TRANSCENDÊNCIA MARTIRIZADA – O místico no Cinema de Jean-Claude Brisseau

Por Diogo Serafim

 

Através desse princípio, o primeiro supra-sensível, o reino tranqüilo das leis, a cópia imediata do mundo percebido, transmuda-se em seu contrário. A lei era em geral o-que-permanece-igual consigo, assim como suas diferenças. Agora o que é posto, é que lei e diferenças são, ambas, o contrário delas mesmas: o igual a si, antes se repele de si; e o desigual a si, antes se põe como igual a si. De fato, só com essa determinação a diferença é interior, ou diferença em-si-mesma, enquanto o igual é desigual a si, e o desigual é igual a si.

A Fenomenologia do Espírito, de Georg Wilhelm Friederich Hegel

 

    Em dado momento do filme A Garota de Lugar Nenhum (2012), Michel, personagem vivido pelo próprio Brisseau, afirma que uma ponta de cigarro encontrada em sua varanda se moveu espontaneamente do local onde se encontrava. Argumenta que o vento não pode ter sido o culpado, afinal as nuvens se movimentavam para o lado contrário do trajeto percorrido pelo cigarro, além de que as pétalas de flor, que se encontravam ao lado da cuxia, permaneceram inertes, imperturbadas mesmo com o movimento do companheiro. Dora, graciosamente interpretada por Virginie Legeay, afirma que então deve ter sido obra do diabo. Mas em seguida indaga a pergunta essencial: por que o diabo se importaria em mexer uma cuxia de lugar?

Brisseau é um cineasta fundamentalmente materialista. Aborda a matéria através de uma tautologia investigativa que se estrutura em uma busca incessante pela graça, toda essa matéria sendo lapidada em uma reiteração progressiva de uma dureza naturalista, até chegar em um ponto de inflexão no qual conclui que tudo é Graça. Esse oximoro elementar é a força motriz processual de uma injunção que rege toda a sua obra: o paroxismo elucidando os predicamentos do transcendental. Como afirmado no seu filme À Aventura (2008), para o francês a matéria é composta majoritariamente de vazio. O que importa é o que se esconde entre a matéria visível, esse vazio apenas acessível quando atentamente observado: a proposta de Brisseau é tentar filmar exatamente essa lacuna.

O milagre é que tudo é lógico, menos o essencial. Alcançar o basilar, o invisível, esse ponto de quebra, no qual a transdução do material ao imaterial finalmente se fundamenta, é a grande questão. Transcender o espectro pelo tangível. Em Brisseau temos sempre o orgasmo como uma possibilidade rumo ao absoluto e um jogo de poder para orientar essa transcendência numa lógica mais próxima da fisicalidade. Brisseau é um materialista que, como Rossellini, retira da matéria a potência do místico. Há algo mais transcendental do que os procedimentos utilizados por Brisseau para filmar o corpo feminino? Pensemos em Mathilde em Boda Branca (1989), ou Élodie em Os Indigentes do Bom Deus (2000). São corpos de uma luminosidade e expressividade que vão além do simples apelo luxurioso, suplantam o desejo carnal pela realização espiritual, em um ideal próximo do perfeito. O feminino em Brisseau nunca é exatamente alcançável: talvez dentro da diegese, na narrativa, este se apresente como efetivamente tangível, mas ele sempre está como em um pedestal, imaculado, para além do visível.

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Boda Branca – Jean-Claude Brisseau (1989)

Contudo, não se deve cometer o recorrente erro de que a teleologia absoluta dos filmes de Brisseau se encontra no papel feminino como uma musa, ou até mesmo que a nudez ou o orgasmo são o ponto final da sua investigação. O desejo é sempre um ponto intermediário que se dirige a um campo hermenêutico mais amplo, o feminino é uma ferramenta para atingir o absoluto. A teleologia do holismo: Brisseau busca a ideia de Deus, as estrelas, o vazio, a graça, a redenção.

Em Coisas Secretas (2002) temos um filme no qual uma dupla de jovens mulheres busca ascensão social usando como instrumentos seus corpos e suas capacidades de sedução, como uma espécie de Rastignac e Sorel erotizados. Acompanhamos as duas ingressando em um jogo sexual, político e social que desenvolve a narrativa do filme, que não se estrutura apenas nesse viés estruturalista, mas também em uma dimensão existencial e formal. Como o próprio Brisseau indica, o filme é algo como um Psicose (1960) erótico, um suspense sexual, no qual as duas moças podem a qualquer momento iniciar uma brincadeira erótica, o cotidiano é erotizado de forma que o sexo se torna algo não apenas banalizado, mas plenamente natural, que floresce espontaneamente na rotina, podendo surgir a qualquer instante.

