph o leva, então, a migrar para outros jogos, até acabar caindo em um game de corrida que acontece em um mundo feito de doces. Neste jogo, ele conhece Vanellope, uma garotinha que é um bug do game de corrida. Os dois párias, então, se aliam para tentar vencer a grande corrida classificatória que definirá o grid de largada da próxima prova. Detona Ralph é um filme dinâmico e esse é um dos pontos em que mais o admiro, enquanto filme de animação: contando com um grande número de personagens, o roteiro mostra grande habilidade em lidar com mais de um “núcleo de ação”. Ao invés de se focar somente na aventura de Ralph, o filme ganha dimensão ao aproveitar a pluralidade de personagens e ilustrar o mundo do fliperama e sua diversidade. Desta forma, além de Ralph e Vanellope, ainda acompanhamos Felix, o antagonista de Ralph, se aliando com a soldado Calhoun a fim de encontrar Ralph e evitar que ele “vire turbo” (um termo que o filme mantém inexplicado de forma acertada até o momento em que ele se faz realmente necessário), e, ainda, pequenas histórias paralelas, como a do Rei Doce e de outros personagens menores.

Com anos de experiência como diretor de séries animadas, Rich Moore desenha o universo de Detona Ralph de maneira a não ser, meramente, uma homenagem ao mundo dos games, mas sim um filme que acontece dentro deste mundo e que tem, sim, potencial para agradar públicos diferentes.

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Ervas Daninhas (Alain Resnais, 2009)

Por Filipe Chamy

Quem acompanha a carreira de Alain Resnais sabe que esse hoje nonagenário não se cansa de sempre inovar os próprios caminhos de expressão: mexe na estrutura narrativa, na forma material do filme, brinca com a metalinguagem, os atores, os gêneros; faz de uma farsa teatral genialmente encenada (Smoking / No smoking) a uma opereta (Beijo na boca, não), de homenagem a quadrinhos roteirizada por Jules Feiffer e com inserções de animação (I want to go home) a ficção científica não-cronológica e existencialista (Eu te amo, eu te amo), entre décadas de inventividade motivada antes por um desejo de se exprimir com a criatividade que lhe empolga no momento que por deliberado senso de pioneirismo ou desejo de iconoclastia. E se no começo da carreira era comum Resnais pedir para romancistas e escritores sem prática cinematográfica fazerem roteiros para ele (como o fizeram Marguerite Duras, Alain Robbe-Grillet, Jorge Semprún e Jacques Sternberg, por exemplo), agora ele surpreende por, aparentemente pela primeira vez em sua admirável filmografia, adaptar um romance — expediente simples para muita gente, mas inédito em Resnais, que escolheu o excelente relato contemporâneo L’incident, de Christian Gailly, para adaptar às telas; sim, porque Resnais agora também, disfarçadamente e próximo de reputada cegueira, resolveu também dar suas pinceladas nos roteiros de seus filmes, o que parece vir com mais força nos últimos anos. Então não resta dúvidas de que Ervas daninhas é mais um acontecimento único na ficha resnaisiana.

O romance de Gailly é quase todo composto de diálogos livres, misturados a uma trama quase sensorial, de tato e de contato. Lendo-o, é bastante difícil encontrar Resnais naquelas páginas, mas, vendo o filme, observa-se que é Resnais do começo ao fim, inescapavelmente, sem qualquer hesitação. Parece talhado para suas idiossincrasias, e a maneira com que filma aquelas personagens e ocorrências faz qualquer um pensar que é um roteiro original escrito especialmente para Resnais, e não um romance de um escritor ainda um pouco obscuro no cenário das letras mundiais, que o escreveu quase quinze anos antes de Resnais adaptá-lo para o cinema.

É uma história de acasos e consequências, em que o rico mundo interior de cogitações das pessoas confunde-se com o anódino da paisagem, a robusteza algo incômoda do ambiente, o deserto da realidade que não sabe acolher as emoções profundas que, em descrição seca, parecem deslocadas ou arbitrárias. É portanto de dois mundos que falamos, e só há choque, desespero e humor quando há a colisão entre esses mundos, como nos conflitos polícia/lei/sociedade versus dramas particulares — que a certo ponto do filme perdem todo o sentido, explicando-se assim o sumiço de certas figuras proeminentes no começo da trama, procuradas por um evento e depois descartadas e desconsideradas.

Fugindo um pouco da metáfora de um Jules e Jim, as decisões inopinadas que existem em Ervas daninhas agem um pouco como nossas mudanças de humor cotidianas: aquilo que nos agrada agora pode ser um desprazer depois; e se os vai-e-vens do casal Marguerite Muir (Sabine Azéma) e Georges Palet (André Dussollier) parecem estranhos, por que não considerar que são pessoas estranhas? A esquisitice faz parte da vida, não dá para higienizar narrativamente todo caráter, ainda mais na construção artística. Então assumimos facilmente que aquela mulher foi roubada, sua carteira foi encontrada pelo homem, e esse incidente deu origem a uma profunda modificação em suas vidas.

É isso que Resnais mostra, com suas demonstrações de humor e irreverência (os cortes precisos, as elipses, as alterações de tom, a câmera extremamente singular), sua escolha pela adaptação deste material e não de outro, seu carinho com os intérpretes (que aparecem em vários de seus filmes, alternadamente ou não), o aspecto artesanal de sua obra: incidentes há, a vida é feita deles. A beleza está no captar ou não sua importância: quando formos gatos, poderemos comer croquetes?

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O Som ao Redor (Kleber Mendonça Filho, 2012)

Por Vlademir Lazo

Deve-se buscar ao se assistir qualquer filme novo uma postura não de querer descobrir uma obra-prima pela frente, mas de se preciso desmascarar uma que possam tentar nos vender. Digo por que os exageros de recepção, elogios sem medida, as vibes passageiras e opiniões sob influências às vezes inescapáveis pululam em tempos em que possuímos acesso a tantos comentários e diálogos desde um primeiro momento, muita coisa podendo levar a erros precipitados de julgamento, mesmo que carregados das melhores intenções, e a oferta de supostos grandes filmes discutíveis pedem por essa cautela e confronto, com um olhar desconfiado e sempre que possível mais severo (ainda que também passível de erro, é preciso dizer).

Se o filme sobreviver a esse necessário olhar severo, então há maiores e grandes chances dele realmente ser muito bom. O Som ao Redor não só surpreende mesmo quem possa se dirigir a ele com grandes receios ou altas expectativas, como sobretudo nos desarma diante de sua espontaneidade. Ainda assim, o filme de Kleber Mendonça Filho parece justamente pedir por esse confronto com o nosso olhar como componente indispensável da experiência de lidar com ele, de pensar o país numa perspectiva histórica e do presente.

Como muitos devem saber (e sem entregar muito a quem ainda não viu), o filme se passa num quarteirão de prédios altos e condomínios fechados numa subdivisão de um bairro da praia de Boa Viagem em Recife, tendo como proprietário desses edifícios um fazendeiro decadente e em crise, Francisco, velho e déspota esclarecido, que mora e passeia por ali, e comanda aquele espaço urbano como um pequeno feudo. Elemento soberano típico das relações de poder de casa grande & senzala, no fundo controlando a todos como se fosse o coronel em seu latifúndio, com o filme expondo uma convivência forçada por grades e muros, janelas e sacadas. Cinema é arquitetura, parecia dizer Fritz Lang logo nos seus primeiros filmes na Alemanha, e a (má-) arquitetura nociva e um tanto opressora de O Som ao Redor entrega que pode já não haver perspectivas e horizontes num mundo em contínuo processo de verticalização, demarcando uma distância considerável num espaço de terra proporcionalmente menor que o passado histórico, entre ricos e pobres (ou os novos ricos), patrões e empregados, além de toda a questão de um conflito latente pronto a aflorar, a partir de quando um grupo de seguranças particulares vem oferecer os seus serviços.

O Som ao Redor ensaia tocar questões como a relação homem-máquina, a dependência com os eletrodomésticos e outros apetrechos e parafernálias que supostamente existem para preencher nosso tempo e nos oferecer todo conforto, muitas dessas questões já exploradas em curtas do diretor, como Eletrodoméstica, que trazia uma versão mais elaborada da cena da masturbação feminina vista nesse seu primeiro longa de ficção. Ou histórias a dois que mal começam, e terminam sem maiores explicações, antes de atingir uma plenitude na relação – como a de um dos netos do patriarca, o corretor imobiliário João, e a garota por quem pode estar ou não apaixonado (algumas das melhores sequências são a do casal passeando entre as ruínas do que restou de um velho cinema assombrado por antigas lembranças e filmes, ou um dos pesadelos em que o banho de cachoeira se converte numa infinidade de sangue jorrando). Ou ainda a vigilância severa com os recursos tecnológicos disponíveis a julgar a eficiência dos subordinados (como o porteiro prestes a se aposentar cujo desleixo é centro de uma reunião de uma maioria com visão fascista no condomínio).

Há o trabalho com gêneros, no excelente uso do espaço e do som que nos entorpece os sentidos, o que é privilegiado e instigado pela montagem no todo, por vezes dando a idéia de um filme de horror (muito se tem falado em Carpenter, com grande razão, além de ser uma das influências confessas de Kleber Mendonça Filho), e não é difícil senti-lo também com algo próximo da estrutura de um western (gênero marcado por um estágio de civilização ainda em desenvolvimento), com a tensão se acumulando em personagens que no fundo são arquétipos de um passado rural nem tão distante (latifundiários, pistoleiros, os súditos e a gente comum cheia de medo e reservas), e que invoca uma violência pairando como ameaça constante prestes a tomar conta. O que levou a comparações deslocadas na imprensa com os filmes de cangaço de Glauber Rocha. O drama social de Kleber Mendonça está mesmo numa chave mais próxima do já citado John Carpenter − há uma escola que aparece no filme cujo nome “homenageia” o cineasta americano −, cujas obras por vezes sugerem um faroeste urbano relido como filme de horror em direção a um colapso iminente, o que em alguns momentos equivale ao trabalho do diretor pernambucano em O Som ao Redor, numa perspectiva, e espaço-tempo, tipicamente regional.

Outras influências, estrangeiras e brasileiras, também podem ser apontadas. O próprio Kleber é o primeiro a mencionar Trabalhar Cansa, de Juliana Rojas e Marco Dutra, um outro drama social com toques de horror e suspense, e que tinha o mérito de buscar, ir ao encontro de uma dramaturgia (algo que outros cineastas jovens brasileiros parecem fugir ou não lidar muito bem), ainda que não permanecendo depois tão forte na memória, e que o fantástico pareça (ou ressoe) meio bobo, além de provocar mais estranhamento do que envolvimento. Dentre outras aproximações recentes com o gênero horror feitas no país, há também o interessante Histórias Que Só Existem Quando Lembradas, de Julia Murat, que trabalha num registro entre a fábula e o documental, também em torno de uma comunidade especifica, e com um grande senso de observação contando uma história de retratos e fantasmas. O Som ao Redor, mais que um exemplo isolado que pode aparentar a quem não acompanha a safra recente do cinema nacional, representa um avanço no trabalho com essa dramaturgia e com o que dela se pode extrair.

