KELLY REICHARDT E OS ACUMULADOS DE TEMPO NO GÊNERO

Por Gabriel Papaléo

“Meus filmes são sobre pessoas que não tem um porto seguro.”

Kelly Reichardt

Das principais bases narrativas do cinema de gênero, de trabalhar com estruturas consagradas e arquétipos de personagens para criar mundos cujas ideias se renovam justamente no rearranjo de elementos conhecidos, é o controle de ritmo. Estabelecer em montagem o exercício de ritmo na qual um filme transcorre é das características do terror, da ficção-científica, do faroeste, do suspense. A suspensão da tensão até a catarse.

E quando essa velocidade não propõe uma progressão de eventos, e sim acumulados? O que acontece quando o tempo da ação de gênero não é o que interessa, mas as reações psicológicas dos personagens nela inseridos? O cinema de Kelly Reichardt busca algumas dessas questões à medida que controla o tempo com precisão para alterar as dinâmicas de poder e especialmente relações nos personagens que cronica. O movimento, a ação, como matérias-primas e alteradores de mundo dos personagens de Reichardt como em qualquer filme de ação, de terror, ficção-científica – mas a forma, e principalmente o tempo, em que as ações transcorrem se pautam mais pelo acúmulo de situações e pela reflexão através da mediação entre sujeitos e menos pela urgência de objetivos. Se cineastas como John Woo e John Carpenter estruturam seus contos a partir da urgência da informação, da gravidade das situações, Reichardt estrutura através das trocas pessoais, das conversas ao pé de ouvido. A montagem privilegia silêncios, porque o movimento é raro e, por isso, tão importante. Mas como nos pares mais tradicionais do gênero, é o deslocamento espacial que faz o status quo ser alterado.

Ao longo de sua filmografia, Reichardt usa da estrutura do trânsito, do road movie, desde sua estreia em River of Grass (1994) – e de certa forma todos os filmes da norte-americana são filmes de estrada, sediando suas ações em fronteiras e lugares a pertencer e esquecer. Entre Wendy e Lucy (2008) e Certas Mulheres (2016), seu filme mais recente, a diretora enveredou-se pelos seus discursos mais frontais na aproximação com uma tradição de gênero no cinema: o faroeste de travessia em O Atalho (2010) e o thriller político em Movimentos Noturnos (2013).

Meek 1

O contexto histórico de O Atalho já é dado pela cartela inicial, bordada como as roupas das mulheres do comboio que acompanhamos. O Oregon de 1843 ainda é um ambiente hostil, deserto, e já conhecemos o comboio com eles perdidos ao tomar o atalho de Stephen Meek do título original. O espaço já fala por si nos quadros 1.33 de Reichardt, mas a diretora aposta na bela fusão que mescla a água do rio com o deserto para antecipar a escassez do recurso durante a narrativa – e também para demonstrar a dimensão fantasma que opera o mito do cowboy desbravador, do pioneiro, aqui uma miragem fervendo à distância. O processo de andar, a sobrevivência, retornar ao rumo com promessa de desbravamentos torna-se o objetivo primário.

É como se os filmes de Reichardt fossem localizados nas elipses do gênero, no procedimento até a ação. O ambiente árido tende à repetição cujos labirintos trazem uma lisergia que atravessa o filme e, para desafiar as percepções desses ambientes similares, acompanhamos a câmera registrar as poucas particularidades de cada espaço através da escala, da altura de quando existe uma montanha ao redor. Vemos escalas diferentes, os homens menores no quadro vasto de terra, pequenos diante de seus objetivos que em discurso abrangem tanto essa conquista – a impotência. Não é um libelo de conflito humano vs. natureza, como as descidas ao inferno de Herzog em Aguirre (1972) e Friedkin em Comboio do Medo (1977). Reichardt é atenta às dinâmicas pessoais que desabrocham de uma jornada para o nada que evoca mais um cansaço, um esgotamento do tempo, do corpo, do que necessariamente uma febre.

Portanto a escala de espaço é fundamental para intuir o comando do comboio. Temos os homens que criaram essa grandiosidade pra si através do discurso oral (como Meek) ou através da retórica civilizatória (como Gatlesby). As mulheres sempre estão à distância, ouvindo as conversas decisivas em baixa voz, nunca tendo acesso ao poder de decisão, passando a água de mão em mão enquanto os pioneiros discutem seus rumos. O valor revisionista do faroeste de travessia da diretora e do roteirista Jon Raymond aqui é também na destruição do mito do cowboy pioneiro e especialmente nas mortes utópicas de desbravamento. Emily, a personagem de Michelle Williams, começa como uma das mulheres cujo papel resume-se a costurar e dar apoio aos maridos e demonstra um senso de coletividade mais forte que de qualquer homem ali.

Meek 3

Isso logo causa a dúvida em Meek, com seus contos de glória, o homem dos mitos, dotado de histórias e alteradores de realidades passadas, mas que não se prova na ação. Com a chegada do elemento mais forte do extracampo misterioso do filme, o indígena vivido por Rod Roundeaux, Emily encontra um semelhante a quem respeita para conduzir. Não por acaso, quando o personagem faz um de seus rituais religiosos, a dúvida é colocada no mito do indígena por Meek, o homem que perpetua os mitos de cowboy. A aproximação que Reichardt faz é do relato como algo religioso, que dá forma à curiosidade, mas que traz respeito e confiança apenas quando aliado à capacidade de agir em coletivo.

O indígena, surgindo como o verdadeiro íntimo da terra, quem sabe das rotas, é quem gera a empatia de Emily não apenas pela disposição para a ação como também pela empatia de ambos serem vítimas da incomunicabilidade com os homens brancos – ele pelo idioma, ela pela distância espacial das conversas de decisão. Como em Wendy e Lucy, a protagonista testa seus limites no trânsito, na impossibilidade utópica – antes pela crise financeira, agora pela inexistência da conquista de assentamento. Emily representa assim esse arquétipo do faroeste, do protagonista cuja disposição à ação lhe traz destaque diante de um grupo, para Reichardt desconcertá-lo ao colocar a mulher no comando. É sobretudo uma mudança no registro do tempo – como Emily vê o mundo, paciente, tomando cuidado, de olho nos arredores e sem desejos de resoluções no cano quente do revólver.

As estruturas de poder são questionadas de forma mais direta quando surge a travessia das diligências, o mais próximo de sequência de confronto e ação que Reichardt concebe, objetivo palpável de superação de um obstáculo. É quando surge a primeira câmera na mão de todo filme, como se a diretora e o fotógrafo Christopher Blauvelt sinalizassem a urgência sentida nessa cena em detrimento da jornada lisérgica do tédio da sobrevivência dos personagens abandonados pelos mitos de Meek à própria sorte e competência diante das adversidades.

Meek 2

Se a passagem de bastão da condução da diligência é o que importa a Reichardt, não a interessa uma solução concreta e, portanto, a busca não termina com o desfecho prometido, mas com a esperança de sobrevivência. Uma árvore que sinaliza a presença de água, longe do oásis prometido por Meek, suficiente em manter a dúvida do destino por perto. É quando o mito baixa a guarda para quem age, para Emily, que a partir daí dá as ordens para seguir ou não a jornada – um poder adquirido pela sobrevivência, pelas desventuras, não pela conquista, mas pela capacidade de diálogo com a terra, com o outro. Quando percebe que a liderança do comboio está em boas mãos, o indígena parte para sua jornada pessoal, entendendo que a empatia pode ser agradecida apenas com uma troca de olhares, de pessoas cujo laço emocional fora forjado na morte de utopias construídas pela tradição oral dos pioneiros, mais interessada em perpetuar opressões masculinas brancas que em transmitir a cultura adquirida pelos corpos e mentes que por ali passaram antes de nós.

Já em Movimentos Noturnos, a aproximação com o thriller político é mais convencional, mas não por isso menos potente: a estrutura do roteiro foca na apresentação de três personagens com o objetivo claro de explodir uma represa como ato de ecoterrorismo. Os diálogos do roteiro de Reichardt com seu parceiro habitual Jon Raymond focam tanto no cotidiano quanto na exposição, com informações diretas entre os personagens para permitir a câmera enfatizar o conflito não-dito: a paranoia do personagem vivido por Jesse Eisenberg.

A primeira hora se concentra nos detalhes do atentado com foco procedural. Dena é a mais jovem, Josh o líder introspectivo, e Harmon o mais experiente. As dinâmicas de relação entre os personagens são mostradas especialmente por olhares, uma vez que o texto é quase devoto apenas de trocas sobre o planejamento do atentado. Enquanto Josh maquina os planos e não faz questão de interações sociais mais explícitas, Dena lida com a provação da mulher no mundo – e na cena da compra de fertilizantes precisa se provar diante dos homens mais velhos para executar o plano.

Night Moves 2

O ambiente americano de espaços vazios, como em Old Joy e Wendy e Lucy, traz a fantasmagoria presente nas cidades registradas pela diretora, mas aqui no registro de suspense – o que era calmo e de certa forma pacífica nesses dois filmes vira uma tensão, instaurando-se como penumbra no escopo solar do filme. O respeito de Josh por Dena medido pela forma que ela se preocupa com detalhes, um sinal de paranoia que ditará a segunda metade.

O tempo da sequência da explosão é o mais próximo de um ideal consagrado de suspense, investindo em conflitos baseados nos erros não-previstos, na capacidade de improvisação dos personagens e em uma atenção aos rostos apreensivos enquanto a situação de risco é instalada. A diretora organiza essa sequência com rigor, privilegiando o ponto de vista do barco dos personagens e insistindo nele para estabelecer uma tensão que deriva justamente da distância espacial entre conflitos. Interessante ver a diretora e o fotógrafo Blauvelt se enveredarem pelo terreno do mais franco suspense e sair bem dele, quando sua carreira experimentava com a observação dos dramas cotidianos.

Night Moves 4

É após a explosão, ademais, que Reichardt sinaliza timidamente que está interessada mais nas consequências do ato: o plano fixo dos três personagens andando no carro, durando por mais de um minuto, para focar no alívio de cada um após o objetivo cumprido. A dinâmica de planos mais ágil em relação a Old Joy, Wendy e Lucy e mesmo O Atalho é o que dita as sequências que culminam nesse clímax. É quando Reichardt puxa o tapete do espectador ao encerrar o conflito em uma hora de filme que sua câmera revela as intenções apenas através do tempo: inicia a segunda metade apenas com um travelling lento, por cerca de um minuto e meio, contemplando os objetos da casa de Josh – que não tínhamos visto até então.

A concentração no estudo psicológico de Josh torna difusa aquela concisão da montagem até o atentado, porque a visão de mundo agora é paranoica, misteriosa, como a do personagem que agora acompanhamos. Não existe a visão de mundo compartilhada do início, o registro agora é do cotidiano que sucumbe à paranoia, da ansiedade de não encontrar o outro, de mitos se instalando como propostas narrativas pela pura falta de comunicação.

