Terra de Leite e Mel (Pierre Étaix, 1971)

Por Fernando Mendonça

“Humor é a polidez do desespero”.
Bernard Shaw

Nenhuma frase seria mais apropriada do que esta, dita por uma das entrevistadas, já próximo ao desfecho de Pays de Cocagne, para expressar a perspectiva de Pierre Étaix, seja no documentário citado como na obra que ele construiu em sua carreira de cineasta. Pelo que vimos nos trabalhos anteriores do diretor, já ficara muito claro o caráter de refinamento crítico buscado através do riso, este exato polimento de uma sociedade que transborda problemas e entraves pela simples constituição de coletividade que a determina. É possível sentir o desespero de ‘estar no mundo’ e ‘estar com o Outro’ em cada gag ou ação dramática solucionada por seus filmes, sendo Cocagne o acúmulo mais absoluto que Étaix poderia alcançar para amarrar as dobras ficcionais anteriormente propostas.

Estruturado numa espécie de filme-ensaio, o documentário maldito foi responsável por encerrar a carreira de Étaix como diretor, após uma série de processos na Justiça e uma forte repressão da censura francesa. Tudo o que o diretor fizera, após o Maio de 68, foi filmar os franceses em férias, ou em campanhas publicitárias e eleitorais. Porém, muitas das pessoas que permitiram previamente o uso de sua imagem, não concordaram com as ideias difundidas pelo autor, sentindo-se ludibriadas. Problema equilibrado entre a ideologia política e a montagem cinematográfica, percebe-se aí uma confirmação daquilo que Étaix problematiza em seu filme: o estado alienado de uma sociedade que já não consegue se refletir, que não suporta a autocrítica e, por isso, foge. É desta fuga impossível que trata seu cinema, sempre, e por mais que ele tenha entrelaçado ao pensamento sociológico um complexo jogo de questionamentos ao próprio humor e o riso (originando uma nova forma documentária, no mínimo), Étaix não conseguiu driblar as limitações que já sabia existentes, o que não foi exatamente um problema fílmico, já que ele nunca pretendeu fugir.

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Nota pessoal, não posso deixar de registrar o fato desta minha breve reflexão sobre Pays de Cocagne vir à luz, imediatamente, após a conclusão de um livro que também foi decisivo para os franceses da época: As Coisas (Les Choses), publicado em 1965, por Georges Perec. Passei toda a leitura do romance-inventário com Étaix em mente, mas não só ele, como também Tati, Rivette, Godard, Chabrol e cia. Todos estes, em algum momento, tocaram no mesmo e delicado ponto da sociedade manipulada, engessada e oprimida por rotinas que se impunham a despeito de qualquer lógica ou vontade própria de seus indivíduos. Os excessos do consumo, da publicidade e do capital, foram todos vértices de artistas inconformados, não somente com os rumos da conduta humana, mas da linguagem que usavam em suas artes, igualmente corrompida e aprisionada pela maior parte do público. A descrição de Perec para seu casal de protagonistas é mais do que aplicável ao estado social de Cocagne: “O inimigo era invisível. Ou melhor, estava dentro deles, os tinha apodrecido, gangrenado, estragado. Cabia-lhes pagar o pato. Pequenas criaturas dóceis, fiéis reflexos de um mundo que zombava deles. Estavam enfiados até o pescoço num bolo do qual nunca teriam mais que as migalhas.”

O mais doloroso, no fim, é constatar que os males apontados naquela década, longe de serem resolvidos, apenas se intensificaram, e rareiam as vozes dispostas a discuti-los. O exercício de montagem desafiado por Étaix, de concepção tão simples e elementar ao cinema, é cada vez menos prosseguido ou desdobrado em seus efeitos, sendo o esvaziamento do mesmo, a pior das censuras que lhe poderia caber. Possivelmente, a chave de conscientização para as novas gerações bem poderia se localizar na preciosa abertura deste Cocagne, dois minutos dos melhores que se pode conseguir no cinema: neles, o próprio Étaix é entrevistado a respeito da realização do novo longa, aparecendo mergulhado em quilômetros de negativos, película acumulada na sala de montagem para o corte do filme; ele menciona sentir-se atacado pelo infinito material e, numa inspiração à Méliès, vemos os metros e mais metros de filme ganhar vida e se movimentar monstruosamente, não cabendo mais na sala e enrolando por completo as pessoas em cena. Nada mais sintomático para uma contemporaneidade que já não tem o controle de suas imagens e que as multiplica desordenadamente e sem o tempo para sua depuração. Fica aí o recado de alguém que sentiu na pele as consequências e os riscos de uma filmagem, ou melhor, de um pensamento que se faz ouvir pelo que é filmável. Para que as próprias imagens de nosso tempo não ‘apodreçam, gangrenem e estraguem’, ainda há muito a se descobrir com Pierre Étaix.

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