Mostra de Tiradentes: A Mesma Parte de Um Homem (Ana Johann)

a mesma parte de um homem

Por Chico Torres

Toda a lógica de A mesma parte de um homem se sustenta em uma ideia de transição. Transição do desejo, do corpo, do medo. Tudo parece fluir dentro dessa concepção de que, através de acontecimentos traumáticos, mudanças se instauram e transformam toda a realidade das personagens, principalmente da protagonista Renata (Clarissa Kiste). Uma mulher retraída dentro de um ambiente rural e marcado pela violência, se descobre possuidora de desejo, de voz, de vontade, ainda que tudo isso se dê através da presença de outro homem.

Em seu primeiro ato, temos uma atmosfera ora explícita, ora sutil de medo, abuso sexual e violência doméstica. O ambiente familiar é marcado por uma presença masculina maléfica, na figura de um pai que domina tudo o que está ao seu redor. Por outro lado, o medo que existe em relação ao ambiente externo, presente obcessivamente em Renata e que paira por toda a primeira parte do longa, não é devidamente trabalhado ao ponto de embarcamos junto com ela em sua angústia.

Com a chegada de Lui (Irandir Silva) logo se percebe que esse medo do externo não será relevante para o desenvolvimento do filme, mas sim a relação daquelas mulheres com o estranho que logo ocupa, sem grandes complicações, o lugar de esposo e pai.  A aposta no estranhamento e na falta de respostas muito claras sobre diversos acontecimentos ao longo do filme, conferem originalidade à obra, já que nos escapa certos psicologismos previsíveis. Não se descobre exatamente quem é aquele homem que “chega”, do mesmo modo que mãe e filha não revelam em nenhum momento o segredo que guardam de Lui. O longa está cheio desses elementos que provocam dúvida quanto ao caráter e motivações de todos os personagens, mas que são bem aproveitados à medida que povoam todo o filme, criando uma atmosfera bizarra e de abertura interpretativa.

 Essa quebra de expectativas nos ajuda a focarmos no que parece ser o objetivo central da obra: o modo como ocorre a transição de Renata em relação ao seu desejo, à sua vontade. As cenas de sexo são filmadas magistralmente e marcam o quanto a questão da descoberta sexual é um ponto fundamental. É assim que se estabelece a transição. Renata passa a descobrir o prazer e a se impor diante do novo esposo, dando vazão aos seus desejos e vontades. A fotografia e o corpo da personagem vão gradualmente se transformando: ela começa o filme apagada, curvada e com medo, mas termina iluminada, sentindo as novas possibilidades atingidas através do afeto e do sexo, ainda que timidamente. Um filme que, apesar de estar pincelado por alguns elementos pouco convincentes, é bem-sucedido ao desenvolver, através do bom uso da fotografia e do trabalho dos atores, uma ideia sutil de transição que revela descobertas pessoais há muito reprimidas.

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