Night Moves

A opção pelo díptico revela muito desse tempo dilatado proposto ao gênero por Reichardt. O gênero é responsável pelos mecanismos narrativos na primeira metade e o tempo dilatado da diretora pelas reações da segunda. Se existem dúvidas entre a potência da conciliação do chamado slow cinema, com suas elipses e ritmo cênico difusos e a agilidade do cinema de gênero, Reichardt as encara com a propriedade de quem entende que ambas as vertentes teóricas dependem essencialmente do rigor formal, do controle do tempo narrativo – e quem as domina consegue transitar entre dispositivos narrativos com personalidade e desafios recompensadores.

FacebookTwitter

DANAÇÃO: O PESO DA EXISTÊNCIA PRESENTE NA ESTÉTICA

Por Bruna Dantas

Damnation2-590x443

O cinema contemplativo em máxima. Extremismo estético, filosófico e existencial. Béla Tarr bebe da tradição tarkovskiana, uma das grandes precursoras do slow cinema, mas seu trabalho aprofunda essa tradição ao bifurcar novos caminhos para lançar e discutir questionamentos sobre a condição humana e, aproveita esse momento, para polir sua estética cinematográfica. Mais tarde, impulsionou outros cineastas a utilizar várias facetas do cinema enquanto estética da contemplação, a exemplo do cinema de Gus Van Sant e Jim Jarmusch.

O diretor teve uma carreira curta e concisa. Sua obra pode ser “dividida” (entre aspas, porque não se trata de uma cisão profunda) em dois momentos: o começo de sua filmografia (onde há uma preocupação maior com o realismo e a análise sobre as condições sociais e políticas da Hungria, com filmes que se assemelham à proposta da new wave húngara) e, mais tarde, quando seus filmes se entregam completamente ao slow cinema: takes longos, minimalistas, mais alertas em relação ao niilismo e às questões existenciais, individuais. Tarr alcança o ápice de sua carreira. Danação (ou também Condenação, no Brasil) é o filme que desponta essa segunda fase e, por ser o primeiro de um novo momento para o diretor, vem muito potencializado de pessimismo e de uma estética dramaticamente carregada, quase em uma forma mais crua.

Danação não é um filme onde o plot é fundamental. No geral, a narrativa em si dos filmes de Tarr está muitas vezes pautada no cotidiano mais banal. A grandiosidade mora exatamente na poesia visual que o filme pode alcançar. Ele se pauta na construção de imagens, sons e curtos diálogos que buscam remontar e trazer à tona emoções e sentimentos, que parecem residir na camada mais profunda do subterrâneo humano, do desespero em suspensão. O plot está ali apenas como chave inicial para levar o espectador a uma experiência niilista, sensorial, do cinema que potencializa a observação e usa o silêncio como elemento narrativo. Os poucos momentos de diálogo são sempre muito reveladores, no sentido de serem os únicos momentos onde há uma verbalização de tudo aquilo que se acompanha pelo silêncio insistente.

O primeiro plano já mostra suas intenções – cinco minutos a observar um teleférico que diminui a um zoom out e vemos o personagem principal, Karrer, contemplando uma paisagem húngara sórdida, fria e desoladora. Na espera de algo acontecer (estamos sempre à espera de algo acontecer), há a possibilidade do sentir seguido de reflexão.

Damnation2-590x443

A ausência de diálogo engendra-se em cada frame e a música tradicional está quase sempre presente, embalando uma nação de iludidos. No Titanik Bar, reduto de concentração da trama, canta a amante: “Acabou. Está tudo acabado. É o fim e não há mais volta. Não ficará bem. Não mais. Nunca mais. Talvez nunca mais. Tudo tornou-se um pesadelo. Tudo. Talvez, quem ainda virá? De onde virá? Se é que vem. Ou não virá. Ninguém mais? Talvez nunca mais. É pegar ou largar, só com isso se pode contar. O que fazer? Não há mais palavras. Já não se pode mais partir. Já acabou há muito tempo. Seria bom se todos esperassem. Bom saber que logo partirei[…]”

Damnation2-1024x786

Os planos são longos, interminavelmente lentos. Essa estagnação, a chuva perene, o vagar sem rumo do personagem entre a “natureza-morta”, são elementos que estão ali para contestar o próprio tempo. Eles evidenciam que nos planos de Tarr não existe a possibilidade do novo e muito menos do progresso individual. A condenação da espécie humana está dada como algo impalpável, mas presente, irreversível e intrínseca.

A câmera na mão é sorrateira, segue os personagens em seu íntimo, aproximando-se do estilo documental. Há um formalismo no uso do preto e branco contrastado, fotografia esta que é recorrente em seus filmes, deixando clara a proposta de uma dureza mórbida do transcorrer da vida.

O movimento dos personagens é fundamental nos filmes de Béla Tarr – a constante perambulação e o ir e vir incessante. Contudo, esses elementos não representam mobilidade. O ato de andar está sujeito ao imóvel, é como andar em círculos num quarto fechado. Esse deslocar não leva a um objetivo, muito menos a algum lugar.

Ainda assim é visível a pretensão dos personagens em avançar, buscar uma realidade material diferente daquela. A migração ou o sonho de uma carreira artística são desejos rapidamente embotados pela forma trágica como Béla Tarr molda esse universo. Há um pessimismo que praticamente beira o apocalíptico e se realiza na forma como ele trata da condição humana e sua progressiva danação, passando assim, para uma análise mais frontal de possível identificação universal.

hqdefault

A tônica que Tarr demonstra em tela nada mais é que a vontade de desvelar o que está debaixo da ponta do iceberg. É tentar tornar visível, através do slow cinema, o que parece ser invisível e de impossível representação, pois tange uma camada humana muito íntima. Ele faz do espectador um canalizador do sensível, acompanhando por muito tempo, em suspenso, o desdobramento das relações humanas. Porém, nada há em oferecer ou concluir senão o vazio e o irremediável.

É o esforço patético da vida. No ato final, Karrer fica de quatro e late contra um cão, revelando todo o lado primitivo que carrega os homens. Como um covarde, está cercado pela desesperança. Movimento desesperado para tentar se diferenciar da ambiência das pessoas daquele lugar, retomando ao homem anômalo nesse possível escape do poder, da imaginação coletiva, do entendimento social.

Danação é o primeiro passo revelador de como se moldou o slow cinema nos subsequentes trabalhos do diretor, características que se firmam ainda mais em trabalhos posteriores como Sátántangó, As Harmonias de Werckmeister, O Cavalo de Turim, entre outros.

Damnation5-1024x787damnation1-590x308

FacebookTwitter

SLOW CINEMA

Norte-the-End-of-History

INTRODUÇÃO AO SLOW CINEMA
Camila Vieira

ESTÉTICA DAS CONSEQUÊNCIAS E O UNIVERSO DA CONCENTRAÇÃO NOS FILMES DE LAV DIAZ
Nadin Mai

NÃO À CASUALIDADE: EXPERIMENTAL FILM SOCIETY E TAO FILMS EM TEMPOS DE INTERNET
Pedro Tavares

KELLY REICHARDT E OS ACUMULADOS DE TEMPO NO GÊNERO
Gabriel Papaléo

IMAGEM ENQUANTO GESTO E GESTO ENQUANTO POTÊNCIA
Alan Campos

ALBERT SERRA E A MORTE REAL
Carla Oliveira


O SILÊNCIO DE A FÚRIA DE CHANTAL AKERMAN
Zoë Masan

A MORTE DA LÍDER DE TORCIDA
João Pedro Faro

LIÇÕES DE HISTÓRIA
Felipe Leal


A ONTOLOGIA DA IMAGEM PARTINDO DA HEURÍSTICA DO RECONHECIMENTO NO CINEMA DE LISANDRO ALONSO
Diogo Serafim

DANAÇÃO: O PESO DA EXISTÊNCIA PRESENTE NA ESTÉTICA
Bruna Dantas

VÍDEO: O QUE É SLOW CINEMA?
Arthur Tuoto

NOTAS SOBRE O CINEMA
Scott Barley

*

FacebookTwitter

O SILÊNCIO E A FÚRIA DE CHANTAL AKERMAN

Por Zoë Masan

 

“Que importa pois que o desespero ignore seu estado, se nem por isso deixa de se desesperar? Se o desespero é desvario, a ignorância ainda o torna maior: é estar ao mesmo tempo desesperado e em erro: Tal ignorância está para o desespero como está para a angústia, a angústia do nada espiritual reconhece-se precisamente pela segurança vazia do espírito. Mas, no fundo, a angústia está presente, assim como o desespero, e quando se suspende o encantamento das ilusões dos sentidos desde que a existência vacila, o desespero que espiava, surge.” — Søren Kierkegaard

Planos estáticos, ações lentas que priorizam um minimalismo narrativo, o silêncio e a hipervalorização da subjetividade são algumas das caraterísticas que mais se mostram presentes ao longo da filmografia de Chantal Akerman. Esses elementos são instrumentalizados para fazer uma constante denúncia de uma degradação mental. As personagens de Akerman se destroem e voltam à vida para se destruírem novamente, em um exercício sádico pela busca da libertação mental.

Em suas produções, Chantal Akerman fazia uso de planos fixos que valorizavam o minimalismo das ações dentro do enquadramento. É também aplicada uma subjetividade latente muito peculiar, evidenciando os ideais mecanicistas e repetitivos do neoliberalismo, expondo os efeitos do patriarcado inerente a esse neoliberalismo e deixando evidente alguns efeitos mais subjetivos desse mecanismo: os transtornos mentais.

Na obra mais aclamada de Akerman, Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce 1080 Bruxelles (1975), é narrada a rotina de Jeanne Dielman, uma mulher invisível e invisibilizada por sua própria rotina, configuração familiar e profissão. Jeanne realiza diariamente as mesmas ações e sua solidão também fica explícita em toda narrativa, no nível da estrutura e do sentido por meio de um elemento em especial: o silêncio. A relação de Jeanne com o filho, os cômodos de sua casa, e até mesmo a profissão sexual que ela exerce são envoltas pelo silêncio. Esse elemento é amplamente trabalhado ao longo da filmografia de Chantal Akerman. Através do silêncio é possível amplificar subjetividades que talvez ficariam deturpadas pelo diálogo. Além disso, o silêncio é elemento que delineia tensões, que associadas à rotina quase mecânica da personagem potencializa a angústia para quem assiste. David Bordwell define esse modo estilístico dizendo que “o cinema de arte é menos preocupado com a ação do que com a reação; é um cinema de efeitos psicológicos em busca de suas causas” (Bordwell, 1979, p. 58).

CA01

É interessante como Akerman brinca com a temporalidade por meio de planos longamente hiperrealísticos, fazendo com que a deterioração mental — que reflete na deterioração da rotina — fique cada vez mais aparente. A ruptura mental de Jeanne não é algo que acontece repentinamente, é apenas um efeito de uma série de violências silenciosas as quais a personagem é submetida ao longo do filme. Akerman trabalha detalhadamente todos os movimentos da personagem e a rotina de Jeanne passa a se deteriorar diante dos nossos olhos.

Um ponto interessante é que dentro de um cinema do tédio, até mesmo o ato de fúria se torna previsível. Akerman não pretende surpreender com o plot, mas observar reações e causar uma tensão claustrofóbica no espectador. Talvez Jeanne Dielman seja o filme de Akerman que mais evidência e instrumentaliza os maneirismos do slow cinema para criar uma narrativa disfuncional propositalmente sistemática.