Os críticos, de maneira geral, preferiram lembrar Cronicamente Inviável, pelo que possui de crônica social, porém o seu cinismo e ironia corrosiva não poderiam estar mais distantes do filme de Kleber Mendonça Filho. Na realidade, O Som ao Redor é o complemento, vindo do próprio Recife, de Cabra Marcado Para Morrer (quase como se Kleber sentisse que alguém precisaria fazer uma continuação das histórias daquela gente que compõem a obra-prima de Eduardo Coutinho), que contava as lutas entre senhores de terra e os mais desfavorecidos em Pernambucano num espaço de vinte anos entre as décadas de sessenta e oitenta, antes e ao final do regime militar brasileiro. Pois o filme de Kleber Mendonça dá conta das transformações que aconteceriam nos vinte anos posteriores, com o seu palco se transpondo em definitivo do campo para a cidade, entre o patriarcado e o encastelamento, como a tratar da transição do velho para o novo, inclusive com o confronto final aludindo aos conflitos de Cabra Marcado Para Morrer, e o desfecho se ligando ao começo, com fotografias tiradas exatamente de Cabra Marcado. Um ajuste de contas de séculos de atraso e exploração, dessa vez numa microssociedade urbana e sempre em mudanças (muitas delas relativas às transformações que ocorrem com o Tempo para que as coisas continuem como sempre foram).

Mas não há catarse possível para O Som ao Redor: se não existe lugar para conciliação, a elipse no final dissipa o que poderia ser o efeito catártico do clímax, que ainda que pudesse ser um pouco mais prolongado, prefere se encerrar com um estopim do que um derrame de sangue, visto que no todo essa é uma história cuja conclusão está longe de vermos chegar (a ultima elipse corta para uma cena que remete à dos meninos se divertindo sadicamente com o fim dos escorpiões na abertura de Meu Ódio Será Tua Herança). Na revisão, suas virtudes se impõem firmemente, porém os defeitos, que por vezes arranham o brilho da obra, se reforçam um pouco mais – um certo prosaísmo nas situações, algumas pontas soltas, uma simbologia fácil no seu gosto pela alegoria, como a chegada de aparelhos de TV de tela grande como objetos de consumo, ou o menino negro cuja figura recorrente como um vulto misterioso só impressiona em uma ou duas sequências. Conseqüências naturais em um primeiro longa de ficção, deste que sem dúvida já é a mais notável estréia no formato no Brasil em muito tempo, podendo nem sempre conservar um rigor estético e narrativo, mas o que tem de melhor dá para o gasto. E com sobras.

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O Homem Nu (Roberto Santos, 1968)

Por Filipe Chamy

A adaptação literária no cinema é repleta de preconceitos, dogmas, institutos. Quase sempre os comentários versam sobre a infidelidade adaptativa, a impossibilidade de se condensar centenas de páginas em poucos minutos ou horas, as facilidades e dificuldades de transposição de linguagem de uma mídia a outra, diferentes enfoques etc. Mas pensa-se nisso para obras extensas, romances, sobretudo. E o que dizer quando se adaptam narrativas enxutas, como um conto ou uma crônica?

O homem nu, de Fernando Sabino, fica no meio dessas duas formas. E então toda essa problemática sobre modificação ou transmutação é preciso ser repensada: a história original sendo muito curta, o filme é mais “completo” que ela?

Discutir as coisas assim não dá em nada. Basta ver que é outro espírito, outras metas. E não se pode falar em qualquer tipo de adulteração, pois o próprio Fernando Sabino é um dos autores do roteiro deste filme. Então, pode-se dizer, o personagem está sempre ali, com seu criador.

Criar um filme de duas horas a partir de poucas páginas é bastante curioso, e quem conhece a obra de Sabino pode estranhar a demora da introdução da saga da nudez propriamente dita, que só se dá do meio do filme em diante. Antes, toda a vida do professor Silvio Proença (feito com grande presença por Paulo José, pouco antes de dar vida a outro “herói” literário: o Macunaíma de Joaquim Pedro de Andrade) é repassada em breves pinceladas: sua relação com a mulher (feita por Leila Diniz, que a certo ponto é indagada se sonhou com um avião caindo, trágico paralelo com a realidade de sua vida), seu tédio com a burocracia dos eventos a que se submete, uma certa infidelidade moral que não o liga a nada e o deixa perenemente flutuando por sobre palestras, livros, reuniões.

Aí ocorre o choque da nudez: e Proença vira a caça, o inimigo. O que é mais natural (a ausência de roupas a esconderem o corpo) é considerado subversivo, perigoso. Proença é combatido, não o deixam explicar-se, não há redenção para ele. O absurdo da situação é um pesadelo amorfo, parece ridículo (e o é), parece inconcebível (e o é), mas está acontecendo, ali, com alguém que até então nunca havia sido vítima de nada, exceto da morosidade burguesa habitual. Proença não sabe se defender, pois nunca precisou de defesa.

Roberto Santos dirige o filme quase como um documentário, seguindo o homem nu de instante a instante, sempre junto a ele, sentindo suas pausas e cansaços, suas dores, percepções, esperanças. Haverá solução? A coisa parece sair mais e mais do controle, ao ponto de que a crônica de costumes metamorfoseia-se, via ácida sátira, em surreal descrição de metáforas. O convencionalismo político, a hipocrisia cotidiana, o caos das comunidades contemporâneas, enfim, é quando as roupas são retiradas que vemos o quanto a nudez (a verdade, a sinceridade, a ausência de disfarces) incomoda, o quanto aquilo é flagrantemente iconoclasta. O homem nu é, portanto, um filme político. Agoniante, incisivo. Que isso não impeça ninguém de abstrair a seriedade e consolar-se com a graça da triste odisseia de Silvio Proença: como Roberto Santos e Fernando Sabino reforçam no final, esta é uma sociedade do espetáculo, em que as exibições tanto são mais divertidas quanto deixamos de lado o pudor e vemos que afinal, todos estamos nus.

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Hotel Mekong (Apichatpong Weerasethakul, 2012)

Por Kênia Freitas

“Entre a ciência da expressão, se ela considera seu objeto por inteiro, e a experiência viva da expressão, se ela é bastante lúcida, como haveria corte?”

Depois de ganhar Cannes, qualquer Apichatpong lota uma sala de cinema. Acontece que o cineasta tailandês – ele poderia ser brasileiro, congolês ou até americano, mas o fato dele ser tailandês faz uma baita diferença naquilo que produz, por isso, desculpem o rótulo -, está mais preocupado com o desenvolvimento de seu projeto estético-político, e muito tranquilo, segue experimentando.

Com a vídeo-instalação Phantoms of Nabua, exibida no Brasil na Bienal de São Paulo 2010, Apichatpong confirmou que suas investigações audiovisuais estão para além do cinema, ou como dito numa entrevista à época de Tio Boonmee e da Bienal: as fronteiras entre cinema e videoarte para ele são bem fluidas .

Hotel Mekong, filme de 61 minutos, trabalha camadas de ficção e documentário que, em verdade, levam o experimento de Joe a outro nível. Construindo uma antinarrativa que, ora pende para um texto ficcional, ora para conversas em tom descontraído, mas sempre pautadas por assuntos cotidianos e personagens muito improváveis surgidos do repertório de cultura popular… da Tailândia? De um bairro específico de Bangcoc? Aliás, googleando descobri que uma tentativa de tradução da palavra Bancoc (que na verdade é uma abreviatura) pode ser “A cidade dos anjos, a grande cidade, a cidade que é jóia eterna, a cidade inabalável do deus Indra, a grande capital do mundo ornada com nove preciosas gemas, a cidade feliz, Palácio Real enorme em abundância que se assemelha à morada celestial onde reina o deus reencarnado, uma cidade dada por Indra e construída por Vishnukam.” Ufa. Como diria o Merleau-Ponty “ora, como atribuiríamos ao não sentido aquilo que, nas línguas empíricas, excede as definições do algoritmo ou da ‘gramática pura’, se é nesse suposto caos que vão ser percebidas as novas relações que tornarão necessário e possível introduzir novos símbolos?”

O mais interessante nessa história é como os procedimentos usados por Apichatpong levam a pensar numa fluidez [cada dia mais ajustada] entre estética e política. E se no começo do texto pontuei o fato dele ser tailandês não foi à toa. Uma das melhores questões de Tio Boommee é sem dúvida a entrega de um material que ultrapassa o filme: uma sensibilidade não totalmente compartilhada, pautada no estranhamento e no maravilhoso. Aliás, até o maravilhoso dessa vez foi ultrapassado, seja pela contínua execução da trilha sonora, ou pelo simples descompromisso com a tal ‘suspensão da realidade’. No final das contas o que me faz – senão compreender de todo, mas – ser entusiasta dos filmes de Apichatpong Weerasethakul é sua maneira de apresentar o mundo por uma ótica muito particular, ludicamente liberando procedimentos padrão de visualidade e abrindo espaço para a realização da excedência [e tudo isso sem errar a mão].

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Vulcão (Rúnar Rúnarsson, 2011)

Por Murilo Lopes

A grande questão, ao meu entender, nos filmes que têm como temática o envelhecimento e a passagem do tempo, é a solidez que o projeto conseguirá demonstrar durante suas poucas centenas de minutos. Sem querer relativizar demais as coisas, atrevo-me a dizer que filmar sobre o coming-of-age de uma criança ou um adolescente é uma situação. Agora, tentar abordar o mesmo tema dentro do universo da “terceira idade” é outra completamente diferente. Era mais ou menos nisso que eu pensava quando fui assistir a Vulcão, primeiro longa metragem do islandês Rúnar Rúnarsson, um diretor de 35 anos com cara de menino.

Em pouco mais de 90 minutos, Rúnarsson conta a história de Hannes, um senhor na casa dos 70 anos que acaba de se aposentar e começa a ter de encarar um pouco mais de perto algumas situações com as quais não está inteiramente confortável, como o fato de não mais ser um “macho provedor”, ter filhos que o veem como um homem frio e ranzinza, ver sua amável esposa sofrer um derrame que a transforma em um vegetal e, ainda, ter seu única verdadeira válvula de escape, no caso, um pequeno barco de pesca, inutilizada.

Rúnarsson consegue se sair surpreendentemente bem ao lidar com questões tão sensíveis justamente por tratá-las com sensibilidade. Ao evitar transformar Hannes em um personagem em busca de algum tipo de “redenção”, ele consegue aproximar o sujeito do espectador e criar um retrato bastante humano de alguém cuja idade Rúnarsson não tem e pela qual, ao menos pelo aspecto de experiência pessoal, ele não tem como apontar caminhos fáceis. O grande trunfo de Rúnarsson não é apenas mostrar que Hannes podia ser aquele seu avô que reclama do almoço e passa o domingo resmungando no sofá. Hannes pode ser você, amanhã. Eu posso ser Hannes amanhã.

Na ótica de Vulcão, as pessoas estão fazendo o que podem e sendo aquilo que elas são. Não existem grandes lições a serem aprendidas e nem grandes redenções a serem alcançadas. Existe a dúvida, existe o sacrifício e existe o imenso vazio que é o futuro, uma grande incógnita que, talvez, se torne cada vez mais sólida e misteriosa com o chegar da velhice e sob os filtros da experiência. Essa contemplação e esse respeito que Rúnarsson possui por seu personagem são a dinâmica principal de um primeiro longa-metragem bem sucedido e de um primeiro passo bem dado por um diretor que, embora jovem e iniciante, já demonstra sinais de uma visão que pode alçá-lo a um patamar respeitável dentro do cinema europeu.

