Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Atlântida (Yuri Ancarani)

Por Camila Vieira

A direção do italiano Yuri Ancarani é seduzida por alguns códigos de formatação de um certo padrão de cinema contemporâneo: a duração de um cinema de fluxo que se interessa mais pela ambientação que pela centralidade de seus personagens, a composição com luzes artificiais que estetizam cenas aparentemente filmadas como realistas, a montagem que intensifica a indistinção temporal dos acontecimentos. A elaboração de tais elementos facilmente coloca Atlântida em lugar muito confortável dentro da dinâmica dos festivais internacionais.

O tour de force do filme seria Daniele, um jovem de uma ilha às margens da Lagoa de Veneza, que vaga pela região com seus engenhosos barcos a motor, sem demonstrar qualquer interesse pelas demais pessoas que transitam no local. No entanto, tudo o que o personagem fala parece ser de menor importância para o que Atlântida deseja olhar: o modo como os jovens se encontram, mergulham na lagoa, fumam e se divertem com a música e com os passeios nos barchinos. O cotidiano ocioso da juventude está presente em boa parte das sequências, inclusive várias delas filmadas com o desgastado efeito flare.

Quando o longa-metragem escapa do registro espontâneo dos jovens, ele tenta se enveredar na construção de um esboço dramático para Daniele, mas a execução torna-se bastante esquemática. Um exemplo é o modo como aparece a jovem que se interessa pelo personagem e que responde sobre os questionamentos sobre seu futuro. Em uma cena no salão de beleza, ela afirma que “desistiu de sonhar”, mas, fora o discurso, não parece haver mais nada que aponte para tal certeza. 

* Visto na programação da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Notas breves sobre alguns filmes – Parte 3

Por Camila Vieira

Um Forte Clarão (Ainhoa Rodriguez)

Em um vilarejo na região espanhola de Tierra de Barros, as ruas estão vazias. Há algo de misterioso e sombrio que se captura nos planos gerais de Um Forte Clarão. O longa busca aliar o registro documental ao filmar moradores da região com estratégias ficcionais que flertam com o realismo mágico. Em um território onde mulheres sobrevivem mediante a concretude do despovoamento da comunidade, são alimentados rumores de que mais pessoas irão desaparecer.

Em sequências isoladas, o longa de Ainhoa Rodriguez consegue amplificar a sensação de estranheza de viver em uma cidadezinha isolada: mulheres idosas conversam sobre o medo de sair à noite e, mais à frente, um disparo balança o lustre da casa; outra mulher vê um programa de televisão em que um homem pede que sua esposa volte para casa e ouvimos várias gargalhadas altas em off; uma jovem entra em um casarão e derrama leite em seu corpo nu. Com rigor na composição de cada plano, o filme parece ter algo de incompleto no conjunto, sem também chegar a uma radicalidade na sua tentativa de romper com a estrutura narrativa tradicional. 

Sanguessugas – Uma comédia marxista sobre vampiros (Julian Radlmaier)

Pode parecer até interessante a premissa inicial do filme em forjar uma comédia a partir da crítica marxista ao capitalismo como o vampiro dos nossos tempos que suga a força de trabalho do operariado. Com a trama concentrada no final dos anos 1920, a senhorita Octavia Flambow-Jansen é uma vampira entediada com seu cotidiano aristocrático, ao lado de seu assistente Jakob, que toma consciência de sua condição como explorado por meio de Rosa, uma jovem militante e integrante de um clube de leitura das obras de Marx.

Em paralelo, acompanhamos a história do misterioso barão Kobersky, que chegou a interpretar Trotsky em uma das filmagens de Sergei Eisenstein e agora sonha também em ser cineasta em Hollywood. O desenvolvimento da narrativa de Sanguessugas não consegue fazer uso efetivo de seus personagens como alegoria da exploração apontada por Marx e referenciada o tempo todo nos diálogos e tampouco as situações construídas aproveitam bem o potencial da comédia como gênero.    