Em breve a dimensão existencial vai se desdobrando também na figura de Christophe, herdeiro de uma empresa que busca incessantemente o gozo sem limites, personagem por qual uma das jovens se apaixona, mas é logo abandonada. Enquanto sua colega Sandrine se casa com o empresário e completa sua caminhada na ascensão social, Nathalie cai em desespero e toma decisões drásticas. No fim, quando as duas se encontram após o espetacular clímax do filme, resta apenas um vazio desolador frente a impossibilidade do prazer absoluto. Uma desilusão existencial pelos limites do sexo.

Coisas Secretas (2002) forma, juntamente com Os Anjos Exterminadores (2006) e À Aventura (2008), uma trilogia dessa busca pelo prazer como sublimação do físico. É daí que o papel do erótico se torna tão precioso para Brisseau: mais que buscar o seu valor perverso ou tentador, Brisseau examina seu papel social e existencial.

Compreender essa busca pelo absoluto, o papel do místico nos seus filmes, é essencial para se compreender Brisseau. Mesmo A Vida Como Ela É (1978), um filme que a priori não apresenta o flerte entre um naturalismo rigoroso e o místico como os futuros trabalhos do diretor, já se percebe um fluxo de eventos que beiram o onírico com todo o sensacionalismo exacerbado dos eventos e a pungência narrativa crua proposta. Pensemos também em François no fim de Boda Branca (1989), quando vai de encontro ao oceano e a presença de Mathilde se faz mais presente que nunca, cena que não necessita da fisicalidade desta para se concretizar – algo que boa parte dos materialistas buscam e raramente alcançam: o invisível como matéria.

Brisseau não é de forma alguma um cineasta sistemático, teórico, e sim um no qual seus ímpetos se desenvolvem sob um viés mais espontâneo: ele mostra aquilo que é capaz de mostrar, aquilo que conhece. Seu cinema parte da pedagogia do físico para chegar no conflito que o asceta enfrenta na matéria. Em uma abordagem essencialmente heraclitiana, deste conflito encontramos a harmonia plena, naturalmente não podendo ser descrita por discurso, afinal apresenta um paradoxo fundamental quando descrita por linguagem. Só pode ter seus predicados elucidados logicamente quando calcados no sensível.

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A Garota de Lugar Nenhum – Jean-Claude Brisseau (2012)

O místico como fenomenologia, de competência empírica, como no filme Um Jogo Brutal (1983) quando a mãe de Christian percebe o quão belo é abrir os olhos no local onde se encontra. Se a vida e a morte são apenas situações particulares, o que desestabiliza essas situações é o potencial imaginativo que as permitem serem absorvidas ou transcendidas. Como o serviçal da casa que, quando inquirido por Isabelle o sentido de viver quando se é prisioneiro do próprio corpo, responde que todos têm o seu próprio destino, e se esse destino a fez nascer daquela forma, era para deixa-la mais próxima do que realmente importa. E se Isabelle vai constantemente sofrendo com subsequentes desilusões, essa dor vem sempre aliada a uma noção de educação sentimental, seu espírito sendo elevado com o martírio da experiência (exemplificado nas duas cenas geniais onde a jovem lê o poema de Prévert e o de Baudelaire).

Assim como Isabelle, Christian nasceu preso a uma condição inexorável a ele, mas distintamente da filha, sua prisão não era física, e sim psicológica: a recusa do Dasein pelo holismo do eu, uma empáfia proveniente da concepção da figura divina providenciando importância ao seu destino, aliado a uma espécie de ceticismo desromantizado, ao mesmo tempo que vê a mãe morta como uma pedra, desprovida de valor, também percebe na natureza um perfeito equilíbrio, crê no seu destino definido pela padronização arbitrária e no isolamento existencial. Enquanto ele se refugia no Eu, Isabelle se refugia na natureza – ambos possuindo como ontologia fundamental a dor, o sofrimento. Mais do que um díptico: a cena final na qual o espírito de Christian alça a mão para alcançá-la nos induz a crer que, na realidade, o absolutismo agressivo do pai e a transcendência pelo deslumbre da filha acabam se encontrando em um plano mais associativo que dissociativo. Para os filhos em que a violência floresce como um pretexto existencial, a solução é machucar o outro ou alienar-se na enganosa harmonia natural. Mas se no fim é Isabelle que é capaz, através de suas preces, de providenciar um lampejo de luz dura na narrativa, isso é devido à empatia nela induzida através da dor. Eu amo pois eu sofro, a dor me aproxima do Outro, uma concepção fundamentalmente cristã que alcança uma sofisticação singular na figura de Isabelle. Um filme absolutamente brutal, como o título indica.