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Um Lobisomem na Amazônia (Ivan Cardoso, 2005)

Por Vlademir Lazo

Um Lobisomem na Amazônia talvez fosse mais bem considerado hoje em dia caso tivesse sido realizado trinta, quarenta anos atrás. Um hipotético lançamento nos anos 70 ou 80 poderia fazer com que despertasse um interesse maior nas platéias menos preconceituosas da época, contando hoje então com o mesmo status de clássico que ao longo do tempo os filmes mais antigos de Ivan Cardoso mereceram angariar. Que não haja lugar a Um Lobisomem na Amazônia na atual conjuntura do cinema brasileiro (antes tão variado e vasto em suas tendências, hoje circunscrito em poucas divisas, sejam estas comerciais ou autorais), diz mais sobre este cinema agora produzido no país do que supostamente ser esta uma obra datada. Ledo engano: embora não seja uma obra-prima como O Gerente, de Paulo Cesar Saraceni, e Cleópatra, de Julio Bressane, o de Ivan Cardoso é destes filmes vitais que, com acertos e falhas, é um cinema para gerações futuras (ao invés de preocupado com a bilheteria da semana, as resenhas dos grandes jornais, e com Oscar ou festivais), como costumam ser os bons e grandes filmes para os cinéfilos de qualquer época.

Isso porque para um realizador do cinema brasileiro como Ivan Cardoso, a expressão mais importante será sempre “cinema”, e só depois “brasileiro”. Mesmo que não seja genial como O Segredo da Múmia (ainda sua obra-prima), Um Lobisomem na Amazônia, como os demais trabalhos do diretor, é movido sobretudo por uma enorme vontade de cinema. Tomando como ponto de partida o romance A Amazônia Misteriosa (do médico e escritor Gastão Cruls), ficção baseada em A Ilha do Dr. Moreau, de H. G. Wells e publicada em 1925, o roteiro do lendário Rubens Francisco Luchetti (colaborador habitual de José Mojica Marins e do próprio Ivan Cardoso) atualiza a história com um grupo de jovens (Danielle Winits, Karina Bacchi, Pedro Neschling, Bruno de Luca, Djin Sganzerla) num formato slasher movies anos 80 que se embrenha pela Floresta Amazônica (recriada em cenários artificiais bastante convincentes), tendo a ajuda de um misterioso guia turístico (Evandro Mesquita). Paralelamente, um cientista maluco (Paul Naschy, de clássicos europeus de terror dos anos 60 e 70) faz experiências genéticas com cobaias humanas, auxiliado por seu servo animalesco (Guará Rodrigues) e por uma raça de Amazonas, num local atacado por um lobisomem, o que atrai a investigação de um delegado (Tony Tornado) e um biólogo (Nuno Leal Maia), que formam uma dupla bastante desajeitada.

Florestas costumam ser por excelência um espaço privilegiado para filmes de horror. Um Lobisomem na Amazônia funciona porque os cenários são preenchidos com imaginação e dados concretos, e pela inteligente disposição dos elementos e atores no quadro. Não se trata de um lugar nenhum em que os atores surgem, conversam e as mortes acontecem, como num buraco qualquer no qual muitos filmes de terror naufragam. Ivan Cardoso é um cineasta autoral, mas também um artesão, e esta é uma de suas principais qualidades ao fazer com que todo o talento de seu artesanato tome a tela. Como em Encarnação do Demônio, de José Mojica Marins (também desprezado nas bilheterias, mas com maior visibilidade e culto por causa de um nome forte como Zé do Caixão), há aqui uma quantidade considerável de sangue, cabeças cortadas, torturas, violências em geral, porem é tudo artesanal demais. Não confundir com amador, pois o filme contou com uma produção caprichada e altamente profissional; o estilo de Cardoso que é artesanal, e ai que existe um charme nos efeitos visuais que passem longe da computação gráfica, que não sejam tão perfeitos. A beleza do cinema é saber que a sua magia provém de um truque, da materialização de uma fantasia, o que completa a experiência do filme, ao invés de dominá-lo e esmagá-lo. Uma condição que faz com que outros valores se imponham, em oposição a uma tendência reinante no cinema de horror atual que parece vedar todas as lacunas, nos entregando algo tão hiper-realista onde não há lugar para o encanto e a fantasia. E que valores são estes os de Um Lobisomem na Amazônia?

A primeira meia hora pode sugerir que Ivan Cardoso não conseguiria adequar seu estilo, sua visão ao modelo de produção atual, com suas qualidades de outrora se tornando ainda mais toscas e infames. Mas o filme vai se impondo muito bem. O elenco jovem composto de algumas figuras globais oferece interpretações fracas de acordo com o estereótipo de vitimas prestes a serem trucidadas pelo assassino (no caso, o lobisomem). Por outro lado, ao contrário de novelas ou outros filmes em que está caricato e afetado, Evandro Mesquita surpreendentemente se mostra no tom certo como o herói, com quem os outros personagem mantém uma relação ambígua por não saberem se nele podem confiar. Se Evandro Mesquita (esse ator que comprova que pode ser legal quando bem controlado em cena) não estivesse tão bem, o filme seria arruinado junto com a performance dele.

Um Lobisomem na Amazônia se sustenta muito na tensão entre o clima dos slashers movies aos quais inevitavelmente remete em nossa memória cinéfila, e sua relação com um cinema artesanal (mencionado acima) mais clássico de horror, como os da Universal dos anos 30 ou os de Roger Corman, William Castle e da Hammer nas décadas seguintes. Além de uma presença significativa de elementos do folclore brasileiro, como o das guerreiras amazonas, o lobisomem, etc. E o humor. Muitos podem estranhar este humor no qual existe uma diferença quase ontológica em relação a muitas comédias brasileiras recentes que parecem ter certa nulidade como fim. Um Lobisomem na Amazônia é uma comédia de terror na qual há o cuidado de desenvolver uma linha de raciocínio de acordo com as convenções clássicas dos gêneros aqui trabalhados. Esse humor do filme de Ivan Cardoso não é o mesmo que se encontra nos besteiróis ou os que remetem aos sitcoms, e sim ao que obedece a uma tradição cômica digna das antigas chanchadas brasileiras, no tom, nas situações, nos trejeitos de alguns dos atores veteranos (especialmente Nuno Leal Maia), todos ótimos em cena. A ressonância da chanchada na obra de cineastas como Ivan Cardoso, Rogério Sganzerla e Julio Bressane (todos saídos do dito cinema marginal − Ivan começou como assistente destes dois últimos) merecia ser mais amplamente reconhecida.

Há alguns momentos irregulares, certo desvario que nem sempre lhe faz muito bem, ou piadas dispensáveis como a muito gasta referência à cena do chuveiro de Psicose na abertura. Mas o que Um Lobisomem na Amazônia, dentre outras coisas, possui de melhor, é o sabor de uma velha e boa aventura conhecida. Como a dos seriados antigos que tanto alimentaram a juventude de Ivan Cardoso ou de muitos de nós, as fitas de horror, os filmes B, as matinês. Perto do final, a personagem de Danielle Winits (que não compromete) é sequestrada para substituir a Rainha das Amazonas, sendo lhe repassado um cetro de prata que serve para restituir o equilíbrio da floresta. É quando percebemos estar diante do filme brasileiro mais próximo já feito, guardada às devidas proporções, de Os Aventureiros do Bairro Proibido, com o herói interpretado por Evandro Mesquita como um equivalente ao de Kurt Russell naquele filme, o sujeito solitário saído não se sabe de onde sem nada a ver com a história, tentando resgatar a mocinha de uma intriga milenar e fantasiosa. Filme bacana.

 

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Holy Motors (Leos Carax, 2012)

Por Geo Abreu

n-1 (uma tal multiplicidade não varia suas dimensões sem mudar de natureza nela mesma e se metamorfosear)

Contemporaneidade pós-tudo, era da representação na época de sua memealidade técnica. Profanar o esquema de signos representativos e se perguntar em quais nano-espaços de tempo é possível respirar sendo apenas o cara sem roupa em frente a um gato que nos olha, como naquela parábola do Derrida. O animal que logo sou (e sigo sendo) anda sempre de coleira, e se encoleriza muito pouco.

Se o cinema pode ser uma fronteira do maravilhoso em tempos de cinismo, Leos Carax maneja suas ferramentas na direção da surpresa. Na apresentação do filme durante o Festival do Rio, no palco do Odeon, diz ele sereno que, se você não entender, tudo bem. Espere até amanhã de manhã. Logo em seguida somos lançados à multiplicidade de Denis Lavant, que dá a volta ao dia em 80 mundos: maquiagem, figurino, perucas e uma limousine branca.

Vigoroso em todos os contos que o filme apresenta, é possível reconhecer o ator pela lembrança de sua presença corporal em filmes como Sangue Ruim, Os amantes da Pont-Neuf., Sr Merda, etc. Mas só por isso. Em cena, ele representa vários personagens que inadvertidamente chegam em uma determinada realidade para lhe abalar as estruturas. Provocações, redefinição de papeis e de estruturas narrativas. Instigante até o osso. Holy Motors é desses filmes que te fazem sair do cinema pensando em como criar novas relações com a realidade e assim, talvez, construir subjetividades ainda não catalogadas.

São tantas as camadas apresentadas que é possível escrever textos muito particulares sobre cada uma. O ato performativo como empoderamento; a crise da representatividade – essa mesma que levou gente às praças para protestar em vários lugares do mundo, aqui trazida ao universo particular de um homem que vive 24h mudando radicalmente de perspectiva – até a crise dos valores de nossa sociedade hoje. Ou é a narradora aqui que vê essas questões em todo lugar, o tal do zeitgeist de uma época perpassando estética, política, redes sociais e o escambau de quatro.

Se não existe fora, qual o caminho pra dar um drop out? Inventar mundos. Nisso Leos Carax e Denis Lavant tão de parabéns.

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O mundo em preto-e-branco e desesperado de Philippe Garrel

Por Vlademir Lazo

Existem os filmes coloridos, menos frequentes (como o mais recente, em cartaz nos cinemas brasileiros, Um Verão Escaldante), mais prosaicos (ou de uma poesia dura e escondida), e os preto-e-branco, que parecem mais livres, com a seu modo uma ternura que nos atinge em cheio, e os olhares de compaixão dos personagens um com o outro, a câmera flutuante, que perambula com esses personagens. Os raros filmes coloridos de Garrel podem nos deixar com uma impressão errônea de cálculo, de uma câmera que se movimenta a esmo pelos cenários, e aos atores personagens que parecem existir para justificar uma grife criada por em torno deles pelo cinema contemporâneo.

