A NOITE DOS MORTOS-VIVOS (Night of the Living Dead, George Romero, 1968)

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Por Kênia Freitas

A exibição de filmes clássicos em festivais e mostras de cinema cumpre diferentes propósitos: apresentar um filme na tela grande para um novo público, proporcionar a circulação de uma cópia rara ou restaurada, propor releituras para um filme já canônico. Revisitar A noite dos mortos-vivos em 2018 cumpre os três propósitos de forma excepcionalmente pertinente. Isso porque falar deste clássico fundante de Romero em muito aspectos significa falar de sua recepção (de público e de crítica): falar do pacto filme-espectador e da quebra deste pelo final desconcertante.

E pensar essa recepção é situá-la não em um espectador imaginário, universal e/ou neutro; mas com posicionalidade histórica, racial e social. Uma reflexão neste sentido foi feita recentemente pelo curta-metragem Pele de monstro (Barbara Maria, 2017). No filme, estudantes universitários negros a UFJF falam sobre as suas leituras do racismo em A noite dos mortos-vivos e Mortos que matam (The last man on Earth, Ubaldo Ragona e Sidney Salkow, 1964).

Ao falar sobre o filme George Romero afirmava que não pretendia fazer um filme sobre questões raciais e a escolha de Duane Jones para o protagonista da história não foi determinada por este ser negro, mas por sua adequação de atuação para o personagem. Mas com ou sem intencionalidade, o filme situa-se de forma emblemática nas discussões de representação racial no cinema por sua construção de um herói homem negro e pela aniquilação deste herói. Na construção de um terror físico (a ameaça de ataque dos mortos-vivos) e também psicológico (o herói negro preso dentro de uma casa com diversas pessoas brancas lutando para sobreviver) o filme é uma inspiração evidente de Corra! (Get out, Jordan Peele, 2017).

Pensar as possíveis e múltiplas reconfigurações das recepções do filme diz respeito a entender as transformações raciais políticas dos últimos 50 anos. Em um contexto do final dos anos 1960, o herói negro executado com um tiro na cabeça nos EUA nos remete aos diversos líderes dos movimentos dos direitos civis assassinados: Martin Luther King Jr (1968), Malcolm X (1965), Medgar Evers (1963). Em um contexto contemporâneo, ganha relevo o fato de ter sido uma execução coordenada pelas forças policiais, trazendo para dentro do debate o movimento Black Lives Matter e a sua luta contra a sistemática violência e assassinato policial de pessoas negras. Mas essa é também uma recepção que se altera não apenas pelas mutações dos contextos histórico-sociais das políticas raciais, mas também pela produção imagética-midiática que produziu e ressoou essas transformações contextuais nas últimas décadas.

Em uma primeira camada a trama do filme em sua centralidade se resume em sete pessoas que se refugiam durante uma noite em uma casa no interior da Pennsylvania tentando sobreviver a um ataque inesperado e violento de pessoas mortas-vivas canibais. A primeira dessas personagens a ser apresentada é Barbra, que após perder o irmão devorado por um morto-vivo logo no início do história permanece quase o tempo inteiro em um choque catatônico, incapaz de responder agilmente a urgência da situação. O segundo personagem a chegar à casa é Ben. Ele chega no exato momento em que Barbra, após encontrar um corpo morto, está deixando o local. Os segundos de hesitação em que Barbra desnorteada pelos acontecimentos e pelo farol do carro de Ben tenta decidir se esse homem negro é uma ameaça maior do que mortos-vivos comedores de gente compilam em poucos segundos séculos do medo paranóico branco sobre a ameaça do homem negro.

Dentro da casa com Barbra, Ben se mostra o personagem incrivelmente bem equipado para sobreviver ao apocalipse dos mortos-vivos: ele analisa o local e com habilidade (e pouca ajuda de Barbra) constrói um forte de sobrevivência com janelas e portas reforçadas, uma arma, comida separada, rádio ligado para informações e etc. Após todo o trabalho feito, os dois descobrem que existem mais pessoas refugiadas no porão da casa: o casal Harry e Hellen e a filha deles gravemente ferida Karen; e o jovem casal Tom e Judy. Todos reunidos, inicia-se uma disputa de poder entre Ben e Harry sobre quais seriam os melhores procedimentos do grupo para a sobrevivência: permanecer na casa, refugiar-se ainda mais no porão, usar a caminhonete para buscar ajuda… Entre Ben e Harry há uma desconfiança imediata e crescente. Se Ben era o herói bem preparado para sobreviver a ameaça externa dos mortos-vivos, a ameaça interna da convivência enclausurada e coletiva com um homem branco torna-se cada vez mais tensa e perigosa.

No desdobramento desta tensão, um a um os personagens morrem, e Ben permanece o único sobrevivente… até que o homem negro encontra a polícia. Aliás, mais do que forças policiais, trata-se de um agrupamento de diferentes forças da lei e voluntários (algo mais próximo de uma milícia). Anteriormente no filme, uma reportagem de televisão assistida pelos personagens mostra o funcionamento do grupo de homens brancos fortemente armado e decidido a matar todos os mortos-vivos. Há na entrevista do xerife que comanda a operação um gozo explícito na execução dos seres: as instruções saem de forma simples sobre atirar na cabeça ou colocar fogo nas criaturas. Em relação a um EUA pós-Trump, imageticamente a horda de homens brancos organizados e armados nos remetem às cenas dos protestos da extrema direita em Charlottesville, Virgínia, em 2017.

As sequências finais de A noite dos mortos-vivos segue um ponto de reconfiguração do filme. Isso acontece menos pelo desenrolar narrativo: é de se esperar que o homem negro armado tenha mais chance de sobreviver ao apocalipse zumbi do que a uma batida policial; mas mais pela forma precisa e seca pela qual Romero executa a sequência. Enquanto cautelosamente Ben se aproxima da janela com a arma vigilante, do lado de fora a força tarefa policial varre a área de forma violenta e automatizada. Ao avistarem algo que se move dentro da casa (sendo Ben o “algo”), a ordem vem imediata, direta, sem hesitação: atire na cabeça. A montagem acompanha a velocidade da bala e já estamos dentro da casa com um tiro que acerta Ben em cheio e o derruba instantaneamente. Um susto. Na primeira sessão do filme durante o 7° Olhar de Cinema, esse susto veio do público como um grito coletivo de riso nervoso. No filme de Barbara Maria vemos a recepção dos estudantes negros ao momento: bocas que se abrem e continuam abertas incredulamente, braços que se cruzam em recusa/proteção.

Com a morte de Ben o filme também se paralisa, congela-se. A aproximação do cadáver do homem negro, o seu carregamento e o seu destino final empilhado com os mortos-vivos para a incineração são vistos por fotogramas congelados como fotografias. O movimento da câmera se aproxima e se afasta enquadrando e focando a ação e o seu desenrolar: o cadáver negro inerte e carregado, os homens brancos e suas garras e tochas. Reconstitui-se uma iconografia que remete aos primeiros registros imagéticos dos linchamentos de pessoas negras e atualiza-se permanentemente ao longo destes 50 anos a cada imagem midiática de um corpo negro assassinado e descartado na pilha não-humana dos mortos-vivos.

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