O Atalante (Jean Vigo, 1934)

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Por Gabriel Papaléo

Uma das sessões especiais históricas do CineOP 2018 exibiu a obra máxima de Jean Vigo, O Atalante, numa cópia restaurada pela Cinemateca Francesa, para um cinema cheio como não fora o filme à época de seu lançamento. Por décadas as versões do filme eram variadas, cortadas contra a vontade de Vigo e remontadas após sua morte precoce. Em 1957, 23 anos após seu lançamento, o teórico brasileiro Paulo Emílio Salles Gomes propôs um revisão à obra junto a André Bazin após trabalhar anos na Cinemateca Francesa, e Vigo tinha sua obra à época adorada pela Nouvelle Vague. O esforço de Paulo Emílio culminou na escrita de dois livros, sobre Vigo e Miguel Almereyda, seu pai famoso pelo pensamento anarquista, e o resgate da obra do diretor.

É curioso que tenha sido um brasileiro a redescobrir o filme pois O Atalante esbarra das maneiras mais peculiares nas inquietações do nosso cinema, com suas utopias do mar e associações livres entre campo e cidade. A fuga da França do campo com a promessa farsesca de um ideal de família que Vigo observa com graça para então desvelar a cidade, descobrir seus prazeres e feiúras, no ato de amadurecer que nem sempre caminha junto com quem se ama. O navio atalante da mudança proposto como o dispositivo de transformação palpável da narrativa, fundamental para a demonstração dos prazeres da vida nessa estrutura de estrada aquática.

A disposição de Vigo especialmente para transmitir as formas abstratas entre os sentimentos do casal protagonista liberta a câmera para observação barroca do ambiente, do mar como sonho, do movimento dos barcos enquanto a noiva acompanha o ritmo, das edificações sempre à beira do rio mas raramente no quadro sob uma distância curta. Apenas ao adentrar nas expectativas de conhecer novas terras, desbravar novas historias, que os personagens entram em movimento e então aportam na cidade. A sequência do marinheiro contando das suas aventuras ao redor do mundo traz no seu quarto o retrato físico de uma vida perpassada pela tradição oral, pela confiança no outro, e é esse um dos singelos nortes de O Atalante.

Conforme a jornada de superação tanto do homem em perceber o egoísmo de seu olhar do relacionamento quanto da mulher em se permitir ter prazeres individuais diante da cidade, do conhecimento e curiosidade do que está por aí ao acaso, a câmera recontextualiza a abstração pontual e atenta-se aos retratos de pequenas angústias, do quarto sendo quebrado do marinheiro ao diálogo arrepiante de sombras entre esposa e marido sonhando distantes com o outro. A utopia do encontro se materializa no senso de humor e no olhar atento ao espaço ao redor – das coisas que mais ficaram comigo do filme -, e o rosto de Dita Parlo vira o foco absoluto dessa descoberta de mundo com a mesma empolgação e encantamento da câmera de Vigo, contendo todo o amadurecimento de encontrar em lugares e rostos uma casa.

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