Arquivo

Uma carta ao Manoel

Por Fernando Mendonça

Era tão menino. Espantava-me pensar um século de vida, ouvir e ler das coisas que tanto fizera, que fundo marcara no espírito humano dos anos 1900. Sabia de tua importância, benfazeja posição numa arte que tanto me ajudou a entender-me este menino. Pois foi também através de ti que eu me entendi, Manoel, e que passei a melhor lidar com as imagens de minha formação, já neste outro século, bem depois do ano 2000, quando tardiamente (dizem as aparências) descobri tua luz. Mas a descoberta foi plena, dando-me a consciência de que nenhuma luz é tardia, de que não há atraso para os bons sentimentos e, assim, eu já não poderia imputar-me culpa de coisas que são maiores e estão mais alto do que posso alcançar. Disseste-me naquela primeira sessão que participei de um filme teu (Os Canibais), como se sussurrasse aos meus olhos diante daquela louca alegria de obra, que as coisas não seriam tão fáceis, em nenhum sentido: fosse para mergulhar em teu mundo oblíquo, fosse para dele sair na respiração de outros mundos e cinemas que já não me bastariam ou completariam pela superficialidade, fosse para me assumir como homem de um mundo que também não facilitava os teus caminhos, o teu olhar. Pois, ao mesmo tempo em que me diziam da necessidade em celebrar teu nome e teus muitos anos, roubavam de mim a chance de acessá-lo, de conhecê-lo como gostaria, assim, na intimidade de uma correspondência. Ver teus filmes sempre me exigiu garimpo, do lado de cá do oceano, e tantos me chegaram em qualidade duvidosa que ainda não sei se pude vê-los como de fato são. Talvez por isso ainda não tenha visto todos, nem mesmo muitos dos que cá existem, pois sinto que preciso sempre tocar em ti com alguma calma, alguma percepção distinta da que vivo cotidianamente, cinefilamente, para melhor esclarecer. Cada palavra tua nas sessões seguintes, cada piscadela partilhada ao término dos filmes que desde então apreciei, também me ajudou a situar esta qualidade de cinefilia não como um algo a parte, um impulso destacado da sociedade, dos que me cercam, pois tua lição foi me fazer partícipe direto da realidade. Deste-me a luz para que entendesse as sombras, deste-me o tempo para que vivesse o que há de mais concreto em meu corpo e nas relações que a partir dele posso estabelecer. E o maior de todos os aprendizados neste crescimento, nesta educação que até hoje insistes em me guiar, foi o de compreender que não preciso deixar a meninice para ser homem, pelo contrário, pois agora sei que devo manter o crédito do deslumbramento, da imensidão que pode haver nas cores de uma flor ou numa palavra bem dita. Teus ensinamentos me deram um melhor trato do verbo, ainda que dele me valendo, como aqui, não possa articular a total expressão do que gostaria de dizer-te. Melhor trato porque nele inclusa veio a consciência de que toda tentativa de fala se finaliza no silêncio, e que nisto está o mais efetivo registro da humanidade. Mais do que gastar meu dizer, em ti aprendo o calar, o valor da pausa, dos espaços em branco que permeiam a vida, a arte, o amor. Teu cinema é este justo espaço que me faz menino, Manoel, é o intervalo que une e separa aquele meu plano favorito dentre os que já vi teus, em Viagem ao Princípio do Mundo; aquele quadro, em que a mão de Marcello (tua mão, minha mão) tenta alcançar a flor no alto da árvore. Teu cinema é aquele abismo de poucos e eternos centímetros, aquela ausência cheia de sentido e esperança, que não mais desaparece ou conhece término. E se arrisco minha gratidão, entre tudo que de ti recebo, numa única sentença, ei-la: obrigado por morrer menino. É tua juventude que não me deixa chorar, dando-me o luto mais branco que já provei, prosseguindo tudo o que acompanhei de teus últimos anos, na felicidade do que realizava e não cansava de planejar para o futuro. Tua partida não encerra nada disso, eu sei. E sei que me incumbes, a mim e aos de minha geração, a continuar diminuindo o espaço entre a mão e a flor. O futuro ainda está em ti, Manoel, em teus filmes e tudo o que fizeste, em tudo o que ainda despertará no coração de tantos. Tranquiliza-te aí, como é teu hábito, pois de cá estamos seguindo teus passos, retraçando os caminhos que iluminaste para que encontrássemos os nossos. Minha palavra de apreço, meu sentimento de saudade, meu coração que é teu. Até breve.

manoel de oliveira

FacebookTwitter

Entrevista com Allan Ribeiro

Por Pedro Tavares

A relação do diretor Allan Ribeiro e o artista plástico Darel Valença Lins representa a ruptura da rotina solitária de um homem que abre brechas suficientes para analisar sua persona entre seu trabalho em Mais do que Eu Possa me Reconhecer. O filme, que estreou na última Mostra de Cinema de Tiradentes e saiu com o prêmio do júri da crítica da Mostra Aurora, principal prêmio do evento, é o tema principal deste bate-papo com o diretor, que também fala de distribuição cinematográfica, dos filmes anteriores do cineasta e do tempo de filmagem na casa de Darel.

11132438_1020319161334188_1751432377_o

Pedro Tavares: Mais do que eu possa me reconhecer à priori me pareceu a ruptura de um estado de espírito alimentado por Darel, sempre protegido pela magnitude de sua casa. Como se tua presença e a de Douglas trouxesse uma nova interpretação à vida do artista, mas sem resistências. Para chegar a este ponto eu queria saber mais da pré-produção do filme, se houve algum planejamento para a temporada passada com o Darel, inclusive do ponto de vista ético já que Darel lida com situações extremamente delicadas.

Allan Ribeiro: Meu primeiro contato com Darel já foi através do viewfinder de uma filmadora, a mesma que seria usada no filme alguns meses depois. Estive em sua casa, no início de 2009, para registrar um depoimento que seria exibido na exposição “Goeldi”, produzida por um amigo. Assim que terminamos, Darel estava muito interessado no meu equipamento, disse que fazia vídeos e passava as noites sozinho assistindo a filmes.

A partir daí começamos uma amizade. Ele adora receber amigos e bater papo. Depois de alguns encontros, veio a vontade de filmá-lo, sem saber muito o que faria com este material. Agora, 6 anos depois acabou virando um longa-metragem. Não houve exatamente uma pré-produção. Eram apenas eu, Darel e nossas câmeras. E o Douglas durante um dia que me ajudou com o som direto. Sem nenhuma resistência de Darel, como você colocou.

A respeito da questão ética, você deve estar se referindo a duas questões: a solidão e a morte do filho. Estes assuntos são colocados com muita naturalidade pelo Darel e não foi um problema durante os 4 dias de filmagem e nem na montagem. Recentemente, eu mostrei o penúltimo corte do filme para ter certeza que ele não ficaria chateado com estes temas. Ele se abre muito durante o filme, mostra sua casa e sua vida. Era importante ter a aprovação dele.

mais do que eu possa

Mais do que eu possa me reconhecer é divido por cenas, colocando em cheque qualquer ação e palavra de Darel. Até que ponto esse jogo de reconhecimento do que é real ou interpretado se deu na rotina? Quais limites foram dados para entrar ou não no filme?

Como tenho trabalhado com filmes híbridos, tentei negociar com o Darel dele interpretar algumas ideias para o filme, mas ele era contra, dizia que iria ficar falso, que ele não era o Paul Newman. Fiz questão de inserir a palavra “cena” na montagem, como uma provocação a ele. Não há diferença entre ficção e documentário. Um ator de Hollywood e um personagem de Eduardo Coutinho têm a mesma função numa tela de cinema.

Em Mais do que eu possa me reconhecer, é mais interessante sentir o jogo entre minhas imagens e as imagens dele do que detectar o que é ou não ficção. Quando Darel se filma, sozinho, entra na frente de sua câmera e faz uma ação, é “pura ficção”, auto-representação. Juntando os materiais, investimos mais em nos libertar de qualquer explicação sobre a natureza das imagens e simplesmente contar uma história, as vezes com minhas imagens, com as imagens dele, com meus textos, com textos dele… Não importa. O filme é uma junção de nossas cabeças e artes.

Assistindo Mais do que eu possa me reconhecer associei Darel a alguns personagens de seu curta Papo de Botequim (2004), principalmente sobre a fuga da rotina e a melancolia embutida em cada depoimento, por mais que o bom humor reine. Darel, como extremo oposto dos personagens do curta, se legitima como mediador do curso do filme, como quem filma e quem é filmado, dentro deste perfil. Quanto de autonomia ele teve para sugerir e o quanto você teve de autonomia para exibir a intimidade do artista?

Ele sugeriu muitas coisas durante as filmagens. Algumas das sugestões podem ser ouvidas de sua própria boca durante o filme, como por exemplo quando sugere que podemos misturar nossas imagens, que acabou sendo o principal conceito do filme. Ele percebeu, antes de mim, que eu também era um personagem do filme. Isso fica claro quando fala do encontro de nossos olhares. Darel não interferiu na montagem. Fiquei realmente livre nesta etapa.

darel

Em certos pontos do filme há embates espontâneos entre você e Darel, diluídos em discussões sobre formas de filmar e exibir. Como o restante do filme, estamos falando de uma situação de reflexos, que invariavelmente criam identificação e atrito. Gostaria de saber mais sobre os espaços dados a Darel, os tempos em silêncio, qual o seu entendimento de interagir ou não com Darel e consequentemente ser mais um personagem do filme? Como não entregar o filme ao artista e não usá-lo somente como “homenagem”?

Os embates eram causados por dois motivos principais. O primeiro era quando eu perguntava sobre algo que ele já tinha me falado, mas eu gostaria que isso fosse registrado pela câmera. E também por questões tecnológicas, o uso ou não do computador, a melhor forma de armazenar o material e copiar arquivos. Cada um defendia o seu modo de fazer.

A minha entrada como personagem do filme não foi programada e tem uma explicação simples: estávamos quase o tempo todo sozinhos naquela casa enorme. Não tinha como não interagirmos. As vezes esquecíamos que a câmera estava ligada e falávamos de outras coisas ou sobre o próprio filme que estávamos descobrindo juntos. Sempre que Darel olhava para a câmera, na verdade ele olhava para mim. E a lente era meu olhar.

Quando Darel sai de seu casulo não há mais a ideia sobre o que é “filme” ou o que é “Darel”, num encontro simbólico muito bonito. Esse encontro imagético é reforçado pela trilha, que é muito significativa em Mais do que eu possa reconhecer. Como ela foi pensada e composta dentro da proposta orgânica do filme?

Não sei se é orgânico. Mas, o processo de montagem foi nos permitindo gradativamente interferir com muita liberdade nas imagens feitas por Darel. Ele sempre usava musicas clássicas em seus vídeo-artes. O que utilizamos na maior parte do tempo. Usar uma música oposta no fim do filme faz parte deste jogo de explorar todos os significados que aquelas imagens e momentos poderiam revelar.

allan ribeiro
Allan Ribeiro, diretor de Mais do que eu possa me reconhecer. FOTO: Leo Lara/Universo Produção

Recentemente vemos filmes independentes encontrando seu caminho em Video on Demand, via internet ou em TV por assinatura. Você acha que este é o caminho mais prático no atual cenário de distribuição de filmes? Como você vê a distribuição de filmes?

Acho que sim. Existem muitas possibilidades de distribuição. É um momento de transição e cada filme deve encontrar o melhor caminho de ser visto. O êxito de um filme não está ligado diretamente ao seu público no circuito comercial.

Mais do que eu possa me reconhecer vai estrear nas salas de cinema no final deste ano. Uma distribuição mais tradicional. Vamos ver se será um bom caminho!

FacebookTwitter

Branco Sai Preto Fica (Adirley Queirós, 2014)

Por Kênia Freitas

I

A forma em si, as convenções da narrativa em termos de como lidar com a subjetividade, o foco em alguém que está em desacordo como o aparato de poder da sociedade e cuja profunda experiência é a de deslocamento cultural, alienação e estranhamento. A maioria dos contos de ficção científica lidam com como o indivíduo irá lutar contra essa sociedade e circunstância de deslocamento e de alienação e isso praticamente resume a experiência massiva da população negra na pós-escravidão do século XX.
Greg Tate

As populações negras do continente americano são as descendentes diretas de alienígenas sequestrados, levados de uma cultura para outra. Os seus antepassados, separados dos seus territórios originais, foram abduzidos como escravos para o Novo Mundo. Na(s) América(s), passaram por um processo constante de apagamento das raízes – separados de parentes ou de pessoas da mesma comunidade, impossibilitados de falarem as próprias línguas, com os corpos encarcerados impedidos de seguirem as suas tradições culturais. Ao longo dos séculos, os descendentes dos aliens, já despossuídos da própria narrativa, foram incorporados como o órgão estranho dessa nova sociedade híbrida: contidos e rechaçados pelo corpo social – caçados e assassinados pela polícia e cerceados pelas grades de novas prisões.