De qualquer forma, embora se deva fazer justiça a muitos dos filmes coloridos de Philippe Garrel, não restam dúvidas de que os seus trabalhos em preto-e-branco é que ficaram marcados num imaginário cinematográfico contemporâneo. Não que seja uma tendência que constitua regra, visto que um de seus títulos mais recentes, Sauvage innocence (2001), deixa muito a desejar, mas foi com Amantes Constantes e A Fronteira da Alvorada que grande parte de um público (não só o brasileiro, vale dizer) foi apresentado ao diretor, e com eles pôde fazer a ponte e redescobrir a filmografia do francês que remonta aos seus primeiros títulos no final dos anos sessenta. Justamente na época em que Amantes Constantes se volta.

A primeira meia hora de Amantes Constantes é um filme de guerra. Mostra o maio de 1968 como acredito que nunca tenha sido visto na tela: uma verdadeira batalha campal entre policiais e estudantes nas barricadas de Paris, uma luta inglória e exaustiva entre pedras e cassetetes, carros destruídos e corpos em estado de tensão e desespero, como se a câmera estivesse registrando aquele momento na mesma época em que aconteceu, e não numa encenação quatro décadas depois.

Um registro aparentemente documental, que aos poucos adquire dimensões épicas que só a melhor ficção costuma proporcionar, mas sem recorrer aos clichês ou as necessidades de glamourizar e tornar bonito aquele evento histórico. É como um misto de poesia e farsa, sonho e desmistificação. Depois desses trinta minutos iniciais, surge a ressaca dos jovens insurgentes, que caminham rumo à exaustão de maneira mais lenta e demorada do que nas barricadas, num trajeto que em longo prazo se revela bem mais destruidor dos sonhos de impossíveis revoluções, até o momento que se passa a se desacreditar delas, por mais que se tenha buscado a generosidade e a compaixão pelo que esmaga os seus semelhantes.

Philippe Garrel construiu esse retrato da dissolução dos ideais de mudança coletiva com uma aproximação completa e radical pelas experiências dos personagens, num processo de total imersão durante as três horas de duração da película, no qual os personagens contemplam o vazio, fogem das obrigações civis, escrevem ou declamam poemas e perdem-se em amores que a vida há de desfazer. Todo mundo afirma que é a antítese de Os Sonhadores (o que não deixa de ser verdade, visto que o filme de Garrel parece uma resposta direta ao de Bernardo Bertolucci). Porém, ele é bem mais que isso, e reduzi-lo a tanto seria não dar conta de toda a sua dimensão. O mais apropriado talvez seja pensá-lo em conjunto com obras como A Chinesa, de Jean-Luc Godard, e A Mãe e a Puta, de Jean Eustache, para então com os três filmes compreender o ocaso da década revolucionária dos anos sessenta.

Já o longa seguinte de Garrel, A Fronteira da Alvorada, flerta com o fantástico, mas se impõe pelos toques de melodrama e tragédia. Ainda assim, os amor fou de um fotógrafo dão origem a um quase filme de terror, embora não possa ser tido como tal. Tampouco seria justo reduzi-lo a tanto, porém há alguns fortes elementos de filme de horror que perpassam por boa parte da projeção, não somente pelas referências mais óbvias mas também pelas mais insuspeitas, como as cenasem que Louis Garrel é assombrado pelo seu inconsciente ou a magnífica fotografia em P&B que remete aos mais antigos filmes de fantasmas, e que concede ao filme uma aura de mistério que emana de suas ásperas imagens. Mas também os confinamentos a que os personagens vão se entregando, primeiro em espaços físicos, mais adiante em níveis mentais.

Estes são alguns dos temas de A Fronteira da Alvorada, em que Louis Garrel é o fotógrafo encarregado de uma sessão de fotos com uma atriz tempestuosa, que mais tarde revelará problemas mentais e tendências suicidas – mas com a qual ele acaba se apaixonando e se envolvendo. Há uma guinada inesperada na segunda metade, que nos mostra que trocar um amor por outro é sempre complicado, como tem que experimentar na própria pele o protagonista, e essa circunstância o faz entrar num processo intrincado e amargo que se desloca da realidade para a imaginação.

É sobre os contrastes entre a vida e a imagem da vida, aprisionada e estática no quadro de uma fotografia, e exatamente por isso idealizada e ambígua, nos gestos e movimentos capturados pela câmera do profissional. O desejo nasce da vontade de apropriar-se de uma imagem, mas cujo controle nos escapa no mundo real. É um filme com um quê de Vertigo, por mais que suas superfícies sejam tão distintas, e que suas (muitas) diferenças sejam bem mais acentuadas. Cabe destacar a presença marcante (e, sobretudo, inesquecível) de Laura Smet, a musa cuja lembrança o protagonista não apagaria tão cedo da memória. Com A Fronteira da Alvorada e o imediatamente anterior Amantes Constantes, Philippe Garrel nos entrega dois romances condenados que forma um díptico impressionante no cinema moderno.

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Um Quixote Sem Mancha (Miguel M. Delgado, 1969)

Por Filipe Chamy

O fenômeno Cantinflas, ainda que obscurecido hoje por novidades recentes, faz parte de uma expressiva porção do cinema popular da segunda metade do século XX. Era aquela época (não desaparecida de todo, mas cada vez menos frequente) em que um ator, cantor ou celebridade fazia tanto sucesso que sua persona adquiria vida própria, e essa imagem era explorada em inúmeras ocasiões e oportunidades, variando pouco de caso em caso. Alguns exemplos famosos: Jerry Lewis, Woody Allen, Oscarito, irmãos Marx. Dá para perceber como isso é comum no terreno da comédia: quando um humorista entusiasma, é normal e esperado que ele apareça mais e mais caracterizando o personagem que lhe trouxe popularidade; e aí vemos muitos filmes e programas televisivos em que o artista repetirá os mesmos trejeitos, falará da mesma maneira e usará as mesmas roupas, confundindo sua vida dentro e fora das telas. Não é um problema para quem consegue ser autoral dentro desse esquema, e não se questiona a genialidade de um Chaplin (que, dizem, achava Cantinflas o maior cômico do mundo) ou de um Tati apenas porque eles na maior parte de suas vidas retrataram um mesmo tipo cômico, ainda que sempre os aperfeiçoando.

Cantinflas foi um grande astro do cinema mexicano, mantendo invicta sua popularidade até morrer, quando, segundo consta, foi saudado como herói não apenas pela dedicação de décadas à alegria em suas fitas cômicas mas também por ter legado a maior parte de seu dinheiro (ele ficou milionário) a gente necessitada. Mas em vida seu carisma era inigualável: por seu tipo físico marcante (baixinho, bigodes diminutos nos extremos dos lábios), seu desembaraço e seu talento em ser genuinamente divertido, com um pouco de humor físico e muita graça ao falar (o verbo “cantinflear” foi cunhado para dar conta de alguém que mais fala do que se faz entender), Cantinflas tornou-se o maior nome das produções de comédia mexicanas, sendo quase um alter ego do mexicano comum que se vira como pode e é capaz de enxergar a leveza em seus problemas sociais cotidianos. Aliás, para se compreender um pouco a dimensão de seu estrelato, basta dizer que ele foi “exportado” para Hollywood, onde protagonizou alguns trabalhos de grande bilheteria (como o vencedor do Oscar A volta ao mundo em oitenta dias); e, mais, ele tinha a liberdade de escrever seus filmes e dar a eles com isso um toque pessoal muito distinto e que ainda hoje torna as singelas obras que estrela experiências muito agradáveis.

Este Un Quijote sin mancha é um de seus últimos filmes, dirigido por seu “compadre” Miguel M. Delgado (que dirigiu dezenas de filmes com ele e com o mítico lutador Santo el enmascarado de plata). São as aventuras de um advogado, ou melhor, um “quase” advogado: Justo Leal y Aventado — claro que o nome é mais uma das brincadeiras de Cantinflas —, que, apesar de não ser o operador de leis mais culto e experiente que se viu, é o mais nobre de coração e o mais simpático, tentando desentortar o que há de mau na vida e nas injustiças, a exemplo do magnífico herói de que se vale o título do filme.

Claro que o filme não apresenta muito mais que os momentos de brilho de Cantinflas, sua interação com outros personagens/atores, suas reações, suas digressões e suas ações. Mas isso realmente não se faz necessário, o que não significa que todo o resto seja dispensável: a direção de atores de Delgado, sua movimentação honesta de câmera e construção de planos e enquadramentos, nada disso parece deslocado ou ineficiente (como em certos filmes dos Trapalhões — outros comediantes nessa linha “o filme sou eu” —, em que a estrutura cênica é um pouco lastimável).

Altamente recomendada então a visita a esse homem do cinema, a esse Cantinflas que hoje só não encanta mais porque vem sendo menosprezado e pouco difundido – pelo menos no Brasil, onde também era garantia de público. Esperamos que a coisa não chegue ao ponto de em alguns anos retornar ao anonimato de sua identidade “real” — como se sua realidade fosse fora do cinema —, Mario Moreno. Que se imprima a lenda.

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O Amigo da Minha Amiga (Eric Rohmer, 1987)

Por Filipe Chamy

O que mais chama a atenção nos filmes de Eric Rohmer, o que salta aos olhos e parece seu definitivo testamento como autor de cinema, é como ele rege seus atores e como suas personagens são desenvolvidas. Os intérpretes de suas obras parecem encarnar pessoas sumamente tranquilas, que falam muito mas se exaltam pouco, sempre racionalizam o que sentem e são totalmente avessas a explosões emocionais. Isso é verdade apenas aparentemente: sob um verniz de calma e serenidade, toda a intensidade da vida é pintada por Rohmer com inesgotável segurança; e suas criaturas sofrem, choram, gargalham ou se enfurecem com naturalidade honesta e constante.

Aqui neste O amigo da minha amiga, última de suas “comédias e provérbios”, Rohmer também deixa claro outras marcas suas: o feminismo que o faz se interessar pelo retrato de mulheres (e não de estereótipos); a vida dentro dos quadros, pois toda a ação se passa dentro do enquadramento e nunca fora das paredes delimitadas em seus planos – a câmera mesmo se movimenta relativamente pouco -; a extrema nobreza e respeito que consagra aos dilemas e dúvidas das gentes de suas narrativas.

O aparente classicismo rohmeriano é apenas a roupagem de que o realizador se vale para demonstrar sua atenção a detalhes que realmente importam a sua concepção de cinema, e portanto sua encenação comporta elementos que se repetem de filme para filme, como um microcosmos que o diretor se dispõe a analisar um pouco mais a cada filme, variando apenas certos aspectos de ambientação estrutural, por exemplo. Este filme é uma peça urbana, assim como Os amores de Astrée e Céladon é um recorte histórico, O joelho de Claire é uma cena de campo etc.

O amigo da minha amiga interessa sobretudo pelas cirandas que rodeiam as personagens e o sentido que isso apresenta a elas e ao espectador, jogando muito habilmente com expectativas, com fatos e com surpresas, não permitindo conclusões e julgamentos antes do fim do filme, como de resto seguindo as pegadas da própria vida que filma com beleza e humor e leveza, mesmo quando tudo parece perdido ou arruinado, desamparado, desprotegido. No final das contas tudo se arruma, e os caminhos se vão modificando na mesma medida que nossas cabeças vão adquirindo novas percepções e nossos desejos, outras formas e vontades.

