A pós-verdade no É Tudo Verdade

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Dois filmes exibidos no Festival É Tudo Verdade representam bem, e de maneira irônica em relação ao título do festival, o que se costumou chamar de pós-verdade. Esse termo, que vem ganhando a alcunha de conceito, surgiu para nomear a crise política que se instaurou no século XXI no que se refere ao modo como as redes sociais se tornaram meios para a disseminação em massa de notícias falsas. Desse gatilho inicial, se desenvolvem não apenas as famigeradas fakenews, mas uma série de teorias conspiratórias e brigas políticas em torno de discursos. Assim, a pós-verdade se instaura no campo da linguagem e do valor semiótico da imagem propagada na internet: não mais importa aquilo que é sustentado cientificamente, mas apenas o modo como certas informações são transmitidas (e por quem são transmitidas), privilegiando interesses particulares e ideologias misturadas à teorias da conspiração que ganham alcance global.

Em Mil Cortes (A Thousend Cuts) e Sob Total Controle (Totally Under Control), temos a presença dessa problemática em contextos diferentes. No primeiro, vemos o modo como o presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, sustenta todo o seu governo numa guerra contra as drogas, realizando uma lógica de extermínio de pequenos traficantes e usuários, além de censura implícita à imprensa através do discurso de ódio por meio de bots que investem seus ataques sobretudo à Maria Ressa e à sua equipe de jornalismo da Reppler. Além desse recurso usado nas redes sociais para promover ataques sistemáticos, vemos como Duterte criminaliza a atividade jornalística usando o seu poder político, em um esquema que se concretiza com o julgamento de Ressa, acusada de injúria cibernética, além de outros processos que ainda se desenrolam. Um quadro asqueroso que une um tipo de espetacularização da política que maquia o desmoronamento da democracia das Felipinas e que tem como um dos seus sustentáculos os bots das redes sociais.

Já em Sob Total Controle temos um recorte do início da pandemia do novo Corona Vírus nos EUA. Ainda que tenha envelhecido rápido, o filme traça um panorama interessante do início da pandemia no mundo e a irresponsabilidade do governo norte-americano em relação a isso. No que diz respeito ao tema da à pós-verdade, o documentário revela a postura negacionista de Trump e o modo como o seu desprezo à ciência chega à população, fazendo provavelmente o primeiro processo de politização globalmente conhecido do vírus em questão. As consequências dessa politização nós já sabemos, pois essa realidade é quase que sistematicamente repetida aqui no Brasil. O excesso de desinformação por parte do governo gera um clima de desconfiança constante sobre aquilo que estava estabelecido e soluções duvidosas aparecem em forma de milagre: é o caso do uso da hidroxicloroquina como remédio preventivo contra a Covid-19. O discurso interesseiro e sem fundamento toma o lugar do fato e do dado científico, a narrativa se sobrepõe àquilo que deveria ser consenso em nome do bem público.

Assim, esses dois documentários, compondo a programação do É Tudo Verdade, são ótimos exemplos de mostrar como a verdade é escorregadia e frágil. Se ela depende da comunicação e da linguagem para se realizar, a história da humanidade mostra o quanto que quem detém certo poder dessa linguagem e tem como disseminar aquilo que deseja comunicar, se utiliza desse recurso para fins próprios, por mais retrógrados que sejam. Mostra também que com o desenvolvimento da internet esse processo se tornou ainda mais nefasto, já que agora a forma da informação ganhou um novo impulso e a verdade parece ter recebido o ultimato de sua falência.

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É Tudo Verdade: Dois Tempos

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Por Chico Torres

Dois tempos é um roadiemovie em que Yamandu Costa e Lúcio Yanel exploram as regiões fronteiriças entre Brasil e Argentina. Uma busca que procura remontar as origens de Yanel, o primeiro mestre de Yamandu no ofício do violão. Yanel se radicou no Brasil e teve como primeiro lar a casa de Yamandu quando esse ainda era menino. Diante disso, o filme funciona como uma espécie de retorno ao lar, um presente de discípulo para mestre através de uma viagem em um trailer.

O filme não se furta do silêncio e a naturalidade do convívio que se estabelece entre os dois personagens faz com que a presença da câmera seja incorporada à rotina de ambos sem dificuldades. Ficamos com a sensação de que eles estão ali da forma mais autêntica possível, sem que os momentos de silêncio ou de diálogos vagos prejudique o filme. Logo fica visível a sabedoria de Yanel, uma sabedoria popular e que tem na experiência a sua grande validade. Em nenhum momento a figura de Yamandu se sobrepõe a do mestre. Como todos sabem, Yamandu é um dos violonistas de maior destaque no mundo, mas no documentário o seu papel é quase o de coadjuvante e a sua postura é a de alguém que está ali para aprender e para viver a amizade.

O retorno de Yanel representa também o modo como as coisas mudam e ao mesmo tempo permanecem ao longo do tempo, fazendo com que ele se reconheça e se afaste do seu lugar de origem. Mais do que diálogos sobre música (esses praticamente não existem no filme), o que se tem de pano de fundo é um conteúdo espiritual e filosófico que trata sobre destino, morte e fé, mas tudo sob uma simplicidade cativante. A mística do interior Argentino é resgatada através dos encontros com populares, com a visita ao cemitério, à estação ferroviária na qual trabalhou o pai de yanel, tudo isso regado à música tradicional gaúcha presente no Brasil e na Argentina.

Um filme que contempla paisagens, que se debruça sobre uma cultura subterrânea, que coloca dois grandes violonistas no seio da cultura que os alimentou, enfim, um filme honesto que não procura biografar seus personagens, mas deixa que eles sigam como os andarilhos que são.