Esse contato com a natureza, essa ambientação cósmica como panaceia para a redenção, essa reconciliação com o mundo, é muito presente na obra de Brisseau: além de Isabelle, temos também Nathalie na cena final de Sombras (1982) e principalmente Céline, em Céline (1992), um dos mais belos filmes da história do cinema, no qual essa reconciliação se dá por um viés litúrgico, panteísta de harmonia. Se a jovem Céline estava prestes a se suicidar após a tragédia com o pai e a perda do amante, é com a figura de Geneviève que reencontra seu lugar no mundo, a meditação sendo a chave para perceber que tudo é harmonia. Ao confrontar sua imagem com a de uma pessoa que passou por um trauma semelhante, Céline é capaz de começar seu processo de elevação espiritual.

Existe em Céline uma espécie de sublimação do corpo para o espírito através do yoga e da meditação, atividades que são essencialmente corporais, mas que apresentam uma sutil transdução estrutural para o campo do espírito, no sentido que ali temos o espírito curando o corpo para em seguida termos o visível como cura, com o espírito de Céline tornando-se aparência para Geneviève, salvando assim sua vida também. Como Camille Nevers indica, essa dialética, entre Geneviève e Céline, chega na conclusão de que além de uma vida após a morte também há uma morte após a morte. Como aponta Bazin, essa fixação do imaterial no visível, essa manutenção do espírito pelo tangível, é salvar o ser pela aparência. Céline é, acima de tudo, uma história de amor. Do meu encontro ao rosto dela para o infinito. É como encontrar o mundo dentro de si mesmo.

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Céline – Jean-Claude Brisseau (1992)

Já no filme Os Indigentes do Bom Deus (2000), filme essencial na obra de Brisseau, temos uma recusa dessa busca pelo infinito, uma tentativa mais ingênua de seguir em frente apesar de toda a injustiça que nos circunda. A revolta de Fred com a perda de Élodie traz à luz uma revolta mais fundamental deste com a conjuntura em que se encontra, revolta que é bem exemplificada no roubo do banco e na subsequente redistribuição dos bens adquiridos aos transeuntes e vizinhos de Fred. Não é à toa também que Élodie é logo associada à ideia de riqueza com o seu novo namorado milionário.

Os jovens, chamados jocosamente de Indigentes do Bom Deus por Maguette (que também constantemente aponta o quão pouco estes compreendem da vida), são representados assim como são: inocentes, alienados. Eventualmente o filme aparenta chegar na conclusão de que essa alienação, quando aliada à generosidade, pode servir como uma estabilização para o jovem, sendo a aceitação do absoluto algo muito duro para o inocente. Fred encontra Sandrine e ela o faz reencontrar a beleza na vida, na natureza, no vento, na linguagem, sobretudo no sol. Mas basta um lapso da imagem de Élodie para tudo voltar ao que realmente é: o desvario, o desalento, uma perna quebrada. Se Fred consegue seguir em frente, é pela segurança material que lhe foi permitida e o alívio que Sandrine trouxe para a sua vida. A fugacidade do prazer, ater-se ao pragmático, simplificar o que vê. Até que a imagem de Élodie se confunda com a de Sandrine e a vida possa seguir.

A busca de Brisseau não deixa de ser uma busca pelo simples, simplificar o que vê para assim ser capaz de curar. Encontrar no rosto do Outro a imagem do infinito. Em O Som e a Fúria (1988), filme no qual a diegese sonora é trabalhada como ferramenta propriamente narrativa (não é à toa que no clímax do filme escutamos com tanta clareza os sons da fogueira, os tiros, os passos), quando Bruno se suicida com a vontade de reencontrar a avó e o pássaro Superman, isso indica a crença e a fé como escapismo de uma realidade, rumo às estrelas, com a esperança de um futuro melhor, o suicídio como gesto de redenção. Quando o avô de Jean-Roger morre e diz que vive no outro e o outro nele, que todos são irmãos, essa dimensão mística de fraternidade próxima do Dasein heideggeriano se consolida mais uma vez como discurso.

Se é pelo martírio que se chega ao infinito, se é da tormenta que se encontra o absoluto, do devir hegeliano que o paradoxo do ser e não ser se harmonizam, não havia como se alcançar uma conclusão diferente: só através do amor que se pode obter qualquer tipo de alívio. Este permitindo a perenidade da dor, não superando, e sim justificando toda a violência e toda a irracionalidade, a reparação da rasgadura pelo rompimento completo desta. É martirizando meu encontro com a face do Outro que posso me aniquilar integralmente e assim finalmente pertencer. O amor puro, absoluto, integral: quando o rosto dela me aproxima da ideia de morte, a única transcendência efetiva que essa existência permite.

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Os Indigentes do Bom Deus – Jean-Claude Brisseau (2000)

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