Em L’homme a là Valise (1983), Chantal Akerman também faz um estudo da rotina, dessa vez, alterada por um elemento estranho, um visitante. A construção narrativa trabalha com um subjetivismo tão intenso que é possível serem feitas diversas interpretações acerca do que realmente significa a figura masculina que persegue Akerman em seu próprio apartamento.

CA2

    É possível observar em L’homme a là Valise alguns fatos que acontecem em cena: um visitante chega com uma mala no apartamento da personagem interpretada por Akerman, e rapidamente passa a se tornar um elemento indesejado, ceifando a privacidade com sua capacidade de invasão dos espaços privados da personagem. A partir disso, é possível trabalhar com diferentes perspectivas quando se analisa o filme, uma delas é a do bloqueio criativo representado pelo elemento do visitante que se instaura e age como um bloqueador de rotina, impedindo que a personagem possa realizar suas tarefas do dia-a-dia, como por exemplo, escrever. Também é possível interpretar esse visitante como um elemento patriarcal que persegue e sufoca a personagem onde quer que ela vá. No entanto, será analisado aqui uma perspectiva ainda mais subjetiva, que une um pouco das interpretações anteriores. O visitante com a mala pode ser visto como uma alusão clara à depressão e demais transtornos psicológicos. Primeiramente, a personagem está em um estado de isolamento extremo, visto que todo o filme se passa dentro desse apartamento onde não há visitas e quase nenhum contato com o mundo externo, com exceção de uma TV velha e um telefone. Em todas as cena, o visitante quebra esse isolamento, mas não completamente. Esse visitante age como um elemento de supressão dos sentidos mais básicos e fundamentais do ser humano. A presença dele torna a personagem de Akerman incapaz de comer, tomar banho, cozinhar, trabalhar, se comunicar, e posteriormente, sair do quarto sem precisar traçar planos para não o encontrar em algum cômodo. Esse elemento se instaura como parasita psíquico que aleija e deixa a personagem gradativamente vulnerável.

CA3
No terceiro ato, é possível perceber que a incapacidade da personagem resulta em um quarto bagunçado, com todas as roupas no chão, uma tv velha em cima da cama e um estado de inércia espiritual muito profundo. O cinema de Akerman é um cinema de gradação de efeitos e de um estudo de subjetividades quase que autobiográfico. Chantal Akerman cruza muitas vezes a linha do existencialismo e culmina em um niilismo psíquico, como efeito natural da deterioração mental na vida de seus personagens, e porque não, em sua própria vida.

    A angústia existencial é um denominador comum nas principais obras de Akerman. Há um apreço pela utilização do silêncio e de planos estáticos para emergir uma não-dramaticidade que só leva ao expurgo psicológico. A diretora trabalha com “a estaticidade do olhar estendido da câmera configura um espaço e tempo em que a tensão lentamente, inevitavelmente, se constrói, chegando a um ponto de crise psicológica” (FLANAGAN, 2012, p. 82).

    Akerman se utiliza dos maneirismos do slow cinema para exercer uma fenomenologia existencial sob as estéticas do gênero. O elemento de angústia no cinema de Akerman pode ser entendido como ponto de desenvolvimento da própria mise-en-scène, onde são compostos, em sua maioria, cenários de dramatização sóbrios, com elementos de cena que sinalizam uma falsa organização que precede o caos. Essa angústia se dá a partir de pontos aparentemente distintos, mas que fazem uma interseção em comum: a angústia sexual, a angústia da morte e a angústia existencial. Falando primeiramente da angústia existencial, é possível observar como essa se dá frente ao sentimento de completo vazio e esse sentimento aflora frente a divagações e conflitos que os próprios personagens sofrem diante da tela. Desilusões amorosas, incomunicabilidade, depressão, ódio e exaustão mental. Nesses personagens, é possível ver a evolução desse sentimento de nada, Heidegger classifica isso como “a possibilidade da revelação do ente enquanto tal para o ser-aí humano. O nada não é um conceito oposto ao ente, mas pertence originariamente à essência mesma (do ser)” (HEIDEGGER, 1996, p. 59). O nada como aspecto naturalmente humano percorre em toda a estrutura fílmica como algo praticamente determinista, um sentimento inevitável diante desses conflitos e da própria existência.

Akerman consegue conciliar elementos como angústia e vazio no drama Je, Tu, Il, Elle (1979), onde diante de um rompimento com sua namorada, uma mulher entra em uma espiral depressiva. A angústia sexual presente se manifesta a partir da repetição compulsiva da personagem que come açúcar de um saco de papel, sua tentativa de escape através da escrita e eventualmente através de outras relações sexuais. Parece que, em todo o momento, há uma preocupação muito grande em esconder a dor real da personagem e todas suas potencialidades, pois a angústia que acontece internamente é muito mais devastadora do que se mostra aparentemente.

CA4
A angústia leva a personagem a encontrar um caminhoneiro, e com ele, ela tem uma relação sexual. Nas cenas com o caminhoneiro, há um empenho aparente da personagem em tentar estabelecer um contato mais profundo com o caminhoneiro, demonstrando que, diante do rompimento, existe a necessidade urgente de continuar o contato sentimental e sexual com alguém. As cenas são escuras, com enquadramentos que quase tiram a personagem de Akerman do plano. É como se fosse um momento vergonhoso de busca por uma válvula de escape. Isso fica claro quando o reencontro com a namorada acontece e, novamente, o elemento da expurgação aparece em uma das mais belas cenas de sexo do cinema. É um alívio em meio à angústia latente que existe na maior parte do filme. E da mesma forma que o reencontro é purificador, o abandono toma a mesma proporção de devastação total e isolamento.

CA5

O curta Saute Ma Ville (1968) sintetiza muito bem como a decomposição da mente se dá no cinema de Akerman. Em seus pouco mais de 12 minutos, o curta mostra uma rotina à beira do caos através de uma observação intensa da personagem que, ao voltar para casa, arquiteta o próprio suicídio. A observação intensa da personagem para si mesma, seja através do espelho ou sentada no chão da cozinha, engraxando os sapatos, mostra um misto de auto crueldade e piedade muito grandes. De forma implícita, ela se questiona se deve mesmo levar seu plano adiante, ao mesmo tempo em que percebe que continuar com a própria vida não vale a pena. Akerman nos mostra uma mulher-bomba, dentro de tantas outras mulheres-bombas presentes em seus filmes. Quando a mente falha, todo o sistema falha e a libertação desse sistema deve acontecer da forma mais efetiva e definitiva possível.

O cinema de Chantal Akerman é marcado por uma repetição dos padrões que denunciam o fim da mente. A psique tem sede de obliteração e esta se dá através da morte e do sexo. A morte de si mesmo ou do elemento que a aprisiona. O silêncio é o som mais poderoso de fúria.

NOTAS:

  1. BORDWELL, David. To the Distant Observer. Berkeley; Los Angeles: California UP, 1979. Print.
  2. FLANAGAN, Matthew Slow Cinema: Temporality and Style in Contemporary Art and Experimental Film. 2012
  3. HEIDEGGER, M. Que é Metafísica? Os pensadores. São Paulo: Nova Cultura, 1996

 

FacebookTwitter

ESTÉTICA DAS CONSEQUÊNCIAS E O UNIVERSO DA CONCENTRAÇÃO NOS FILMES DE LAV DIAZ

Por Nadin Mai
Traduzido por Pedro Tavares

Algo do passado sempre permanece, mesmo que seja como uma presença assombrosa ou um devaneio sintomático.

(LaCapra, 2001: 49)

Introdução

Começando com seu filme de cinco horas de duração Batang West Side (2001), que iniciou uma mudança de estúdio para uma forma mais independente de cinema de arte, e seguido por uma série de trabalhos longos que duram até dez horas – notavelmente Evolução de Uma Família Filipina, que se aproxima em quase 600 minutos – Lav Diaz tornou-se um dos mais prolíficos diretores do Slow Cinema nas últimas duas décadas. Embora seus filmes compartilhem várias características com os gostos de Béla Tarr (Hungria), Albert Serra (Espanha), ou mesmo Tsai Ming-liang (Taiwan), Diaz se estabeleceu como um nicho em uma forma de cinema que se tornou mais e mais mais visível desde os anos 2010. O diretor, que se referiu repetidamente a si mesmo como malaio em vez de filipino, volta repetidas vezes para a história traumática (e o presente traumatizante) de seu país, as Filipinas, e combina-o com uma abordagem muito particular à lentidão cinematográfica. Desse modo, Diaz criou uma forma de cinema pós-trauma, que difere amplamente do Cinema de Trauma padrão na medida em que olha para aspectos sub-representados da natureza do pós-trauma.

Em seu livro On Slowness (2014), Lutz Koepnick argumenta que a lentidão na arte visual pode funcionar como “um poderoso meio de lembrar e refazer resíduos traumáticos e reanimar histórias dolorosas aparentemente congeladas no passado” (46), e o trabalho de Diaz responde a isso. em seus filmes. Em contraste com o que hoje é conhecido como a forma padrão do Trauma Cinema, que considera e subsequentemente descreve o trauma como um evento espetacular, o trauma nos filmes de Diaz é representado como uma condição. O cinema pós-trauma do diretor é caracterizado por vários elementos, todos os quais dão uma olhada particular na natureza da memória em geral e do trauma em particular: primeiro, duração através do uso de long-takes; segundo, um tempo de execução prolongado; terceiro, o foco no rescaldo de eventos traumáticos sem criar um vínculo visual com esses eventos; quarto, a transmissão da violência através do diálogo e do som e, quinto, a ausência inerente de imagens violentas. Especialmente o uso da duração e da ausência exige uma investigação do que Roger Luckhurst chamou de “estética das consequências” e do retorno cíclico do diretor às histórias de pós-trauma e sofrimento, que se concentram nas narrativas psicológicas de personagens traumatizados. Como veremos, Diaz se concentra mais nos processos psicológicos de seus personagens do que em qualquer outro diretor de filmes lentos. Isso é apoiado pela própria estética que ele usa, em primeiro lugar, pelo tamanho particular de seus filmes. A descrição detalhada de medo, angústia e paranóia ao longo de, às vezes, nove horas ou mais é uma estética específica do que chamo de cinema pós-traumatológico de Diaz.