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É Tudo Verdade: Paulo César Pinheiro – Letra e Alma

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Por Chico Torres

O documentário sobre o Paulo César Pinheiro não traz entrevistados. Só há a presença do próprio poeta, no conforto de sua casa, contando a sua própria história que é complementada com imagens de arquivos. Vemos o panorama de uma biografia que se confunde com a própria “cultura brasileira”, talvez a única cultura que tenha no formato canção um dos seus pilares mais fundamentais de formação de identidade nacional. Junto com Aldir Blanc, Paulo César Pinheiro é sem dúvida, ao menos na categoria específica “letrista”, um dos maiores construtores dessa ideia de brasilidade.

Traçando de modo cronológico, como diz o próprio PCP, um percurso que consegue unir cinco gerações, começando com Pixinguinha e chegando aos jovens compositores do século XXI, o filme aborda satisfatoriamente a potência criativa do poeta, mas não promove conflitos ou investigações mais minuciosas sobre o seu processo de trabalho, por exemplo. Pelo contrário, segue na passividade de contar os sucessos de alguém que teve a chance de viver exclusivamente da música. Como muitos documentários biográficos, a impressão é que se fica na superfície para poder dar conta de uma biografia que parece já oferecer atrativos suficientes ao público.

O filme se mantém no passado, estreito à visão do poeta e de suas saudades, seus encantamentos e o seu orgulho reiterado de ser um dos detentores da moribunda cultura nacional. Não há um mínimo esforço provocativo, dialético, nenhuma centelha de chacoalhar a paz daquele deus impassível que observa tudo e que ainda é capaz de contemplar. O que temos, enfim, é um documentário dócil e muito pouco criativo. PCP sempre aparece em preto e branco, como se estivesse preso a um passado que é constantemente rememorado. Faz pensar o quanto que se perdeu dessa ideia de Brasil com “S” e não com “Z”, o quanto que está datada a ideia do poeta, do compositor, do cantautor, dando lugar aos fuzis e ao funk carioca. Mas, se o poeta está vivendo esse tempo, nada mais digno do que fazê-lo confrontar esse mundo através de suas ideias, de seus voos imaginativo. Mas não, o documentário se mantém em sua reverência para que o homem rememore e lamente. Um lamento justificável e louvável, mas que ganharia muito mais potência se viesse carregado de ideias para o presente, perturbando a paz e exigindo troco.

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É Tudo Verdade: Gorbachev – Céu

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Por Chico Torres

Há dois trunfos no documentário sobre Gorbachev. O primeiro é em relação à forma: o filme possui direção e montagem que conseguem criar uma boa dinâmica e poeticidade para a monotonia das entrevistas e do próprio ritmo de Gorbachev, um homem nonagenário e adoecido. O segundo é em relação ao conteúdo: o entrevistador, desabusadamente, interroga Gorbachev sem reservas, o colocando diversas vezes contra a parede para que ela seja direto em suas respostas. Mas, como diz o próprio entrevistador, Gorbachev é ardiloso e suas falas são quase sempre ambíguas. O filme é conduzido assim até o final, sem grandes revelações, causando a sensação de que o entrevistador teve seus planos frustrados.

Ainda que o foco do filme seja explicitamente arrancar considerações de Gorbachev sobre os diversos fatores envolvidos na dissolução da URSS, o que se tem é um extrato poético e divertido sobre a decadência de um homem contraditório e que se vê solitário no fim da vida. Seja falando de sua falecida esposa, recitando poemas ou cantando canções de modo fanfarrão, quase chegamos a esquecer que aquele homem foi uma das figuras mais importantes e controversas da segunda metade do século XX. Além da presença do que parece ser funcionários que se tornaram amigos, aquela solidão é completada, de modo sugestivo, com retratos na parede de sua esposa e a insistente figura de Putin no televisor.

Nesse sentido, o documentário que parecia se propor a tratar sobre o tema árido da política, acaba que transmitindo um senso poético que, de algum modo, se coaduna com a personalidade errática de Gorbachev. Não temos nenhuma resposta precisa e saímos do documentário sem conhecer quase nenhum detalhe das ideias e dos bastidores dos eventos nos quais o estadista russo esteve envolvido. Por outro lado, tomamos conhecimento da frágil intimidade de alguém que parece estar preso em um limbo ideológico, no limiar de ideias que o deixaram preso em um universo indefinido, onde seus olhos vivos se contrastam com o seu corpo debilitado, como se em sua carne reinasse também um tipo de contradição indissolúvel.

 

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É Tudo Verdade: Eu e o Líder da Seita

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Por Chico Torres

Em Eu e o Líder da Seita (Aganai/ Me and the Cult Leader – A Modern Report   on the Banality of Evil) temos a presença de dois homens que poderiam ser retratados como vítima e algoz, um caso típico de confronto que renderia cenas bastante constrangedoras e redentoras. Mas, se esperamos que embates polêmicos se desenvolvam através desse encontro tão incômodo, ficamos surpresos porque o que encontramos é quase que a história de uma amizade que se dá sem grandes exaltações. Os dois personagens, em uma viagem que transmite a ideia de jornada purificadora, parecem estreitar os laços ao longo do filme, fazendo com que aquela possível história polêmica ganhe contornos mais sutis.

O filme se abre para reflexões sobre moral, fanatismo religioso, consumo e perdão. Sakahara e Araki flutuam entre tensão silenciosa e desconcertante intimidade. Se o primeiro permanece em seu lugar duplo de interrogador intimidador e possível amigo brincalhão, Araki é de fato o personagem que sofre as maiores transformações e quem nos salva da monotonia do filme. Percebemos suas transformações emocionais à medida em que se avança na viagem de trem. No início, Araki aparece tímido e quase assustado com a presença da câmera; no meio, está emotivo e bastante reflexivo, revelando diversos aspectos de sua vida antes e depois de sua adesão à seita. No fim, aparece acuado, visivelmente contrariado por ter que carregar toda aquela responsabilidade.