* Vistos na programação da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Lua Azul (Alina Grigore)

Por Camila Vieira

A primeira cena de Lua Azul anuncia a gradação de violência que Alina Grigore deseja explorar ao longo de seu filme: a protagonista Irina é acordada de forma brusca pela irmã Viki que a sufoca e insiste que ela não conte nada para seu pai que está chegando para uma visita. Filhas de pais divorciados, Irina e Viki moram na casa dos tios e são completamente controladas pelos primos, que as obrigam a trabalhar nos negócios da família. Irina deseja fazer faculdade em Bucareste, mas o pai ausente não entende a escolha dela e o primo mais velho quer que ela continue a fazer a contabilidade da empresa familiar. 

Da mesma forma como tantos outros filmes da Romênia que escancaram a violência e a crise social do país (como é o caso de Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental, de Radu Jude, outro filme na Mostra que já publicamos crítica), o problema de Lua Azul é a necessidade de posicionar exclusivamente o corpo da mulher como receptáculo incondicional da violência. Irina não reage quando o primo a espanca. Quando ela é estuprada por alguém desconhecido na festa, ela até se aproxima dele como se estivesse com Síndrome de Estocolmo. Há tanta passividade e silenciamento em Irina que é por demais desconcertante e incoerente diante de tanta violência que a cerca. 

Talvez com a intenção de não tornar a trama monótona e homogênea demais, a direção de Alina Grigore se serve de uma reviravolta do último terço de Lua Azul: para proteger a irmã Viki que também é vítima das opressões familiares, Irina realiza sua única ação para interromper o ciclo. Com uma câmera que circula em meio aos personagens da família, a penúltima sequência até consegue expressar a vertigem da situação que Irina desencadeia. No entanto, o desfecho acaba por reduzir o filme a tudo o que já foi visto antes. 

* Visto na programação da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: O compromisso de Hasan (Semih Kaplanoğlu) 

Por Camila Vieira

A dramaturgia de O compromisso de Hasan desvela aos poucos o não dito que se forja nas ações de seu protagonista: um homem que herdou as terras do pai e aparentemente tenta arranjar formas lícitas para sobreviver da agricultura. A sequência inicial apresenta a infância do personagem, que revela as circunstâncias do seu vínculo profundo com o terreno herdado. É onde Hasan cultivou durante muito tempo seu pomar que lhe serve de sustento, mas que agora recebe a ameaça de uma grande empresa que deseja se apropriar das terras para a construção de uma torre industrial de energia elétrica. 

A tendência inicial seria permanecer ao lado das intenções do personagem. Os empresários querem destruir as plantações, em prol da ampliação do próprio lucro. Hasan tenta convencer a empresa a usar o terreno ao lado que está improdutivo. Ele também procura ouvir outros agricultores da região que pediram empréstimos e precisam vender suas terras por valores irrisórios para pagar dívidas.

De forma gradativa, pequenos acontecimentos surgem como consequências das ações equivocadas do protagonista. Animais aparecem mortos por causa da água contaminada por agrotóxicos que Hasan usa de forma irrefletida em seu pomar. Sua esposa se lamenta por ser dependente dele financeiramente para conseguir fazer a peregrinação à Meca. Ao situar como as decisões de Hasan destruíram as vidas dos menos favorecidos na comunidade e de sua própria família, o longa de Semih Kaplanoğlu instaura um mal estar necessário pelo modo como o individualismo arruina interesses coletivos.  

* Visto na programação da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Notas breves sobre alguns filmes – Parte 2

Por Camila Vieira

I Comete – Um Verão na Córsega (Pascal Tagnati) 

A direção de Pascal Tagnati parece menos interessada na composição de personagens e no modo como eles interagem entre si em I Comete – Um Verão na Córsega, do que em uma certa ambientação a ser capturada de uma experiência de verão na ilha francesa. Jovens conversam entre ruelas onde motocicletas atravessam com rapidez. Os assuntos vão de férias a trabalho. Na beira de uma piscina, garotas falam sobre relacionamentos. Adultos constroem armadilhas para animais e conversam sobre jogos de futebol. Os diálogos são passageiros, como se fosse uma forma de observação à distância. 