Em Rohmer, a moralidade das convenções aparece sublimada nas decisões que impelem os comportamentos a se sujeitarem antes a uma força de vontade que a uma inércia social. Em outras palavras, suas personagens procuram o que é bom para elas, pouco se importando com os efeitos disso e as adequações de seus atos na comunidade que habitam. São espíritos livres, que buscam a felicidade e para isso se movimentam ao encontro de suas chances, ainda que por vezes, como neste filme, pareçam resvalar para a volubilidade, para a imaturidade emocional, o egoísmo sentimental. Tudo engano: nas imagens que Rohmer tece, esses equívocos são apenas avatares, disfarçando na imagem a fundamental razão de tudo haver e pulsar.

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Filmografia Comentada – David Cronenberg

Aproveitamos o lançamento de Cosmópolis no Brasil, adiado tantas vezes pela distribuidora nacional que ainda conseguimos nos antecipar a ele apesar do atraso de dois meses na atualização, para novamente nos reunirmos em um artigo coletivo sobre a obra de um cineasta (como fizemos com Nicholas Ray, à época da comemoração do seu centenário). O resultado é este passeio pela filmografia completa do canadense David Cronenberg, em que analisamos desde Stereo, sua estreia no cinema em 1969, até Senhores do Crime, lançado em 2006 — Um Método Perigoso e Cosmópolis, seus dois filmes mais recentes, possuem críticas à parte no site, que podem ser acessadas na home page.

Stereo (1969)

Ângulos, sombras, vozes, arquiteturas, sexos, futuros, solidões… A densa matéria que dá forma a Stereo, trabalho profético de um cinema, de uma ciência e filosofia, de um tempo humano ainda não encerrado, não esconde a relação obsessiva de David Cronenberg para com certos temas e procedimentos. Dos mais notáveis exercícios de estreia já vistos numa tela, esta primeira obra guarda paralelos com absolutamente todos os filmes a serem assinados pelo autor a partir de então. Impossível esgotar as interseções, os ecos e repetições dispersos pela filmografia em jogo. Por isso um inusitado interesse junto aos elementos que aqui ganham único tom: o preto e branco, o áudio em off, o frescor que emana da montagem principiante, por mais rígida que ela seja. Escapamos dos limites de orçamento abrindo um horizonte de encenação como raras vezes veremos no Cronenberg subsequente, mérito de um destemor típico dos primeiros passos, estes que são dados sob a incerteza de talvez serem os últimos. Stereo não poupa uma só convicção, abala toda uma estrutura lógica a partir de racionalidade própria, de confiança somente naquilo que tem em mãos: o movimento que extrai dos corpos e que origina a partir deles. Deste novo mundo aqui traçado, em que a carne e o desejo são confrontados pela insuficiência do toque, emana uma dolorosa esperança de um porvir que extinga a intransigência de opostos. Não se trata de utopia, mas de possíveis que não se excluem, de um cinema que aliança as distâncias — morais, estéticas, políticas — para favorecer uma harmonia perdida e fazer dela mais do que mera ficção. (Fernando Mendonça)

Crimes do Futuro (1970)

Filme independente filmado, escrito e dirigido por Cronenberg, o segundo de sua carreira. Neste seguimos Adrian Tripod, ex-diretor de uma clínica dermatológica, na procura pelo seu mentor, Antoine Rouge. O sumiço de Rouge está ligado de forma enigmática a uma doença infecciosa provocada por produtos cosméticos – infecção que parece ter sido a culpada pelo extermínio da população feminina sexualmente desenvolvida. Nesse mundo pós-apocaliptico, temos a vitória das instituições (que se mantém com toda a sua pompa burocrática e protocolar) sobre os indivíduos (que vagam errantes, morrem ou adoecem sem grandes explicações). Os homens seguem cumprindo procedimentos científicos e perpetuando racionalizações acadêmicas, ainda que essas atividades não pareçam ter qualquer efeito transformador sobre a realidade, além do descritivo. Para piorar, os únicos grupos que demonstram algum interesse em revitalizar a existência da espécie humana são círculos obscuros de conspiração de pedófilos, que objetivam criar por meio de outra forma de sexualidade uma espécie substituta para a humanidade. Dito assim, o filme soa muito mais repugnante do que ele de fato é. Mas, assim como seus homens indiferentes da pós-catástrofe, é na frieza das imagens e na anti-fruição narrativa em que o diretor se fia. Os contatos humanos são estranhos, o ambiente é hostil e esses seres sorumbáticos perambulam através de uma arquitetura opressora. O roteiro quase surrealista se arrasta  pelo vagar ilógico das ações. A narração em voz over e a intervenção de ruídos diversos e pouco agradáveis (o som do filme é todo indireto e de pós-produção) só aumentam o distanciamento do espectador. Se o filme beira o insuportável, resta o consolo de que ele foi construído para isso. (Kênia Freitas)

Calafrios (1975)


Como obra de seu período inicial, Calafrios ainda é um pouco imatura frente a outros filmes de Cronenberg; daí sua aparência “trash”, seu inegável flerte com a estética barata de produções de low budget, algumas imperfeições que a tornam única dentro da carreira de seu realizador e também como peça profética: tanto para o cinema, pois antecipa Alien e seus monstros de infiltração gosmenta, como para a discussão de grandes chagas (não apenas físicas) contemporâneas, como a ganância extrema que faz cientistas criarem em laboratório ameaças para a vida humana, visando à glória de ser reconhecido na luta contra o perigo artificialmente fabricado. Não é um pouco o que dizem ter havido com a AIDS? Aí Calafrios deixa de ser tão futilmente fantasioso (como se a imaginação fosse por si algo vulgar, descartável) se o consideramos nesse contexto, e de qualquer modo o terror sempre presente nunca se faz ridículo ou fora do tom, pois Cronenberg sabe como segurá-lo na sua cadência, que faz todo o sentido ao se impor no cotidiano das personagens. Ao se manifestarem de maneira explícita, os Calafrios percorrem também a espinha de seu público. E de repente talvez percebamos que a questão moral proposta por Cronenberg não se esgota no extermínio das criaturas macabras vistas neste filme, mas numa mudança de postura e mentalidade. (Filipe Chamy)

Enraivecida na Fúria do Sexo (1977)

Imprevista atualização de mítica vampiresca, Rabid é o filme que conecta uma primeira fase de Cronenberg — de poucos recursos, quase artesanal — ao estilo que caracteriza todo o restante de sua carreira. Da dialética Corpo X Ciência, eis um reflexo exponencial dos traumas que este conflito moderno origina dentro daqueles que se submetem, ou são submetidos, a modificações de sua natureza para sobrevivência. É para não morrer que a protagonista suga a vida e o sangue (e o sexo) de todos que se aproximam; para continuar em seu corpo que, incontrolável e inconscientemente, ela espalha uma peste, a Raiva do título original, entre a população local. Os princípios de uma antropofagia espelhados pelo próprio cinema, pelo referencial de gênero em que Cronenberg adentra e pelo que ele lega e compartilha com autores de seu tempo (Romero, Craven, Rollin), cinemas feitos com os restos da humanidade. Neste corpo neutralizado a que se restringe o contorno da mulher atriz (Marilyn Chambers, advinda do mundo pornô e por isso com a única experiência legítima ao universo de Rabid, um filme a que só importam os resquícios dos corpos e de suas ações mecânicas), Cronenberg encontra a carnalidade devida e necessária ao seu projeto de imagem; é o que sua última cena confirma, no caminhão de lixo que tritura o cadáver esquecido, que se afasta dentro de uma rotina apocalíptica sem o menor pudor ou impressão nostálgica. Constatação de um tempo em que já não cabe a saudade, de um espaço que não alivia a mortalidade do mundo. Em Rabid um cinema que volta ao pó, que se rende ao finito, uma lembrança de que já não importa a ficção se tudo é frágil, ilusório, enfermo. (Fernando Mendonça)

Fast Company (1979)

Fast Company carrega o velho e bom discurso bufão de liberdade “hit the road” anos 70, concepção residual da semifalida contracultura sessentista e da agonizante transição, no cinema, do douradíssimo Monument Valley pralgum triste pedaço de asfalto entre o Novo México e a Louisiana — radiografia translúcida do jovem cinema americano tirada por um filme B de Alberta, Canadá. Embora pareça estranho ver um carsploitation entre filmes de horror na filmografia de Cronenberg, Fast Company guarda, ainda que sob as ressalvas de uma produção precária, indícios da mise-en-scène minimalista vista mais claramente a partir da década seguinte. A câmera é erradia e os cortes são rudes (especialmente naquele campo-contracampo frenético das cenas de corrida), mas acabam sempre por recompor a cadência de um outro cinema. No macro, Cronenberg é mesmo afeito ao escândalo, ao absurdo; mas na minutiae dos seus filmes sempre se instalou aquele olhar kafkiano que narra o desconcerto como banal, que faz da loucura a mais anêmica trivialidade. Para além do filme em si, que não despertaria mesmo um interesse genuíno (nem dentro do seu sub-gênero), há este semiclassicismo prematuro em Fast Company, de adotar a insurgência lisérgica exportada pela Nova Hollywood com preceitos do cinema clássico guardados no bolso. (Luis Henrique Boaventura)

Filhos do Medo (1979)

 

Nem o espectador nem os personagens que circundam Nola Cavendish — o médico trambiqueiro cujo tratamento se revela mais eficiente do que deveria; o marido que vai de um lado a outro em busca de uma explicação para os eventos cada vez mais inexplicáveis que ocorrem à sua volta — sabem, até as cenas finais de Os Filhos do Medo, se ela tem consciência ou não da existência de sua “ninhada” e de como as atitudes dos “filhos” refletem seus estados emocionais. A revelação é adiada por Cronenberg pelo maior tempo possível; a narrativa nos despista inúmeras vezes, empurrando Nola para uma posição de vítima indefesa de Oliver Reed; e tudo isso carrega a hora da reviravolta de expectativa, porque, embora sejamos levados a pensar que temos uma noção bastante boa do que está de fato acontecendo, o filme toma o cuidado de não nos deixar cristalizar uma certeza nunca. Assim, o momento em que Frank entra naquela quarto é valorizado, e é logo depois que estaremos diante da (apenas) segunda irrupção explícita, em todo o filme, do horror cronenberguiano como tomou forma na primeira fase da carreira do diretor, o das anomalias e deformações corporais; o que pode parecer estranho num filme com temática tão convidativa à imagem frontal do corpo padecendo de um mal físico ou psicológico que Cronenberg cultivou durante toda a sua carreira. Os Filhos do Medo tem essa postura porque aqui não importa tanto a mutação particular que vemos, mas sim o fato de que Nola não só a aceita como a celebra: e a mise en scène é sua cúmplice nesse aspecto, na forma como esconde de nossa vista, pela sua elegância, pela cadência da narrativa, muito mais próxima de um suspense clássico que um Scanners, a verdadeira natureza dos eventos. Nos filmes anteriores não existia olhar simpático algum para o que acontecia; mas de Os Filhos do Medo em diante a câmera de Cronenberg sempre enquadrará a anomalia (física ou mental) num misto de horror e fascinação. (Robson Galluci)

Scanners — Sua Mente Pode Destruir (1981)

 