São essas variações que sustentam o filme. Sakahara, através de suas perguntas e investidas que muitas vezes possuem a intenção de convencer Araki a sair da seita e retomar a sua “vida normal”, conseguem fazer com que ele reflita, ainda que de maneira fugidia, sobre as suas escolhas. Desse modo, vemos o confronto de dois mundos irremediavelmente conflitantes: o de Sakahara, ligado ao consumo e à realização, e o de Araki, ligado à renúncia e ao esvaziamento de expectativas. Mesmo que sejam temas instigantes, os diálogos se realizam de modo natural e, por isso mesmo, muitas vezes são truncados e tediosos. O filme plaina nesse tipo de ambientação morna e não consegue realizar de fato uma investida consistente em nenhum dos temas que levanta. Seu final acaba por condensar tudo aquilo que estava latente ao longo da viagem: o confronto direito e a redenção de Araki através de um pedido de desculpas diante da imprensa. A sensação que se tem é que esse elemento chegou tarde demais, enquanto que os outros, os mais sutis, foram mal aproveitados, talvez por culpa do próprio Sakahara que parece não ter conseguido explorá-los devidamente. Um filme que fica no meio do caminho e que extrai com timidez a complexidade de alguém que parece querer estar além do bem e do mal, mas que acaba por retornar, inevitavelmente, para as questões demasiadamente humanas.

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É Tudo Verdade: Máquina do Desejo – Os 60 Anos do Teatro Oficina

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Para além da questão de uma arte panfletária, aquela desenvolvida na URSS, muitos artistas e pensadores se dedicaram a criar e refletir uma arte que fosse além de sua função pedagógico-revolucionária. A complexidade do que se entende por arte e política possibilitou uma série de desdobramentos que superam o sentido reducionista e datado de “arte revolucionária”.

É diante disso que quero pensar Máquina do Desejo – Os 60 Anos do Teatro Oficina. O filme procura mostrar panoramicamente o percurso e os diversos impulsos criativos que movimentaram o grupo sempre na direção de uma teatro com princípios políticos, mas um político libertário e muito pouco pedagógico. De Brecht a Shakespeare, sob o sol absoluto de Oswald de Andrade, o grupo desenvolveu, através de uma constante evolução estética, um tipo de dramaturgia que tem como centro não o cérebro ou o coração, mas a pelves e as entranhas. Assim, além do texto e da encenação, o corpo surge como elemento fundamental, um corpo liberto, dionisíaco. O filme consegue retratar bem, mesmo que indiretamente, o modo como o corpo foi sendo cada vez mais explorado e radicalizado dentro do Oficina. O irracional, ironicamente, surge como elemento político à medida que explicita ou sugere uma libertação total através do desbunde, indicando um sentido orgíaco e antropofágico para a vida.

A força política dessa dramaturgia se fundamenta também na subversão da própria ideia de arte. O questionamento estético é, portanto, também político, à medida que ao criticar os modelos convencionais do teatro, critica toda uma tradição e dá a ela uma resposta subversiva. Outro esquema que se desenvolve no Oficina é a interação entre artista e público. Ambos se confundem no espaço cênico. No sentido político, é possível entender que essa relação abre espaço para o jogo, para a participação, sendo um instrumento pedagógico poderosíssimo: uma forma brechtiana, mas que tem também como referência o teatro da Antiguidade.

Outros modos de relacionar arte e política são trazidos pelo documentário através de uma série de entrevistas e da presença iconoclástica de Zé Celso Matinez. Esses entrevistados não aparecem, suas falas são representadas por imagens de arquivos existentes desde a profissionalização do grupo. O filme, portanto, procura explorar um formato não usual de entrevista que mesmo podendo causar certo incômodo no início, já que ficamos curiosos para saber se quem fala é exatamente o personagem que aparece na cena, aos poucos vamos nos acomodando nessa narrativa quase errática, incorporando, de certo modo, o espírito irracionalista do grupo.

O filme, ao trazer diversos recortes de Zé Celso em sua longuíssima luta pelo espaço que circunscreve o Oficina, revela um ser contraditório e fascinante. Um homem que perdoa o seu torturador; que confunde realidade com ficção ao dizer “isso aqui é um filme de Glauber Rocha”, fazendo uma alusão ao Terra em Transe, como se esquecesse por um momento que entrega o microfone para um homem real em estado de miséria real e não a um personagem; um homem que luta pelo teatro fazendo teatro, teatralizando a política, numa ingenuidade que surge quase como a negação radical daquela vulgaridade e ambição dos políticos e homens de negócios. O filme, portanto, traça esse panorama através de uma cronologia torta e breve, pois são sessenta anos de um teatro que passou por diversas transformações internas, além de incêndios, ditaduras, revoluções e dissoluções. E a arte continua, como é mostrada em uma das encenações do Oficina, em seu lugar necessariamente à margem, procurando os espaços mais improváveis para fazer de suas bacantes algo de vivo no mundo dos homens.

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É Tudo Verdade: Fuga

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Fuga (Flee) é um filme interessante por unir animação, biografia e documentário histórico, integrando fatos importantes de um passado recente a aspectos subjetivos de um personagem bastante cativante. Apesar disso, o filme se detém às situações traumáticas dos personagens, fazendo com que aspectos históricos e subjetivos de uma realidade tão complexa sejam explorados apenas superficialmente.