A comparação do processo de diáspora da população africana para o continente americano com a construção de uma narrativa de ficção científica extraterrestre não deixa de ser brutal, potente e, ao mesmo tempo, curiosa – visto que tão poucos negros e negras protagonizam (como criadores e/ou personagens) o universo das fantasias futurísticas. Essa ideia é ponto a partir do qual Mark Dery cunha o termo afrofuturismo para tratar das criações artísticas que por meio da ficção científica inventam outros futuros para as populações negras atuais. Kudwo Eshun resume o techo que abre esse texto em uma frase: “A existência negra e a ficção científica são uma e a mesma”. Acessar ao universo narrativo das obras afroturistas é lidar concomitantemente com a sua dupla natureza: a da criação artística que une a discussão racial ao universo do sci-fi e a da própria experiência da população negra como uma ficção absurda do cotidiano. Se mais do que previsões ou premonições do futuro, as narrativas de ficção científicas são formas especulativas de pensar o presente, essa distinção é crucial para pensarmos Branco Sai Preto Fica como uma exploração afrofuturista do dia a dia da população negra brasileira.

brancosai2

II

A razão histórica para termos sido tão empobrecidos em termos de imagens futuras é porque, até muito recentemente, como uma população nós fomos sistematicamente proibidos de qualquer imagem do nosso passado. Eu não tenho ideia de onde, na África, meus antepassados negros vieram porque, quando eles chegavam ao mercado de escravos de Nova Orleans, os registros desse tipo de coisa eram sistematicamente destruídos. Se eles falassem a sua própria língua, eles apanhavam ou eram mortos. (…) Quando, de fato, nós dizemos que a história desse país foi fundado na escravidão, nós devemos lembrar que queremos dizer, especificamente, que ela foi fundado na destruição sistemática, consciente e massiva dos reminiscências culturais africanas. Que algum ritmo musical tenha perdurado, é bastante impressionante, quando você estuda os esforços da maquinaria branca de importação de escravos em eliminá-los.
Samuel R. Delany

Dimas Cravalanças é um viajante do tempo, vindo diretamente de 2073. A sua missão é a de coletar provas no passado sobre a ação repressiva da polícia no Baile Black do Quarentão, na Ceilândia, Distrito Federal. O crime do Estado brasileiro aconteceu em 1986, mas Dimas foi enviado para quase 30 anos depois do incidente, caindo com o seu container-máquina do tempo nos dias atuais, de 2014 ou 2015. A construção das suas provas passa pelo encontro com Marquim e Sartana. O primeiro, levou um tiro durante a invasão policial; e o segundo, foi pisado pela cavalaria da polícia ao tentar sair do local.

Se esses eventos traumáticos do passado são o ponto de apoio da porção verídica da narrativa (com as suas fotos, os seus recortes de jornal e até, por fim, o tesmunho talking head das vítimas), o presente – o tempo em que habitam Marquim e Sartana, para onde Dimas é enviado para coletar evidências e no qual a narrativa transcorre – é uma versão aproximada e distópica da capital brasileira e do seu entorno. A Polícia do Bem Estar Social marca o controle e a vigilância que atravessam esse presente: os habitantes das cidades satélites só podem entrar em Brasília portando um passaporte, enquanto toques de recolher e patrulhas com viaturas e helicópteros marcam as noites na periferia. Ou seja, um presente próximo no qual os códigos de segregação social são explícitos e não mais apenas introjetados nas relações sociais. Preto e branco vem marcados em letras garrafais ao lado das fotos e nomes dos passaportes, nesse presente que implantou de forma institucional o racismo que a polícia de 1986 também não escondia decretando ao entrar no baile: Branco sai, preto fica!. Um presente no qual os corpos de Marquim e Sartana seguem o seu pós-trauma de segregação, encarceramento à margem, dentro das casas, no porão, no terraço. Como Sartana diz: a amputação do corpo ressoa na amputação da própria cidade para ele.

Ao praticamente cair nesse presente, Dimas perde dinheiro, equipamentos e até a identidade – tanto o documento, quanto a noção de si (relatando a confusão provocada pelo deslocamento). O contato do viajante com o futuro se dá de forma truncada – mensagens parecem não chegar, Dimas é considerado como desintegrado no espaço/tempo, ainda faltam as provas e um partido conservador acaba de assumir o poder, colocando em risco também a situação no tempo vindouro. A missão por muito parece fadada ao fracasso, e Dimas condenado a habitar um não espaço/temporal, dos sem propósito – vagando a esmo por terrenos e campos abandonados.

Se lhe resta algo, se há algum vínculo do viajante com os personagens do presente, esse está na música. A soul e a black music parecem ser necessárias para fazer a máquina do tempo funcionar e fazer as mensagens serem entregues e recebidas intertemporalmente. A música em Branco Sai Preto Fica permanece como a reminiscência impressionante da qual fala Samuel R. Delany. O elo que resta apesar de todos os esforços sistemáticos de apagamento. Esforços que estouraram como os tiros da polícia no baile do Quarentão, tentando apagar passinhos ensaiados, visuais e estilos, relações de amizade e de namoro daquela comunidade. Combatendo na porrada a subjetividade coletiva forjada naquele espaço, evitando a possibilidade de outra narrativa da juventude da Ceilândia.

brancosai5

III

O efeito não é o de questionar a realidade da escravidão, mas de torná-la não familiar por meio de um ziguezaguear temporal que redireciona as suas implicações pela ficção social do pós-guerra, pela fantasia cultural e pela ficção científica moderna, todas alternativas que começam a parecer maneiras elaboradas de dissimular e admitir o trauma.
Kodwo Eshun

Branco sai Preto Fica é um filme de um duplo trauma: o da escravidão e o do ataque policial no Quarentão. Traumas sempre ao mesmo tempo individuais e coletivos e correlacionados: no Brasil a população negra e pobre segue em grandes quantidades ou cárcere nas penitenciárias ou assassinada pelos novos carrascos, a polícia. Marquim e Sartana sobreviveram a tentativa do Estado de apagá-los, mas os seus corpos apenas em partes.

Assim o filme surge como um fragmento narrativo de uma memória coletiva e das memórias individuais que nunca irão compor um discurso totalizante – pois existe desde a sua mais longíqua origem como um fragmento, como uma reminiscência de uma/milhões de história(s) apagada(s). Sua própria materialidade corporal é também fragmento de pedaços que ficaram – no chão da quadra? No chão do hospital? – no passado. Um pouco como os pedaços e os restos de próteses encontrados e recuperados por Sartana, em Branco Sai Preto Fica existem mais elementos do que possibilidade de montá-los na mesma narrativa. Como e por que Dimas aparece nos desenhos de Sartana? Como o viajante finalmente consegue os depoimentos das vítimas? Quando Marquim e Sartana se reencontram? Os encaixes são imperfeitos e os furos são consistentes.

Mas eis uma história fragmentada de uma história que só pode ser fragmentada, para que sua imperfeição possa abarcar os seus corpos amputados e protéticos, a dança do jumento e a jovem guarda, os planos de reparação do passado no futuro simultâneos aos de destruição do presente. O fragmento tira os conectivos de oposição entre os elementos díspares, não gera teses (antíteses ou sínteses). O fragmento são todas as histórias, todas os restos, os pedaços, as narrativas que não foram apagadas. A história da diáspora africana é feita de apagamentos: desde o início da África para as Américas (a ancestralidade perdida), passando pela escravidão (os documentos queimados) até a atualidade (o genocídio da juventude negra e pobre). Então, incorporar o não narrado, os buracos que se formaram em anos de borracha, faz parte da empreitada afrofuturista de criar outras possibilidades históricas.

brancosai3

IV

A noção de afrofuturismo dá origem a uma antinomia perturbadora: pode uma comunidade cujo passado foi deliberadamente apagado, e cujas energias foram subsequentemente consumidas pela busca por traços legíveis da história, imaginar futuros possíveis?
Mark Dery

O filme termina, como tantas ficções científicas, em um paradoxo temporal: o da impossibilidade do presente, que ao implodir-se como única linha de fuga viável,carrega junto consigo o passado e o futuro. A explosão catártica de Brasília pela bomba musical construída por Marquim e Sartana e observada do alto pela cabeça gigante voadora de Dimas leva a narrativa a um ponto de incompossibilidades infinitas. Tudo foi pelos ares. Marquim e Sartana conseguiram escapar em 12 minutos. Dimas desmaterializou-se como um ser gigante ao ocupar o céu do apocalipse. Dimas permaneceu nos escombros disparando tiros inexistentes em inimigos invisíveis. As famílias de Marquim e Sartana, e de outros atacados pelo Estado no Quarentão, foram ressarcidas no futuro, graças as provas de Dimas. O futuro não existe mais.

Seria possível ao mesmo tempo explodir o presente que amputa e garantir um futuro com mais justiça para a população negra e pobre? Nesse dilema e no seu paradoxo dos tempos, Branco Sai Preto Fica mostra-se acima de tudo um afrofuturismo com raízes profundas nas questões do seu presente – de dentro e de fora do filme.

*Citações livremente traduzidas de:
DERY, Mark. Black to the future: interviews with Samuel R. Delany, Greg Tate, and Tricia Rose.
ESHUN, Kodwo. Futher considerations on afrofuturism.

FacebookTwitter

A Garota que Anda à Noite (Ana Lily Amirpour, 2014)

Por Pedro Tavares

No texto Cabra Marcado Para Morrer, Cinema e Democracia, presente no livro Eduardo Coutinho (Org. Milton Ohata, Editora Cosac Naify, 2013), o psicanalista Tales A.M. AB’Sáber afirma sobre Cabra Marcado Para Morrer (1984): “Pode-se argumentar que o filme, realizado por volta de 1980 até 1984, trazia em seu estilo o espírito mais forte da tomada do espaço público pelos novos sujeitos do tempo (…) estava comprometido em recompor a história das gerações passadas”.

Partindo da possibilidade comparativa na postura e visão do tempo abordada por AB’Sáber, A Girl Walks Home Alone At Night faz, em sua esfera, protegido pela justificativa de gêneros cinematográficos, a dominância das ruas do país como resposta à era Xá Mohhammed Reza Pahlevi, questionando assim o futuro do Irã, ainda assombrado pela ditadura religiosa. A primeira noção de subversão por parte do filme da jovem Ana Lily Amirpour é de se tratar de uma apropriação generalizada de pilares do cinema americano partindo de situações inóspitas que traduzem a urgência de uma nova interpretação dos tempos, fazendo do espaço público um local de assombrações.

girl2

A Girl Walks Home Alone At Night a princípio se nega a mostrar seu cerne e coluna, ao contrário ao filme de Coutinho. O primeiro ponto na construção da atmosfera de terror é a sugestão do que se deve acreditar no filme. No caso, para crer em vampiros, deve-se crer em outras aberturas, dentro e fora do gênero e narrativa. Ana Lily Amirpour exibe penumbras e um bairro entregue ao mal, o batizando literalmente de “Bairro do Mal”. O filme se passa em ruas vazias, com poucas sequências internas, referente a um mundo frio e propenso à violência e traições – arquétipo do Western, influência clara de Amirpour. A câmera da diretora encontra apenas homens e a única mulher, obviamente, está a serviço do prazer masculino e da consequente opressão que a cultura por tantos anos alimenta. É o ponto de partida para o exercício de contração que o filme faz e se resume. Não existem pontos ideais para expurgar a tensão que Ana Lily Amirpour constrói através da figura de uma vampira – existe, no caso, um retrato rotineiro do que é o terror, sempre transpassado para a ótica feminina.

Trata-se, portanto, de um filme de vingança plena que traduz a resposta para a tortura que mulheres são submetidas diariamente no Irã, sempre, claro, na posição do anti-herói. Em diversas oportunidades, a diretora dialoga com a cultura norte-americana, em especial a da cultura white trash – adictos e traficantes, consumo e dividas –, talvez usada como metáfora espaçada, porém pertinente no filme como afronta. Há uma série de quebras de tradições, regras e ideais iranianos dentro de uma linha mais interessada na simbologia do medo como campo perfeito para análise do que é, de fato, o terror.

girl4

A Girl Walks Home Alone At Night sugere a desconstrução de um gesto subversivo às convenções e à História (em especial, a cinematográfica) do Irã, mas não do gênero. Ele é feito como um esbarro proposital no cinema independente americano em seu viés dramático e regrado a respeito de um filme de suspense moderno. Também com o suporte ideal para a noção de uma trama que estará sempre em crescendo – muitos ruídos, planos estáticos, a rápida tradução da simbologia de cada personagem -, o filme escolhe a quem castrar; Mora aí o trunfo do longa de Amirpour. Como um soco trocado com o espectador, o filme se justifica pela dor, que talvez não se manifeste como o sensacionalismo gosta no Bairro do Mal, mas o suficiente para e apontar para o monstro real e afirmar sua sobrevivência. Amirpour usa a mesma perspicácia e dormência de personagens de alguns de seus referenciados (Jim Jarmusch, John Cassavetes) e não oferece a solução – sugere o placebo que está em todo tipo de filme, dos americanos aos iranianos, como um simples gesto de lamentação sobre caminhos aparentemente tão distintos, mas que levarão ao mesmo lugar.

