Mostra de Tiradentes: Açucena (Isaac Donato)

açucena

Por Chico Torres

Um filme sobre uma outra percepção do tempo. Um tempo dilatado, que vai de encontro ao tempo cronológico porque é um tempo de espera, de contemplação, de suspensão. Açucena coloca o espectador em uma ambientação que, pouco a pouco, desvela os mistérios que cercam a personagem mítica apenas de modo parcial, pois a revelação não está disponível nem para os que convivem intimamente com aquela presença difusa.

A atmosfera infantil, onde flutua uma casa rosa repleta de bonecas, é completada pelo trabalho sério e zeloso daqueles que fazem acontecer o aniversário, compreendido na acepção plena de um ritual que deve ser cuidadosamente preparado. Açucena, eternamente com 7 anos de idade, habita não apenas Mãe Guiomar, mas é como um ser onipresente dentro daquela comunidade que de modo extremamente delicado cuida dos preparativos da festa: pequenas roupas que são construídas, o reparo das bonecas, o portão e a casa pintados, os detalhes da decoração, tudo gira em torno desses afazeres, como se cada gesto devotasse à Açucena aquilo que devidamente lhe cabe: respeito, sacrifício, entrega.

Percebe-se que o processo de construção é tão importante quanto a realização do aniversário em si. Desse modo, o ritmo do filme é lento e não há o compromisso tranquilizador do ato de revelar (ainda que possa ser compreendido como um documentário de suspense), mas sim o de se incorporar àquela temporalidade. A fotografia procura acompanhar esse tempo de latência e mistério, nunca enquadrando de modo resolutivo e convencional, mantendo-se em distância respeitosa para que aquele microcosmo exista sem interferências externas. A paciência e o excesso cenográfico de toda aquela preparação são incorporados aos planos do filme, fazendo de Açucena um caleidoscópio inundado por várias tonalidades de rosa.

O fundamento é o tempo que permite uma dedicação séria à realização do brincar, da alegria, as pedras de toque das religiões de matrizes africanas. O existir dentro dessa realidade onírica da infância, na qual o adulto deve devoção, cuidado e afeto, se reforça pelo caráter mítico e ancestral. Açucena surge como a infância eternizada que se espalha beneficamente pela comunidade, reforçando experiências integradoras através de gestos de cuidado em nome de uma celebração.

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