Já de imediato conhecemos a história dramática de Amin, um afegão homossexual que foge da guerra e se refugia ilegalmente na Rússia com parte de sua família.  O longa exibe, através da vida em fuga de Amin em sua juventude, alguns aspectos da guerra que se desenrola no Afeganistão desde 1979, além do ambiente desolado da URSS em sua dissolução. Mas esses aspectos, apesar de serem fundamentais para o desenvolvimento do filme, são sempre trazidos através do olhar emocional de Amin. E não é que as emoções do personagem sejam menos relevantes do que um tipo de abordagem mais analítica. O que acontece é que o tom emocional, usado em exagero, acaba por tirar o peso de todo o arcabouço histórico que está por trás daqueles traumas. Conhecemos as situações-limite que são vivenciadas por Amin e seus familiares, mas não sabemos o que Amin fez dessas experiências, como ele desenvolveu os seus estudos e como é que isso o ajudou a lidar com tantos problemas. Sendo ele um homem afegão, homossexual, intelectual, que viveu em duas culturas completamente diferentes e em momentos históricos bastante decisivos, é possível presumir que muito mais poderia ser dito.

Apesar da alta carga dramática daquela história, o tom confessional, realizado através de entrevista que surge como uma forma de purgar o passado, acaba imprimindo alguma leveza ao filme, causando uma sensação de alívio ao perceber que, apesar de tudo, a coisas deram certo para Amin. Uma pena que, através dessa história de superação, conhecemos muito pouco sobre o que moveu aquele homem em sua trajetória, nos restando apenas imagens de um passado que foi apresentado por uma ótica que, mesmo sendo de maior alcance em relação ao público, parece diminuir consideravelmente a grande história de Amin.

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É Tudo Verdade: Glória à Rainha

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Por Chico Torres

Glória à Rainha (Glory to the Queen) é um documentário que se desenvolve através de uma dinâmica entre o mítico e o banal. O que nos leva nessa jornada dupla, são as trajetórias de quatro enxadristas contemporâneas e conterrâneas da Geórgia, país incorporado à União Soviética.

Em seu aspecto mítico, somos apresentados a essas mulheres que possuem o talento do xadrez e que monopolizaram por quase meio século os títulos mundiais do esporte na categoria feminina. São verdadeiras referências nacionais e isso se evidencia principalmente ao vermos seus nomes (Maia, Nona e as duas Nanas) serem replicados em outras mulheres, através de várias gerações, funcionando não apenas como uma homenagem, mas como uma espécie de benção, para que aquelas filhas também recebessem o mesmo talento das enxadristas. É curioso como muitas delas, de fato, se tornaram profissionais do xadrez ou mulheres que ocupam cargos importantes. Somam-se a isso, para reforçar esse aspecto mítico e que nos distancia daquela realidade meio mágica, imagens de arquivos de vários momentos em que as jogadoras, em meio aos cartazes típicos da estética soviética, exibem seus talentos jogando com vários opositores ao mesmo tempo, ou se desafiando entre si nos matches. Essas imagens estão carregadas de uma aura que imprime autoridade e reverência a essas quatro mulheres extraordinárias.

Por outro lado, presenciamos também o momento atual das enxadristas, o que acaba por revelar o teor mais banal e cotidiano de suas existências. Ainda que não se dedique exatamente a uma exploração de suas vidas particulares, o filme consegue cenas em que as personagens exibem suas personalidades, seus conflitos e realizações em torno de uma vida dedicada ao xadrez. Essa banalidade é exibida com sutileza, à medida em que é desenvolvida como detalhe, como algo que exige a atenção do espectador. Nada é exatamente revelado, mas surge como latência, como algo que é dado em doses mínimas e que talvez precisa ser subjetivamente explorado para uma apreciação mais proveitosa.

Junto a essas narrativas que correm paralelas, uma mensagem ocupa todo o espaço do documentário: a de que essas mulheres, para além de serem fundamentais para o desenvolvimento do xadrez em todo o mundo, lutaram por um espaço ocupado majoritariamente por homens. Através das personagens que carregam o nome das quatro jogadoras, é possível pensar na simbolização da vitória feminina sobre uma sociedade machista, sustentada sob a construção de um exército de Maias, Nanas e Nonas. Também de forma sutil esse aspecto vai se tecendo sobre as biografias entrecruzadas das personagens, se desenvolvendo como discurso engajado, mas muito pouco militante, à medida em que a problemática é explorada com naturalidade e objetividade, tratando com obviedade aquilo que é realmente óbvio. Tal qual a mente de suas personagens, Glória à Rainha é um filme que transita bem entre a assertividade e a imaginação, nos mostrando, ao mesmo tempo, a genialidade e a banalidade de mulheres que conquistaram o mundo debruçadas sobre um tabuleiro.

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Mostra de Tiradentes: Ostinato (Paula Gaitán, 2021)

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Por Chico Torres

Em Ostinato, Paula Gaitán persegue o compositor Arrigo Barnabé. Não uma perseguição no sentido de almejar uma investigação total, como acontece em alguns documentários que se debruçam, com uma nostalgia sedutora e vendável, sobre a biografia de artistas, surgindo como heróis da tropicália, da bossa, do samba e por aí vai. Não, Paula persegue Arrigo como aquilo que ele é: um ser no presente, com inquietações, aspirações e dúvidas no presente. Persegue-o também como inspiração estética, buscando no próprio método do compositor as soluções para o filme que se dedica a ele.