FacebookTwitter

Mapas para as Estrelas (David Cronenberg, 2014)

Por Arthur Tuoto

Em tempos de Birdman e outros chorumes auto-conscientes de Hollywood, fica até difícil para o cinéfilo mais desavisado localizar Maps to the Stars em meio a um circuito de sacadinhas pretensamente críticas e investidas cínicas afins. Não deixa de ser um alívio constatar que Cronenberg funda toda a sua dimensão analítica sobre uma base mais do que superficial. Ou pelo menos, assim como talvez em grande parte de sua obra recente, o diretor parte dessa base aparente e explícita, escancarada e muito frontal, para atingir as vísceras mais elementares da sua temática alvo.

É até um pouco previsível constatar que o filme venha sendo recebido como uma espécie de crítica caricata ou sátira mordaz. Até concordo em algum sentido com a questão da sátira, mas me parece que o filme está muito mais interessado em partir de uma ontologia evidente de toda essa superfície hollywoodiana, do que exatamente em uma caricaturização extrema. Cronenberg lida diretamente com algumas questões já mais do que implícitas naquele universo, a caricaturização já é da natureza daquele mundo, o filme apenas pega todo esse drama especulativo da fama (a mais pura e primária narratividade de um E! Television) e evidencia um espaço que já é constantemente aterrorizado por uma iminência: a iminência de um escândalo, de uma difamação pública, de uma fotografia vazada. A família de Benjie, o astro teen sociopata que tem a arrogância como parte de seu DNA, já é envolta nesse constante senso de sobrevivência, esse survival film doméstico das aparências que precisa preservar a todo custo um sucesso capitalista da exterioridade, manter cada coisa em seu devido lugar nessa mais do que calculada engenharia social do show business.

mapasparaasestrelas1

O espectador acostumado com aquela velha piscadela charmosa no que diz respeito aos filmes de Hollywood sobre Hollywood pode até se assustar com o imaginário deliciosamente barato de Maps to the Stars. Aparições novelescas, imaginário incestuoso e toda uma gama de espectros sobrenaturais reprimidos. Mas não seria justamente desses ingredientes já essencialmente B que se alimenta toda essa especulação da difamação? Cronenberg apenas os assume com a devida franqueza. Essa lógica social dos bastidores que por si só já é a maior das encenações, com suas festas-rituais, suas pequenas orgias e seus hábitos excêntricos. A frontalidade com que a câmera filma a personagem de Julianne Moore nada mais é do que a evidência de uma abordagem livre de artifícios, desarmada, exposta simplesmente, que está interessada em um registro fundamentalmente cotidiano, por mais bizarro que ele seja. Frontalidade essa, aliás, que só reitera a aptidão de Cronenberg para o digital. O filme usa e abusa de toda sua profundidade de campo cristalina e da limpidez da alta definição para subverter uma certa estética higiênica, e invariavelmente publicitária, do vídeo. Justamente por assumir essa nitidez extrema, essa lógica encenativa de corpos tão evidentes, já muito presente na fotografia digital de Cosmopolis, Cronenberg consegue conceber uma aproximação explícita quase que livre de uma intervenção estilística. Nada mais apropriado para esse ambiente luminoso e ultra impessoal de arquitetura conceitual, camarins-trailers genéricos, espaços meditativos e todo tipo de picaretagem zen.

Mesmo o fato do filme ser estrelado por atores como Robert Pattinson e John Cusack, uma estrela teen em um franco processo de ressignificação e uma estrela mainstream mais do que genérica, já nos dá uma dimensão histórica de um cinema que se auto-evidencia ao mesmo tempo que se recicla, que parte do seu próprio imaginário para conceber novas dimensões autorais, quase o reconhecimento de uma vocação industrial auto-sustentável mais do que conveniente. E Cronenberg, feito o autor dentro do sistema que ele é, se aproveita muito bem disso. Até a figura de Julianne Moore, que em um primeiro momento parece reencenar o seu próprio arquétipo do descontrole já mais do que popularizado, consegue se renovar frente a lógica frontal de Cronenberg, frente esse escancaro anatômico íntimo. Aliás, se Iñárritu precisa de toda aquela pirotecnia deslumbrada para refletir sobre uma certa divindade decadente das celebridades, aqui uma simples e bela Julianne Moore peidando em uma privada com toda a espiritualidade que lhe convém já faz muito mais!

mapasparaasestrelas2

Talvez o único momento de fato mais simbólico do filme, quando ele ultrapassa a sua vocação ontológica e assume uma fantasia, ainda que seja uma fantasia que nasce diretamente dessa realidade surreal e grotesca, desse mundo fictício tão bizarro justamente por ser de algum modo fiel aos fantasmas de um mundo real, é a cena da autocombustão. Um corpo que se anula e se auto-sacrifica pela culpa? Mesmo todo o pano de fundo piromaníaco do filme já nos dá dimensão de uma natureza destrutiva que rege a vida dos personagens. Até mesmo o instinto de preservação dos irmãos, que se casam entre si quase como em uma tradição da realeza que precisa ser conservada, é um ato final suicida. Seria então a autocombustão a imagem final do corpo que, enfim, se rebela contra si mesmo? Aquele que só encontra a salvação no seu próprio aniquilamento. Se um impulso de destruição, em sua essência capitalista, é também um impulso criativo, que destrói antigas demandas apenas para criar novas, não seria esse o princípio básico da indústria de entretenimento? Destruir para reinventar. Reinventar para destruir. Um ciclo natural que se renova com uma rapidez cada vez maior, dispensando elementos em voga apenas para substituir por novos. Em suma, uma obsessão pelo próximo, pelo mais novo, uma fixação pelo futuro que nada mais é do que uma obsessão pelo poder. Se o próprio Cosmopolis já nos deixava isso mais do que claro em toda a sua literalidade, Maps to the Stars não deixa de ser uma espécie de continuação ideológica, convicta em sua inclinação anárquica e impiedosamente verídica.

FacebookTwitter

Sniper Americano (Clint Eastwood, 2014)

Por Fábio Feldman

Quanto mais leio sobre Sniper Americano, mais tenho a impressão de que o filme que vi não é aquele sobre o qual andam falando. Obviamente, toda obra que abarca temas polêmicos de modo não condescendente, negando-se a oferecer respostas fáceis ou endossar perspectivas pré-estabelecidas, incorre no risco de atrair “leituras automáticas”, politicamente orientadas e pouco sofisticadas. O que, no caso da última obra de Clint Eastwood, é uma pena, haja vista o nível de complexidades concebível sob sua superfície.

Antes de falar propriamente sobre Sniper, algumas palavras sobre Clint. A essa altura do campeonato, todos que acompanham sua filmografia já conhecem bem seu estilo. Adepto da concisão e da economia de recursos, Eastwood se tornou um dos principais minimalistas do cinema americano. Acredito que sua sede por dizer o máximo valendo-se do mínimo já o levou a tomar más decisões – sobretudo quando roteiros problemáticos forçam seus filmes a cair num esquematismo algo grosseiro. Entretanto, é praticamente inegável que seus esforços mais bem sucedidos figuram, hoje, entre o melhor que Hollywood nos ofereceu nas últimas décadas – e Sniper Americano, a meu ver, se encontra entre tais esforços.

american-sniper-crítica

Formalmente, considero Sniper uma das produções mais enxutas e fluidas desenvolvidas pelo autor de Os imperdoáveis em um bom tempo. E, embora o núcleo iraquiano tenha se me apresentado como um pouco mais bem estruturado, em termos de timing e desenvolvimento, do que aquele passado nos EUA – sobretudo quando penso em aspectos do último ato –, a narrativa sustenta sua coesão ao longo das horas, sem nunca descambar para o didatismo. Além disso, creio que o fato de flertar com a estrutura de filmes de gênero, mas nunca se firmar inteiramente como um, expande o potencial de sua abordagem. Temos, como em Sobre meninos e lobos,Gran Torino e outras peças-híbridas no interior do cânone eastwoodiano, um filme que se vale do melhor de dois mundos.

Em relação às acusações referentes aos sentidos a ele imputados, muito há o que ser dito. Contrariando os críticos, Clint insistiu que Sniper Americano não é um filme político. Disse também se tratar de um libelo anti-guerra, opinião que subscrevo integralmente. Entretanto, encaro-o como uma obra que não se presta a defender pontos de forma clara. Em realidade, ainda que as convicções políticas do autor influenciem suas escolhas temáticas (e não é absolutamente certo que este seja o caso), seus filmes jamais figuram enquanto simples panfletos de natureza ideológica. O cinema de Eastwood, assim como o de Howard Hawks, tem como objeto, invariavelmente, o homem – suas contradições, falhas, as pulsões que o animam e que se colocam na base de qualquer painel sociológico mais amplo.

american-sniper

Assim sendo, avalio Sniper Americano, inicialmente, como um estudo de personagem. Assistindo-o, somos, desde o início, inseridos no interior do universo de Chris Kyle, compreendemos suas referências culturais, o modo como foi criado e, para além da caricatura de um mero “redneck”, enxergamos um homem, dotado de todo tipo de limitações – que acredita no mito do excepcionalismo americano, que compra a noção de heroísmo, que apóia acriticamente a versão oficial para a entrada dos EUA na guerra e, do auge de seu simplismo, vê o mundo de modo mais unidimensional possível. E, apesar (ou em função?) da austeridade e concisão empregadas na confecção do filme, gradualmente nos deparamos com uma figura não apenas crível, como estranhamente simpática. Ora, creio que uma das grandes virtudes de Eastwood enquanto storyteller é, justamente, sua capacidade de expressar empatia por seus personagens – empatia esta que nos aproxima deles e, às vezes de forma bastante incômoda, nos força a nos colocar em seus lugares. Motivo pelo qual as leituras ideologizantes de seus filmes me parecem fracassar. Eles, simplesmente, não aceitam ser reduzidos a meras interpretações da realidade.

Em relação às crenças de Kyle, não me parece que Sniper Americano as endosse por completo, ainda que se cole a ele o tempo todo. A prova disso é que as contradições que ameaçam as certezas do personagem integram a obra, mesmo que indiretamente. Talvez, a maior prova disso seja a presença do vilão, Mustafa. Aparente metonímia dos “selvagens”, o sniper iraquiano é, de fato, um outro de Kyle: enquanto o americano era um cowboy condecorado, seu opositor foi um medalhista olímpico; o primeiro é casado com uma mulher que o ama, o segundo tem a esposa como colaboradora; ao primeiro são legadas ordens que cumpre com orgulho e certeza quase inabaláveis – o segundo, ao que tudo indica, também. Esse espelhamento de potenciais opostos desafia a concepção de uma guerra estabelecida entre bons contra maus. Os “selvagens” nada mais são do que inimigos, dispostos em um contexto estranho e impelidos, por suas próprias e óbvias razões, a resistir.

bradley-cooper-american-sniper

A existência de Mustafa também me parece aproximar mais o filme das convenções do gênero, quase o transformando em um western contemporâneo. Porém, o modo como tal vilão é construído, as complexidades que envolvem a recepção dos locais aos “libertadores” e os efeitos do combate sobre eles – sobretudo Kyle –, levam-me a pensar que, ao invés de reforçar noções antiquadas de heroísmo e patriotismo, pintando uma versão em preto-e-branco da realidade, tal procedimento é responsável por,de forma sutil, problematizar tudo o que esperaríamos de um filme desse tipo. Seguindo o que já constitui uma constante autoral em sua filmografia, Eastwood dialoga com os topoi da tradição narrativa americana e, em certos momentos, os desconstrói por completo.

O Sniper Americano que vi – e que, definitivamente, não coincide com aquele visto por Michael Moore ou os integrantes da Fox News – é, sim, um libelo anti-guerra. E, justamente por se negar a nos entregar uma caricatura, Clint pinta um retrato muito mais completo (e terrível) do conflito. Suas pretensões, parece-me, ultrapassam a mera representação de aspectos da guerra do Iraque – em realidade, a guerra enfrentada por Kyle poderia ser qualquer guerra. Nem herói, nem vilão, o atirador de elite mais letal da história americana, sob a tutela de Clint Eastwood, não passa de uma vítima entre vítimas. Um menino entre lobos. Humano, falhado e real.

FacebookTwitter

Mr. Turner (Mike Leigh, 2014)

Por Fábio Feldman

Em algum ponto da década de 80, na famosa galeria Christie’s, o leiloeiro inicia a sessão. O primeiro lance é de 5 milhões e quinhentos mil dólares. O valor, contudo, escala rápido. A peça leiloada é uma das famosas naturezas-mortas com girassóis de Vincent Van Gogh. Assim que os lances alcançam a casa dos 12 milhões, as imagens de arquivo dão lugar a um plano de Van Gogh, representado por Tim Roth, culpabilizando o irmão pela completa estagnação de sua carreira. Em off, a voz do leiloeiro segue anunciando a escalada astronômica do valor da tela. São essas as primeiras cenas de Van Gogh – Vida e obra de um gênio, cinebiografia dirigida por Robert Altman. Nela, o pintor holandês é concebido como um ser humano incompreendido, à frente de seu tempo (como a montagem inicial deixa claro). Encarnação do gênio romântico, ele vive por sua arte, vitimado por uma espécie de transe estético contínuo. Tudo o que o cerca é vulgar. Sua vida interior, por outro lado, refulge como uma via de acesso para a transcendência.