Uma ficção-científica de terror, Scanners, com seu clima pesado, não deixa de trazer algumas questões caras ao cinema de Cronenberg: tecnologia e coerção social controlando e moldando os corpos dos indivíduos, que resistem como podem. No filme, um grupo de pessoas adquiriu a capacidade de ler e controlar mentes, devido a um experimento científico malsucedido. Com o fracasso das experiências, esses scanners (leitores de mentes) tornaram-se páreas na sociedade, incapazes de adaptarem essa aptidão a uma vida ordinária. A situação só muda quando um scanner decide reunir todos esses enjeitados em um plano de dominar o mundo. E apenas um outro scanner será capaz de acabar com essa revolução violenta. É essa guerra telecinética que filma Cronenberg. Se pela temática poderíamos supor uma abordagem mais psicológica, o que interessa ao diretor é o embate físico desses corpos. Os olhos se esbugalham, as veias saltam, o rosto se deforma. Como de costume no seu cinema, é essa metamorfose corporal que interessa a Cronenberg: o que se passa na tela como uma pele. O poder mental dos scanners se materializa como a carne e o sangue nas imagens, às vezes tão densos que as cabeças até explodem. (Kênia Freitas)

Videodrome — A Síndrome do Vídeo (1983)

Mcluhan apontou a tecnologia eletrônica – e posteriormente cibernética – emergente no século XX como uma extensão do corpo humano, o faz dela, deste ponto de vista, um tema natural para o cinema de Cronenebrg. Desde então diversos filmes se aproveitaram da ideia de diluição entre a realidade física e a ilusão virtual para a composição de uma única entidade-mundo – o próprio Cronenberg realizaria anos mais tarde nova investida no tema com eXistenZ -, nenhum deles com a precisão assustadora e visionária de Videodrome. Ao participar de algumas exibições de filmes snuffs – antes mesmo do termo ser cunhado para classificar os vídeos que reproduzem violência física e mortes não encenadas, reais – o personagem de James Woods passa a sofrer alucinações e é de seu ponto de vista distorcido e insano que acompanharemos tudo o que se desenrola na história, sem jamais sabermos quais elementos são reais dentro do conceito de “realidade” proposto para o filme e quais são meras intervenções de seus delírios. O dispositivo central parte de uma forte inversão: enquanto os limites morais da encenação são postos em xeque nos filmes-dentro-do-filme, com a reprodução de mortes reais em vídeo, a vida do personagem é sugada por um imaginário de gênero através do qual é transformada em uma grande ficção, com direito a cenas de ação, perseguição, sexo, assassinato e gore, elementos básicos do códice das ficções oitentistas – e também dos filmes canadenses do cineasta, que faria com Videodrome sua estreia em solo estadunidense. Desta dicotomia nascem momentos emblemáticos como o abdômen de Woods abrindo-se para ser transformado em um vídeo-cassete humano, ou a televisão o engolindo, ou a arma que ele porta se integrando ao seu corpo, fundindo assim máquina e homem em um mesmo ser – imagens que não poderiam refletir com maior precisão sobre nossos tempos. A tecnologia, embora à serviço da civilização do homem, também pode ser sua ruína. Long live the new flesh, diz Cronenberg, e salve-se quem, nesta intempérie de estímulos artificiais, conseguir se manter imune à insanidade. (Daniel Dalpizzolo)

A Hora da Zona Morta (1983)

A sintonia que o original literário de Dead Zone nutre para com o universo de Cronenberg é facilmente identificável pela relação de forças polarizada em torno do corpo humano, da dimensão que escapa à ciência e expande o horizonte de atuação dos entes racionais no mundo em que vivem. Abordagem de um vigoroso romance de Stephen King, este filme converge alguns aspectos que complementam o imaginário de Cronenberg no que tange o seu habitual alargamento dos limites físicos, no caso, uma demolição das barreiras que a mente encontra para exercer poder num domínio exterior à pele, sem a necessidade de qualquer contato com seus agentes de percepção. O protagonista encarnado por Christopher Walken, vítima de um acidente que libera em seu cérebro uma paranormalidade fundamentada na visão de dores e medos sofridos em espaços-tempo descontínuos ao de sua presença, concentra problemas característicos aos tipos que se multiplicam na filmografia do diretor: angústias de pessoas que se encontram num estado de diferença, que se fundem numa alteridade não compreendida e, por isso, são impedidos de uma comunicação social e afetiva com aqueles que já não conseguem enxergar neles mais do que uma memória latente, uma impressão perdida do passado. Apesar de tudo, o foco acentuado por Cronenberg sobre a interrompida vida amorosa/familiar de seu personagem — de um romantismo frustrado como só veríamos novamente em Marcas da Violência — ecoa uma impotência compartilhada pelo próprio resultado final de A Hora da Zona Morta, filme um tanto quanto envelhecido e formalmente dissonante dentro do cinema que ele desenvolveu no século passado. Talvez por isso, seu trabalho que melhor esboce os caminhos que ele trilharia nestes anos mais recentes, maduros o suficiente para assumir um classicismo indiscreto, confrontador. (Fernando Mendonça)

A Mosca (1986)

Precedido por uma reputação cheia de meias verdades, A mosca é tido na conta de refilmagem, de festim “gore” e de ficção-científica absurda e descerebrada. Mas na superfície tudo é raso, e é difícil subestimar este filme de David Cronenberg após assistir a ele com um mínimo de atenção. A Mosca não é um remake caça-níqueis, é uma outra versão do mesmo texto literário (não lembrando em nada o filme de 1958, aliás); também não se refestela nunca na gosma e na sujeira e no podre como uma maneira de chamar a atenção ou estilizar maneirismos estúpidos: é uma jornada de destruição, e claro que na putrefação física os detritos e chagas são abundantes; o rótulo de ficção científica — empregada aqui, pela ala detratora, como atributo pejorativo — também parece inadequado, sendo A Mosca um filme essencialmente romântico e dramático, uma saga de ambição e desespero, incrivelmente trágico, com uma moral encerrada no fundo de sua percepção da megalomania humana, com a eterna vontade que temos de usar a ciência para superar a natureza, sermos um pouco criaturas divinais. A Mosca está portanto longe do oportunismo, do amadorismo e do conservadorismo. É uma obra madura disfarçada sob a aparência de tolo entretenimento, e aí Cronenberg acerta na mosca. (Filipe Chamy)

Gêmeos — Mórbida Semelhança (1988)

Se as deformidades e transformações do corpo eram o leitmotiv da obra de Cronenberg até A Mosca, em Gêmeos — Mórbida Semelhança adentramos numa operação que desfacela esta regra e, por sua necessidade de encenação (fazer de um mesmo corpo, em tela, dois), concede à misè en scène do diretor um status cirúrgico — não sem propósito, é um filme que aproxima a ciência e a arte com certa frequência. Pois a consciência única dividida pelos gêmeos interpretados por Jeremy Irons permite a Cronenberg fazer uso de instrumentos próprios ao cinema (o corte, a angulação da câmera, o campo/contracampo) para nos cercar com um jogo de espelhos, partindo substancialmente de um mesmo e imutável corpo. Enquanto em Shivers, Rabid ou A Mosca as anomalias do corpo eram observadas frontalmente pela câmera, em Gêmeos essa mutação é originada justamente por ela, através de seus truques mais fundamentais, para dar à luz a ilusão da arte — e a arte não fora sempre, em sua gênese, uma grande ilusão? O corpo de Irons vela em si toda transgressão imagética deste filme de narrativa cristalina (como dito com frequência, o princípio do que se convencionou chamar de segunda fase da carreira de Cronenberg, dedicada ao estudo da mente humana e seus desvios), alternando personalidades a cada plano para fundir personagens que vivem alimentando-se uns dos outros — não apenas Bev e Elliot, mas todas as combinações geradas entre eles nas transformações físicas e verbais de Irons, que sustentam uma danação estimulada mutuamente e enlaçada à incompletude da outra metade, entregue a nós sempre com o retardo de um corte. Quando enquadrados frontalmente e imóveis num mesmo plano, com o rigor de uma pintura degenerada, Cronenberg reconduz o espectador à mórbida realidade da vida para lembrar que Bev e Shaw, ao final, não são nada além de matéria morta e inanimada; apenas mais um truque do cinema. Apagam-se as luzes e a ilusão tem fim. (Daniel Dalpizzolo)

Mistérios e Paixões (1991)

 

Cineastas do naipe de canadense David Cronenberg, com tantas obras-primas no currículo, não permitem que se possa aferir ou apontar com certeza absoluta qual trabalho que fizeram seria o melhor de todos. Mas, no caso, posso dizer que meu preferido dentre todos os que ele realizou é este Naked Lunch (o crítico norte-americano Jonathan Rosenbaum é outro que, salvo engano, o têm como favorito, mas curiosamente nunca foi um filme muito querido entre a crítica brasileira). Temos aqui um escritor frustrado que trabalha num emprego de merda, para quem não conhece, trata-se da história de Bill Lee (Peter Weller, de Robocop), um escritor junkie que trabalha como exterminador de baratas para poder pagar as contas. Porém, ele começa a correr grandes riscos de perder o emprego, ao ser acusado de desperdício do seu estoque de inseticida. O que acontece é que sua esposa, Joan (Judy Davis), esgota o material ingerindo-o como uma droga qualquer. Incentivado pela esposa, ele, que também já foi viciado, volta a usar da droga, o que faz com que dialogue com insetos falantes, que o incumbem de matar a mulher, o que ele acaba fazendo acidentalmente. Bill foge para um lugar estranho por onde é levado por suas alucinações, a Interzone, onde, munido de uma máquina de escrever que briga e se transforma em insetos gigantes, ele redige “relatórios” em que narra a seus “superiores” (os insetos) a vida dos nativos dos lugares, entre os quais, outros escritores obcecados por drogas, literatura e homossexualismo. Na verdade, Bill e esses outros escritores são agentes disfarçados que tentam descobrir o gerenciador local no tráfico de lacraias pretas brasileiras gigantes, que dão origem a uma droga de efeito ainda superior as demais. Não é preciso dizer que esse enredo de acontecimentos inacreditáveis e inenarráveis formam um universo surreal cheio de bizarrices, um delírio visual em que se sobressaem os insetos gigantes que mais parecem crustáceos, verdadeiras criaturas que se assemelham às que costumam povoar filmes de terror, mas que aqui fazem parte das “viagens” perpetradas pela mente psicodélica dos personagens quando sob efeito dos alucinógenos. O romance original do escritor beat William Burroughs foi publicado em 1959, e, desde sua estréia, considerado escandaloso. Muitos o julgavam intransponível para o cinema, até David Cronenberg encarar o desafio de levá-lo para as telas e filmá-lo na Inglaterra, Canadá e Japão, em 1991. De fato, a tarefa de transformar esse argumento em filme sem resvalar na mediocridade parecia ser uma tarefa das mais difíceis. Cronenberg superou todas as barreiras da transposição e criou um filme extraordinário. Ainda não li o romance, mas embora digam que Cronenberg tenha atenuado bastante o livro original, pode-se dizer que o canadense nunca levou suas bizarrices até as últimas consequências que nem em Naked Lunch. Em tempo: alguém tem dúvida de que William Burroughs, em seus delírios, escreveu esse livro na sublime companhia espiritual de Franz Kafka? Entre metamorfoses e mutações, a arte se recicla e se renova. Contar uma história dessas sem que o resultado se torne uma bobagem muito grande é mesmo coisa de gênio. (Vlademir Lazo)