A impressão é que o diretor não deseja psicologizar seus personagens, mas tampouco consegue fazer com que as conexões dos corpos em cena produza algo para além de um mero acúmulo de situações ligeiras. Em alguns momentos, o que está sendo dito por um ou outro personagem parece sair do individual para querer dar conta de uma condição estrutural do país, como o comentário sobre a Europa ser dos tecnocratas e dos banqueiros. Mas tudo fica muito aquém de qualquer tentativa de constatação.

O Garoto Mais Bonito do Mundo (Kristina Lindström e Kristian Petri)

Poucos documentários conseguem perspectivar a forma como o fazer cinematográfico pode destruir a vida de pessoas comuns em busca da idealização de uma imagem que será perpetuada como eterna para o público. O Garoto Mais Bonito do Mundo aborda o impacto que a repercussão de Morte em Veneza teve na vida de Björn Andrésen, o ator que ainda adolescente interpretou o belo personagem Tadzio no longa-metragem de Luchino Visconti. A beleza tão almejada pelo diretor italiano não converge em nada com o olhar triste e amargurado de Björn Andrésen em sua rotina atual. 

Em contraposição às imagens dos testes e das viagens de divulgação de Morte em Veneza em que a bela aparência física de Björn foi exaustivamente explorada, os registros cotidianos atuais apresentam um homem já velho, descuidado com a própria vida, perto de ser despejado e inábil com a namorada e com a filha. O filme também escancara que Björn teve sua imagem vendida mundialmente como objeto sexual, enquanto na intimidade sofria com a ausência da mãe e, anos mais tarde, levava uma vida dependente de drogas.

* Vistos na programação da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: As Bruxas do Oriente (Julien Farout)

Por Camila Vieira

O ponto de partida do documentário As Bruxas do Oriente é desmistificar a comparação das ex-jogadoras da seleção de vôlei feminino do Japão com a simbologia das bruxas que alimentam o imaginário popular do país, sobretudo nos desenhos e animes antigos. A figura da bruxa costuma ser associada de forma pejorativa a algo maligno e misterioso. Para desfazer a imagem de que as entrevistadas tinham poderes sobrenaturais indestrutíveis nas quadras, o filme reúne as entrevistadas ao redor de uma mesa de jantar 50 anos depois do período em que elas foram consagradas. 

Ao mostrar cenas do cotidiano atual de algumas das ex-jogadoras, elas relembram detalhes da rotina diária de trabalho como operárias da fábrica têxtil Nichibo Kaizuka nos anos 1950, os treinos árduos de vôlei após o expediente e os campeonatos em que elas conquistaram vitórias consecutivas na década de 1960. Cada uma delas é introduzida no filme com uma espécie de etiqueta ilustrada que informa qual era o status, o perfil, a habilidade e o apelido da jogadora na época. O documentário intercala registros atuais das ex-jogadoras que agora já são idosas com imagens de arquivo em que elas aparecem bem jovens como atletas em reportagens da época e registros de partidas e treinos. 

O momento mais intenso de As Bruxas do Oriente é uma longa sequência que intercala as imagens das famosas partidas da seleção de vôlei nos jogos olímpicos com suas reconstituições em formato de um anime que se tornou bastante famoso na época em reconhecimento ao desempenho brilhante do time. Em outra sequência, o mesmo paralelo é feito com as cenas dos repetitivos e rígidos treinamentos que elas recebiam. Ao dimensionar o que era exigido delas e como algumas desistiram após a primeira derrota, o documentário é bastante honesto com a trajetória das personagens, sem cair no risco de um resgate romantizado ou idealizado. 