E o que Paula captura é um homem fragmentado, ou, como no título de uma reunião de textos de Walter Benjamin sobre Baudelaire, “um lírico no auge do capitalismo”. São muitos os Arrigos que surgem: aquele que revolucionou a música popular brasileira ao antrofogizar o dodecafonismo de Schoenberg, o desdobrando em canção, substituindo o serialismo pelo ostinato. Há também aquele que surge como Beethoven, em semelhança física e intelectual: Gaitán filma Arrigo em close, como se quisesse reproduzir em fotografia o retrato mais famoso do autor alemão, pintado em 1820 por Karl Stieler. Logo em seguida, Arrigo cita a Grande Fuga e diz ser a música de Beethoven a expressão do “pensamento puro”. Assim é também a música de Arrigo: exigente, feita para desafiar o cérebro. Por fim, há um Arrigo crítico da contemporaneidade, expondo a decadência do gosto e a falta de comunicação entre autor e público. Um Arrigo confuso, quase nostálgico, um homem de vanguarda perdido em um tempo sem vanguarda.

Todas esses Arrigos que aparecem dispersos ao longo do filme, como que em série dodecafônica sem repetição, surgem novamente em seu final, como em ostinato, nos dando a ideia de organicidade, de completude, tal qual o método composicional de Arrigo Barnabé. Todas as ideias do músico, seus desafios e frustrações, parecem sintetizadas em uma bela citação de um fragmento de Benjamin feita por Arrigo:

E por que? Porque se curvou. Assim, o corpo é justamente o que desperta a dor profunda. E pode igualmente despertar o pensamento profundo. Ambas as coisas precisam do isolamento. Quem alguma vez subiu sozinho a uma montanha, chegou ao topo esgotado, e depois inicia a decida, com passos que abalam todo o seu corpo. Sentiu que o tempo se desagrega, as paredes divisórias no seu interior desabam, e ele caminha por entre o cascalho dos instantes, como num sonho. Por vezes tenta parar e não consegue. Quem sabe que coisa o abala, se os pensamentos ou o caminho difícil. O seu corpo transformou-se num caleidoscópio que a cada passo lhe mostra figuras mutantes da verdade.

Ostinato é sobre esse ser caleidoscópico que busca os fragmentos da verdade através de uma música construída na esfera do pensamento. É também sobre Paula Gaitán, sobre seu cinema agora inspirado na música, nesse esforço incomensurável de encontrar, ainda, novas maneiras de dizer, sugerindo novas maneiras de pensar e sentir.

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Um carro roubado, um filme perdido: Keep It for Yourself e a Nova York de Claire Denis

Por Natália Reis

 “City of accidents, your true map
Is the tangling of all our lifelines”

(Adrienne Rich)

 

Um filme dado como desaparecido (ou ainda terminantemente perdido) quando reencontrado resguarda uma experiência comparável à abertura de uma cápsula do tempo. Da ânsia, irrompe o maravilhamento diante da possibilidade de colocar os olhos em um objeto distante e extraordinário –  quem são aqueles que sonham em ver materializados na tela Naniwa Onna (Mizoguchi, 1940), Surucucu Catiripapo (Neville d’Almeida, 1973) ou ainda a versão integral de Greed (Stroheim, 1924)? Para os que possuem uma relação simbiótica com o cinema, a imagem resgatada emana uma luminosidade quase sacra – e nada mais justo que compartilhá-la com o resto do mundo num gesto de comunhão.

Em 2019, o Le Cinéma Club, plataforma de streaming gratuita que, desde 2015, faz a exibição de um curta-metragem diferente por semana (incluindo restaurações, obras raras ou pouco conhecidas), conseguiu localizar e exibir online Keep It for Yourself (1991), único filme realizado por Claire Denis nos Estados Unidos (pelo menos até o momento) e por anos tido como irrecuperável. O média-metragem faz parte de uma peça publicitária, no mínimo curiosa, da empresa automobilística Nissan: diretores de diferentes nacionalidades deveriam desenvolver projetos curtos, nos quais de alguma forma e em alguma ocasião o Figaro – novo modelo da marca à época – fosse inserido no enredo. Dos três segmentos de Figaro Story (Figaro sutōrī, 1991)[1], apenas Keep It for Yourself  pôde ser recuperado. E a cópia japonesa em VHS escavada do ebay (com direito a legendas embutidas em japonês e desfoque censurando os pelos pubianos) acabou se tornando mais uma camada de verniz no estatuto lo-fi da obra.

O filme de Denis parte de duas narrativas equidistantes que colidem em certo ponto. Primeiramente temos Sophie, uma jovem francesa de Dijon – “como a mostarda” –, interpretada por Sophie Simon, que parte para Nova York, após receber uma carta de seu interesse romântico. Ao chegar à cidade, a jovem encontra um bilhete do namorado notificando sua ausência por alguns dias e um apartamento vazio, exceto por alguns eletrodomésticos, um colchão no chão e caixas de pizza igualmente vazias. Na outra ponta da trama, vemos um imigrante latino (E.J. Rodriguez) que, ao visitar o amigo, funcionário em um estacionamento, é levado como motorista/refém por um ladrão de carros (Vincent Gallo). Numa mudança inesperada dos eventos, ele recebe de presente o carro roubado – o simpático Figaro – do assaltante e é confundido com o criminoso pela polícia local. O rapaz busca refúgio em um prédio, no qual a única resposta ao seu pedido de socorro vem do apartamento de Sophie, que abre a porta acreditando ser o companheiro desertor. Passado o pavor inicial da fuga (por parte dele) e da invasão (por parte dela), os dois estrangeiros se aproximam, se aquecem, se amam, e partem juntos ao amanhecer. Deixando para trás um carro japonês rebocado e um ex-namorado que tem medo de se comprometer.

