Meu nome é Daniel (Daniel Gonçalves, 2018) e Travessia (Safira Moreira, 2017)

meu nome é daniel

Por Kênia Freitas

Filme de encerramento do Olhar de Cinema de 2018, Meu nome é Daniel de Daniel Gonçalves coloca em evidência a auto-representação no processo de produção cinematográfica. O documentário em primeira pessoa parte da vivência do diretor como uma pessoa com deficiência física, propondo uma perspectiva subjetiva desta vivência não limitada à doença – mas a múltiplas camadas desta existência. E o dispositivo narrativo utilizado para isso é o do documentário de busca, a procura por um diagnóstico da origem da deficiência.

Há porém em torno dessa busca dois filmes diferentes: o das imagens do presente produzidas para o filme, mostrando o cotidiano do diretor e a sua tentativa de obter o diagnóstico com novos exames e consultas e o das imagens amadoras da infância e da família de Daniel. O contato com esse arquivo move o filme não para a sua missão de descoberta médica, mas para o passado do diretor. O interesse desse segundo filme que se constitui pela revisita e pela montagem das imagens de arquivo é o de repensar pelo cinema às relações familiares e as experiências formativas de Daniel. Os dois regimes de imagem possuem intensidades e forças narrativas variantes: de um lado a pulsão delicada da montagem do filme de arquivo, de outro o dispositivo fílmico da busca no presente.

Ao final do filme, o diretor inicia uma discussão sobre como os privilégios de raça e classe foram fundamentais em seu percurso formativo: no acesso aos tratamentos médicos, às escolas e auxílios educacionais diversos e toda uma base estrutural de suporte. Esse privilégio também se constitui justamente no ponto de força maior do filme: no excesso de imagens familiares produzidas de forma amadora ao longo de décadas – do super-8 ao VHS, passando pelos diversos suportes de captação de imagem e som dos últimos 30 anos. O processo de rememoração e exploração de vivências formativas não se dá apenas por uma memória imaterial de Daniel e da sua família, mas por um amplo acervo de imagens que conformam, confrontam, complementam a memória imaterial na feitura do filme.

E quando estas imagens não existem? Como se constituem processos de rememoração e auto-representação histórica familiar e/ou individual no cinema na ausência desta materialidade imagética? Neste aspecto Meu nome é Daniel compõe uma relação de campo/contracampo com o curta-metragem Travessia, de Safira Moreira (exibido na mostra Pequenos Olhares). Contraposição que só faz sentido se pensarmos os variados processos de construção de auto-representação fílmica a partir da ideia de interseccionalidade que atravessa as identidades múltiplas e sobrepostas em co-relações de poder também nas imagens (ou nas ausências destas).

No início do Travessia somos confrontados com a fotografia em preto e branco de uma mulher negra segurando uma criança branca e a sua legenda: “Tarcisinho e sua babá. Dias D’Ávila, 15-11-63”. A partir desta foto o filme nos questiona sobre a quase completa ausência de imagens das famílias negras em um passado próximo – e a presença negra dessubjetivada (a babá sem nome) em fotografias como a que abre o filme.

Na perspectiva negra apresentada por Travessia não há arquivo familiar afetivo material a ser revisitado. O questionamento coletivo e geracional começa por confrontar e decupar uma imagem que não basta. Diante da ausência desta materialidade histórica da imagem da família negra, o filme assume que é preciso encenar novos acervos de imagens, uma encenação propositadamente anti-naturalista. O tempo esticado da pose e o de encarar a câmera das famílias negras contrapõem o incomensurável tempo de ausências. Neste caso, não se trata de articular dois regimes de filmes: o arquivo e o filme de busca; mas de um único regime a partir do que é possível: o de invenção de um arquivo de futuras imagens.

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