Textos da Memória e o País Colonizado

Diaz é um dos poucos diretores do Slow Cinema, que persistentemente retorna ao passado traumático de seu país e usa isso para manter um reflexo da sociedade e da política atuais. Nascido em 1958, Diaz se tornou aficionado por filmes graças ao pai que o levou ao cinema todo final de semana. Do espaguete ocidental ao Kung Fu e ao melodrama filipino, Diaz fora exposto ao mundo do cinema desde muito cedo. Mas apenas como estudante, após uma exibição de Manila de Lino Brocka nas garras da luz (1982); ele se tornou consciente do poder do cinema como uma ferramenta para contar histórias silenciosas (e silenciadas) e trazê-las de volta à consciência pública. O filme, ele aprendeu, pode se tornar um veículo para memórias pessoais e coletivas. Para Diaz, o cinema é “processo de limpeza”, como ele chama. “Precisamos confrontar todas essas coisas”, diz ele, “todos esses traumas, todas essas partes não examinadas da nossa história, nossa luta, para que (nós) possamos avançar. É uma espécie de cura.” (Diaz, 2014)

Ao dizer isso, Diaz aponta para a longa e traumática história da opressão ocidental, começando com a conquista espanhola em 1521. Quatrocentos anos de repetidas invasões se seguiram, com o país se tornando um hotspot onde as potências ocidentais lutavam suas guerras umas contra as outras. A população local havia sido privada de sua própria cultura, tendo que adotar a cultura – a língua, a religião, a comida e até mesmo os nomes – de seus respectivos colonizadores espanhóis, americanos ou japoneses. Em 1972, quase 30 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, o presidente Ferdinand Marcos declarou a Lei Marcial e impôs uma ditadura no país. Se os opositores políticos não fossem diretamente trancados ou mortos, eles seriam ameaçados pelo uso de táticas terroristas. Desaparecimentos e execuções extrajudiciais, proeminentes até hoje (Human Rights Watch, 2007, 2011), tornaram-se a norma na época. Morte na Terra de Encantos (2009) é um dos filmes de Diaz que trata do tema da oposição e do quanto o estado se esforça para silenciar, por exemplo, artistas que não se conformam com a percepção do país de que tipo de mensagens a arte deve entregar ao povo. Hamin, um escritor-artista e protagonista do filme, foi torturado e forçado a viajar para o exterior por vários anos, e agora é visto por aqueles homens que o torturaram no passado, levando-o mais perto da insanidade e de sua morte inexplicável. Encantos, assim como os outros filmes de Diaz, faz uma ponte cuidadosa entre os eventos passados e as condições presentes, mostrando assim que maus-tratos passados da população se infiltraram na sociedade contemporânea. Há um retorno repetido e cíclico aos eventos traumáticos aparentes nos filmes do diretor, o que torna o espectador consciente de que, de fato, o tempo parou e os mesmos eventos estão acontecendo repetidas vezes.

Hamin encontra seu torturador em um café - Morte na Terra de Encantos (Lav Diaz, 2009)
Hamin encontra seu torturador em um café – Morte na Terra de Encantos (Lav Diaz, 2009)

O (não) fluxo de tempo e o fator de concentração

Uma das principais características do cinema pós-trauma de Diaz é a rejeição do diretor de uma progressão narrativa linear na tela, a fim de se aproximar da natureza da memória. Melancolia (2008), seu filme de oito horas sobre desaparecimentos (forçados) e resistência, por exemplo, é composto de três partes, das quais a anterior antecede temporariamente as duas anteriores. Em Florentina Hubaldo, CTE, (2012), também, Diaz muda entre os eventos passados e presentes, nunca indicando claramente se o que vemos acontece agora ou então. Ao contrário de outros diretores, ele não usa indicadores típicos para um flashback, como dissolução ou mudança de cor para preto e branco. O resultado é desorientador, um forte marcador de pós-trauma, que aterroriza o sobrevivente através da imposição de medo, paranoia, exaustão, alucinações e outros fatores debilitantes. Vale a pena mencionar aqui o trabalho do sociólogo Wolfgang Sofsky, que argumenta que “o terror destrói o fluxo do tempo” (1997: 78). Sofsky fez um caso particular para o uso do terror e sua consequente interrupção de um fluxo de tempo linear nos campos de concentração nazistas, onde uma percepção temporal e espacial específica reinava entre os detentos.

Inseridas num universo de concentração, Melancolia (2008), Morte na Terra de Encantos, e Florentina Hubaldo, CTE, por exemplo, evocam uma experiência particular e uma percepção temporal que tem sido, e ainda é, uma característica dos ambientes prisionais, mas que atingiu o seu pico nos campos de concentração. O não fluxo de tempo dos filmes torna-se, assim, uma representação de um sistema de concentração que esmaga lentamente suas vítimas. Paul Neurath, sobrevivente dos campos de concentração de Buchenwald e Dauchau, explica esse sistema com palavras angustiantes: “O campo de concentração geralmente mata suas vítimas de maneiras menos espetaculares. É comparável não tanto a um assassino feroz que anda furioso, quanto a uma máquina terrível que, aos poucos, mas sem piedade, mói as vítimas em pedaços” (2005, 47-48). Matthew John, em sua análise de Muriel ou le Temps d’un retour, de Alain Resnais, escreve: “O horror do sistema de campo de concentração não reside no extermínio abrupto e imediato da vida humana, mas na lenta e agonizante decadência da vida humana. corpo e mente” (2014: 83). Essas características também são proeminentes na trilogia de Diaz de pós-trauma. Os protagonistas dos filmes lutam contra um colapso mental gradual, e a morte deles vem lentamente como resultado de repetidas infligências de ataques violentos e não violentos durante um longo período de tempo. Há uma tensão entre a pulsão de morte dos personagens, que, eles acreditam, acabaria com o sofrimento deles, e os perpetradores ‘segurando as cordas da vida e da morte de suas vítimas.

Terror, Medo e Tortura Psicológica

A morte está presente em todos os filmes de Diaz, mas, como mencionado acima, ela sempre vem devagar, o que agrava o sofrimento dos personagens a um nível quase insuportável. Há uma coexistência aparente da extremidade e do cotidiano, o que causa rupturas inesperadas e impulsiona o espectador a perceber os eventos traumáticos que acontecem aos personagens, que são ou foram alvo de forças governamentais opressivas, independentemente de ser o colonizador ou o ditador, e eles se transformam em cadáveres vivos como resultado disso. Em uma entrevista, Diaz sustentou que o conceito de “aplica-se tanto ao caráter da psique filipina. … É exatamente a palavra para esse tipo de sofrimento” (Diaz, 2014). O que é notável em filmes como Melancolia, Encantos e Florentina Hubaldo, CTE, é que os protagonistas dos filmes são capturados em uma teia apertada de medo e terror persistente. Essa atmosfera de medo e terror, que Diaz quer que o público sinta, é complementada, se não iniciada, através do uso de espaço fora da tela por Diaz, onde ele posiciona, entre outras chaves narrativas, os perseguidores dos personagens. A violência acontece fora da tela, onde é audível, mas não visível, colocando o espectador em uma posição aterrorizante (aterrorizada?). A ênfase é colocada não em mostrar, mas em uma presença ausente que cria uma atmosfera assombrosa em todos os filmes. Os personagens são confrontados com terror psicológico, guerra mental, bem como tortura mental, que os transforma em cadáveres vivos na tela. Nas palavras de Diaz: “Em algum momento a morte virá. É como uma coisa pré-mediada. … o inferno está chegando, e é sempre assim. É como um campo de concentração. Você é compartimentado; este é o novo grupo, precisamos orientá-loscomo trabalhar nessas coisas, então, no próximo compartimento, não os alimentaremos, e o próximo compartimento é a câmara de gás onde os matamos. Então é parte da compartimentação. Há morte lenta.” (Diaz, 2014)

Florentina Ending
Florentina fala sobre sua provação. – Florentina Hubaldo, CTE (Lav Díaz, 2012)

Ausência e duração

Como podemos deduzir de todos os itens acima, há duas características principais que se destacam nos filmes de Diaz, os quais ele usa para evocar, primeiro, uma sensação de um universo de concentração em que seus personagens estão aprisionados e, segundo, o pós-trauma do qual eles não podem escapar. Ausência – a ausência visual de violência ou de eventos traumáticos no total – e a duração em forma de longa duração e estagnação são uma marca registrada do cinema de Diaz. A interação entre os dois cria uma rede apertada de cenas experienciais que visam tornar o concentrador palpável para o espectador.Essa abordagem específica permite que o diretor traduza o pós-trauma de forma mais adequada na tela do que normalmente é o caso do Cinema de Trauma. Ao contrário dos filmes de trauma popular, Diaz se concentra na estagnação da narrativa de vida de um sobrevivente. Ele representa pós-trauma como uma lenta progressão do sofrimento (e possível cura). A duração muitas vezes esmagadora de seus filmes – em média entre seis e oito horas – enfatiza o aspecto da duração do trauma, em particular o tempo que leva para o trauma pós-greve, e para o sobrevivente chegar a um acordo e lidar com o novo desafio. Ele minimiza a instantaneidade e, assim, estabelece uma abordagem, que o diretor húngaro Béla Tarr também usou em seus filmes. Em sua análise do olhar no cinema de Tarr, escreve Bernhard Hetzenauer, “ao usar longos takes, a progressão narrativa está subordinada a uma descrição detalhada da atmosfera e ao significado dos gestos dos personagens. … É simplesmente sobre uma única ação de um personagem dentro das teias do tempo …” (2013: 86). Em outras palavras, em vez de desafiar um personagem do filme com várias ações diferentes, Tarr – assim como Diaz – enfatiza o impacto de um único evento no personagem, permitindo que o tempo (cinematográfico) revele o impacto psicológico e suas consequências. evento para o indivíduo.Melancolia, Paralisia e a Morte Dirigir Deixe-me ilustrar a abordagem de Diaz para uma representação de pós-trauma através da justaposição de ausência e duração, olhando para a terceira parte de seu filme de oito horas Melancholia, que se concentra nos desaparecidos das Filipinas, os desaparecidos . O filme segue inicialmente Alberta, Rina e Julian, que se envolvem em uma forma de terapia de imersão, a fim de combater sentimentos de dor, perda e tristeza. É uma tentativa de encontrar o fechamento à luz da incerteza arrogante do que aconteceu com seus entes queridos na ilha de Mindoro, na primavera de 1997. Os dois principais pilares do filme são guerra psicológica e paralisia, levando a uma lenta descida à loucura. e incutir uma forte pulsão de morte em um grupo de combatentes da resistência.

A terceira parte do filme, que é um flashback (embora não claramente indicado como tal pelo diretor), posiciona o espectador temporariamente nos anos 90. Está situado inteiramente na floresta, concentrando-se em três combatentes da resistência na ilha de Mindoro, que é cercada pelos militares. Diaz abstém-se de representar visualmente os militares e usa essa ausência visual dos autores para se concentrar na queda psicológica dos combatentes da resistência. Nesta mesma parte do filme, Diaz enfatiza o uso de guerra psicológica e tortura mental, aspectos que são características primordiais do sistema de concentração. Após a morte de sete membros de seu grupo rebelde, os três homens estão isolados no bosque da ilha de Mindoro, que é, segundo um espião local, cercado pelos militares: “Eles disseram que vão garantir que todos vocês morram. Em vez de retratar o impasse entre as duas facções diretamente, Diaz transmite a gravidade da situação através do silêncio opressivo dos personagens. Os homens têm pouco a dizer um ao outro. Exceto por breves instruções uns para os outros sobre onde se esconder ou se mudar, eles estão mentalmente em seu próprio mundo e tentam chegar a um acordo com sua situação desesperadora e a perspectiva de morte certa por conta própria. Há uma sensação de opressão, claustrofobia e incerteza palpável ao longo desta parte do filme.