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Olivia Laing é uma escritora e pesquisadora britânica que frequentemente intercala experiências pessoais e dados biográficos de figuras influentes do mundo da arte em seus trabalhos. Em A cidade solitária: Aventuras na arte de estar sozinho (2017), a autora analisa a relação de artistas como Edward Hopper, Andy Warhol, Henry Darger e David Wojnarowicz com a cidade e o isolamento, ao mesmo tempo em que aborda seu trauma enquanto estrangeira vinda para Nova York e, assim como a personagem de Simon, abandonada justamente por quem motivou a partida. Entre as infinitas horas passadas no twitter no interior do apartamento e alguns passeios frios pelas avenidas e pontos turísticos, Laing descobre um tipo de solidão compartilhada quase reconfortante, apoiada na retribuição que o espaço urbano pode oferecer: “Na ausência de amor, eu me vi agarrando irremediavelmente a própria cidade”.

Keep It for Yourself é uma obra sobre solidão e sobre se agarrar à cidade – ou ao menos se abrir para que ela se agarre a você. Desde sua chegada, Sophie se mantém confinada no loft espaçoso no centro de Manhattan. Toma banhos gelados, ouve o rádio, fuma cigarros, passa o dia deitada num colchão ora olhando para as paredes brancas ora observando a chuva e o movimento na rua pela janela. A câmera de Agnès Godard, no primeiro filme de sua trajetória ao lado de Claire Denis, põe-se cúmplice desse tédio recriando uma espécie de mulher ackermaniana, refém das próprias repetições. Se os contrastes monocromáticos tornaram-se rarefeitos pelo tempo e pela conservação da fita, esses instantes são construídos por meio de outras oposições: a garota comprimida num ambiente dilatado e o silêncio interior sendo constantemente atacado pelos ruídos exteriores (buzinas, carros, sirenes). É como Nova York comunica a sua presença ali.

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Em uma das poucas cenas de Sophie fora do apartamento, enquanto come panquecas em um café, uma estranha se aproxima para falar de croissants e chapéus. A mulher, que até então lia um jornal com letras garrafais na primeira página anunciando a guerra do Golfo, é interpretada por Sara Driver, diretora e esposa de Jim Jarmusch, com quem Claire Denis já havia trabalhado como assistente de direção em Down by Law (1986). Assim como Driver, outras personalidades do underground nova-iorquino participam do média, o que – diferente dos travellings e panorâmicas (um movimento de câmera metropolitano por excelência, disse certa vez Jean-Louis Comolli) que acompanham uma conversa desatada ou contornam os arranha-céus – revela uma outra composição da cidade para fora do espaço fílmico: a das produções subterrâneas, de Jonas Mekas e o Anthology Film Archives, dos filmes de baixo orçamento e equipes formadas por amigos e dos clubes noturnos de música e cinema. John Lurie, ator e músico expoente do No Wave, compõe a trilha; Jim Stark, produtor de Coffee and Cigarettes (1986-1989), Mystery Train (1989), Down by Law e outros filmes de Jarmusch, atua como o vizinho calado e locador do imóvel onde a jovem francesa espera; e E.J. Rodriguez, na época percussionista dos Lounge Lizards ao lado de Arto Lindsay, Marc Ribot e os irmãos Lurie, é o latino imigrado e arrastado contra a vontade para um ato criminoso por Vincent Gallo em sua primeira de muitas colaborações com Claire Denis.

É difícil compreender Keep It for Yourself fora desse meio. Mais difícil ainda não evocar, nem de relance, a imagem de Eva, a prima húngara de Willie em Stranger Than Paradise (1984) chegando à metrópole com uma mala, uma sacola de papel e o rádio tocando “I Put a Spell on You” na versão de Screamin’ Jay Hawkins. Eva e Sophie não se esforçam para se integrar à cultura local, mas visivelmente fazem parte da paisagem cultural nova-iorquina. No filme de Denis, são poucos os que não têm sotaque. A atendente do café, a vendedora da loja de chapéus onde Sara Driver leva a recém-conhecida “french princess” (e fecha magicamente um ciclo de cameos de Driver iniciado em Stranger Than Paradise figurando como a “hat girl”), um homem e criança asiáticos que aparecem uma ou duas vezes abrindo o comércio ao lado do prédio do namorado displicente e até o latino confundido com um ladrão de carros que se vê obrigado a forçar a entrada no exílio da francesa solitária, são rostos pincelados pela cidade que trazem, ainda que de forma branda, temas caros à diretora: o trabalho, o estrangeiro, o invasor.

O personagem de E.J. Rodriguez não tem nome, mistura espanhol e inglês com cadência e leva comida chinesa para o amigo que está em horário de trabalho. Na guarita, entre um gole e outro na sopa quente para espantar o frio que vem de fora, reclama que não está muito bem e, quando indagado pelo colega, nomeia seu mal: “nostalgia”. Svetlana Boym dizia que a nostalgia é uma doença moderna sem cura, mas que, “diferente da melancolia, que se limita aos planos da consciência individual, a nostalgia é (também) sobre a relação entre a memória pessoal e coletiva”. A palavra, solta assim no diálogo, sem maiores explicações, é um fio lançado entre o homem que está prestes a se ver envolvido em uma situação na qual se torna fugitivo e a mulher prisioneira da própria espera. O encontro que se dará entre os dois é o prenúncio da partilha dessa nostalgia e de uma solidão experimentada pelos que chegam e pelos que partem da cidade. Sophie abre a porta sem saber se tratar de um estranho, os dois lutam, mas o rapaz a tranquiliza, explicando, mesmo sem ser compreendido, que só precisa de um lugar para se esconder. As distâncias entre as duas línguas aos poucos se encurtam, os corpos frios buscam um ao outro e a seguir vislumbramos uma sequência tão delicada quanto carnal. Nos beijos, toques e carícias Denis esconde, como um pequeno segredo, um tratado para a sobrevivência na cidade grande: estamos todos perdidamente sozinhos, mas às vezes é preciso abrir, ou ainda romper, algumas portas, e nos aquecermos num abraço desconhecido.

[1] Realizados por Claire Denis, pelo japonês Kaizô Hayashi e o argentino Alessandro Agresti.