* Visto na programação da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Notas breves sobre alguns filmes – Parte 1

Por Camila Vieira

Os Inventados (Leo Basilico, Nicolás Longinotti, Pablo Rodríguez Pandolfi) 

O longa-metragem argentino Os Inventados poderia despertar algum interesse mínimo, caso sua proposta inicial fosse levada adiante. Lucas é um atendente de telemarketing que deseja voltar a trabalhar como ator. Ele passa por vários testes e falha miseravelmente. Ao se inscrever em um workshop de atuação com mais quatro participantes, ele poderia ser levado a uma experiência sobre jogos de encenação fora das limitações adestradas do cotidiano, tal como o instrutor apresenta no início da trama. 

No entanto, a complexidade do exercício de interpretação e a possibilidade da construção de uma persona são apenas subterfúgios para o trio de realizadores Leo Basílico, Nicolás Longinotti e Pablo Rodríguez Pandolfi pensarem uma outra dinâmica para Os Inventados. Por meio da subjetividade insegura do protagonista, o filme prefere seguir uma narrativa enfadonha com brincadeiras sobre coincidências e personagens que desaparecem de forma misteriosa. 

Madeira e Água (Jonas Bak)

A sequência inicial de Madeira e Água mostra Anke, uma idosa que mora sozinha, em seu primeiro dia de aposentadoria. Ela conta a novidade para sua filha Theresa pelo telefone e confessa não esperar mais a hora de poder ver o mar nas férias de verão com seus filhos. Quando Anke abre a porta da casa, acontece um misterioso salto temporal e espacial. O contraplano é a imagem de Theresa e Lena à beira da praia. A filha de Anke é levada a recordar sua infância bela e tranquila, onde a antiga casa agora é apenas um símbolo do que falta. 

Anke é levada a procurar seu filho Max, que mora em Hong Kong. Há um contraste evidente entre a calmaria a qual a personagem estava acostumada e o fluxo intenso da cidade grande, com vários arranha-céus iluminados. Em visita a um bairro chinês, Anke é levada a pensar em si mesma e na relação com os filhos como a imagem da água em contato com a madeira. Filhos crescem e tomam outros rumos, longe dos pais. O filme de Jonas Bak é um silencioso estudo sobre o que se perde ao longo da vida e como os diferentes rumos da existência conformam ou limitam a experiência. 

* Vistos na programação da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Pegando a Estrada (Panah Panahi)

Por Camila Vieira

A estreia do iraniano Panah Panahi na direção de longa-metragem de algum modo é devedora do cinema do seu pai, o veterano Jafar Panahi. No exercício do realismo forjado pela ficção, ambos lançam olhares críticos para o modo como a conjuntura político-social interfere no destino das vidas individuais. Em Pegando a Estrada, uma mãe preocupada, um pai com uma perna engessada, um garoto que cuida de um cachorro doente e o filho mais velho que dirige compõem uma família que atravessa a paisagem desértica de Teerã para chegar até a fronteira com a Turquia.

Não se sabe de imediato o motivo pelo qual os quatro estão fazendo juntos a viagem. As pausas para descansar ou ir ao banheiro podem ser observadas de dentro do próprio carro ou a uma certa distância em que os personagens começam a revelar detalhes. Eles foram instruídos a manter discrição na viagem, sem poder usar o celular. A mãe desconfia estar sendo perseguida e logo desabafa que a família perdeu a casa e o carro para que o filho mais velho pudesse ir embora. O marido diz confiar no atravessador chamado Hoshang. 

Na presença do garoto, o casal sustenta a mentira de que a viagem urgente seria justificada pelo casamento do filho mais velho. O jovem está irritado e se chateia por ser tratado pelos pais como se fosse uma criança incapaz de resolver sozinho seus problemas. Uma névoa encobre a paisagem, enquanto um homem encapuzado aparece para dar as primeiras instruções. Mesmo com a certeza de que fugir seja a única saída possível, o destino incerto do filho é tão nebuloso quanto a impossibilidade da despedida.

* Visto na programação da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Coisas Verdadeiras (Harry Wootliff)

Por Camila Vieira

Inspirado no romance True Things About Me, de Deborah Kay Davies, Coisas Verdadeiras encena uma narrativa em torno de uma mulher millennial. Kate Perkin mora sozinha e prefere ficar distante de seus pais controladores; trabalha como atendente, mas chega sempre distraída ou atrasada; e sua rotina a coloca em constante estado de apatia. Sem vontade para se acordar e com baixa auto-estima, ela mal consegue manter laços sólidos de amizade e se encontra em uma posição vulnerável.   

