Lista de desejos para Superagüi (Pedro Giongo, 2024)

Movimento dos barcos

por João Paulo Campos

É impossível levar

Um barco sem temporais

E suportar a vida

Como um momento além do cais.

Jards Macalé. Movimento dos barcos.

Confesso que na noite da sessão de Lista de desejos para Superagüi (Pedro Giongo, 2024) durante a Mostra de Cinema de Tiradentes eu não dormi – fiquei a perambular pelas ruas e, naturalmente, terminei a noite no Vortex. Mas quando finalmente adormeci, sonhei com o movimento dos barcos. No meu sonho, uma senhora me sussurrava palavras que escutei na sessão deste filme. Era Dilma, uma das personagens do longa que, em dois momentos da história, toma a função de narradora. “Antes era melhor…”. Esta aparição sussurrante surge das sombras das praias azuis de Superagüi para enfeitiçar o espectador: “Não me acorda, Superagüi… Ainda tô dormindo”, diz ela baixinho para quem quiser escutar. É personagem ou veio para hipnotizar-nos? Os dois, sem dúvidas. 

O filme dirigido por Pedro Giongo parte do registro da vida na ilha de Superagüi, no Paraná. Mas vai muito além de um documentário informativo, uma vez que consegue construir um universo que amalgama as promessas não cumpridas da Constituição de 1988, tensões do mundo atual como, por exemplo, a destruição do meio ambiente em escala global e, o que só a arte consegue conjurar, um mundo delirante de sonho – os sonhos dos habitantes da ilha azul-vermelho-fogo de Superagüi (sempre que escrevo ou digo ou penso nessa palavra, meu corpo arrepia). 

Isso pois, como lemos na primeira cartela da obra, intitulada Lista de decretos, a vida por ali é fortemente impactada por leis federais, uma vez que a região é, desde a redemocratização do Brasil no fim dos anos 1980, uma Reserva da Biosfera e Patrimônio da Humanidade respaldada pela Unesco. 

Das regras do jogo, ressalto duas: 1. É proibido plantar no solo da ilha; 2. Durante a época de reprodução dos peixes, é proibida a pesca. Isso impacta fortemente a vida na ilha, cuja principal ocupação é a pescaria. A última regra que mencionei também tem um efeito sobre a ossatura formal do filme, que se divide em duas partes. Primeira parte: Abertura da Pesca. Segunda parte: Inverno. Com pesca e sem a pesca. Entre um e outro: o movimento dos barcos e pessoas e seus desejos. 

O filme consegue inventar a partir das idiossincrasias dos habitantes, mostrando muito mais que um registro do cotidiano da região. E o faz desde um compromisso com a beleza que parece nascer das tripas da ilha. O belo toma forma a partir da atenção para elementos da vida que escapam às observações apressadas de pesquisadores e jornalistas, agentes governamentais e turistas. É o jeito de falar e andar, o estilo de sonhar e fazer farra das pessoas de Superagüi que se metamorfoseiam em cena de cinema nesta alquimia sensual de imagens e sons.  São as canções, acordes, batuques, cores, roupas, saberes e histórias que roubam nossa atenção e se infiltram em nossas memórias – verdades e mentiras que tem um estilo de ser e se refazer em filme. 

Os enquadramentos muitas vezes pegam as cores pulsantes entre frio e quente das casas, barcos, roupas, instrumentos, pescados e fogueiras, mostrando belezas insuspeitadas em planos longos, serenos. Não preciso mencionar que é um filme atmosférico, sensorial. Isso sem dúvida nos ajuda a navegar por Superagüi – uma navegação imaginária que lembro ao dormir e relembro acordado. Estarei dormindo ainda?

A montagem do filme merece atenção, naturalmente. Pedro Giongo é, além de diretor, um sábio montador, tendo realizado, neste ofício, trabalhos como Casa Izabel (Gil Baroni, 2022), para ficar com um dos mais recentes. Giongo e Bruno Carboni (que divide a edição com o diretor) tecem ambientes entre a calmaria e a festa, o lamento da tempestade e sonhos de futuro por vida digna e felicidade coletiva. E isso tem um ritmo e também constrói um cromatismo singular. O ritmo acompanha o movimento dos barcos: cinética ondulante que faz subir e descer num flow sereno, mas não sem turbulências. As cores entram numa mistura entre o frio e quente: o azulado das praias entra em confluência com um vermelho incendiário das fogueiras, lanternas, cigarros, crepúsculos. O vermelho da aurora. Um esfria-esquenta gostoso de sentir.  

A interrupção e o desvio encontram lugar na Lista de Desejos. De repente, a sombra vira luz. Um gesto de montagem interrompe a imagem em movimento e faz aparecer uma série de fotos em 35mm de quadros esculpidos de animais. As artesanias logo dão lugar para uma farra muito louca: uma música efusiva embala retratos de gente jogando cadeira pra cima, abraços e beijos, bebidas e saltos. A felicidade toma o filme de assalto para voltar ao claro-escuro do presente. Depois, um álbum de família, uma saudade bate forte. Sinto que os personagens da ilha são nostálgicos, de certa maneira: “antes era melhor…”.

Encontramos outros desvios nas cenas em que Martelo e seus companheiros e amigas da ilha buscam, num prédio na Justiça Federal alhures, provar a atividade profissional de longa data do velho pescador diante de um juiz, para que este consiga o benefício da aposentadoria. “Carente ajuda carente”, diz Passarinho para o juiz. Martelo já é velho de guerra, precisa descansar. “Superagüi não me acorda”. Mas talvez o atalho mais bizarro e belo do filme seja o momento em que Martelo conta a história do ouro enterrado muito tempo atrás em terras vizinhas. De repente o filme toma a forma do delírio do pescador. Ele e o comparsa traçam na areia o mapa do tesouro. Os amigos corsários partem na noite azul em busca do malote. “Dividir meio a meio”, repete Martelo para o outro pirata. Mas a cobiça toma conta: num mangue, o homem encontra o ouro cavando um barro-preto-escuro. O jovem dá o calote no velho e desaparece correndo por planos alucinantes na mata. 

Antes de mais nada, Lista de desejos para Superagüi constrói um clima desejado, uma vibe indescritível. Obra que nasce, sintomaticamente, no tempo das catástrofes climáticas. Vem para oxigenar nossa imaginação e, quem sabe, contribuir para a desaceleração do mundo.  Mas, como sabemos, isso já é papel de outros profissionais e o cinema, por si só, jamais salvará o mundo. Uma história criada a partir dos desejos de muita gente – pessoas que sonham e nos apresentam suas listas de desejos em imagem e som, cores, palavras e muita música.

Voltarei a dormir logo mais para, quem sabe, sonhar novamente com a ilha azul-vermelho-fogo. Desejo reencontrar Martelo, Cajá, Dilma e as outras pessoas e ambientes que vem voltando em minhas memórias num claro-escuro que tomou conta de meu corpo desde a sessão deste filme. Dessa vez, vamos encontrar o ouro debaixo da terra para dividir em partes iguais.

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