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CineBH: Rodson (ou onde o Sol não tem dó)

Por Gabriel Papaléo

O céu sobre o Ceará tinha cor de televisão num canal fora do ar

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Na volta da quarentena, no mundo pós-vacina, é para essa festa frita de eletrônico que eu quero ir. Um filme que se anuncia “Fritado e montado por” já demonstra estar num lugar especial, e a concatenação louca entre os diversos dispositivos digitais parece ser a regra e o grande esforço das realizadoras e realizadores de Rodson – ou onde o Sol não tem dó. As dissonâncias espaciais abrem o filme para então nos levar para um panorama quase em livre associação do mundo distópico vivido pelo protagonista do título, uma criança interpretada por um jovem adulto que lida com a violência dos pais diante da sua amizade com um robô fudido que ele achou no lixo – e é condenada a vagar por esse mundo estranho de conflitos identitários onde vivemos.

Os anos 3000 serão feitos de lixo, o curta anterior de Cleyton Xavier, Clara Chroma e Orlok Sombra que serve como uma forma de sequência/derivado desse, já parte dessa crônica dos anos 3000 imaginados pelo trio, com os dejetos digitais utilizados pelas marginalizadas para formar uma resistência terrorista – e aqui a explosão dos formatos é mais variada, e por que não mais lisérgica. Acessamos a um arquivo pirata de uma sitcom da família tradicional brasileira disfuncional viciada em pó, a uma religião que prega pela cocaína contra os “cheiradores de cu”, e as mais diversas transformações que Rodson sofre por onde passa, ao desbravar a distopia futurista palco da luta entre as autoridades fascistas do governo anarcocrente e o grupo musical que se apresenta para o futuro.

Nesse retrato quase a mão livre da localização desse mundo, fica evidente que o caos político no qual vivemos é também, quem sabe sobretudo, uma guerra estética das mais ferrenhas. Como você pinta a sua resistência é central ao conflito, e Rodson vai de Lobo Solitário com seu Daigoro cyberpunk a morador de rua cuja imagem é sequestrada por uma blogueira que usa da miséria para ficar famosa nos festivais gringos, seja Rotterdam, Cannes, Berlim – todos aparecem num powerpoint maluco, fruto dessa liberdade estética marginal tão alucinante e que infelizmente é tão pouco vista em longas-metragem brasileiros contemporâneos.

Que no arremate ainda sobre para a imagem do mar como utopia final da liberdade, filmado num 480p vagabundo lindíssimo, parece sinalizar numa contramão de um filme como Corpo Elétrico de que a elevação espiritual solitária do personagem em comunhão com as águas não é um alívio nem um privilégio, mas um duro e surpreendente retrato do preço pago pelos excluídos e marginalizados. O mar não é a recompensa mas a fuga.

Tudo isso é sob a via do absurdo, espalhafatosa e gritante, num filme engraçadíssimo quando quer, e esse tempero desse afrontamento estético é o coração de Rodson – o que torna tudo francamente muito mais prazeroso de acompanhar. É uma experiência difícil e desafiadora que sonha texturas digitais grotescas para destituir o tecido da realidade escrota que acompanhamos para quem sabe restaurar alguma harmonia e paz na cabeça de quem precisa delas.

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Quatro filmes de mistério – CineBH – sessão curtas 3

Por Gabriel Papaléo

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Coisas Úteis e Agradáveis adapta o texto de Voltaire para um contexto de isolamento, tal qual o República de Grace Passô, e retrata a estrada perdida do protagonista indiano pela sugestão minimalista – de alguns objetos de cena importantes para a dramaturgia ao opressivo cenário caseiro que investiga sombras e prisões. Depois de Vaga Carne, novamente o diretor Ricardo Alves Jr. aproxima a tradição teatral do monólogo para estabelecer uma fina linha dramatúrgica da forma que a luz ecoa a voz do ator em close, de como o gestual do ator e diretor Germano Melo (aqui também responsável por adaptar o texto) incorpora o dilema em primeira pessoa do indiano violentado com o distanciamento brechtiano do relato político. O arsenal de recursos de Alves Jr. na hora de retratar esse universo não é vasto como no filme com Grace Passô, nem é dotado da afronta formal proposta pela artista – o caminho aqui é mais seguro, até mesmo mais desequilibrado. A cenografia acaba um tanto reiterativa volta e meia ao eleger os mesmos objetos do texto, soando ilustrações literais demais da adaptação, mas perto do final Melo e Alves Jr. encontram num retrato fantasmagórico uma âncora misteriosa interessante ao personagem. É um conto que oscila na modulação dramática, por vezes toma caminhos mais óbvios, mas demonstra seu revide político quando precisa e sabe orquestrar uma imagem de impacto com pouco – o que parece se tornar a especialidade de Alves Jr.

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Corre quem pode, dança quem aguenta fez parte da retrospectiva do cineasta Welket Bungué durante essa edição, e torna visual uma crônica sobre as escolhas da vida do artista diante da dança, da performance. O silêncio incomum do Rio de Janeiro, da vista de Santa Teresa, contrasta diretamente com a violência descrita no relato de Bungué, nas formas de opressão veladas ou mais diretas, nos agouros enfrentados pelo performer diante das adversidades sociais tão palpáveis e explícitas numa cidade cosmopolita como o Rio. A forma estética, modesta à princípio, investe nos espaços e em localiza-los como instrumentos de eco da voz do relato; é quando o rosto e corpo de Bungué se tornam mais constantes nos quadros que a dimensão desses espaços ganha um mistério especial, quase como uma confissão íntima diante de locais tão públicos – vazios e silenciosos como quase nunca acontece no Rio -, e cuja luz incide estilizada mesmo em externas naturais, as sombras e o claro-escuro surgindo inesperados. As fusões transformam o dançarino em uma aparição, alguém que flutua pela cidade, e daí temos o lastro visual do que significa esse aguentar do título.