Mais do que se sentir desejada, Kate busca alguma conexão com um homem ex-presidiário que ela conheceu em um dos seus atendimentos. Depois de interpretar um homem pouco confiável em The Souvenir (2019), o ator Tom Burke assume um registro semelhante ao interpretar Blond, o desconhecido que se envolve com Kate e se aproveita de sua fragilidade. Ele aparece e desaparece quando sente vontade. O sexo é sempre apressado. Blond altera rápido de humor: às vezes, é carinhoso e solícito; em outras, é grosseiro e estúpido. 

Por meio de uma câmera instável, o filme centra o olhar para Kate e o modo como ela vai absorvendo aos poucos suas próprias angústias e insatisfações. Ao acompanhar o descompasso cotidiano da personagem, a cineasta Harry Wootliff quer se solidarizar com uma mulher comum que sofre os efeitos de uma vida pouco desejável. Apesar do acúmulo de situações desconfortáveis, ela não desmorona totalmente e, ao mesmo tempo, sua tomada de consciência não se seduz pela estratégia fácil de transformá-la em heroína. 

* Visto na programação da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: No Táxi do Jack (Susana Nobre)

Por Camila Vieira

O problema de No Táxi do Jack, da portuguesa Susana Nobre, é confiar plenamente no possível carisma que seu personagem principal possa sustentar. Joaquim é um senhor na faixa dos 60 anos de idade, que está perto de se aposentar e acumulou em sua trajetória inúmeras experiências de trabalho, em sua maioria precarizados, desde limpar chão de fábrica a dirigir como taxista. Ao longo do filme, a maior parte de suas interações acontecem com funcionários que representam o peso das instituições que exigem procedimentos burocráticos para que o personagem mantenha-se com algum emprego. 

Durante as viagens que realiza pela cidade, Joaquim relata sobre seu passado na Inglaterra e nos Estados Unidos, a dificuldade para aprender a falar em inglês, os diferentes empregos provisórios que ocupou, a desconexão com o filho devido a rotina árdua de trabalho, o retorno a Portugal no momento pós-ditadura. É certo que a narrativa demonstra preocupação em aprofundar o personagem como uma subjetividade que se faz pelas diversas condições de trabalho que ele enfrentou ao longo da vida. No entanto, o relato parece apenas dar conta de um amontoado de situações pregressas, sem qualquer pausa reflexiva sobre os efeitos do trabalho. 
Como o foco acaba sendo a presença do personagem e sua forma pitoresca de narrar, No Táxi do Jack deriva por algumas brincadeiras cênicas, como aquela em que Joaquim parece estar dirigindo um táxi em uma rua movimentada, mas a câmera recua em um travelling que mostra a filmagem dentro do cenário de um estúdio. Em outro momento, ele conversa com um amigo cego e cadeirante, por meio de diálogos quase sempre jocosos. Nem sempre o humor é alcançado e o filme perde algo no meio do caminho.

* Visto na programação da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Lidando com a Morte (Paul Sin Nam Rigter)

Por Camila Vieira

O maior mérito de um documentário como Lidando com a Morte é escancarar o quão ridícula e absurda é a tentativa de um grupo de europeus brancos que desejam capitalizar em nome dos rituais que envolvem o luto e a morte de comunidades étnicas que habitam a Holanda. No bairro multiétnico de Bijlmer, em Amsterdã, a agência funerária Yarden tem o interesse de ampliar seus negócios para alcançar turcos, antilhanos, indianos, angolanos e outros tantos imigrantes como potenciais consumidores de seus serviços.

Sócia da agência, Anita Von Loon é a empresária que mais se empenha em fazer as tratativas diretamente com o público almejado. Ela visita templos, igrejas e mesquitas com um sorriso que deseja parecer amigável a quem ela não conhece, mas também expressa simpatia fingida e desrespeitosa por refletir seu olhar exotizado para culturas diferentes. Logo após a dor da perda de seu pai, Anita percebe a armadilha do “entusiasmo ingênuo” que ela tanto defendeu.