Um ano após o lançamento de Van Gogh – Vida e obra de um gênio, outro cineasta resolve lançar sua biografia do artista, atingindo, todavia, resultados bastante diferentes. Em Van Gogh, Maurice Pialat se nega peremptoriamente a idealizar seu protagonista. Famoso pelo estilo despojado, o autor de Loulou e Nós não envelheceremos juntos nos revela, nomeadamente, um homem. Um homem acabado, sim, apoplético, consumido pela dúvida, pela doença e por uma percepção imprecisa de si e dos outros – mas, ainda assim, um homem. Mais do que alguém excepcional preso no interior de uma realidade medíocre, Van Gogh foca o mistério da excepcionalidade oriunda do banal, a grandeza que emerge do corriqueiro.

Abro esta crítica de Mr. Turner mencionando os Van Goghs de Altman e Pialat por enxergar no mais recente filme de Mike Leigh uma espécie de síntese das intenções expressas por ambos os cineastas em seus respectivos trabalhos. Antes de desenvolver minha leitura, porém, gostaria de tecer algumas considerações gerais acerca da obra do grande autor inglês.

mrturner3

Analisar a filmografia de Leigh é um desafio. A um só tempo monocórdia e desigual, reiterativa e aberta a todo tipo de interpretações, ela se firma como uma das mais singulares do cinema contemporâneo. Muito já foi atestado acerca do estilo improvisacional do diretor, da  recusa que mantém em iniciar projetos com a escrita de roteiros, e do método a partir do qual, ao longo de meses de ensaios, cada obra que conduz é coletivamente engendrada. Em função disso, seus personagens, pertencentes, via de regra, à classe trabalhadora inglesa, nunca parecem integrar esquemas narrativos. Antes, configuram-se como partes de um mundo em formação.

Tal mundo, verdade seja dita, não é sempre o mais solar, motivo pelo qual a pecha de miserabilista tende a ser atribuída a Leigh. A insurgência do mal na vida cotidiana é, certamente, uma constante em sua produção. Seja como ondas se chocando contra o estoicismo dos protagonistas de Um ano mais; seja na forma de uma série de pequenas provações, desafiando o olhar de Poppy em Simplesmente feliz; seja, rosselinianamente, enquanto fruto do embate entre as ações de Vera Drake e as imposições do sistema – o sofrimento é uma constante na trajetória dos que habitam as paisagens suburbanas do diretor, comprovando a absurdidade inerente à experiência humana e a natureza violenta do tempo. Entretanto, a representação da dor não é, aqui, um telos. Mike Leigh não é Michael Haneke, empatia é a base de seu jogo. Ao invés de objetivar a geração de fontes sádicas de prazer ou a construção de um discurso moralizante, sua exploração dos efeitos do mal sinaliza a busca pela humanidade profunda de seus personagens. É através desses efeitos que repressões se dissipam e reparações são estabelecidas. As lágrimas de Nicola, a anoréxica e neurastênica garota de Life is sweet, a esfericizam e dignificam. A internação do filho de Phil e Penny leva o casal de Agora ou nunca a enfrentar seus próprios demônios e reanimar os resquícios de um amor perdido. O confronto final dos membros de uma família, em Segredos e mentiras, abre fraturas no modo como enxergam uns aos outros, renovando relações contaminadas. Até os indivíduos menos simpáticos, os grandes excêntricos, os idiotas, também, no auge de sua dor, se mostram humanos, forçando-nos a romper o tecido tipificante que os envolve e descobrir neles um pouco de nós mesmos (penso, sobretudo, em Ricky, o desajustado estudante de psicologia de Career girls, e, obviamente, Scott, o instrutor de direção, que, em Simplesmente feliz, após uma violenta explosão de sentimentos, projeta sobre o alvo de seu afeto a sombra de um homem triste, solitário e sensível). Como Fellini, Leigh não se furta a conceder àqueles que cria uma vida dura, repleta de desafios – mas opta por se manter, invariavelmente, ao lado deles, orgulhosa e compassivamente. É essa sensibilidade que o guia como autor, que o leva a conceber narrativas tão abertas, melancólicas e repletas de verdade.

Dito isso, acredito que, embora se circunscreva dentro do conjunto, Mr. Turner é também uma espécie de filme-exceção. Traçar paralelos entre ele e as demais criações de seu diretor demanda certo esforço interpretativo, tanto em função de sua constituição estética algo diferenciada quanto da temática que abraça. Em realidade, tais paralelos são facilmente estabelecidos apenas quando direcionados a um outro corpo estranho: Topsy-Turvy. Ambos são filmes de época, baseados em fatos reais e relacionados à vida e atividades de artistas consagrados. Nada mais distante dos dramas enfrentados pelos working-class heroes da parte baixa de Londres. Acrescente a isso o fato enigmático de uma das cenas de Topsy-Turvy se repetir quase integralmente em Mr. Turner – refiro-me às conversas de Gilbert e Turner com seus pais, relativas, igualmente, ao papel das mães ausentes – e torna-se possível concluir que se tratam de obras irmãs. O que não quer dizer que não existam entre ambas diferenças fundamentais, principalmente em termos de abordagem.

mrturner5

Enquanto Mr. Turner pode ser interpretado como um estudo de personagem, Topsy-Turvy se aprofunda menos em Gilbert, Sullivan e sua equipe, do que no processo de montagem da peça a que se dedicam a produzir. Cai, logo, em um território bastante explorado por Robert Altman – não o Altman de Van Gogh, de Imagens ou Três mulheres, mas aquele influenciado por Jacques Tati, equilibrista de tramas e superfícies, adepto dos diálogos sobrepostos e das mise-en-scènes virtuosas (em suma, o Altman que trouxe sucesso a Altman). Em filmes como Nashville, por exemplo, considero sua abordagem “superficializante” bem-sucedida. O equilíbrio que impõe a seu painel complexo não impede o autor de extrair sentido das arestas, iluminando, tangencialmente, as personalidades dos homens e mulheres que representa e os ambientes que povoam. Como pontas de icebergs em meio a um oceano, cada um deles sintetiza um pequeno enigma – e aqui é impossível não lembrar de Barbara Jean, a cantora country belamente interpretada por Ronee Blakley no clássico de 75. Há momentos, porém, em que tal abordagem não me parece render bons resultados, e os pequenos centros de ambigüidade acabam se tornando meros tipos, peças no interior de uma engrenagem, cujas existências se justificam meramente através de um viés irônico. É quando o esquema se torna mais importante do que aquilo que tem a dizer.

A meu ver, é o que ocorre em Topsy-Turvy. Pela primeira vez em sua carreira, Leigh privilegia um contexto em detrimento daqueles que o estabelecem. Conseqüentemente, constrói uma obra curiosa, dotada de momentos inspirados (quase todos protagonizados pelo competente Jim Broadbent, na pele de Gilbert) e uma bela reconstituição da Inglaterra vitoriana. O que, para seus fãs, é pouco. Talvez engessado pelas demandas por acuracidade histórica, Topsy-Turvy me parece frio, isolado dentro de uma filmografia notória pela abundância de momentos humanos. E ainda que diversas das estórias que compõem sua narrativa possam ser interpretadas como críticas a convenções fundantes da cultura inglesa, uma certa falta de foco o acomete – o que, juntamente com o mau desenvolvimento de seus vários personagens, contribui para a impressão de que, possuindo quase 3 horas de duração, o filme segue inacabado. Creio que o mesmo, definitivamente, não pode ser dito acerca de Mr. Turner.

Narrativa de interstícios, a última realização de Leigh é, simultaneamente, um acréscimo familiar a seu cânone e um exercício de ruptura para com ele. Sua primeira cena nos deixa antever boa parte do que está por vir: duas senhoras caminham por um campo holandês, contando casos triviais. Assim que saem do plano, a câmera se movimenta e nos deparamos com a silhueta de J.M.W. Turner, em pé, desenhando em um bloquinho a paisagem que contempla. Não há nada de impressionante em seu vulto: corpulento, vestido à moda da classe média da época, ele exerce seu ofício. De imediato, torna-se claro que não nos encontramos diante do gênio romântico. Como em Pialat, os esforços diretoriais de Leigh enformam e reforçam a presença de um paradoxal “gênio comum”. Porém, conciliado a eles atua outro agente fundamental: a fotografia de Dick Pope.

mrturner2

Em coletiva de imprensa conferida no Festival de Cannes, Pope, colaborador freqüente de Leigh, admitiu que se inspirou nas paletas de cor do próprio Turner, concedendo ao filme uma aparência altamente estilizada. Entretanto, o que torna este tão interessante é, justamente, a dissonância entre tais decisões plásticas, que remetem a uma estética do elusivo, repleta de laivos místicos, e o estilo de Leigh, sempre mais interessado nas particularidades do dia-a-dia e nos efeitos psicológicos e emocionais que suscitam. Seca, concisa e direta, a narrativa cobre 26 anos da vida do pintor, seu ápice profissional, sua gradual decadência em termos de aceitação pública, suas relações problemáticas com família e amantes e sua dificuldade em lidar com o que constitui seu entorno. Mais do que conjecturar acerca do mistério que justifica e estimula a atividade criativa, Leigh expressa formalmente a raiz do mistério, envolvendo em maravilhosas cores e luzes outra de suas tragédias cotidianas.

No que tange ao personagem em si, devo mencionar a atuação de Timothy Spall. Há anos Leigh trabalha com os mesmos atores. Spall (assim como Broadbent, Alice Steadman, a falecida Katrin Cartlidge, Ruth Sheen e Lesley Manville) faz parte de sua trupe desde o início da década de 90, tendo oferecido junto a ela algumas de suas mais intensas interpretações. E, embora não seja justo considerar seu retrato de Turner superior a, digamos, suas performances em Agora ou nunca ou Segredos e mentiras, é seguro afirmar que algo de extraordinário foi aqui alcançado por ele. Encarnando um homem de contradições, Spall investe na sutileza, permitindo que fraturas emerjam da contenção. Seus sorrisos são discretos, seus gestos, carregados. Os momentos de luto não o levam a exprimir emoções com grande nível de intensidade, mas se depreende de seu corpo a força de sua dor – como comprova a sucinta e tocante cena em que recebe a notícia da morte da filha. Essa fisicalidade, aliada ao modo titubeante como se comunica (ora se expressando profusamente, ora se perdendo em meio a grunhidos ininteligíveis) é a principal forma de acesso à personalidade de Turner. Artifícios externos e o anedotário que o circunda nos dizem menos do que seu corpo e sua enunciação. E o fato de ambos não se casarem à imagem convencional do gênio depõe ainda mais a favor de Stall e de seu diretor. O resultado da parceria é o perfil de uma pessoa real, confusa e em desarranjo com o mundo. Seria tal desarranjo a força que impulsiona seu talento?

mrturner4

Finalmente, há a questão do tempo (tema central também da sub-valorizada obra-prima Um ano mais). Apesar de cobrir quase 3 décadas da vida de Turner, valendo-se de elipses que, nas mãos de um realizador menos talentoso, redundariam em ferramentas para a manutenção de um esquema grosseiro, Leigh se nega a nos oferecer uma cinebiografia convencional. Os casos retratados não se encadeiam de forma a expor, linear a coerentemente, o percurso de um herói. Como ocorre em todos os seus melhores trabalhos, o que temos é uma obra lacunar, focada em uma figura que nunca se mostra interessada em ser decifrada – embora tampouco invista na manutenção de uma mitologia pessoal. Essa narrativa vacilante, elusiva e frágil como a vida, revela a relação de um homem com o tempo. Tempo que não apenas o limita e desafia, como alimenta seu ímpeto estético. Novamente, a dissonância entre a secura composicional e o esplendor da fotografia me parece ser responsável pela geração de um discurso: o que seria a solitária e obsessiva batalha artística de Turner com e contra as luzes e cores de seus naufrágios senão uma perpétua batalha com e contra o tempo? O que figura no cerne da arte romântica senão o desejo de superação da realidade fenomênica e a ascensão rumo ao eterno? Esse onde sem campo, esse quando sem hora, em que o mal é exorcizado, as emoções apaziguadas e a morte extinguida?

Nos últimos minutos do filme, Turner morre, mas a cena seguinte traz, novamente, sua silhueta, pintando contra o sol. O espetáculo angustiante da vida, com todo seu som e fúria, não é páreo para o potencial espiritual da arte. Arte esta elaborada por um sujeito falhado, complexo e, em última instância, banal. É entre o ideal e o real, as cores da vida cotidiana e as de sua alternativa, que Mr. Turner se posiciona.