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Do pó ao pó, curta de Beatriz Saldanha, parte da banalidade do cotidiano para transformar a rotina numa prisão, através da repetição das ações e de um eventual e crescente surrealismo nas imagens que organiza. O impacto dessas imagens oscila bastante, e parece mais à vontade nas investidas gráficas com sangue, texturas e viscosidades, e menos interessante quando busca articular pulsões de livre associação (a máscara, a punheta). A montagem em volta da bagunça dos dias da semana também soa bem básica, como um símbolo de primeira mão do que seria o tempo esgarçado em quarentena, e o curta acaba como mais uma curiosidade diante do isolamento que como o pesadelo doente que parece almejar.

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Misterioso como o filme de Bungué, mas através de outros dispositivos formais, de texturas, é o curta Extratos, uma viagem de Sinai Sganzerla ao passado de seus pais, Helena Ignez e Rogério Sganzerla. A voz narradora atual de Helena, das vozes mais poderosas do cinema brasileiros, conta também com a intimidade e a magia do curta de Bungué, mas sob a estética documental das imagens em super 8 e 16mm registradas pelo casal no exílio, de 1970 a 1972. Helena nos conta da sensação de pertencimento roubada pela ditadura brasileira, da errância pelo mundo a procura de verões, de paisagens familiares, das incertezas de dois jovens acossados que voltam escondidos para terem sua filha no Brasil que lhes escapou. Ver duas figuras tão icônicas quanto Helena e Rogério trajando suas roupas jovens, em movimentos cotidianos e de acolhimento, parece sobretudo um exercício de humanização, mas de alguma forma aumenta a mística a sua volta. Entende-se as cores nômades, os sorrisos ocasionais e a melancolia do olhar do plano aqui escolhido, um momento de impacto no arremate do filme. Uma breve história de esperança de quem aproveitou como pode a experiência ao redor do mundo pra investigar formas de enganar a morte, para um presente incerto mas sobretudo à procura de utopias.

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Dois projetos de demolição – CineBH: Sessão Curtas #2

Por Gabriel Papaléo

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Mesmo com uma estética mais afiliada ao cinema experimental, o curta Eu sou a destruição acaba soando também seguro nas suas intenções ao construir apenas através de imagens encontradas – em filmes, em programas de televisão, em vídeos “amadores” – um sentido catártico diante da fala do então ministro da cultura Roberto Alvim no pronunciamento oficial no qual se afinou explicitamente com uma estética nazista para relatar seus planos para o futuro. Iniciando em beijos vários do cinema para então prosseguir em diversas formas de corrupção e perda de contato com o humano, as imagens desafiadoras do filme acabam atreladas demais a uma tendência da cinefilia criadora artística em repousar seus sentidos narrativos de interpretação em obras que melhor articular e desarmam o espectador de certezas – e não é a primeira nem a segunda vez que vejo a proclamação incendiária do personagem em O Diabo, Provavelmente virar força motriz (e até mesmo o título) de um curta de imagens encontradas.

Às vezes parece que o mero assistir e organizar dessas ideias e imagens basta para a construção de novos sentidos, e novamente nem sempre é o caso. As possibilidades que o digital proporcionou ao expandir o acesso às imagens já existentes para novos usos e linhas de pensamento são fenomenais e diante de olhos atentos pode criar filmografias inteiras de percepções novas sobre imagens antigas – como no caso de Harun Farocki, ele mesmo com um filme passando em retrospectiva no CineBH desse ano -, mas também aumenta a quantidade de filmes que parecem existir apenas na base da referência. (ou reverência, o que acaba pior, se pensarmos que a coisa mais violenta que uma imagem pode sofrer é sua sacralização.)

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Quando essa disposição ao confronto se vê enervada pelo mistério de uma organização quase profética de ideias em imagens, o revide político que se almeja vem na figura do espanto, e é nesse lugar que Grace Passô opera seu República. O setting simples do filme de apartamento, muito em razão pela quarentena em decorrência da pandemia, traz a dramaturgia minimalista de Passô para se concentrar apenas em seu rosto, nas percepções das mudanças sutis diante da recepção de uma notícia chocante sobre a realidade. Nesse sentido o filme dialoga com Vaga Carne, o experimento tanto teatral quanto audiovisual de Passô – e filmado por Ricardo Alves Jr. -, que usava do arsenal de sua voz para evocar o pesadelo de explorações corporais abstratas contadas com violência. República é mais contido, mas não abre mão das surpresas na encenação, especialmente ao tocar numa metalinguagem que poderia desarmar as intenções diretas da fábula contada apenas no diálogo ao telefone, mas que escapa de um comentário reducionista para alçar a ficção a voos mais desafiadores e combativos.

A única imagem externa do filme, a vista distante de uma personagem a praguejar feroz na rua noturna, é bem forte no seu intuito de construir uma São Paulo de madrugada, fantasma, habitada pelas condenadas. Esse diálogo se expande com a revelação final do sonho brasileiro, desse alívio momentâneo que vira uma raiva incontida, cujo mistério da imagem inicial dirigida ao colonizador que assiste encara o duro paralelo da imagem final, na qual a testemunha da violência dos colonos grita frustrada que “o meu país nunca existiu”. Passô se propõe um difícil enigma, de encarar o espaço doméstico banal e o localizando com uma unidade dramática apenas, mas como já visto em Vaga Carne é com essas limitações que seu texto esgarça possibilidades, e o telefonema amargurado vira um estudado relatório do emocional instável do ano perdido, refém do desarranjo das autoridades, carente das profecias.

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