M. Butterfly (1993)

M. Butterfly é um filme sobre a superfície da imagem. A ficção do corpo. O corpo é a peça-chave da filosofia misantropa cronenbergueana. O corpo que se transmuta, que se torna oculto, que resiste, disposto a domar a lógica das pulsões à sua volta, seja as violentas ou sexuais. Para quem ainda não viu o filme do diretor canadense, não se trata de uma adaptação da ópera Madame Butterfly, de Giacomo Puccini, mas da relação de Rene Gallimard, o personagem de Jeremy Irons, com uma interprete do papel-título em uma montagem da famosa ópera. A obsessão do primeiro pela imagem de Butterfly, cuja efígie é a materialização dos seus desejos, uma representação de algo próximo de um sonho (ou de um pesadelo), faz com que Gallimard persiga o seu adorado objeto de veneração por todos os lugares. Um grau de encantamento do qual não se quer acordar. Ao mesmo tempo, uma ambígua relação do exótico mundo da cultura chinesa com as perversões da burguesia ocidental (como define a personagem-título), que conduz a jogos políticos e a um intenso romance. Mas a trama aqui já não é mais apenas o que parece, ela revela-se um emaranhado de expressões faciais, de olhares, de gestos, de medos, de desejos, de frustrações, de expectativas. E o próprio Jeremy Irons, que nos acostumamos a ver vestido de modo impecável, com sua postura absolutamente contida e equilibrada, seus movimentos medidos, as palavras utilizadas de forma exata, com toda sua etiqueta aristocrática sendo posta em prática de forma exemplar, ao final não será mais o mesmo, depois de ser amado por uma mulher perfeita e após a visão de damas esbeltas com cheosan e quimonos, que morrem pelo amor de indignos demônios estrangeiros. Um filme sobre aparências, os enganos e a transitoriedade, as falsas percepções e certezas de um personagem inserido dentro de outra noção da realidade, como em tantas outras obras de David Cronenberg. (Vlademir Lazo)

Crash — Estranhos Prazeres (1996)

Antes que um filme sobre perversões sexuais, Crash é uma narrativa sobre valores contemporâneos: é consideravelmente moderna a percepção de que afinal nos mecanizamos cada vez mais, e este filme de Cronenberg trata dessa nova condição com impressionante exposição — os corpos, os movimentos, as penetrações na carne (e da carne) são retratados com brutal transparência, quase um sentido físico extra-tela, uma força mesmo aterrorizante. Mas não tanto quanto a que impulsiona as personagens do longa, que procuram nas cicatrizes, nos hematomas, colisões, sangue e feridas toda sorte de compensação por sua deficiência sentimental; quando as batidas de carros as excitam, é como se as máquinas lhes fossem armaduras com as quais resolvem finalmente entregar-se à luta, ou ao prazer. É portanto uma forma de decepção íntima que as anima a terem o gozo com a dor, pois na alegria é que elas sofrem mais. Então quando dois corpos se abraçam e se penetram, a cópula é antes uma exibição fria de poder e domínio que um ato humano de envolvimento. Se visto apressadamente, Crash parecerá a descrição de uma simples jornada de autodestruição inconsequente e fútil. Mas ainda que talvez seja também isso, há algo de mais profundo e tocante. E tocar nesse nervo doloroso é tarefa cumprida com êxito por Cronenberg, que, como tentam suas criaturas, é incansável manipulador de corpos e mentes. (Filipe Chamy)

eXistenZ (1999)

No final dos anos 90, Cronenberg já abandonara havia muito as mutações e deformações físicas extremas da primeira fase de sua carreira em favor de um universo em que a mente é a origem das atribulações do indivíduo, mas é apenas em eXistenZ que esse ponto de vista se concretiza da maneira mais radical até então. Antes, o personagem cronenberguiano via-se delimitado (em como percebia a si mesmo e se colocava no mundo) pelo seu próprio corpo, e só podia sair de sua passividade, com resultados violentos, via intervenções externas — parasitas, deformações, experimentos científicos malsucedidos —, mais tarde colocadas sob um frágil controle: o homem maquina sua própria mutação. Em eXistenZ, porém, isso tudo desaparece, porque o fora não existe mais. Tudo está no jogo, tudo está na mente. Suspeita-se até mesmo do próprio corpo, talvez apenas outra ficção, como toda a (aparência de) realidade que circunda os personagens. Certos elementos típicos da primeira fase dão as caras, como a bioporta na espinha e o gamepad, porém mais como despiste ou referência irônica ao universo mental do diretor, e preenchendo o papel de alívio cômico mais de uma vez; e deve-se destacar como, fora a própria bioporta, todas as mutações que vemos — o console orgânico vivo, os anfíbios mutantes — não são causadas nos próprios personagens, e sim na realidade/ficção mental pela qual se deslocam. Daqui em diante, o fantástico e a ficção-científica começarão a sumir do cinema de Cronenberg, conforme essa realidade que é criada e deformada obedecendo aos impulsos da mente passa a assumir formas cada vez mais “realistas” (delírios esquizofrênicos, mentiras contadas deliberadamente); e, embora eXistenZ adote uma postura de completa negação de que sequer haja um fora, nos filmes seguintes o mundo externo voltará a dar sinais de vida, apenas para ser ferozmente repelido. Porque a única coisa que pode sacudir os personagens da nova fase de Cronenberg de sua passividade é a mesma que tanto afligiu os anteriores: um assalto inesperado da realidade física. Em retrospecto, diante da situação dos protagonistas de eXistenZ quando o filme acaba, Seth Brundle não terminou, no final das contas, tão mal. (Robson Galluci)

Spider — Desafie Sua Mente (2002)

“Se o hábito faz o monge, quanto menos monge, mas hábito se faz necessário.”
Essa foi a primeira frase sobre Spider que me fez ligá-lo prontamente ao protagonista solitário de O Perfume, de Patrick Suskind. Ambos os personagens manejam com engenho algumas das faculdades mais humanas, ao passo que são absurdamente deficientes em serem propriamente humanos, e é isso que melhor os define. Em Suskind, um perfumista sofre por ter vindo ao mundo sem cheiro próprio. Em Spider, um homem esgota suas últimas forças, num tremendo esforço de memória, para reconstrução de um quebra-cabeça, até chegar a quem escondeu a peça que falta. Na minha trajetória com Cronenberg, Spider parece o monstro mais contido. Aliás, tudo ao redor serve apenas para ilustrar a contrição do personagem, em verdade, certo desmerecimento por tudo que pareça acessório em relação à sua obsessão dramática pela morte da mãe. Sempre me ocorre pensar que os ambientes entre cinza e tons pastéis denotem a falta de sangue (como signo de vida) nestas histórias de personagens que impregnam a cor do filme com a profundidade de suas questões. No jogo de substituição das personagens femininas, confesso, minha atenção perturbada se viu esfregar o olhos. Sofro ao pensar naquele personagem-aranha absorto na criação de sua própria rede mantendo assim as perspectivas turvas ao levantar a atenção de seu projeto. É fácil perder o fio da meada.. Aliás, para Spider não existe fora: tudo que importa/existe está de alguma forma abarcado por algum dos nós que ele foi deixando pelo caminho. Engraçado perceber a dor do protagonista ao não poder sair à rua com um mega novelo, e amarrar a cidade inteira. Acaba contentado em expor seus fluxos no quartinho apertado do sanatório. Complexo de Édipo? Na verdade a obsessão de Spider passa tanto pela morte da mãe, como pela criação da narrativa à qual precisará dar um final. Um homem perturbado que se isola na solidão da paranóia, criando intrincadas relações neurais, teias, para resolução do quebra cabeças. Aquilo que se esconde, ou aquilo que escondemos de nós mesmos? Quem nunca viu esse filme? (Geo Abreu)

Marcas da Violência (2005)

Marcas da Violência profana as escrituras e retifica o mito do assassínio original em página nova, onde Abel mata Caim, ganha o perdão no lugar do exílio e funda sobre seu corpo o edifício da sagrada família, misturando no mesmo barro o sangue inocente com o maligno. Porque há um mal atávico que sopra do Mediterrâneo no ouvido dos homens e contra o qual não vale a composição dos velhos testamentos, por isto Marcas da Violência é menos sobre a história das fundações e as fundações da História do que sobre o papel do perdão na manutenção do mundo; um perdão não ao indivíduo, mas à natureza e seu mistério, interregno rudimentar geradouro do bem e do mal, do pai e do assassino. Como quando Tom, aos pés do seu matador, é salvo por um tiro do filho. Sem saber o que esperar, se a reprimenda do pai ou dois tapas nas costas, ele permanece quieto, assustado, dando conta ainda do estranho quadro que lhe assalta os olhos (três corpos em torno do pai baleado), estes olhos prematuros jamais expostos a um certo mundo que rosna e espreita aos portões da cidadezinha. Tom levanta-se, tira das mãos adolescentes do filho a espingarda e o absolve com um abraço, gesto redentor do patriarca que tem o rosto manchado de sangue. Não importa que seus prodígios se extraviem, a violência acaba sempre por encontrar um caminho de volta, e é natural que se proceda no seio da família a esta esquize elementar: entre o filho puro e o corrompido, entre o pai e o estranho. Daí a beleza da composição de gestos na cena final. Restaurar a casa que tomba sem esquecer que em nossa pedra angular foi imolada uma criança. (Luis Henrique Boaventura)

Senhores do Crime (2007)

O início de Senhores do Crime parece saído de uma história de Dostoiévski. Em quatro minutos de filme, Cronenberg apresenta duas mortes. A primeira, um assassinato praticado por alguém que experimenta pela primeira vez a sensação de matar. A segunda, de uma adolescente grávida que busca socorro em uma farmácia, com o que parece ser uma hemorragia. Levada ao hospital, ela não resiste e morre um minuto antes do nascimento da filha. Ao encontrar o diário da garota, em meio a seus pertences, a enfermeira responsável pelo parto decide ir atrás da família para entregar o bebê. Através do diário, as histórias das duas mortes e da parteira se ligam a uma família russa mafiosa, que usa um restaurante de fachada para seus negócios. Falar mais que isso sobre a trama é estragar a experiência que o filme proporciona, antecipando as viradas de roteiro. Apesar de mergulhar no mundo da máfia russa, apresentando o código de tatuagens e rituais de aceitação, Cronenberg não faz um filme interessado em depor sobre o sistema (mesmo tendo detalhes cuidadosos na representação, como o uso de facas no lugar de armas de fogo, obedecendo aos códigos da Vory v Zakone, e o sotaque impecável de Viggo Mortensen – cuja atuação é um dos grandes trunfos do filme). O mérito do diretor está em utilizar o mundo de um chefe do crime, capaz de tratar com a mesma naturalidade seus negócios e uma panela de goulash no fogo, para compreender alguém que vive a violência como profissão. Descobrimos também que a violência, além de ser ação natural, é uma experiência pessoal, particular a cada indivíduo, mesmo em um grupo regido por normas de condutas que não permitem exceções (a instabilidade emocional de Kiril, personagem de Vincent Cassel, por exemplo, contrasta com a tranquilidade de Nikolai, o motorista de Viggo). Encontramos a assinatura de Cronenberg, cineasta legitimo do cinema de autor, especialmente na representação visual de como essa naturalidade é experimentada por aqueles que habitam o mundo da máfia. Cronenberg é o diretor que vai contra a corrente do discurso condenatório de todo e qualquer tipo de violência, interessado em investigar o que a gera. A eleição dos gêneros de horror, suspense, drama, que marcam sua filmografia, são apenas um meio para realizar a anatomia de uma das mais cruas emoções humanas. Senhores do crime é um ensaio sobre a proposição de que “cada pecado deixa uma marca” (frase do pôster de divulgação da produção). Sejam elas visíveis como as tatuagens de batismo de um grupo mafioso, ou daquelas que não se confessa nem às páginas de um diário. Quem não as carrega, que atire a primeira pedra. (Fernanda Canofre)