FacebookTwitter

Entrevista – O afeto no documentário brasileiro contemporâneo

Palavra que por vezes soa gasta em tentativas de se apreender aspectos da contemporaneidade, o afeto é um elemento que se manifesta com potência e certa regularidade no documentário brasileiro recente. Filmes como Santiago (2007) e Elena (2012) ressaltam uma tendência em que o afeto aparece não apenas como tema, mas como componente estético e narrativo essencial. O jornalista Renato Contente conversou com o pesquisador Fábio Ramalho sobre o tema que motivou sua tese de doutorado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE): a relação entre cinema e afeto. A entrevista foi realizada como parte do processo de realização de uma matéria para a Folha de Pernambuco, mas acabou apontando interessantes desdobramentos do tema, para além do seu contexto inicial. Por esse motivo, o Multiplot se propôs a publicar agora, na íntegra, o conteúdo da conversa.

Renato Contente: É possível falar de uma estética do afeto no documentário brasileiro contemporâneo?

Fábio Ramalho: Há sem dúvida uma tendência a pensar o afeto no cinema a partir da configuração de uma estética, ou, para ser mais específico, tendo em vista certas maneiras de filmar, modos de constituição das imagens, procedimentos formais e estéticos assumidos pelas obras. É o caso, por exemplo, da recorrência com que o afeto surge para pensar a estética do fluxo no cinema contemporâneo. Sem dúvida, um exercício semelhante pode ser empreendido em relação ao campo da produção brasileira de documentários. Porém, eu acredito que esse tipo de abordagem, que prioriza a mobilização do afeto para pensar modos de filmar, tende a ser restritiva, deixando passar alguns aspectos do conceito que são muito produtivos para uma reflexão mais ampla sobre as imagens. Se voltarmos nossa atenção para a dimensão de encontro que é incontornável para pensar o afeto, veremos que é toda uma ética das relações que se abre à reflexão; todo um interesse acerca de composições e decomposições de forças que atravessam o cinema em suas múltiplas instâncias: na fatura do filme, nos contextos de realização e também nas relações que nós, espectadores, podemos estabelecer com as obras. Temos aí muito mais que um modo de filmar ou uma determinada configuração visual: trata-se de uma maneira de enxergar o mundo e as relações, e, em particular, uma maneira de enxergar o lugar e a importância das imagens nessa rede de relações.

domestica

R.C. O que essa apropriação de um olhar afetivo no cinema pode sugerir sobre o momento que vivemos atualmente?

F.R. O fato de que o afeto sobressai de maneira eloquente em tantos documentários recentes parece sugerir a convicção de que, diante da complexidade do mundo, é preciso olhar para as questões que movem o cinema a partir de múltiplas dimensões, contemplando suas muitas nuances. Isso implica não se restringir a uma consideração sobre as funções, posições e categorias socioeconômicas que orientam o plano de organização das sociedades. É necessário perceber como esse plano está atravessado por outro plano, o das forças e intensidades que não são redutíveis aos dados mais, digamos, aparentes do real. Com isso não pretendo afirmar que esses planos ou dimensões seriam exteriores ou mutuamente excludentes. Pelo contrário, trata-se de privilegiar uma compreensão segundo a qual as posições sociais dos sujeitos, sua condição de classe e seus valores estão permeados por um componente afetivo que complexifica a experiência. Tome-se o caso de Doméstica, de Gabriel Mascaro, um dos filmes que você mencionou e que, eu concordo, é uma das obras mais importantes para pensar o afeto no documentário contemporâneo, justamente pelo fato de seu ponto de partida ser tão, por assim dizer, “marcado”. Claro que é válido discutir a condição daqueles sujeitos como trabalhadores, as relações de poder e assimetrias de classe que marcam esse tipo específico de exercício profissional. Mas, poderíamos perguntar: nesse caso, o que o filme mostraria que de certa forma já não sabíamos? O que é mais relevante no filme é justamente o fato de que ele se volta para o elemento mais ambíguo daquelas relações: o modo como certos limites são borrados e as fronteiras do convívio diário vão se tornando pouco legíveis. O que Doméstica mostra é precisamente o fato de que o sentimento e as emoções não estão situados numa posição de exterioridade em relação aos intricados conflitos e códigos sociais. Daí por que os personagens estão o tempo inteiro negociando o seu próprio entendimento sobre a qualidade das suas relações com os outros, confrontando-se de modo confuso, e por vezes até mesmo atordoante, com o embaralhamento entre o plano de organização e o plano das intensidades corporais e afetivas. Filmes como Doméstica se concentram em tonalidades afetivas mais, digamos, sutis e ambivalentes, mas não seria despropositado lembrar que mesmo a mais intensa polarização dos conflitos sociais é uma manifestação corporal, tanto quanto (ou talvez mais até que) uma questão de “consciência”.

R.C. Em filmes como “Santiago” e “Elena”, seus respectivos realizadores transparecem abordagens guiadas pelo afeto e pela proximidade (ou pelo desejo de proximidade) com o objeto do filme. Em que medida essa relação íntima influencia – de maneira positiva ou negativa – na construção do filme?

F.R. Esse desejo de proximidade de que você fala nos leva a perguntar até que ponto a grande importância atribuída ao afeto no cinema se conecta com outro fenômeno contemporâneo: o da hipervalorização da intimidade, da primeira pessoa, dos relatos subjetivos. Decorrem daí muitas possibilidades, mas também, claro, algumas limitações. Na melhor das hipóteses, uma perspectiva centrada na intimidade permite vislumbrar nuances e potencialidades expressivas que permaneceriam latentes numa abordagem excessivamente “objetiva” ou panorâmica de um problema. Na pior das hipóteses, temos sempre o risco de que tal olhar não consiga sair de si, permanecendo preso a uma ótica muito fechada e individual. É importante lembrar que uma das características mais interessantes do afeto é a sua qualidade transpessoal, ou seja, o fato de constituir forças que transbordam uma dimensão individual e personalizada para atravessar, conectar e fazer oscilar a potência de diferentes corpos. A questão que se coloca, então, é se a elaboração de uma perspectiva íntima sobre determinada questão ou sujeito é ou não capaz de dar esse salto que torna a experiência compartilhável, apropriável coletivamente. No fundo, o que entra em jogo aí, como eu dizia, é a potência que uma obra tem de suscitar múltiplas relações entre espectador e obra, e como essa potência pode ser ampliada ou diminuída de acordo com as estratégias assumidas.

santiago

R.C. Qual o papel do audiovisual na formação dessas articulações estéticas e políticas do afeto?

F.R. Além de permitir explorar as conexões entre os diferentes planos de que falava antes, há também outro aspecto que torna o afeto tão relevante para o documentário. De certo modo, é como se o cinema fosse ao longo do tempo consolidando uma lição, um aprendizado: o de que ali onde falha ou falta o discurso, é a expressividade do corpo que pode nos ajudar a acessar o tema ou sujeito que a câmera busca investigar. Isso é especialmente relevante para o documentário, que em certos momentos deu uma importância tão grande à fala. Temos um pouco disso em Santiago: esse filme de João Moreira Salles nos estimula a problematizar o mesmo entrecruzamento complexo entre o vínculo afetivo e a diferença irredutível de lugares e funções que eu apontava no filme de Mascaro. Se a assimetria de poder que marca a diferença de posições entre quem filma e quem é filmado fazem do filme de Moreira Salles o documento de um fracasso, há, no entanto, algo do personagem que se expressa a despeito dessa assimetria. É o caso dos planos das mãos de Santiago dançando no ar: se essas imagens correm o risco de resvalar para uma certa pieguice, por outro lado elas atestam que o corpo pode encontrar uma margem para expressar-se frente à interdição da fala.

Cabe ainda ressaltar que a circulação das imagens no contemporâneo é um forte elemento catalisador de respostas políticas dentro de um amplo espectro, do mais emancipatório ao mais reacionário. De fato, embora pareça haver uma tendência a pensar o afeto em termos positivos – pela criação de vínculos e pela potência – , o afeto também tem a ver com perda de potência e com elementos muito negativos: ressentimento, dor, ódio, humilhação. O entendimento de que o afeto varia positivamente ou negativamente poderia ser pensado em termos políticos mais amplos pelo fato de que a constituição de um corpo coletivo pode atender tanto à ocupação afirmativa dos espaços públicos quanto às situações abomináveis de linchamento, por exemplo. O ódio de classe e a hostilidade às diferenças são paixões muito, muito tristes e, infelizmente, alguns segmentos da sociedade não param de catalisar esse tipo de sentimento com fins bastante reacionários. Por tudo isso, o afeto é um elemento imprescindível para pensar a política hoje.

 jogo-de-cena-eduardo-coutinho

R.C. Alguns críticos enxergam uma estrutura narrativa melodramática em documentários como Elena e As canções. O que implica essa apropriação de aspectos do melodrama (tradicionalmente vinculado à ficção) no documentário?

F.R. É todo um universo muito produtivo que se abre a partir dessa aproximação entre documentário e melodrama, a respeito da qual a pesquisadora Mariana Baltar, da Universidade Federal Fluminense, é sem dúvida uma das maiores referências. A inegável contribuição desse gesto de aproximação é a de enriquecer a discussão sobre os elementos de gênero no cinema, além de reposicionar o lugar e a importância da emoção na teoria e na crítica. Nesse contexto, o que me interessaria particularmente sublinhar é o fato de que todos nós de certo modo aprendemos como sentir e como expressar aquilo que sentimos, e nem por isso as emoções se tornam menos “verdadeiras”. Isso quer dizer que o afeto envolve também pedagogia e imitação.

A compreensão de que uma pessoa organiza sua imagem para a câmera não se restringe, portanto, ao seu discurso, à sua postura e às suas ações: mesmo a emoção entra no jogo da encenação. Sabemos que Eduardo Coutinho nos últimos anos investigou com muito interesse esse ponto, em fimes como Jogo de cena e As canções. Muito antes, porém, essa questão já permeava o seu cinema, e os momentos musicais de seus filmes trazem isso à tona de maneira evidente. A contenção, a hesitação, a explosão passional, o clímax, o apaziguamento, tudo isso é elaborado corporalmente de maneira muito sofisticada pelos personagens. Antes eu dizia que o corpo encontrava brechas por onde se expressar quando o discurso faltava. Agora seria preciso acrescentar que o afeto é não apenas aquilo que transborda o discurso; ele também atravessa e se articula com os códigos que nos ajudam a expressá-lo e torná-lo legível.

FacebookTwitter

BNSF (James Benning, 2013)

Por Fernando Mendonça

Um dos realizadores de maior influência para o cinema contemporâneo, pelo que experimentou e rompeu no audiovisual, a partir dos anos 1970, James Benning continua sendo uma pedra de toque para os atuais desdobramentos de vanguarda e os caminhos auto reflexivos da imagem, num sentido prático de criação. Foram necessárias três décadas para que a obra do autor ecoasse com relevância nos pensamentos teóricos e acadêmicos, pois, por muito tempo, foi mais comum vê-lo mencionado por outros cineastas e artistas do que por críticos e curadores. O recente impacto no reconhecimento e retomada de suas questões, em compilações impressas e coberturas eletrônicas, é valorizado ainda mais pela contínua produção que Benning apresenta, não apenas em cinemas e festivais, mas em diversos ambientes e contextos de projeção.

Um de seus experimentos mais recentes, BNSF (2013), filme primeiramente realizado em formato de instalação, em 2008, posteriormente ampliado e estendido para a exibição em salas coletivas, consiste num longo e único plano de quase 200 minutos, capturado digitalmente sobre uma paisagem desértica americana. O quadro é atravessado na diametral pelos trilhos de uma linha da rede ferroviária BNSF, por onde passam trens, em esporádicos intervalos, no decorrer do longa-metragem. Trata-se, claramente, de um exercício que desafia os parâmetros de expectativa do público, seja pelo tempo de exposição da imagem, como pelo esvaziamento que seu conteúdo problematiza.

bnsf2

A relação Cinema e Deserto encontra aqui um curioso exemplo para impulsionar ramificações deste diálogo. Pois BNSF aproxima as qualidades de sua imagem às da areia – sempre movediça e centrípeta, dinâmica e irrepetível – ao mesmo tempo em que tece provocações aos limites do próprio cinema enquanto linguagem, realocando sua primeira condição fotográfica e, principalmente, pictórica, enquanto encenação do mundo. A tela de Benning, em diversos de seus filmes, é herdeira direta da série que Monet concebeu para avaliar a gradação de cores na Catedral de Rouen. O autêntico movimento buscado pelo diretor não é somente o mecânico, do trem, mas o que emana das formas e das sombras, nas pedras, no relevo do horizonte, na árida vegetação, que brota na consciência diante do correr das horas, o lapidar do tempo.