Por mais que disseminem o discurso de que a empresa precisa se modernizar frente às mudanças do bairro, ela e seus colegas funcionários da Yarden perpetuam o pacto colonial. Na sequência em que ganenses questionam a empresa sobre detalhes incompatíveis no que se oferta com suas cerimônias de luta, os funcionários soltam gargalhadas. Menos por se perceberem como alheios a demandas simples, como banheiros maiores ou horários ampliados, mas certamente por uma falha estrutural de acolhida e compreensão das especificidades culturais das diferentes etnias consultadas. Nada mais contundente que o contraste entre as salas vazias e assépticas da agência funerária e os festejos movimentados em celebração aos mortos nas demais comunidades.  

* Visto na programação da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Armugan (Jo Sol)

Por Camila Vieira

Rodado nos Pirineus de Aragão, região nordeste da Espanha, Armugan flana por uma paisagem rural em que personagens envelhecem isolados e em contato com a natureza. As imagens em preto e branco são dotadas de um rigor na composição: os atores estão quase sempre dispostos na centralidade do quadro, que só se desestabiliza quando alguém entra em movimento na cena. Os diálogos são poucos e, em muitos momentos, escutamos os personagens mediante voz off ou voz over. A atmosfera constrói uma temporalidade fora do cotidiano que superdimensiona a iminência da morte. 

Armugan é conhecido na região como o homem que oferece a última presença de conforto aos que estão prestes a morrer. Por ser uma pessoa com deficiência física, ele precisa ser carregado por Anchel, que o leva nas costas até chegar aos vilarejos que necessitam de sua companhia. A relação entre Anchel e Armugan é perpassada por cuidado e cumplicidade pela manutenção da vida. Ela pode ser tão frágil quanto os brotos que nascem e crescem nos pequenos frascos de vidro que ambientam a casa dos dois personagens. 

Uma mulher estrangeira aparece na região em desespero pelo estado terminal de seu filho pequeno, que está sofrendo. Armugan recusa eutanasiar o garoto. Ele insiste em oferecer apenas um acompanhamento de ordem espiritual. Neste embate com a materialidade do sofrimento, o filme altera o tom do registro misterioso e mítico para o debate pragmático em torno de quem tem o poder de interromper a vida. É um desvio que reposiciona o filme em outro lugar, que até simplifica o ponto de partida.   

* Visto na programação da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: A Taça Partida (Esteban Cabezas)

Por Camila Vieira

Não é novidade alguma encontrar no cinema narrativas que partem de famílias que sofrem as consequências da separação de casais. Dentro deste universo, o diretor chileno Esteban Cabezas propõe uma dramaturgia desconfortável, na medida em que se sustenta pelas ações e intencionalidades do personagem Rodrigo, um homem que não se conforma com a separação e deseja reocupar o espaço perdido a qualquer custo. 

O interesse de Rodrigo não é apenas ver seu filho Julian e ficar algum tempo perto dele. O personagem observa de longe a casa e aguarda a saída de Maxi, o novo companheiro de sua ex-mulher Clara. Só então Rodrigo se aproxima da mulher e, por insistência, consegue que seu filho fique com ele, que foi autorizado apenas a passear no planetário com o garoto, após seu retorno da escola. Ele não cumpre o que foi acordado e, a partir daí, será guiado por suas próprias vontades ressentidas pelo seu ego de macho ferido.

O personagem recusa sair da casa que já não é mais dele e destila sua inveja em relação ao bem-estar familiar que Clara parece ter alcançado. O desconforto avança quando os planos são reenquadrados no formato 4:3, com o intuito de enfatizar a expressividade dos personagens em momentos importantes da narrativa. Por meio das diversas situações em que Rodrigo age contra tudo o que sua ex-mulher solicita, a trama intensifica o desprazer e o horror de aturar um homem adulto que age de forma irresponsável e narcísica.