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Plano de metamorfoses (ou o equívoco de nossa nostalgia)

Por Ranieri Brandão

De imediato, sempre nos referíamos com estranheza diante do tríptico cronenberguiano mais recente, lançado entre essas duas décadas lancinantes em que também espalhamos, pelas vias das mil geometrias do estilhaço, nossos tortos passos de palavras endereçadas ao cinema. Por isso, é vital voltar a David Cronenberg, a esses três filmes conectados por uma certa coerência na (dis)posição do olhar. Coerência, dirão, num primeiro momento apaziguadora, até. O discurso: preguiça típica e necessária à reconciliação com o mundo, dentro do mesmo conforto atordoante no qual, ao atirarmos as primeiras pedras maliciosas por sobre as superfícies desta “trilogia”, nos fez descobrir a fragilidade das vidraças que guardavam em segurança nossas eretas e ejaculantes antenas prontas para a captura da encenação.

Nossa simbologia maior, ofuscada pelo excesso de conhecimento, apontava, simultaneamente em Marcas da Violência, Senhores do Crime e Um Método Perigoso, para o ponto mais “limpo”, mais “transparente” possível, e também para um indesejado retorno nefasto, supostamente criminoso, aos pecados e percalços de uma escrita conformista que de todo não daria conta nem faria vulto (nem fundo digno) a um traço/assinatura tão comumente brutal. Enroscados nesse raciocínio, chegávamos ao coração da mais inesperada nomeação datada: “Cronenberg, o clássico”. “Clássico”, palavra prostituta, da pejoração, claro. Do traidor rendido que nos abandona e que só nos dá um pouco da “velha” (meta)física esguichante na sequência da luta na sauna, em Senhores do Crime.

Erro crasso (e “crássico”) das tautologias: esse que dá nome a uma “linguagem clássica”, do “contar clássico”, do “plano comportado”, do “corte invisível”. O clássico não é outra coisa senão o moderno e seus graves desvios de personalidade, seus eternos retornos à intensidade, ao mundo corrompido em cacos de cenas-no-presente, eterno presente de uma arte — fatalismo e polêmica meus! — ainda “ignorada”. E ignorávamos então, coisa explícita agora, os caminhos que Cronenberg percorria, animal premingeriano e doentio da imagem, ao menos desde A Hora da Zona Morta, naquela cena que parece ser uma reencenação visual e visceral do assassinato de Lincoln (logo: há momento perfeito mais clássico-traumático e histórico para ser refeito com as tintas do gore? para ser mantido, ad eternum, na infinitude do presente?), onde um homem morre num falido palanque de comício político. Procedia-se, já aí, a uma montagem cristalina, quase cega (diremos, nós do lado de cá da cinefilia, do “olho a mais”: opaca, linda, categórica, “didática”), para registrar as coisas mais absurdas, as mudanças mais antropofágicas, as loucuras mais gráfico-oníricas do pesadelo. A Hora da Zona Morta era o filme sintomático em que se enxergava muito. Enxergava-se tanto, tanto e em excesso, que se pré-via o roteiro como movimento voluntário e autofágico do olhar (a doença do personagem de Christopher Walken). Já era “clássico” desde os créditos, com o título emergindo em negativo. Os cegos, portanto, éramos nós.

E é a cegueira quem faz com que se empreenda a remontagem arqueológica de toda uma história de encenação declaradamente sedutora e erotizante, para corrigir essa visão (míope, astigmática, o que seja) tardia. Porque o plano, em Cronenberg, e em especial em seus últimos três filmes, é o local da perversão (da delícia não-interdita) do campo/contracampo — e, ainda mais, é o espaço que observa a transformação, trágica e irretornável, dos corpos dos protagonistas. Se o cinema clássico existe sobretudo na presença do contracampo (a prova: dois seres existem porque se ouvem, porque o som toca suas silhuetas, suas formas, e volta), o que falar de Cronenberg, quando no que há de melhor em seus filmes um único ser se parte e se desmembra em dois, em luz e em sombra, em máscara e em seguida no fim violentíssimo desse frágil recalque mantido imperturbável durante tanto tempo, tudo encenado nesse mesmo espaço-objeto que é o corpo do ator? O que se entendia como “horror Z” ou coisa tola que o valha, nesse cinema, é justo sua enorme ironia, seu avassalador golpe de vista corrompida, que coloca no centro e na gravidade do plano a depravação de naturezas: o registro direto, macio, das oscilações deformadoras nos corpos do mainstream, e nessa entidade absoluta que em algum momento se tornou o plano, como tela para a mise en scène.

Mas isso não basta, nunca nos bastou e nunca nos satisfez totalmente. Cronenberg, perverso, reveste a linguagem “clássica” do mistério demoníaco de carregar em si não mais os velhos corpos de cinema (entenda-se, corpos da Beleza: Grace Kelly, John Wayne, Cary Grant, Ava Gardner, Catherine Deneuve…), mas outros corpos (Jeff Goldblum, Jeremy Irons, Viggo Mortensen, Naomi Watts, Keira Knightley — o “novo clássico”?) a se decomporem, a se estriparem no quadro, vomitando os restos orgânicos de sua parca matéria já morta ou afetada pelo poder incontível da mente, das coisas que ela controla e transmuta em forma prestes a desaparecer por meio da força e da violência (tele)cinética (Scanners). Se há essa tradição do horror no cinema de Cronenberg, é porque nele se manifesta a linguagem de (e do) sempre, instalada com toda a insânia na íris fatal do gênero, em sua clínica e pulsional obsessão: pois o vício e o transtorno do terror, a folha em branco fundamental aonde ele escreve seu olhar, é o corpo humano a explodir de dentro pra fora, vítima de todo tipo de ulcerações, de lacerações, e a observação disso em trânsito e em fluxo sanguíneo. O horror toma forma aí. Logo, ele faz o somático tornar-se corpo, ser representado nele (no Belo de sua eliminação total, em seus últimos espasmos), na pura carne podre posicionada no plano, como se os personagens de todos esses filmes estivessem em putrefação enquanto estão vivos. Processo de milésimos de segundo, que, em Cronenberg, tem a duração e o rigor cruel de cenas inteiras sobre tratados de escatologia.

Daí nascem duas ou três imagens perturbadoras, pelo menos: aquela do duplo Jeremy Irons, no papel de dois irmãos em Gêmeos — Mórbida Semelhança, laçados por uma faixa (uma ponte? maldito umbilical fraterno) de pele horrenda, siameses que colocam, na composição dessa maquiagem decomposta, o mistério de tal afecção: o terror de nascer um, em dois, partidos, imprescindíveis; aquela outra, talvez tão assombrosa quanto (ou tão viciosa quanto), de Keira Knightley em Um Método Perigoso, esse grande filme de desvios patológicos que reverberam no plano: seu contorcionismo, sua possessão, sua vagina umedecida pela humilhação paterna; e ainda a de Viggo Mortensen no instante de sua revelação em Marcas da Violência, quando não é mais possível conter a persona construída e tudo vem abaixo num rompante de fúria. Dupla, tripla perversão das visões do “clássico”, ou, para dizer o que é claro, pura perversão daquilo para quê o clássico olha.

Objetos, vidros, degraus, espelhos, travellings, cortes. A cena e seus elementos mais verborrágicos em Cronenberg são úteis senão para o gozo de uma arquitetura do perverso. Da transfiguração “de valores”, mise en scène carregada de ditos a respeito de outros sentidos para as formas. Porque o clássico sempre foi tudo aquilo que o Mal remodelava com suas mãos. Daí as lógicas “tortas”, as excentricidades estáveis, as reencenações intermináveis do drama e das coisas: do sexo, em Crash — Estranhos Prazeres; dos encontros sexuais pesadíssimos (“sadomasô”) de Jung e Sabina, em Um Método Perigoso; dos materiais cirúrgicos, verdadeiras obras de arte, para destruir qualquer vagina trifurcada e viva como objeto de obsessão, em Gêmeos; do corpo irreversivelmente tatuado do policial infiltrado na máfia russa, essas tatuagens aparecendo como marcas físicas e visíveis de uma outra persona inventada, em Senhores do Crime. São todos fragmentos do fetiche cronenberguiano por um “desenho a mais”, um movimento a mais, um desequilíbrio a mais da suposta paz clássica que erradamente tanto se reivindicou, componente que, em pequena pitada, transforma o comum em exceção, o amor em psicose, o real em delírio. Um gene a mais, um gesto a mais, só um, e a doença da distorção estará à espreita no próximo plano.

O que ofusca nessas três obras-primas recentes de Croenenberg é a parafilia de nossa nostalgia do clássico. Gozamos por amor àquilo que ele não é — ou, sei lá, que ele talvez não seja (“inocente”). Parafilia que o reconfigura e o incrusta, numa imagem polida e central, espécie de leito materno inviolável e de local nada maculado, a “linguagem” que nunca viu o horror de frente. Para negar isso, lembremos um procedimento banal para nossa cinefilia anos 2000, às vezes tão cheia de saudades e dores: todas as composições estraçalhadoras que são os melodramas de Sirk em sua profunda e profana degeneração a eclodir ali no seio cadavérico (e lindo) do cinema norte-americano dos anos 50. Quando Cronenberg filma em Marcas da Violência, Senhores do Crime e Um Método Perigoso uma composição já recorrente nos últimos anos (será que ela reaparece em Cosmópolis?) em que o campo e o contracampo subsistem num mesmo quadro corrompido pelo foco, surge o momento em que o clássico aparece para nós engendrado e representado no maior de seus esplendores e transparências explícitas de genialidade: em quadro, habitat natural, seres de duas cabeças, monstros deformados pelas pressões sociais, fazem emergir todo o medo, toda a frustração, todo o segredo inconfessável regurgitado de seus misteriosos recônditos, dos porões cheios das teias de aranha carnívora de seus Ids. Fazer emergir o oculto da escuridão e com isso ao mesmo tempo fazer degenerar as imagens típicas que temos desses protagonistas até segunda ordem típicos, é o ato mais pungente e mais radical que o clássico pode nos dar a seu respeito — esse de olhar desmembramentos e rachaduras físicos e mentais nada apaziguadores. Mutações pictóricas grotescas para o resto da vida, para toda e qualquer cena, para todo e qualquer plano. Eis uma doença psicogenética de cinema. Dele e apenas dele.

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