Por toda a sua carreira, o realizador tem sido constantemente associado ao imaginário dos irmãos Lumière, pela maneira como lida com o acaso, a angulação dos planos e o raro equilíbrio documental de subjetivar formas fixas e históricas dentro de um universo próprio, numa linguagem que se assume em processo de descoberta. BNSF tem lugar dentro deste repertório, nutrindo pontos de interseção com os pré-cinemas pela maneira como estes veiculam um caráter de movimento ainda coerente para o séc. XXI. A dilatação da imagem-tempo, que Benning empresta das experiências mais radicais de Andy Warhol, amplia a dimensão dos limites intrínsecos à sua linguagem, fomentando a rarefação das margens que distinguem o Cinema da Pintura, por exemplo.

bnsf3

Eis uma compreensão dos novos parâmetros de produção artística que nos parece descrever com precisão aquilo em que consiste um projeto como BNSF: “um dispositivo de inscrição relacionado à materialidade dos meios e à criação de subjetividades”. James Benning é atualmente um dos únicos inscritores de sentimentos em superfícies geográficas que conflitam seu movimento interno na relação com as ‘bordas mortas’ de um quadro. Pois não é uma tela, ou um computador, ou uma sala escura, ou um ambiente de museu, que impõe limites ao mover da vida. Viver não tem margens.

FacebookTwitter

Amar, Beber e Cantar (Alain Resnais, 2014)

Por Filipe Chamy

Todos percebem com imediato reconhecimento os elementos teatrais deste derradeiro longa de Alain Resnais: as entradas e saídas de cenas efetuadas pelas personagens, algo de sua movimentação (e os planos e contraplanos e como eles falam), os cenários minimalistas, as separações bastante distintas entre episódios (atos, cenas); mas, ainda que se trate de mais uma adaptação que o cineasta dirige de seu querido dramaturgo Alan Ayckbourn (após os excepcionais resultados obtidos em Smoking/No smoking e Medos privados em lugares públicos), não nos podemos deixar enganar pela superficialidade da constatação dos gêneros e dos temas de uma filmografia que, por mais que declare abertamente sua fascinação, inspiração e influência por campos como quadrinhos e teatro, é sempre cinema.

A primeira diferença: as cortinas não dão para um palco, mas para a vida. As personagens aqui encenam uma peça que em verdade tanto importa pouco a eles quanto a ensaiam menos que suas vidas. O que se esconde por trás dos panos e dos ambientes não é a falta de materialidade cênica como no teatro, mas a vibrante representação do que não há, a ausência, a lembrança e (obrigatório em Resnais) a memória.

10566621_898314066850787_2110521007_n

Aí, George. A personagem que liga todas as outras e emenda os conflitos e gera ação. Não é exatamente uma nova Muriel, mas se considerarmos Vocês ainda não viram nada! como um fecho para a obra do diretor também podemos ver Amar, beber e cantar como um epílogo e portanto naturalíssima a condição de George, uma invisível força propulsora de unidade, que harmoniza tudo. É George afinal quem cria o nó e ele próprio quem permite o desenlace.

A tragédia no riso ou a total desimportância do convencional? Porque se para um marido a mulher viajar com o amigo pode ser um drama, o que resta da moralidade realista quando o amigo não se decide entre três, quatro mulheres? Isso ou diz do caráter do homem ou propõe uma nova perspectiva de análise narrativa. Os caminhos do azar, que Resnais desenvolveu em filmes gêmeos que despertam a partir da decisão de fumar ou não fumar — e não é Sandrine Kiberlain que, apanhada no flagra pela própria consciência de culpa, também tem estremecimento parecido? É George sendo um deusinho num universo que espera seu desaparecimento para ter finalmente o livre-arbítrio: decidir não ir viajar, mesmo após afirmar que sim; negar o óbvio, apenas porque se lhe parece mais adequado mentir e assim ser mais amoroso que sincero; entender as vidas que se escapam e disso extrair justamente a serenidade. Mas o aviso do anjo da morte, que é o fim de tudo, versa sobre talvez não a onisciência mas a inexorabilidade das relações.

10566621_898314060184121_1399275210_n

O que se repete (a propósito: “répétition” em francês significa também ensaio) são palavras que podem ou não ser molas de interações: a dado momento, o marido indaga se a mulher atua ou está dizendo o que vai mesmo fazer; não se lembra das palavras pronunciadas, e o andar, o entoar e o pronunciar talvez não sejam tão marcadamente falsos — “o beijo não está no roteiro, mas você é a única”, quais as fronteiras entre o que se pratica e o que se declama? Não é tanto a metalinguagem da atuação, mas a metafísica das possibilidades. E onde George está doente, está mais são, pois lucidamente arquiteta as resoluções que sua doença (que independe dele) traria sem sua participação.

Diluídas em sons (a linda música de Mark Snow, recorrente parceiro do cineasta) e artificialidade (desenhos nos planos gerais, eficaz frugalidade na direção de arte), é a nobreza dos rostos em closes estranhíssimos sob fundo rabiscado e a luz das emoções sob as estações (anunciadas nos intertítulos e intuídas a cada quadro) que denotam um pouco esses disfarces que pulsam e se metamorfoseiam e oscilam entre extremos e não permitem classificação pois inclassificáveis as coisas que não possuem nome certo para rótulo.

Talvez por tudo isso Amar, beber e cantar seja pertinente. Mas não é preciso justificativa para o amor ou isso retiraria de sua própria essência a necessária irracionalidade. Alain Resnais acerta também nisso.

10569157_898314083517452_1483211262_n

FacebookTwitter

Terra de Leite e Mel (Pierre Étaix, 1971)

Por Fernando Mendonça

“Humor é a polidez do desespero”.
Bernard Shaw

Nenhuma frase seria mais apropriada do que esta, dita por uma das entrevistadas, já próximo ao desfecho de Pays de Cocagne, para expressar a perspectiva de Pierre Étaix, seja no documentário citado como na obra que ele construiu em sua carreira de cineasta. Pelo que vimos nos trabalhos anteriores do diretor, já ficara muito claro o caráter de refinamento crítico buscado através do riso, este exato polimento de uma sociedade que transborda problemas e entraves pela simples constituição de coletividade que a determina. É possível sentir o desespero de ‘estar no mundo’ e ‘estar com o Outro’ em cada gag ou ação dramática solucionada por seus filmes, sendo Cocagne o acúmulo mais absoluto que Étaix poderia alcançar para amarrar as dobras ficcionais anteriormente propostas.

Estruturado numa espécie de filme-ensaio, o documentário maldito foi responsável por encerrar a carreira de Étaix como diretor, após uma série de processos na Justiça e uma forte repressão da censura francesa. Tudo o que o diretor fizera, após o Maio de 68, foi filmar os franceses em férias, ou em campanhas publicitárias e eleitorais. Porém, muitas das pessoas que permitiram previamente o uso de sua imagem, não concordaram com as ideias difundidas pelo autor, sentindo-se ludibriadas. Problema equilibrado entre a ideologia política e a montagem cinematográfica, percebe-se aí uma confirmação daquilo que Étaix problematiza em seu filme: o estado alienado de uma sociedade que já não consegue se refletir, que não suporta a autocrítica e, por isso, foge. É desta fuga impossível que trata seu cinema, sempre, e por mais que ele tenha entrelaçado ao pensamento sociológico um complexo jogo de questionamentos ao próprio humor e o riso (originando uma nova forma documentária, no mínimo), Étaix não conseguiu driblar as limitações que já sabia existentes, o que não foi exatamente um problema fílmico, já que ele nunca pretendeu fugir.

10639505_723139387756661_1508901157_o

Nota pessoal, não posso deixar de registrar o fato desta minha breve reflexão sobre Pays de Cocagne vir à luz, imediatamente, após a conclusão de um livro que também foi decisivo para os franceses da época: As Coisas (Les Choses), publicado em 1965, por Georges Perec. Passei toda a leitura do romance-inventário com Étaix em mente, mas não só ele, como também Tati, Rivette, Godard, Chabrol e cia. Todos estes, em algum momento, tocaram no mesmo e delicado ponto da sociedade manipulada, engessada e oprimida por rotinas que se impunham a despeito de qualquer lógica ou vontade própria de seus indivíduos. Os excessos do consumo, da publicidade e do capital, foram todos vértices de artistas inconformados, não somente com os rumos da conduta humana, mas da linguagem que usavam em suas artes, igualmente corrompida e aprisionada pela maior parte do público. A descrição de Perec para seu casal de protagonistas é mais do que aplicável ao estado social de Cocagne: “O inimigo era invisível. Ou melhor, estava dentro deles, os tinha apodrecido, gangrenado, estragado. Cabia-lhes pagar o pato. Pequenas criaturas dóceis, fiéis reflexos de um mundo que zombava deles. Estavam enfiados até o pescoço num bolo do qual nunca teriam mais que as migalhas.”

O mais doloroso, no fim, é constatar que os males apontados naquela década, longe de serem resolvidos, apenas se intensificaram, e rareiam as vozes dispostas a discuti-los. O exercício de montagem desafiado por Étaix, de concepção tão simples e elementar ao cinema, é cada vez menos prosseguido ou desdobrado em seus efeitos, sendo o esvaziamento do mesmo, a pior das censuras que lhe poderia caber. Possivelmente, a chave de conscientização para as novas gerações bem poderia se localizar na preciosa abertura deste Cocagne, dois minutos dos melhores que se pode conseguir no cinema: neles, o próprio Étaix é entrevistado a respeito da realização do novo longa, aparecendo mergulhado em quilômetros de negativos, película acumulada na sala de montagem para o corte do filme; ele menciona sentir-se atacado pelo infinito material e, numa inspiração à Méliès, vemos os metros e mais metros de filme ganhar vida e se movimentar monstruosamente, não cabendo mais na sala e enrolando por completo as pessoas em cena. Nada mais sintomático para uma contemporaneidade que já não tem o controle de suas imagens e que as multiplica desordenadamente e sem o tempo para sua depuração. Fica aí o recado de alguém que sentiu na pele as consequências e os riscos de uma filmagem, ou melhor, de um pensamento que se faz ouvir pelo que é filmável. Para que as próprias imagens de nosso tempo não ‘apodreçam, gangrenem e estraguem’, ainda há muito a se descobrir com Pierre Étaix.

10642752_723139397756660_849907054_o

FacebookTwitter

O Prazer (Max Ophüls, 1952)

Por Ranieri Brandão

Durante os primeiros cinco minutos de O Prazer, a famosa frase de Scorsese sobre a câmera “que respira” de Max Ophüls parece ganhar um sentido mais justo, mais claro, mais visível. Se a perplexa pergunta a essa constatação pode ser posta mais ou menos como num “ela respira como?”, ou “apenas porque está junto da protagonista de Carta de uma Desconhecida, é que ela respira?” — protagonista esta sobre quem a frase de Scorsese dá conta —, em O Prazer o que seria subjetivo torna-se enfim concreto. A câmera “respira” porque acompanha a história a seu modo, focalizando apenas o que deseja e como deseja ver. Não é a velha questão de ser mais um personagem, mas a de que a câmera passa a ser um figurante ousado que se insurge, quase um voyeur que padece de hipermetropia e da necessidade imperiosa de ver bem as coisas mais de perto. Significante extremamente necessário, porque essa câmera é também um espectador tragado pelo poder do drama, das peculiaridades da vida em sociedade.

Então, a questão talvez se resolva de uma vez por todas: a câmera “respira” porque só quem não respira é quem está, em primeira instância, morto. Ela vive literalmente ao lado do narrador em off de O Prazer, ou até seja capaz de fazer parte dele, de ser sua extensão, como se fosse a pena que compõe o retrato desses lapsos de mundo que Ophüls traz aqui, mas de forma a elucidar geometrias, saídas cênicas de (mais do que apenas uma mera) ilustração da palavra, como se esse autor verbal do filme que nos conduz às três histórias distintas que o compõem tivesse um visível problema cerebral onde palavra e gesto não se unem. A câmera de Ophüls em O Prazer, informação essencial para a força que se desprende do filme, se locomove, esquadrinha, tem uma noção espacial fascinante, que quase (ou nada) tem a ver propriamente com a enunciação narrativa (como em Hitchcock), mas com um desejo de composição de cena, com o desejo absurdo de ser humana, de olhar, de fazer se reintegrarem, mentalmente e de forma total, determinados espaços configurados dentro de sua inteligência, de modo que este ato confirme sua presença e sua enunciação dentro destes mesmos espaços, e até mesmo do plano. Sabemos que às vezes mover-se, em termos de organismos complicados como o do nosso corpo — e como o da câmera de Ophüls, porque ela pode sobreviver apenas a partir do desejo de olhar as coisas com um cérebro mecanicamente primitivo, em condições mínimas — é estar vivo.