* Visto na programação da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Higiene Social (Denis Côté) 

Em cada plano, o personagem Antonin interage com cinco mulheres diferentes: sua irmã Solverg, sua esposa Églantine, sua amada Cassiopée, a funcionária Rose e a teóloga Aurore. Pelas conversas, descobrimos que Antonin afirma-se como um dândi e sente cansaço e dores no corpo. Seu destino é ter muitos amigos, não se submeter ao trabalho e viver da arte do furto. Enquanto ele, Aurore e Rose vestem roupas contemporâneas, Solverg, Églantine e Cassiopée apresentam-se com vestidos e adereços de séculos passados. De início, cogita-se que Antonin seja um personagem à frente de seu próprio tempo. No entanto, em algum momento, eles falam sobre facebook, cinema e computador. Engana-se Antonin quando diz que “sua civilização não vai deixar rastros”. O tempo atual ainda é afetado pelo conservadorismo dos pensamentos tradicionais.  

Apesar de insistir que o “mundo é uma fadiga moral”, Antonin é constantemente questionado pelas mulheres ao seu redor. Solverg defende o trabalho como forma de seu irmão livrar-se da prisão, sentir-se útil e realizado. Églantine julga Antonin por não cumprir seus deveres como marido. Cassiopée não deseja vê-lo novamente e o protagonista incita um duelo ridículo com seu oponente desconhecido. A fiscal Rose reafirma que Antonin deve cumprir a lei e a ordem. 

A única personagem que desarranja a própria forma do filme é Aurore, uma jovem que aparece caminhando pela floresta nos intervalos de uma cena e outra. Seu corpo é filmado próximo e a câmera segue seus movimentos, até o momento em que se escuta uma música de rock que a faz dançar. No encontro com Antonin, ela o ridiculariza como um “ladrãozinho sem moral”. Como uma espécie de comédia de costumes, Higiene Social desenvolve o quanto o masculino perde-se em seu próprio narcisismo e fragilidade.    

* Visto na programação da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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Mostra de SP: Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental (Radu Jude)

Por Camila Vieira

Para explicitar o mal estar de uma Romênia em que a crise econômica e social piorou com a pandemia da Covid-19, Radu Jude lança mão do registro da comédia na ficção Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental. No entanto, o cômico onde o filme quer chegar não depende apenas do jogo de interações entre os atores. Ele flerta com a forma como se forjam situações absurdas, em que o artifício é o tempo todo demandado de uma cena a outra. 

Dividido em três atos ou partes, o filme começa com uma circunstância aparentemente simples na estrutura dramatúrgica: um homem e uma mulher se filmam durante uma relação sexual; o vídeo caseiro acaba vazando na internet; e a repercussão altera o cotidiano da mulher na escola onde ela trabalha como professora de história. O desdobramento de tal incidente poderia colocar no centro do debate apenas a gravidade da vida íntima exposta em público e a ampliação do efeito de moralização por meio do uso das novas tecnologias. 

No entanto, Jude usa tal ponto de partida para desenvolver uma sátira da hipocrisia da sociedade romena. O segundo ato é povoado de imagens e frases curtas que preparam a tônica em torno de vários temas, que vão desde patriotismo ao distanciamento social. O movimento culmina na execração pública da professora pelos pais dos alunos em uma espécie de micro tribunal a ocorrer no último ato do filme. A cena abre margem para o aparecimento de personagens caricatos que enfatizam o ódio aos judeus e ciganos, destilam preconceitos contra homossexuais e recusam qualquer alteração dentro do tradicionalismo das instituições. 

Se por um lado, há algum interesse em ver no filme marcações dos novos tempos pandêmicos (o elenco atua com máscaras de pano ou cirúrgicas), a aposta na ridicularização de todas as frentes possíveis esvazia o potencial político que o filme poderia alcançar. O exercício parece superficial e repetitivo por ser apenas um acúmulo anedótico e revela a fragilidade na condução. 

* Visto na programação da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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