É esse “luxo” que o lutador agora insano da Melancolia está exigindo, gritando e gritando para que os militares finalmente acabem com seu sofrimento. Isto é, no entanto, negado por um longo período de tempo, o que só aumenta a insanidade do homem e sua pulsão de morte. Quanto mais tempo ele passa neste período de incerteza e quanto mais ele sabe que a morte virá, mas não quando chegará, mais insano ele se torna. Além das breves explosões de frustração do lutador, os três personagens que Diaz segue são silenciosos, no entanto. Eles estão resignados com a situação deles. Eles são vistos andando de um esconderijo para outro. Em outras ocasiões, eles ficam imóveis e aguardam a “morte certa”, como um deles descreve em uma carta para sua esposa. Importante, Diaz posiciona o espectador semelhante aos dos personagens. Assim como os personagens, não vemos o inimigo. Diaz joga com o que Thomas Weber descreve no contexto de Caché de Michael Haneke como uma “estética da incerteza do público” (2014: 42), que confronta o espectador com “o incomensurável, algo fechado para a recepção do espectador” (Ibid., 45), e consequentemente coloca o espectador em uma situação similarmente estressante como os personagens.

jungle 2
Três combatentes da resistência chegam a um acordo com sua situação desesperadora. – Melancolia (Lav Diaz, 2008)

É o tema da incerteza, combinado com a estética da duração de Diaz, que visualiza o aspecto do mais claro e concentrador. Os combatentes da resistência estão cercados pelos militares sem poder escapar, prendendo-os em sua localização atual. Eles estão em uma prisão com fronteiras invisíveis, em que se tem certeza de que a morte vai atacar, mas sem saber quando ela vai atacar. Duração como opressão e tortura é fundamental na terceira parte da Melancolia. Tudo o que o espectador pode fazer é sentar e esperar com os resistentes e desesperados combatentes da resistência, uma situação que se torna pesada depois de uma hora para espectadores e personagens, um ‘jogo de poder’ aos olhos de Michel Foucault: “O tempo penetra no corpo e com todos os controles meticulosos do poder ” (1991: 152). Enquanto Foucault fala sobre o tempo em geral, no contexto da guerra psicológica, a longa duração é um exemplo particularmente forte do exercício do poder. O objetivo é criar uma atmosfera aterrorizante e travar o alvo em um estado de paralisia.

Textos da Memória e o País Colonizado

Diaz é um dos poucos diretores do Slow Cinema, que persistentemente retorna ao passado traumático de seu país e usa isso para manter um reflexo da sociedade e da política atuais. Nascido em 1958, Diaz se tornou aficionado por filmes graças ao pai que o levou ao cinema todo final de semana. Do espaguete ocidental ao Kung Fu e ao melodrama filipino, Diaz fora exposto ao mundo do cinema desde muito cedo. Mas apenas como estudante, após uma exibição de Manila de Lino Brocka nas garras da luz (1982); ele se tornou consciente do poder do cinema como uma ferramenta para contar histórias silenciosas (e silenciadas) e trazê-las de volta à consciência pública. O filme, ele aprendeu, pode se tornar um veículo para memórias pessoais e coletivas. Para Diaz, o cinema é “processo de limpeza”, como ele chama. “Precisamos confrontar todas essas coisas”, diz ele, “todos esses traumas, todas essas partes não examinadas da nossa história, nossa luta, para que (nós) possamos avançar. É uma espécie de cura.” (Diaz, 2014)Visualmente, a chuva implacável é uma companhia constante e serve para reforçar a situação traiçoeira dos homens. A vasta paisagem da lama acompanha o colapso dos combatentes da resistência e sua afundar em uma situação cada vez mais desesperadora. A floresta, ou a ilha de Mindoro em geral, tornou-se uma armadilha e exerce pressão sobre os combatentes da resistência até que eles quebrem. Eles são esmagados pelo tempo e pela ansiedade avassaladora da “iminência imprevisível da morte”, como Pollock e Silverman descrevem em seu estudo sobre o comportamento dos prisioneiros no campo (2014: 9). Em vez de perseguir um tiroteio rápido e letal com os homens armados, as forças militares geram um estado persistente e permanente de incerteza para eles, o que leva à paranoia, desesperança e hiper-vigilância. A incerteza sobre quando a morte vai atacar impede que os combatentes desenvolvam o desejo de continuar a vida. Sua pulsão de morte aumenta a cada momento gasto no estado paralítico de nãosabendo. Os próprios detalhes da estética de Diaz para uma representação desse estado podem ser considerados como o que chamei de “tempo da morte”.

Lav Diaz e o tempo da morte

Na verdade, o Slow Cinema tem sido frequentemente falado no contexto de temps mort ou dead time. Depois que uma ação chega ao fim, os quadros permanecem vazios por vários segundos, o que testa a paciência do espectador. Os filmes de Lav Diaz não são diferentes, mas seu uso de longa duração e tempo morto assume outra dimensão. Ele cria algo que eu chamo de tempo da morte. A morte sempre vem devagar em seus filmes. Leva tempo, e não é tanto sobre o tempo morto nos filmes de Diaz, mas sobre a lenta descida à loucura, com a morte sendo um refúgio para os perseguidos. O diretor destaca o uso e os efeitos do terror na sociedade, e seus personagens morrem lentamente, dolorosamente e gradualmente durante um longo período de tempo. Sua morte é geralmente antecipada e conhecida no início do filme, mas quando exatamente a morte ocorrerá nessas oito ou nove horas, o espectador e o personagem não poderão conhecer o personagem, o que coloca ambos em uma situação igualmente incerta, desconfortável e aterrorizante. posição. O tempo de morte de Diaz é uma parte essencial do universo de concentração que ele cria e, junto com suas consequências estéticas, que enfatizam ausência e duração, forma o núcleo de seus filmes experienciais que visam libertar tanto o diretor quanto a sociedade filipina de traumas passados e presentes.

1 Uma análise detalhada do cinema pós-trauma de Diaz pode ser encontrada em minha tese de doutorado intitulada “A estética do
ausência e duração no cinema pós-trauma de Lav Diaz ”, disponível via The British Library.

 

Referências:

Des Pres T. (1976) The survivor – An anatomy of life in the death camps. New York, Oxford: Oxford University Press.
Diaz, L. (2014) Interviewed by Nadin Mai, Locarno Film Festival, Locarno, 10 August.
Foucault M. (1991 [1977]) Discipline and punish – The birth of the prison. London, New York: Penguin Books.
Hetzenauer B. (2013) Das Innen im Aussen – Béla Tarr, Jacques Lacan und der Blick. Berlin, Köln: Alexander Verlag.
Human Rights Watch. (2007) Sacred silent – Impunity for extrajudicial killings in the Philippines. Available at: http://www.hrw.org/reports/2007/philippines0607/ (accessed 15 October 2013)
Human Rights Watch. (2011) “No justice adds to the pain” – Killings, disappearances, and impunity in the Philippines. Available at: http://www.hrw.org/reports/2011/07/18/no-justice-just-adds-pain-0 (accessed 15 October 2013)
John M. (2014) Running the film against the reel – Locating Jean Cayrol’s Lazarean figure in Alain Resnais’s Muriel ou le temps d’un retour. In: Pollock G and Silverman M (eds) Concentrationary memories – Totalitarian terror and cultural resistance. London, New York: I.B. Tauris, pp. 83-99.
Koepnick, L. (2014). On Slowness – Toward an Aesthetic of the Contemporary. New York, Columbia University Press.
LaCapra, D. (2001). Writing History, Writing Trauma. Baltimore, London, The John Hopkins University Press.
Luckhurst, R. (2008). The Trauma Question. London, New York, Routledge.
Neurath P. (2005) The society of terror – Inside the Dachau and Buchenwald concentration camps. London, Boulder: Paradigm Publishers.

Nadin Main é curadora da Tao Films, distribuidora de filmes online dedicada ao Slow Cinema.

FacebookTwitter

NOTAS SOBRE O CINEMA

SLEEP HAS HER HOUSE

Por Scott Barley
Traduzido por Pedro Tavares

A escuridão sempre foi um pré-requisito para realmente entrarmos no mundo na tela, e sua importância na concessão de ressonância experiencial não pode ser exagerada. No cinema, as luzes se apagam. Nós esperamos em uma sala escura por um mundo de luz se abrir para nós, e enquanto nosso corpo pode permanecer em nosso assento, a essência incorpórea em todos nós caminha em direção à luz exuberante, assombrando-a, como nos assombra. Nossas almas investem, buscam na curiosidade e fome nas imagens e sons. O cinema é uma simbiose de assombrações. Entramos quando nos entra. Entrar no mundo de um filme é algo muito espectral. Realmente se submeter à experiência do cinema é como deixar as ondas do oceano baterem em você e não ter medo de se afogar. Estar nessa escuridão e deixar o filme nos envolver e penetrar é a própria definição de rendição. Para se entregar, para o outro.

A força do cinema também pode ser sua fraqueza. Com tanto poder do cinema vindo de sua singular distinção nas artes como bastardização de duas artes – imagem e som – criando cenários audiovisuais vívidos, muitas vezes não há espaço suficiente para o espectador sonhar, imaginar, questionar. Escuridão, ofuscação – tanto visual quanto metafórica – podem ajudar a criar um ambiente em que a imaginação pode coexistir e se harmonizar com o corpo do filme e criar uma experiência polissêmica absolutamente única para cada indivíduo, cumprindo essa simbiose.

A escuridão é uma textura, um véu, místico, um interior imaterial. É o sertão de onde tudo entra e sai. Todos nós uma vez ou outra sentimos que pelo menos por um momento vemos algo passando além daquele véu, onde olhamos para a escuridão profunda – a verdadeira escuridão – e sentimos nosso nervo óptico levado ao limite, vendo luzes estranhas emanando , dançando, aparentemente sem nada, além do limite de nossa visão, nunca muito certo se é nosso olho ou algo mais que é parte de nós, dentro de nós, ainda desconhecido para nós, permitindo-nos uma testemunha disso. A escuridão permite que o olho da mente abra, para nossa imaginação vagar. Ela recalibra e alimenta nosso relacionamento com nosso corpo, nossos sentidos e a paisagem além de nós. Eu quero criar um mundo que faça o conhecido se sentir desconhecido de novo, permitindo que aquele pulso frágil e profundamente intenso de curiosidade infantil que bate dentro de nós volte a se firmar. A escuridão nos permite entregar-nos a esse mistério, a essa maravilha e a nadar nela, e reivindicar nosso relacionamento profundo e paroxístico conosco e com o que está além de nós mesmos; afogar-se destemidamente é um salto infinito.

***

Como cineastas – cineastas genuínos – não devemos ter medo de nos aventurar em direção ao que é considerado o inexprimível, o que não pode ser dito em palavras, mas sim o que surge apenas nos sonhos, criar um cinema além da figuração, além do objeto e, em vez disso, torna a liminaridade entre a luz e a própria escuridão como seu próprio sujeito, movimento e quietude como seu próprio sujeito, paroxismos de experiência como seu próprio sujeito, para expressar e experimentar o peso do que é conhecido e do que é desconhecido para nós. O desconhecido deve ser nossa luz, nossa atração, nosso guia para buscar novas imagens, novos sons, novas idéias e temê-lo; mas devemos nos submeter a esse medo. Você não está fazendo nada que valha a pena se não sentir medo.