Portanto, se a primeira cena de O Prazer está localizada dentro de um baile, com pessoas dançando freneticamente, é precisamente previsível que a câmera de Ophüls esteja lá, acompanhando tudo em estado puro de frenesi, flanando materialmente pelo espaço, ligando-se a ele e ao que nele está disposto, surpreendendo então um homem estranho com uma máscara horrorosa, a dançar. Sua aparição é apenas aquilo que mais queríamos para viver o cinema de Ophüls em pura conjugação com essas imagens moventes ligadas a algum sentimento, a alguma narração, a saber: ele é um homem velho que usa a máscara para poder “curtir a noite”, sentir os últimos sopros de juventude, se mover até cair ou até morrer, e seu rosto por cima do rosto é basicamente o de uma figura morta, inexpressiva, a face de um morto que dança. É por isso que a câmera “vive”, em O Prazer, talvez mais do que em qualquer outro filme de Ophüls, porque ela divide o drama, comporta-se como uma escrita e uma tradução (sua própria “versão” da história) atenciosa demais a ele (de novo, não à narrativa, mas ao sofrimento, ao desespero, à coisa singela, triste) e se ela o compartilha é senão para construir aí uma forma de escrita (palpitante, pulsante, às vezes até afobada, trêmula, extasiante) que, nos primeiros instantes do frescor desse mundo de desejos, não deve perder o tal homem de vista. A câmera de Ophüls é o filme de Ophüls.

Em todo caso, há tempo para se edificar os caminhos do amor e das relações, porque esse “prazer” que Ophüls contará, além de ser um prazer doentio pelas extremidades do movimento, é também o amor de narrar os meios que levam o amor a acontecer ou não. Para isso, com sua elegância, o cineasta escolhe um período que parece julgar riquíssimo em imagens (já que o repete em outros filmes), aquele que parece ser o início do século XX, e o toma pelo local ideal para o nascimento das coisas que ele quer filmar e dizer. O Prazer é composto de três narrativas particulares narradas por um mesmo homem de quem só teremos a voz “falando no escuro”. São, entretanto, narrativas que não se entrecruzam, mas que revelam as faces diversas das formas de manifestação do amor e de seus destinos específicos. Daí é que vamos encontrar, com extrema vivacidade e precisão, o contato com o prazer perdido, envelhecido, o romance solidificado por anos de casamento, do homem da máscara; o prazer impossível de concretizar, idílico, puro, protagonizado por Danielle Darrieux e Jean Gabin, emoldurado pela linda descoberta de uma vida no campo; e o último, o mais extremo dos episódios, onde o amor destruído volta a se recuperar sob o signo de uma frase essencial — e que Godard, se não me engano, utiliza com uma pequena troca de palavra, em um de seus doze tableaux em Viver a Vida: “a felicidade não é alegre” — implicação de uma verdade gigante, que logo em seguida é demonstrada pelo que a câmera focaliza, o casal na praia, já idoso, feliz em sua parcial paralisia física.

É essa diversidade que dá a O Prazer aquela sensação de que de fato vemos uma história em pleno movimento, preparada para o próximo gesto. E é também por ela que as surpresas do filme se estabelecem, ao contrário, pelo que só podemos perceber discretamente no interior do plano. Por exemplo, é um enigma a precisão com a qual Ophüls consegue fazer nascer (e depois fazer ser abandonado) o amor (ou a admiração) entre Darrieux e Gabin: por uma simples troca de elogios corriqueiros e, de fato, muito sinceros. Quando Darrieux tem que voltar à cidade, para o bordel onde trabalha, existe um pequeno momento de ternura que mesmo a câmera respeita e se detém a olhar com expectativa, quieta, prendendo a respiração: Gabin diz que vai visitar a moça algum dia, e vai embora de volta para casa, claramente entristecido em sua carroça. Dentro dessa beleza que fica impregnada como os trilhos do trem que levam Darrieux embora, é claro que a atenção retorna à câmera, em sua breve volta à imobilidade e à suspensão “clássicos”, é essencial, provavelmente porque este é o momento mais bonito de O Prazer, aquele em que uma linguagem de cinema se torna de fato humana, consciente, respeitosa, que sente o peso das coisas.

Porque o que há para viver em O Prazer é aquilo que se vive no limite do visível, do questionável, da matéria e das pequenas ou grandes convulsões. E essa é a própria lei que estabelece a existência da câmera como esse objeto passional, extremamente, pois ela é também o próprio drama, o próprio “saber onde estar”, como quando o narrador diz que para que a história comece, uma luz deve ser apagada, e a câmera, nesse momento, focaliza justo a luz que se apaga; ou como naquela cena indescritível na primeira comunhão da garota, onde a câmera de repente começa a se mover e sai vagando, em traveling, pela igreja, observando-a como uma criança que tem seu primeiro momento de consciência, que descobre que o mundo é também para se ver o quanto antes. É estabelecida aí, então, toda uma lógica para O Prazer, em particular, e para o cinema de Ophüls, em geral: esse “regime” de imagens que se movem fortemente, instaurado no momento em que a câmera de repente “desperta”, cria imagens que não se fixam (porque o movimento é primordial, essencial, é vida, fluxo, é toda a graça da arte de Ophüls, todos os movimentos que ela inventa e captura, os que levam filmes para frente, para trás, para o presente), mas que fixam os sentimentos no espaço, e também transformam esses mesmos sentimentos em linguagem, em coisas que podem ser metáforas.

Fixar sentimentos no espaço. E histórias, que devem conhecer rigorosamente o espaço onde se situam, que podem ser visualmente definidas pela recorrência da luz noturna, da vida noturna, clandestina, ou pela luz do campo, pela simplicidade de quem vive ali, também filmada por Ophüls. Em O Prazer existe uma pequena preciosidade que parece atestar que Ophüls é dos primeiros cineastas “clássicos” que na verdade eram extremamente “modernos”. Porque, se a “moderninade” do cinema pode ter a ver com ascensão da ideia de que uma câmera “existe” como processo fundamental ao filme, e que por isso ela deve “se revelar” na película, então o que dizer de todas essas sequências descritas, e outras tantas (como aquela em que a fachada de uma casa é praticamente mapeada, cena que parece citada numa célebre sequência de Tenebre, de Argento) não citadas aqui? Como não entender a câmera como parte de um processo de integração radical à carne dos personagens e da história, de observação obsessiva aos gestos (através de janelas) dos personagens, suas paixões, os pequenos desencontros e as tragédias? Quando a garota interpretada por Simone Signoret tenta o suicídio, a câmera de Ophüls faz o movimento contrário àquele que esclarece sua “respiração” contida na frase de Scorsese, e assim ela o faz para ser ainda mais clara: ela se torna Signoret, torna-se subjetiva, os olhos de um outro, o olhar de alguém que comete suicídio, e ela mesma, câmera, é quem se joga, quem se espatifa na claraboia do prédio vizinho, e é acobertada pela tragédia por alguns segundos. Para Ophüls, todos os sentimentos do mundo estão em sua câmera, e nessa câmera existe uma força que sempre pode contar a sua própria versão da história, que pode, inclusive, provar que pode morrer por ela.

FacebookTwitter

Coração de Cristal (Werner Herzog, 1976)

Por Fernando Mendonça

Fluem
as águas, densa neblina,
da cadente luz o irromper
do sol ou das formas
terrestres, com os bichos, ruídos da vida,
abismo que atrai para si
atenção a pulsar, escorrer, evanescer entre
rochas, fendas, aberturas de finita superfície.
Prefigurações do fim.
Destruição que é começo, princípio das coisas,
novos céus e terra
pelo olhar lapidados, reformados, corrigidos
em suas imperfeições. Plenos.
Eis a dimensão do universo,
retratação de um cosmo oculto
sob a umidade do ar, a levar consigo
o tempo. A conosco
fluir.

Beira a leviandade pretender qualquer lógica do verbo diante de uma obra como Coração de Cristal. Recebê-la em palavras é igualmente obrigar-se à criação, determinar o raciocínio não pela organização de conceitos, mas num articular de sensações que ultrapassem o logos para contaminar todo um estado instintivo de percepção.

Perpetuar o que Werner Herzog aqui poetiza é lidar com o caos, com as formas não organizadas de vida que, em si, já respiram, deglutem, piscam, ordenam um novo parâmetro de visibilidade. Experiência incomparável de imagens, sons e poesia, Herzog elabora um de seus mais viscerais e arrebatadores trabalhos, sendo vã a tentativa de esgotar adjetivos para o que ele realiza.

Basta dizer que Coração de Cristal é filme que mal cabe no cinema. Seu rigoroso corpo de luz e sombra, de silêncio e voz, é material humano dos mais densos, potência que vislumbra os fundamentos do mundo, recuperando a gênese de toda uma dimensão física a nível que mal se permite comprovar como enxergado, por mais que o vejamos.

Situado numa aldeia da Bavária, século XVIII, seu enredo desenvolve-se sobre um pequeno apocalipse que os habitantes do local enfrentam ao saber da morte de um velho vidraceiro, negociante responsável pela sobrevivência econômica da região e único conhecedor da fórmula para o famoso Vidro rubi, principal e misteriosa fonte de renda, agora perdida, enterrada com seu criador.

Do luto sofrido pela comunidade, um reflexo do agonizante mundo natural, de um planeta que ainda não se sabe redondo, da esperança que se debate a beira da morte. É o profeta da região quem nos alerta do fim, Hias (Josef Bierbichler), eremita que atravessa toda a duração do filme prevendo as configurações de uma catástrofe. Concretizando o trágico pelo corpo de sua voz.

É o profeta quem enxerga todas as coisas. Quem dá forma inclusive ao que não se pode ver. Seu duelo com o invisível urso selvagem, cena nuclear dentro de tudo o que Herzog já concebeu, sinaliza o estado absoluto contido em Coração de Cristal de representar o irrepresentável, de ofertar aos sentidos aquilo que, platonicamente, nunca se afastou de um mundo ideal. É como se Herzog rompesse as estruturas do universo, alterando as composições físicas não somente dos corpos ou superfícies naturais, mas dilatando-as na própria dimensão do tempo. Pois em sua escatologia até mesmo o que não se pode ver ganha a atenção de uma câmera, torna-se imagem. A violenta luta do profeta Hias contra a criatura transparente reconfigura um embate primitivo do próprio cinema contra a transparência em si, contra o que não se filma, mas ainda assim sobrevive na tela. Violação do olhar, do que recobre todas as formas numa frágil materialidade, epiderme do caos. Pois não importa o que antecede a imagem, é nela que a criação se completa.

Igualmente exemplar a encenação conseguida dentro da fábrica de vidros, entre simples trabalhadores (únicos no elenco do filme, junto a Bierbichler, a não trabalharem sob o efeito de hipnose, pois sim, Herzog fez questão de extrair de seus atores qualquer naturalismo ou entorno dramático) que lapidam a matéria incandescente e no vidro concretizam as mais variadas formas imaginárias. E talvez seja na cena em que vemos um dos operários esculpir um cavalo de vidro que finalmente cheguemos ao motivo de Herzog não apenas diante deste filme, mas de toda sua vida criativa junto ao cinema. Cena direta, de mise en scène fixa, invariável; dar a ver inquestionável de uma ontologia que brota pela imagem e que nela arremata todos os sentidos possíveis da criação; ainda que inserida num painel ficcional dos mais complexos, nela Herzog confirma o exceder da ilusão, seu ultrapassar, um preocupar-se com a realidade concreta ou, pelo menos, com o que é possível concretizar de real dentro do cinema. Do foco de luz que emana do centro para as bordas do quadro, do vidro para o espaço e sua decorrente cristalização, testemunhamos imagens do fôlego em eterna presença, da vida que, seja na criação ou no fim do mundo, permanece alvo de todo movimento expressivo. Em Coração de Cristal fluem os ecos de um testamento da humanidade, contornos da existência, lugar em que Herzog confirmou a ambição das ambições: cabe ao cinema não apenas espelhar a vida, mas fazê-la nascer, dela ser fonte. Eis a luz.

FacebookTwitter

No Silêncio da Noite (Nicholas Ray, 1950)

Por Luis Henrique Boaventura

1. Uma história de violência

A despeito da fúria que os toma como uma doença, os homens de Nicholas Ray são frágeis feito crianças, vulneráveis às iniquidades de um mundo que se recusa a abraçá-los. A resposta ao deslocamento, como quem responde a um pai, é sempre um cavo grito de cólera. Não há nada de inexplicável na raiva que Dixon sente, ela é apenas o desespero dos solitários, aqueles que em verdade ninguém narrou como Nick Ray (por se tratar em muito de narrar a si mesmo). Como para Jim Stark, Jim Wilson, Ed Avery, Johnny Guitar, a violência de Dixon é faísca do seu descompasso para com esse mundo que não o reconhece. A primeira cena de No Silêncio da Noite tem nos olhos de Dixon, refletidos no retrovisor, o único alento humano em contraste com a frieza da cidade que corre do lado de fora. Asfalto, pessoas, luzes, prédios, e dois olhos perdidos no espelho de um carro, último elemento relacionável do quadro. “É possível ser sozinho na cidade”, diz Ida Lupino a Robert Ryan em Cinzas Que Queimam. Dixon procura ir à forra com qualquer um que cruze seu caminho porque todos são estranhos a seus olhos, vultos incomunicáveis, miragens que povoam um lugar desolado, uma terra estrangeira (mesmo e principalmente as amizades que o cercam, rostos torpes e indistintos na noite). É por isso que Dix passa a vida procurando esta mulher de quem, como ele mesmo diz, não sabe o nome, não sabe como se parece, não sabe onde encontrar. Diferente dos vagabundos habituais do film noir, homens doentes, aleijados emocionais, Dix é um romântico em busca de alguém como ele nesse deserto, alguém que seja capaz de reconhecê-lo na neblina.

