Eu também não gozei (Ana Carolina Marinho, 2024)

O gozo das outras

Por João Campos

Falar de maternidade e gozo no cinema é um ato disruptivo. Encarar essa problemática com responsividade pode significar muitas coisas, mas todos os caminhos passam pela contradição. O longa-metragem de estreia de Ana Carolina Marinho elabora uma jornada que segue Letícia Bassit, performer e escritora de São Paulo, em seus caminhos depois de uma gravidez não planejada. 

Eu também não gozei (2024) é realizado numa pegada investigativa ao estilo “documentário observacional” que bombou nos festivais recentemente – para o bem e para o mal. No entanto, o filme evita fragilidades típicas desta tendência contemporânea, como a falta de uma ideia ou gesto de montagem capaz de criar caminhos de fruição para os registros. Aqui entra a força da montadora Cristina Amaral nesta obra.

A premissa do documentário é simples: a personagem descobre que está grávida e não sabe quem é o pai de Pedro, o neném. Esta situação dispara toda a movimentação: a mãe resolve buscar o pai biológico da criança. Para isso, realiza testes de DNA, processos que a documentarista segue de perto. São quatro possibilidades de paternidade. Quatro homens surgem no fora de campo através de seus diálogos com Letícia por telefone.

A fala tem um lugar central nesse documentário. O longa procura dar voz à sua interlocutora, ao mesmo tempo que a persegue em suas passagens entre prédios institucionais, espaços domésticos e o interior de carros em movimento. Apesar de ser um filme que busca seguir os movimentos de Bassit em São Paulo, a cidade não aparece. Isto revela um desinteresse do filme em dar forma à relação entre o corpo da protagonista e o ambiente que ela rasga com seu vai e vem. 

Impossível não falar dos dedos de Cristina Amaral nesta fita. A montagem bagunça tempos, sentimentos, temas – traço caligráfico do trabalho de Amaral, como vemos em Serras da Desordem (2006) e Mato Seco em Chamas (2022). O material fílmico e sua cronologia são redimensionados em espirais, o que cria um magnetismo em torno do encadeamento das cenas – seus intervalos e seu ritmo. 

Mas, ainda assim, algo causa frustração no espectador. Apesar de dar voz ao discurso de Bassit em torno de problemas que são cotidianamente escamoteados na sociedade brasileira, o filme não consegue criar uma imagem expressiva desta vivência. A protagonista fala com clareza e transparência, com controle da cena. A impressão é que, ao mesmo tempo que o filme acolhe a personagem, também a enclausura numa redoma.

Não falta coragem à Eu também não gozei, mas falta estranhamento. Dar a voz significa dar forma? Em seu esforço por criar uma instância acolhedora para fazer ecoar a voz da experiência, acerta a transparência e a clareza – a comunicabilidade “universal”. Fico pensando o que seria desta obra se as cenas em que Bassit quebra a moldura da Razão com performances e improvisos tivessem mais espaço. E se o filme se perdesse um pouco no caos e no delírio? Aqui, a voz não vira cena. 

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