***

Como aquelas aparições que espreitam, depois dançam conosco, que nos desarmam, nos seduzem até quando viramos nossos pescoços, e olhamos para o caminho que percorremos, e no escuro, além das árvores, eu também quero desarmar, e seduzir através da renderização do visível invisível. Eu quero seduzir através de ofuscação, verdadeira ofuscação, sugerir um além, uma liminaridade suspeitamente encoberta dentro do ‘fuscus’.

***

Escuridão é onde todas as coisas estão funcionando. Onde todas as bocas e mãos estão dançando. A escuridão é sempre preponderante. E a escuridão está sempre com fome. Quer sua refeição. E às vezes, devora.

***

A ciência provou que somos literalmente feitos de poeira estelar. Nós podemos olhar – em reverência – do céu noturno. Por causa de quão longe a luz tem que viajar, olhar para as estrelas é olhar para o próprio tempo. Essa infinita piscina negra é uma catedral cheia de fantasmas; os fantasmas de estrelas … estrelas que em alguns casos não existem mais – as mesmas estrelas das quais somos feitos agora. É como um fóssil – mas também é um reflexo. Talvez não tenhamos outro propósito senão um dia retornar, passar por aquele espelho e nos unirmos às estrelas que nos nasceram. Para se tornar o todo – novamente.

***

Não tenha medo de imagens. Tenha medo das palavras: diálogo. Cinema não é literatura. Literatura é literatura. Cinema não é teatro. Teatro é teatro. Você é um cineasta e seu vocabulário é vasto, infinito – qualquer imagem, qualquer som e qualquer combinação. Palavras evocam imagens. Se a imagem já existe, não há nada a ser evocado. Isso existe. Deixe respirar. Pode respirar sozinho se for forte. Deixe sua força estar em sua vulnerabilidade. Deixe-o revelar sua vulnerabilidade. Se usamos muito as palavras no cinema, estamos apenas usando palavras para ajudar uma imagem fraca ou para conquistar a imagem. Como cineastas, somos conjuradores e não devemos ter interesse em conquistar nada.

***

Cinema somos nós, olhando para um espelho trêmulo. É uma vida que dança escondida atrás das árvores, além do horizonte. O cinema não é nossa construção. Cinema somos nós – desconstruídos.

***

Nós voamos sobre uma lágrima na imagem, um oceano. Nós ouvimos o vento cantando. Então um nada perene. Um cinema de prisioneiro. O filme nas nossas pálpebras. O projetor está piscando. Uma tela negra de nada sonoro. Nós somos um nada dentro de nada. Nosso escuro interior nada no escuro. Um anel silencioso. Nós flutuamos, contidos nele; a própria câmara de eco do corpo, gritando e ouvindo nada além de nossos próprios uivos silenciosos e devastadores. Cinema é vida, dentro, fora de nós.

***

Como Emil Cioran disse: “Escreva livros apenas se você for dizer neles coisas que você jamais ousaria confiar a ninguém”. O mesmo se aplica ao cinema. E gostaria de acrescentar que você põe em seu trabalho aquilo que você jamais ousaria confiar a si mesmo, ou mesmo desejar entender. Não é uma revelação, ou um “derramamento” de lógica, não é senão um dilúvio de sentimento puro e não adulterado; sentindo-se sozinho. E o sentimento puro não pode e não deve ser traduzido em pensamento racional.

***

Para mim, a verdadeira essência do cinema não é simplesmente animar. É desanimar. Eu sempre começo um filme quase como se fosse manter um diário. Eu não tenho ideia ou agenda para fazer um filme. Eu simplesmente documentei. Eu filmo o que me atrai, coisas aleatórias, animais, variações na luz, a água, as estrelas; simplesmente o que me atrai em dias diferentes, noites diferentes, em lugares diferentes. Depois de construir um corpo de imagens, começo a ver conexões. Essas imagens podem ser filmadas com meses ou até anos de diferença – e milhas também. Assim como em Hunter (2015), existem sequências em Sleep Has Her House, que são compostas de tomadas filmadas em dois países separados que são então costuradas de forma invisível. Mas essas conexões entre diferentes partes de filmagem acontecem organicamente. Eu nunca forço essas conexões. Eu nunca forço um filme quando ele não vem. Os filmes me encontram – não o contrário. Quando eles ganham vida e começam a se contorcer, eu simplesmente aguento. Todos os meus filmes foram feitos assim. Alguns acontecem mais rápido que outros. Uma vez estabelecidas essas conexões, uma narrativa – através de imagens – começa a germinar.

***

Eu acho que a internet tem um papel fundamental a desempenhar para derrubar os muros do elitismo econômico e da censura sociopolítica que impedem que muitas pessoas acessem as artes, a informação e a verdade. Um artista precisa ser pago, mas também o trabalho de um artista precisa estar disponível para todos aqueles que desejam procurá-lo.

***

A realidade da sensação vem em primeiro lugar. A lógica vem depois. Nestes momentos da câmera se tornando o corpo, nós, o espectador, assumimos o corpo do protagonista. Nós abrigamos a tela. Nós assombramos o próprio fantasma da imagem, nós gravamos o avatar impregnado na imagem. Continuamos fora de nós mesmos e, com isso, desatamos a imagem. Isso fratura. Nós nos tornamos a própria vibração da realidade da imagem; uma realidade espectral que está em fluxo aglutinado com o nosso.

***

Ser real é forjar. Ser real é enganar. O cinema é real porque engana; é forjado. Para se tornar real, devemos nos enganar e, mais uma vez, nos tornar o animal. O animal é o que vemos na tela.

***

O que é mais real do que o nosso ser não adulterado? Nossa inatitude? Ao longo da história do cinema, a definição de cinema realista tem sido sobrecarregada por um critério incrivelmente estreito. Os filmes que fizeram a nota são quase sempre sobre circunstância sociopolítica. Independentemente de quão importantes e bem feitos são esses filmes, essas explorações não se preocupam apenas com construções feitas pelo homem, com excessos feitos pelo homem; muitas vezes atormentado por um dilúvio de verossimilhança espúria? Se assim for, pode realmente ser considerada realidade autêntica? A tabulae rasae é incivilizada. Ela caça. Isso fode. Grita. Ele treme… O que é mais autêntico, mais real do que a nossa inatitude?

FacebookTwitter

CINEOP: O DESMONTE DO MONTE (Sinai Sganzerla, 2018)

o desmonte do monte

Por Gabriel Papaléo

Viver no Rio de Janeiro traz sentimentos díspares como se espera de toda metrópole, com seus cartões postais, as belezas quase irreais, todo um imaginário artístico criado em volta, mas também o movimento frenético, olhares perdidos, rotinas desesperadas, as desigualdades socais. O contexto social está sempre em pauta diante da criação de memórias de uma cidade como o Rio porque os lugares guardam históricos, e alguns deles são carregados de opressão. O Desmonte do Monte, filme de Sinai Sganzerla, trabalha com essa presença fantasma de memórias opressoras, o horror da falta de registros, e os apagamentos urbanos que a causaram.

A estrutura abraça um didatismo nesse olhar procedural da historia que muito dialoga com Dawson City nesse sentido. Poucas vezes sai dessa escolha narrativa, mas nos momentos de retratar a queda iminente do monte Sganzerla assume uma dinâmica de filme de horror, no retrato de uma paisagem frágil e literalmente fadada ao desaparecimento. O som didático torna-se sugestivo, a trilha eclética larga a ironia e se concentra em momentos de suspensão cuja tensão emana especialmente da voz fantasmagórica de Helena Ignez.

O interesse historiográfico aliado a essa tentativa de articular o sentimento da perda sensorialmente carrega a montagem pelos 85 minutos sem que os dados cansem, ou que o tom solene enfraqueça a potência dos fatos. A recriação dos momentos históricos por relatos pessoais, seja de historias orais e fotografias amadoras a matérias de jornal e obras de arte, relembra que o curso narrativo discurso da Historia dos vencedores arranja esses documentos para gerar uma ideia, e o que Sganzerla faz aqui é esse esforço de organizar a Historia para privilegiar fatos que não tiveram acesso a ela – algo antropológico, por assim dizer.

As mazelas sociais do Brasil expostas em tela reforçam o discurso de minorias cuja Historia lhes foi negada, do apagamento indígena aos poderes que se renovam através de relações pessoais – o homem cordial, por assim dizer -, e a forma que por vezes o discurso fílmico fica redundante acaba devendo às repetições históricas que aqui sofremos. As limitações de O Desmonte do Monte acabam revelando sobre nossa própria historia corrupta como país, cujos instrumentos de opressão mantém-se dolorosamente similares. O impacto emocional das perdas de minoria soam menos desesperadores que em retratos com recorte mais específico – como a recente obra-prima Martírio, por exemplo – e algumas escolhas estéticas tratam de forma direta demais as associações do filme – como a escolha de For the Love of Money para tocar no momento em que a especulação imobiliária ali se revela – mas essas limitações originam dessa própria disposição de enxergar no monte um exemplo para nossa organização social enquanto país.

Falar sobre um panorama brasileiro tem dessas fragilidades, mas o recorte de Sganzerla é concentrado o suficiente para dar seu soco de revide com potência.

FacebookTwitter

O Atalante (Jean Vigo, 1934)

vigo4big

Por Gabriel Papaléo

Uma das sessões especiais históricas do CineOP 2018 exibiu a obra máxima de Jean Vigo, O Atalante, numa cópia restaurada pela Cinemateca Francesa, para um cinema cheio como não fora o filme à época de seu lançamento. Por décadas as versões do filme eram variadas, cortadas contra a vontade de Vigo e remontadas após sua morte precoce. Em 1957, 23 anos após seu lançamento, o teórico brasileiro Paulo Emílio Salles Gomes propôs um revisão à obra junto a André Bazin após trabalhar anos na Cinemateca Francesa, e Vigo tinha sua obra à época adorada pela Nouvelle Vague. O esforço de Paulo Emílio culminou na escrita de dois livros, sobre Vigo e Miguel Almereyda, seu pai famoso pelo pensamento anarquista, e o resgate da obra do diretor.

É curioso que tenha sido um brasileiro a redescobrir o filme pois O Atalante esbarra das maneiras mais peculiares nas inquietações do nosso cinema, com suas utopias do mar e associações livres entre campo e cidade. A fuga da França do campo com a promessa farsesca de um ideal de família que Vigo observa com graça para então desvelar a cidade, descobrir seus prazeres e feiúras, no ato de amadurecer que nem sempre caminha junto com quem se ama. O navio atalante da mudança proposto como o dispositivo de transformação palpável da narrativa, fundamental para a demonstração dos prazeres da vida nessa estrutura de estrada aquática.

A disposição de Vigo especialmente para transmitir as formas abstratas entre os sentimentos do casal protagonista liberta a câmera para observação barroca do ambiente, do mar como sonho, do movimento dos barcos enquanto a noiva acompanha o ritmo, das edificações sempre à beira do rio mas raramente no quadro sob uma distância curta. Apenas ao adentrar nas expectativas de conhecer novas terras, desbravar novas historias, que os personagens entram em movimento e então aportam na cidade. A sequência do marinheiro contando das suas aventuras ao redor do mundo traz no seu quarto o retrato físico de uma vida perpassada pela tradição oral, pela confiança no outro, e é esse um dos singelos nortes de O Atalante.