2. Inocentes

Há somente dois personagens livres de qualquer culpa em No Silêncio da Noite: Dixon e Mildred, a garota assassinada. No noir de um modo geral, mas principalmente nos filmes de Nicholas Ray, o mundo não é apenas um lugar hostil, é em si mesmo uma entidade maligna. Dixon e Mildred são vítimas de uma ordem que não permite a esse universo criado por Ray o cultivo do belo. É bobagem pensar, por exemplo, que Dixon poderia encontrar e, além disso, permanecer com sua amada para o resto da vida. Só lhe é concedido o encontro para que ele possa provar da perda, de uma dor que ainda não conhecia. Não há lugar aqui para a redenção, para o que é limpo; tudo está submetido a essa concepção draconiana das coisas, que tritura os corpos entre suas engrenagens. Nada pode a força humana contra a impiedade dessa máquina. É por isso que a única personagem pura, tola e genuinamente feliz em No Silêncio da Noite é morta com quinze minutos de filme.

3. Ponha-me na cama

Dixon tem a companhia de quatro personagens ao longo do filme: Charlie, o ator decadente, Brub, o velho parceiro da guerra, Mel, seu devotado agente, e Laurel, a mulher que ama. Brub se aproxima de Dix porque tem um caso para resolver, Laurel (ainda que venha a se apaixonar) quer apenas deixar de ser uma atriz de segunda, Charlie o visita uma vez por semana pra conseguir uns trocados, e para Mel, o único que parece nutrir uma legítima preocupação por ele, não se sabe até que ponto vale a amizade pelo homem ou o interesse pelo talento do cliente. Todos os quatro desconfiam dele, todos armam pelas suas costas. Brub o convida para jantar esperando lhe arrancar alguma pista, Laurel planeja fugir acreditando ser ele o assassino, Mel não hesita em roubar de sua mesa, sob um pretexto afiadíssimo, o roteiro pronto e levá-lo ao estúdio enquanto ainda é tempo. Não se sabe bem até que ponto Laurel e Mel estão cuidando de Dix ou de si mesmos. Enquanto isso, Dix parece ser o único a não desconfiar de ninguém em falso, o único em No Silêncio da Noite que é claro em todas as suas ações, seja no momento de se entregar sem volta a uma mulher ou em não esconder um impulso de raiva para o benefício dos presentes. “Diga para procurar um homem como eu, mas sem o meu senso artístico”, é como ele se despede de Brub na noite do jantar. Dix é uma presa fácil no mundo porque é o único personagem transparente, incapaz de não ser rigorosamente o que de fato é. Por isso precisa de proteção, por isso a cena em que Laurel, Mel e Charlie o colocam na cama para dormir, com um versinho de ninar e um beijo de boa noite, é o momento-chave de toda a epopeia de Ray em torno do homem solitário.

4. Um copo de cólera

Muito da beleza nessa solidão está na rejeição absoluta dos seus heróis, isolados inclusive do próprio espectador. Há essa [falsa] troca de protagonistas em No Silêncio da Noite. Começa de fato quando Laurel é convidada à delegacia pela segunda vez, sozinha e às escondidas de Dix (a quem ela deixou dormindo). Inadvertidamente, Ray faz de nós cúmplices de uma suspeita que só ganha forças com o passar do tempo. A cena da briga no asfalto é o argumento final para condená-lo, quando ele afasta a mão para alcançar uma pedra na beira da estrada e seus olhos (um Bogart à margem de qualquer comparação) se acendem como duas tochas. Até este momento vemos Dix cada vez menos enquanto, por outro lado, acompanhamos Laurel em tudo o que ela faz. Sabemos dos seus segredos trocados com a massagista, do pedido de socorro à mulher do sargento, de detalhes do seu passado. Conhecemos todos os seus medos. Dix, ao contrário, não nos deixa saber se sua próxima reação será um sorriso ou uma explosão de raiva. É quando Ray disfarçadamente torce os gêneros e, a um noir que já passava da metade sem um antagonista definido, a ideia de Dix como assassino e Laurel como a vítima em perigo passa a fazer todo sentido.

5. Uma cena de amor

Dixon e Laurel estão na cozinha. É uma bonita manhã, uma luz morna invade o quadro por todos os lados. Ele prepara o café enquanto ela ainda se esforça para acordar direito. “Qualquer um que nos visse agora saberia que estamos apaixonados”. O que faz desta uma das cenas mais belas e terríveis que Ray já filmou é o segredo que o espectador compartilha com Laurel. É saber da dúvida que a assombra, que a faz amar e temer o mesmo homem, porque nós o tememos também. Estamos do lado de Laurel agora. Ray aproxima a câmera de seu rosto a cada sobressalto, os acordes da trilha pesam a cada expressão de medo nos seus olhos e marcam um suspense muito bem definido: a tensão, a iminência de perigo; dois personagens em cena, um a ameaça, outro o ameaçado. Se todos os amigos de Dix voltam-se em segredo contra ele, nós não deixamos por menos. A ação que se segue é acompanhada com o público como cúmplice, levado junto de Laurel ao agente de viagens, sabendo do seu plano de fugir antes do casamento, sabendo da armação entre ela e Mel para que Dix receba a notícia do melhor modo possível (e para que eles possam se safar mais facilmente). Na cena da comemoração do noivado, com todos reunidos no restaurante, o espectador é um a mais na mesa que sabe a verdade e sabe o que todos escondem de Dix. Por alguma trucagem maligna que Ray enreda, também nós damos as mãos no conluio para enganá-lo.

6. Une femme est une femme

Se por cânone no noir a femme fatale é a perdição do homem, o objeto introduzido para instaurar a desordem, aqui ela surge como salvação de uma alma em ruína. No Silêncio da Noite é uma espécie de verso no tecido do film noir, onde vemos as coisas em oposição ao que são realmente, como deveriam ser, mas que conduzirão ao mesmo velho destino dos homens sem esperança da linhagem de Lang, Tourneur, Preminger. Dixon, como ele mesmo diz na fala mais icônica do filme (“… I lived a few weeks while she loved me.”), estava morto até encontrar Laurel, e só depois de se apaixonar sua vida volta aos eixos. Poderia ser qualquer um, mas que se pegue Almas Perversas de contrapeso, este noir definitivo: o homem comum com uma vida comum que entra em colapso quando esbarra em uma mulher na rua. Dix, ao contrário, volta a trabalhar, volta a sorrir, volta a fazer planos. Tudo isto para terminar não muito diferente de Edward G. Robinson no filme de Lang: apagando-se num fade out enquanto caminha de cabeça baixa para fora do quadro. Ambos têm a chance de provar da felicidade só para despencarem de um lugar mais alto, a única diferença é que Lang deixa isto bem claro em Almas Perversas. A femme fatale de No Silêncio da Noite é extraordinária porque nos tem do seu lado a maior parte do filme. Ela nos confidencia seus segredos, divide sua aflição, seu medo, até que a decisão de fugir e de magoar Dix deliberadamente passa a fazer sentido ao espectador.

7. Adeus, Dix.

Mas a personagem de Gloria Grahame não é a respeito de maldade e premeditação como a de Joan Bennett, ela é apenas mais uma vítima, e é esta absolvição final que faz de No Silêncio da Noite o mais belo e o mais triste dos filmes, uma nota sobre a perda, sobre o que não tem mais volta. Quando Laurel atende o telefone e fica sabendo da inocência de Dix, e os dois se olham por uma última vez, fica claro que, por um leve desencontro, diabrura do tempo, já é tarde demais. Como se a vida lhes fosse arrancada do corpo neste instante, ambos sabem que perderam um ao outro, que a pessoa pela qual se apaixonaram já não existe mais. Há agora um vácuo, um vulto, mais um rosto indistinto na sombra como todos os outros do reino de Dix, o nooble prince que só tem a própria vida a governar. E ele sabe agora, na calma do olhar derradeiro, que a culpa não é de Laurel. Culpa-se o mundo, númen maldito contra o qual não há refúgio ou artifício. E em face do amor desfeito, Dixon retira-se solenemente para o esquecimento de um fotograma escuro, porque a romaria dos homens toma o rumo certo nessa hora: de volta à estrada onde começou, vai diluir-se na velha correnteza urbana, no ventre oco do mundo, no silêncio franco da noite.

FacebookTwitter

Fantasmas de Marte (John Carpenter, 2001)

 Por Daniel Dalpizzolo

Embora seja um grande estudioso do classicismo cinematográfico, é bem verdade que as narrativas de John Carpenter são estruturas das mais hardcores que podemos encontrar no cinema narrativo contemporâneo — seu mais recente filme, Aterrorizada, está aí e não me deixa mentir sozinho. Exemplos não faltam: o jogo de ponto-de-vista subjetivo da câmera de Halloween, ou toda uma noção de mundo ruíndo agressivamente aos olhos do espectador em Eles Vivem, ou a releitura surtada da história de nosso século XX feita em Fuga de Los Angeles, ou então o ambiente tipicamente urbano e norte-americanizado sendo sugado pelo poder da mitologia oriental em Os Aventureiros do Bairro Proibido — enfim, praticamente todos os seus projetos guardam fragmentos de uma ousada visão de cinema que, se mal interpretada, pode despertar reações equivocadas aos filmes em questão.

É provável que nenhum de seus filmes tenha sofrido tanto com isso quanto Fantasmas de Marte, seja pela inevitável comparação com trabalhos melhores do diretor (afinal não se trata de um filme do nível de O Enigma de Outro Mundo ou Fuga de Nova York, pra citar duas obras-primas) ou pela mera dificuldade que se tem de aceitar uma proposta tão radical — dificuldade que é ironizada pelo próprio filme em um de seus momentos finais, quando com aquele sarcasmo típico de Carpenter certa personagem reage ao desfecho do relato da Tenente Melanie, nossa narradora, com algo parecido com “e vamos justificar o que aconteceu dizendo que existem fantasmas em Marte, é isso?”.

Se já não bastasse a história fantasiosa, sobre membros de uma expedição por uma cidade devastada de Marte lutando contra nativos ensandecidos e fantasmas desencavados, a narrativa construída por Carpenter resvala no próprio conceito de bom roteiro que se tem por aí, e que é amparado pela noção de “bom gosto” da apreciação cinematográfica mais rasteira. A começar pelo respeito absoluto que Fantasmas de Marte mantém com o ponto de vista que veste narrativamente, através do qual, em um longo flashback, assume-se como um resgate das memórias de Melanie sobre os fatos ocorridos e trazidos pelo filme, sem se esforçar em momento algum em buscar a compreensão desses fatos para além daquilo que ela conhece.

Ao agarrar-se à sua personagem, uma proposta de retorno ao passado se abre em diversos sentidos. Na história, diegeticamente, desbravamos as memórias de Melanie e fazemos junto dela uma releitura de um mistério pouco crível e aparentemente insolucionável, uma história onde pouca coisa parece realmente parece fazer sentido fora da fantasia da qual o filme se mune para existir — o que, em se tratando de cinema, não poderia ser mais coerente. Já em sua acepção artística, Fantasmas de Marte vai ao futuro para reviver o passado cinematográfico e histórico, utilizando-se de um uma série de características reunidas por Carpenter dos mais diversos filmes de faroeste que viu durante sua longa vida cinéfila.

Seria este, portanto, um western futurista vivido através das memórias de uma mulher e passado em Marte, com fantasmas, nativos doidos que fazem um cemitério a céu aberto com cabeças cravadas em estacas, gente quebrando tudo e o Ice Cube indo de vilão a herói por mera necessidade de uma narrativa que, a partir de certo ponto, abdica de qualquer outra possibilidade pelo simples prazer da ação boçal — um conceito, diga-se, também remetente à antiguidade do cinema e de seu preceito básico de entretenimento, onde o extra-campo perde valor para amplificar e tornar pleno aquilo que existe na imagem, pura e simplesmente, uma postura que nos dias de hoje certamente não deve funcionar com cineastas ruins, mas que com Carpenter ou com James Cameron pode virar ouro.

A viagem de Fantasmas de Marte é encerrada com muita porrada, sangue e violência gráfica rechaçando na tela em cenas belissimamente filmadas, e termina praticamente no momento em que seu filme inicia. Ao final de tudo, e ao contrário do que habitualmente se vê, não encontramos respostas (nem mesmo a intenção delas) para muitas coisas — com exceção de alguns elementos básicos e essenciais para a própria existência de um filme ali. Carpenter preserva grande parte do mistério e desvia da possibilidade de construir soluções “cabeçudas” para dar a seu filme uma proposta, um conceito narrativo — que vai além de meramente contar uma história com início, meio e fim, ou de buscar surpreender e agradar o espectador. Inegavelmente, é pra quem tem colhões.

FacebookTwitter