Conforme a jornada de superação tanto do homem em perceber o egoísmo de seu olhar do relacionamento quanto da mulher em se permitir ter prazeres individuais diante da cidade, do conhecimento e curiosidade do que está por aí ao acaso, a câmera recontextualiza a abstração pontual e atenta-se aos retratos de pequenas angústias, do quarto sendo quebrado do marinheiro ao diálogo arrepiante de sombras entre esposa e marido sonhando distantes com o outro. A utopia do encontro se materializa no senso de humor e no olhar atento ao espaço ao redor – das coisas que mais ficaram comigo do filme -, e o rosto de Dita Parlo vira o foco absoluto dessa descoberta de mundo com a mesma empolgação e encantamento da câmera de Vigo, contendo todo o amadurecimento de encontrar em lugares e rostos uma casa.

FacebookTwitter

Cine OP: Mostra de Curtas

qjafJ

Por Gabriel Papaléo

No terceiro dia do CineOP uma sessão especial de curtas ocupou o Cine Vila Rica, cujo recorte fora focado nos processos artísticos ao longo das décadas no Brasil, especialmente no período do Tropicalismo e do Cinema Novo. O foco do festival majoritariamente na preservação de filmes encontrou um diálogo forte com as diferentes formas de resistência oferecida pelos artistas da época, cujo registro narrativo de performances guarda não apenas uma tradução audiovisual dos diálogos com outras artes como também são documentos de resistência em tempos de perseguição no país.

A sessão curada por Lila Foster e Francis Vogner começou com Brasil, filme de Rogério Sganzerla rodado em 1981 numa ressaca de exílio que tenta dar conta dos sentimentos contraditórios que os signos atribuídos ao nosso país carregam. A fascinação com Orson Welles em sua passagem no país para rodar seu filme inacabado parece surgir como um desafio, questionamento desse homem cujo delírio de grandeza era entender o Brasil, e que foi quebrado justamente nessa tentativa antropológica que muito carrega de sequestro cultural estrangeiro. As imagens cartão-postal do Brasil, especialmente do Rio, apresentando uma melancolia de quem procura – e encontra – verdades nessas imagens banalizadas no uso para exportação. É na segunda metade que Sganzerla encontra uma antítese ao geral, ao macro, com o foco na gravação musical com Caetano, Gil e João Gilberto. No particular, no passional, somos compositores pensando a historia e tentando reagir as dificuldades, e cuidando para representarmos politicamente com cuidado até mesmo as imagens que nos foram sequestradas através dos reducionismos de sentido.

O que ressoa é sentirmos Cristo chorar de saudade de sua casa, e um tributo aos artistas que tentam traduzir esse espírito de um país em suas expressões artísticas.

A Fila, curta de Kátia Maciel, sucedeu esse olhar de tempos de mudança mas sob o viés mais burocrático do cotidiano. O olhar ansioso da câmera de Maciel abre uma breve cápsula do tempo com a burocracia sofrida pelos artistas em tempos de retomada, buscando rostos amigos por ali, encarando com certa farsa os problemas de incentivo que o cinema sofre no país através de uma escala micro, dessa fila interminável no prédio do Ministério da Cultura, habitado por quem espera viabilizar seus olhares e deve enfrentar uma estagnação por isso.

A dimensão lúdica dos atos de exercer a criatividade permanece em Ver e Ouvir, de Antonio Carlos da Fonseca, cujo foco em três artistas sessentistas na concepção de suas artes no presente à época preserva a intuição e experimentação de mundo através desse contato artístico.

O lúdico da arte contemporânea abre o filme com um plano em um parque de diversões, para então estruturar-se a partir de intervenções audiovisuais nas obras, de fato traduzindo um confronto apenas por deslocar essas obras de seus contextos originais e abri-las à cidade, a verdadeira protagonista do filme. Abre assim para o diálogo com o Brasil em tempos de dúvida, e ocupar a cidade com as obras para conversar com os rostos do cotidiano que com a incerteza lidam diariamente surge como dever cívico.

Se Fonseca adere a uma postura política de manifestos, Arthur Omar abraça a ambiguidade. O Som (ou Tratado de Harmonia) surge dessas dúvidas para experimentar performances na tentativa de conciliação e confronto entre a revolução armada e a sexual. A câmera passeia por rostos atravessando obras plásticas cuja força se dá na representação psicológica dessa ansiedade, enquanto o texto relata dimensões mais palpáveis diante das inquietações sexuais daqueles corpos. Um confronto que encontra em velhas utopias alguns conforto, não por acaso recorrendo ao mar como certo mediador (ou elemento de arrefecimento) das pulsões revolucionárias.

Ruído e Existência, de Carlos Adriano, adere a um dispositivo de fusões e duplicidade para conceber essa cidade que tem pesadelos estruturalistas. Talvez apoiado demais em uma ideia de exposição através do texto aparentemente abstrato e de certa fórmula visual estabelecida e repetida com poucas variações acaba parecendo um filme mais despropositado dentro da sessão, dialogando fielmente com uma tradição de quebra da superfície da imagem do cinema experimental e se contentando com isso, diluindo assim a potência política do relato visual dessa cidade de mistérios – ainda que a montagem costure bem a atmosfera provocativa do filme.

O fim da sessão levou as provocações de Ruído e Existência a uma forma mais frontal, com À meia-noite com Glauber, filme de Ivan Cardoso, e sua estética de Glauber Rocha e Helio Oiticica sob o filtro dos quadrinhos pop de Ivan Cardoso, a profetização via os iconográficos de gênero tão caros a Cardoso, mas aqui estranhamente despolitizando volta e meia as imagens dos artistas documentados. É com celebração e confronto que o terrir de Cardoso se estabelece, mas as imagens fora de contexto de Rocha caem numa possível fetichização que não está diretamente no cinema do baiano. O poder da montagem sempre deixa o filme interessante, e pelas contradições exibe um tom de desafio político que o sensorial camufla. Fora um ótimo filme para fechar a sessão, tão focada nos artistas e no que eles fazem para combater o status quo, e para Cardoso talvez esse confronto esteja irônico e desapaixonado. É uma visão que representa seu tempo, mas não necessariamente traz algo além do diagnóstico.

FacebookTwitter

DAWSON CITY – TEMPO CONGELADO (Bill Morrison, 2016)

cine-op

Por Gabriel Papaléo

Como traçar um passado através da referência, do gesto e do antropológico? O filme nasceu como explosivo, os mecanismos dele como indústria se confundem com a própria história americana, e em Dawson City – Tempo Congelado o efeito corrosivo do tempo é visível desde a arquitetura da cidade filmada e fotografada até as marcas de deterioração das películas ali encontradas.

O viés experimental da superfície da imagem no cinema de Bill Morrison ganha aqui uma dedicação historiográfica bem oportuna na exploração da investigação da origem dos mais de 500 rolos de filme encontrados enterrados num local onde era uma piscina. A partir disso a montagem de Morrison exibe essa paixão pela historia e informação, disposta a investigar o máximo de elementos possível nas fotos para representar visualmente historias esquecidas que foram tornadas mitos apenas nas artes, e cujas memórias são fósseis não desejados por revelar estruturas ambíguas na construção da cidade -e do país.

Nesse sentido é interessante o uso do didatismo como uma ferramenta de curiosidade historiográfica, como se a tradição oral do relato esquecido da Busca do Ouro fosse adaptado à apresentação focada em texto de Morrison – mesmo que a música constante e a ansiedade de traçar um panorama atrapalhem pontualmente. A concentração em observar a influência antropológica e as situações que se repetem nos filmes encontrados são as matrizes do manifesto da importância de salvar a memória e o potencial antropológico e emocional de influência do cinema, um diálogo de sombras palpável na película deteriorada que exibe o diálogo de um homem com uma figura irreconhecível pela corrosão completa de sua parte no quadro. 

Perto do encerramento, o texto de Morrison faz questão de lembrar que as marcas de corrosão das películas encontradas na cidade são singulares, que guardam um aspecto especial pela exposição à água. É como se o tempo fosse contemplado pela forma que ele imprime sua influência, ode à mudança dos tempos em um filme tão focado justamente na preservação da memória – algo que poderia ser contraditório mas impede o filme de ser reacionário politicamente, para reforçar a fé na memória como motor de transformação. O filme nasceu como explosivo e permanece como tal, de fato.

FacebookTwitter

OLHAR DE CINEMA 2018

cartao_frente

GUIA DE FILMES – Parte #01
Pedro Tavares

GUIA DE FILMES – Parte #02
Pedro Tavares

BAIXO CENTRO (2018) – Ewerton Belico, Samuel Marotta
Pedro Tavares

CAMOCIM (2017) – Quentin Delaroche
Pedro Tavares

O NÓ DO DIABO (2017) – Ramon Porto Mota, Gabriel Martins, Ian Abe, Jhesus Tribuzi
Gabriel Papaléo

DIANTE DOS MEUS OLHOS (2017) – André Felix
Kênia Freitas

HOMENS QUE JOGAM (2017) – Matjaž Ivanišin
Kênia Freitas

A NOITE DOS MORTOS-VIVOS (1968) – George A. Romero
Kênia Freitas

O Chalé é Uma Ilha Batida de Vento e Chuva (2018) – Letícia Simões
Kênia Freitas

Meu nome é Daniel (2018) – Daniel Gonçalves
Travessia (2017) – Safira Moreira
Kênia Freitas

Boa Sorte (Good Luck, Ben Russel, 2017)
A Floricultura (La Fleurière, Rubem Desiere, 2017)
Kênia Freitas

A FEITICEIRA VIÚVA (Xiao Gua Fu Cheng Xian Ji, Cai Chengjie, 2018)
Kênia Freitas

*

FacebookTwitter

O CINEMA E O MÍSTICO (Editorial)

Por Arthur Tuoto

MISTICO-DESENHO

O cinema é esotérico por natureza. Da câmara escura ao cinematógrafo, do espelhamento da realidade a sua restituição fotoquímica, existe um movimento que implica em uma crença. Mais do que um mero progresso natural, o aperfeiçoamento do cinema em um regime narrativo demanda, propriamente, uma fé. Uma ilusão que transcende a materialidade da imagem e opera como uma realidade autônoma. Uma diegese que ao mesmo tempo em que respeita regras próprias, conserva um contrato mágico com seu interlocutor. O pacto ficcional é um dogma imperativo.

Para além da perspectiva extraordinária que qualquer experiência narrativa exija (afinal, é preciso acreditar), a presente edição da Multiplot! busca explorar o místico tanto como uma temática como um método. De um cinema de personagens mágicos (o herói, a feiticeira, o viajante espacial) a uma concepção narrativa metafísica onde a dialética de causa e efeito é subvertida ou mesmo abolida. De uma realidade meramente ambígua à construção de outros mundos. O sobrenatural, o fabular, o mito. Não apenas como motes reveladores de uma composição universal e ancestral, de uma ordem esclarecedora das coisas, mas disparadores de um enigma, uma desordem, uma corrupção que não busca reiterar a tradição, mas renová-la, quiçá destruí-la.

Serge Daney, sobre o modelo ilusionista clássico hollywoodiano, afirma que a psicologia era tratada como “explicação última”. O papel do cinema moderno foi, justamente, recusar esse denominador: o místico (Rossellini), o patológico (Bergman). Quebra-se uma lógica explicativa e impõe-se uma assimilação abrangente. Muitas vezes absolutamente material (o próprio neorealismo italiano), mas reveladora de uma substância hermética. Uma essência que repousa sobre nossos pés. No fim das contas é da terra, em sua bruta e elementar fisicalidade, que brotam os mistérios mais poderosos.

Não é do caráter do místico explicar. Pelo contrário, é o momento de abandonar qualquer refúgio e se entregar a uma disposição outra. Se a nossa edição passada celebrava a morte do cinema em benefício do seu constante renascimento, aqui continuamos nos situando entre estes novos regimes narrativos e imagéticos. Nunca propondo uma interpretação final, mas abrindo portas e janelas que viabilizem uma constante mutação. Universos sensíveis que jamais são um fim em si mesmo, mas que anunciam, a cada nova proposta, uma reorganização própria.

Não é também a aleatoriedade que nos interessa. Ainda que o caos – “único monstro digno de adoração” – permaneça como singular guia confiável, é na “incessante improvisação do universo” que buscamos esclarecer nossas questões. O segredo nunca está nas respostas, mas na experiência que essas obras proporcionam. O sentido permanece na jornada, na ilusão de uma transcendência, já que o caminho continua inevitavelmente aberto. Nunca chegamos a lugar algum e nem vamos chegar.

Para nos abrigar da realidade (essa sim, sobrenatural), o cinema. O místico aliena na mesma medida que revela. Não se comunica, mas se irradia. Imantados por essa paixão e por esse revolta – a fé e a descrença sempre essencial à cinefilia – continuamos atentos a qualquer movimento.

 

FacebookTwitter

O Cinema e o Místico

Característica principal_2018_04_08_15_51_10_577*

O CINEMA E O MÍSTICO (Editorial)
Arthur Tuoto
_

DESESPERO LOLLIPOP: Desmistificando a Imagem em Like Me
Pedro Tavares
_

A INQUIETAÇÃO DO OLHAR PELO MISTÉRIO DAS PORTAS
Camila Vieira

_

GREEN SNAKE: Fé e demolição
João Pedro Faro
_

SPACE IS THE PLACE: Sun Ra, o  mito no cinema
Kênia Freitas
_

DUELLE, NORÔIT – O místico contra o convencional
Bernardo Moraes-Chacur
_

LARVA, PUPA, INSETO (E VICE-VERSA)
Felipe Leal
_

ENTREVISTA: ROBERT MOCKLER
Pedro Tavares
_

ABERTO PARA ESSES PÁSSAROS ÚNICOS
Jacques Doniol-Valcroze (traduzido por Felipe Leal)
_

A DIMENSÃO MITOLÓGICA NO RETRATO DE PAISAGEM DO CINEMA DE PETTER HUTTON
Gabriel Papaléo
_

A FEMINILIDADE NO CINEMA JAPONÊS – Do místico ao político
Julia Masan
_

TRANSCENDÊNCIA MARTIRIZADA – O místico no Cinema de Jean-Claude Brisseau
Diogo Serafim
_

HOMEM-ARANHA 2: Sobrenatural como manifestação do caráter humano
William Andrades

FacebookTwitter

SPACE IS THE PLACE: Sun Ra, o mito no cinema

Por Kênia Freitas

“Adeus, terráqueos. Vocês só querem falar de verdades… Não de mitos. Bem, eu sou o mito que vos fala. Digo-lhes adeus.”, com essas palavras Sun Ra decola em sua nave tripulada quase exclusivamente por pessoas negras rumo à formação de uma colônia espacial longe da Terra (da sua violência, da sua opressão) – e, para trás, fica um planeta aos pedaços. A sequência final de Space is the place (John Coney, 1974) reforça a proposta da narrativa de se apoiar em um regime mitológico, mais do que em um veridico. O filme sustenta-se assim em uma estrutura móvel, de fantasias e sugestões, em um arranjo de cenas e sequências mais relacionadas ao jogo e à colagem (ao acaso das cartas), do que da lógica fatuística.

Space is the place é uma improvável blaxploitation de ficção científica protagonizada pelo jazzista Sun Ra. Improbabilidade que vem da junção do subgênero marcado pela ação de superfície e a figura enigmática do músico. Herman Poole Blount nasceu no Alabama (EUA), em 1914, e por volta de 1950, ele adota o nome Sun Ra e uma nova biografia: vindo diretamente de Saturno e incorporando elementos da mitologia egípcia e da ficção científica cosmológica a sua persona e a criação musical (sendo “Ra” o deus egípcio do sol). O filme narra a busca de Sun Ra e sua “Arkestra” (sua banda) para fundar um novo planeta com negros dos EUA, levando-os para longe da Terra com o poder da música.

Na trama, Ra trava uma batalha de cartas com o Overseer (uma tradução possível para o arquétipo do personagem seria mais do que um Supervisor, mas a de um Feitor) na disputa pelo destino da população negra. Os dois, Sun Ra e o Overseer, desafiam-se a provarem a inocência ou a culpabilidade dos negros estadunidenses na configuração de sua situação social. Ra aposta na possibilidade de redenção e novo começo, enquanto a figura maligna do Overseer nos vícios e fraquezas inevitáveis. O desafio se dá por um jogo de cartas de tarot, chamado de O Fim do Mundo. São as cartas que irão determinar a sequência da narrativa, dos personagens e fatores envolvidos na disputa – espelhando na estrutura de esquetes do filme os improvisos e casualidades do jogo.

space is the place1

Logo na primeira rodada as cartas em disputa são: “O mundo” como campo de conflito, e a carruagem e o julgamento como meios de transporte (nesse caso, respectivamente representados por um carro conversível e uma nave espacial). Nessa rodada, se dá o primeiro contato oficial de Ra e sua Arkestra com os terráqueos, contato marcado por um grande estranhamento. O uso da máquina-musical de Ra deixa desnorteado um jornalista negro e espanta os demais.

space is the place2

Neste primeiro contato, Ra apresenta a música como motor de explicação e movimento para a vida e a existência cosmológica no geral: “Por que a Terra não cai? Como podemos andar sobre ela? É a música. É a música da Terra, do sol, das estrelas. Sua própria música, vibrando. Sim, você é música também, somos todos instrumentos. Todos estão tocando a sua parte…Nesta vasta orquestra do Cosmos”. Se imageticamente o mito de Ra constrói-se pelo cruzamento dos elementos egípcios e tecnológicos low-tech (mais próximo a gambiarras caseiras do que ao imaginário futurista hollywoodiano dos anos 1970), a música torna-se outra estrutura fundamental no embasamento do seu regime de crença mitológico.

O filme é entrecortado pela música não só nos números musicais filmando Ra e sua Arkestra (como era de se esperar desse tipo de projeto), mas pela trilha sonora geral. A filosofia de Ra nas frases ditas/cantadas por June Tyson antecipam ou apresentam os segmentos do filme de forma profética – como o “É depois do fim do mundo” marcando o início do filme ou o “Chamando o planeta Terra!” antes da chegada da nave de Ra. As distorções do sintetizador de Sun Ra também pontuam as cenas, construindo elementos de desnaturalização permanentes (mesmo nos momentos em que o filme mergulha com mais entrega ao estilo de narrativa de ação da blaxploitation) – desnaturalização acentuada pelo figurino e demais elementos cênicos de Ra e sua trupe.

Nesta desnaturalização, os elementos e a narrativa do filme ficam em um limite do mágico com o carnavalesco, entre o sublime e o improvisado/artesanal. A imagem de Ra como mito (no filme e fora dele) funda-se não no que ela tem de super-humano (ou não-humano) e mais no que esta imagem tem de absurdamente terrena, de relacionável atrás (e apesar) de todas as camadas de coloridas e brilhosas das vestimentas. Como mito, Ra impacta não por tentar nos convencer da fabulação que sustenta, mas por trazê-la de forma inegociável como ponto de partida. A implicação do público (nesse caso do espectador) não está na crença ou descrença em Ra ou em sua mitologia, mas em sua aceitação.

E embora a utilização da estilística da blaxploitation como gênero da narrativa tente tornar a imagem mitológica de Ra mais fantástica – Ra como super-herói, o efeito não obtém muito sucesso. O filme fica então repartido entre as aparições de Ra e as outras narrativas paralelas dos demais personagens (marcadas pelo subgênero). As cenas de Ra funcionam melhor em seus monólogos solitários e/ou direto para a câmera (reforçando a encenação desnaturalizada) e as sequências de violência, nudez e sexo (incluindo uma injustificável cena de espancamento de duas personagens femininas) pouco se relacionam com a trama principal do filme.

space is the place3

Em Space is the place os contornos raciais negros aparecem de forma inequívoca na mitologia de Sun Ra – ao longo da trajetória de Sun Ra esse posicionamento é mais ambíguo e oscilante. Se todo o filme é construído em cima da trama de disputa pela salvação da população negra dos EUA, é o encontro de Ra com os jovens negros no centro de recreação que explicita não apenas Sun Ra como uma figura redentora, mas como homem negro em si mitológico. Sob os olhares de espanto, Ra se afirma:

Eu não sou real, assim como vocês. Vocês não existem nessa sociedade. Se existissem, não estariam buscando direitos iguais. Se fossem reais, teriam algum status entre as nações do mundo. Então somos todos mitos. Não me apresento como uma realidade, e sim como um mito. Porque é isso que os negros são. Mitos. Eu vim de um sonho, sonhado por negros há muito tempo… Sou um presente de seus antepassados.

Ao conjugar ao mesmo tempo uma mitologia cosmológica e ancestral negra, Sun Ra é apontado como um dos pilares do afrofuturismo (movimento que engloba as narrativas de ficção especulativa a partir da experiência negra) – ainda que tenha falecido antes dessa denominação existir. Space is the place marca um momento chave desta mitologia sunraniana que se transforma ao longo das décadas. No filme, a individualização de Ra como o mito em si é fortemente atravessada por uma mitologia coletiva e redentora negra. Os jovens negros, e a população negra no geral, são tão mitológicos quanto Sun Ra.

Nesta cena o que a presença de Ra parece mover de mais potente é disjunção de tempo e espaços. Um efeito semelhante ocorre em diversas outras cenas, como:  enquanto ainda apenas pianista em Chicago em 1943, Sunny Ray leva o cabaret às chamas com a sua performance visceral; na chegada com sua nave espacial na Califórnia dos anos 1970, que leva um jornalista ao hospital e assusta os demais com a sua máquina de música; na agência de empregos que não oferece salários ou nenhum dinheiro e afasta com o mesmo estranhamento um cientista, um bêbado e uma hippie.

Sun Ra coloca-se assim perante a encenação do filme também como o mito que professa ser, como o “destino alternativo” encarnado. O tempo para ele está “oficialmente acabado” e a sua espacialidade é a extraterrestre. Como nos lembra June Tyson na abertura do filme: “É depois do fim do mundo, você ainda não sabe?”.

FacebookTwitter