GREEN SNAKE: Fé e demolição

Por João Pedro Faro

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Das poucas definições possíveis para Green Snake (1993), a que João Bénard da Costa escreve para Narciso Negro (1947) parece a mais coerente: “Para amar Black Narcissus é preciso uma boa dose de infantilismo (…) É preciso amar o gratuito, o excessivo, o maravilhoso, os filmes de terror, os filmes fantásticos e os filmes de aventura (…) Digamos simplesmente que Black Narcissus é um filme fantástico e erótico.” Da perversão religiosa às limitações da castidade, tudo caminha para desfechos brutais em Green Snake. Nessa progressão encontra-se não só todo esse “cinema do excessivo” (em tudo que está enraizado de horror, mistério e ação em qualquer imagem que Tsui Hark cria) mas, principalmente, no que lhe é mais custoso: os limites e as interseções entre o etéreo e o explosivo. Hark emerge no Wuxia as recorrências temáticas do gênero (a magia, as feiticeiras, os templos, as vinganças divinas) para tornar tudo que é místico, invisível e infilmável em uma experiência terrena consequentemente destrutível.

O fantástico e o erótico

A narrativa lendária, sobre duas irmãs feiticeiras cobras disfarçadas de humanas e suas complicações com um monge guerreiro, flutua sobre interesses cinematográficos muito mais sensoriais. Hark lembra que a maior qualidade de uma obra fantástica é deixar fantasiar-se, fazer com que a riqueza de seu cinema se dê unicamente pelo misterioso. Partir do princípio da fé, de uma compreensão incompleta, mas de um encantamento perfeito. O misticismo fílmico de Green Snake instaura-se como uma verdadeira reza, desde a canção de abertura até a iluminação fabulosa. Assim, esses fatores podem ser devidamente subvertidos e transformados em uma presença hostil. Aos poucos, tudo no filme se mostra potencialmente catastrófico, não apenas em sua narrativa mas essencialmente em sua forma.

A montagem de Green Snake sempre parece tender à uma progressão conflituosa, que prioriza uma movimentação ágil engrandecedora tanto de uma sensibilidade quanto de uma hostilidade. Como se todo raccord fosse parte de uma conjuração mística, de um golpe mortal ou dos dois ao mesmo tempo. Se o cinema sensorial é sempre atribuído à uma espécie de meditação, Green Snake transforma essa ideia mostrando que as sensações mais violentas e intensas também fazem parte desse estado de espírito. A harmonia encontra a batalha, pois nesse universo elas não só coexistem como são essenciais para a existência uma da outra. É da concentração, da paz interior, que o monge busca reconhecer o maligno e invocar a força para derrotá-lo.

Justamente no personagem do monge (Vincent Zhao) que se configura muito da essência de Green Snake, o que torna muito de sua visão de mundo definidora na narrativa. Nele, quebra-se a ideia de que a fé é um fator unicamente benevolente. Pelo contrário, pode ser o fator de perseguições obcecadas, do clamor agressivo por uma justiça absolutamente torta. É primordial para o filme que uma figura definida por sua áurea religiosa e estritamente conservadora se torne moralmente ambígua, na maioria das vezes questionável. Para Hark e as raízes libertárias que moldam todo seu cinema, de Dangerous Encounters of the First Kind (1980) à Alvo Duplo 3 (1989), a autoridade é sempre um instrumento de opressão dotada de um maniqueísmo simplório. Os religiosos que perseguem as irmãs feiticeiras, acusando-as de serem demônios, são sempre os agentes do ridículo. Como a irmã Green (Maggie Cheung) aponta em um dos confrontos: “Taoístas idiotas, mal sabem a diferença entre o bem e o mal”. No cerne da obra, a inconstância dos espaços e dos personagens também se aplica aos aspectos mais básicos de vilania e heroísmo. Como a tendência é a de que tudo seja pervertido, essa diferenciação entre o bem e o mal se prova cada vez mais equivocada.

GREEN SNAKE

Além da religiosidade, de aspectos sensoriais que evocam a violência, tudo que entende-se por sexual ou apaixonado também faz parte dessa transição para o destrutível: A irmã White (Joey Wong) que se apaixona pelo humano comum (Husi Xien), quebrando toda a lógica de espaço e iluminação de seu entorno quando está junto com ele. Green, que após uma crescente inveja de sua irmã, seduz o monge, testando os limites de seu voto de castidade e gerando toda uma libertação brutal que o monge precisa conter (basicamente todo o conflito do ato final é gerado porque o monge se excita quando se relaciona com Green, criando nele uma ira que precisa expurgar da terra esse elemento desestabilizador). O toque, o ato de sentir o outro e a delicadeza de suas intenções confundindo-se com o que é pecaminoso e condenável. Uma relação constante que o monge faz entre tudo que é “do homem” ser destrutivo, por mais que todo seu divino destrua muito mais do que o humano. E a ingenuidade em tentar decifrar tudo que seria parte desse “humano” em Green (um dos grandes momentos do filme, quando pede ao amante de sua irmã para ensiná-la “o que é desejo”). E ainda no próprio relacionamento entre o casal de irmãs, a relação entre elas é constantemente abalada por necessidades mundanas que encontram em sua nova vida. Como se relacionam os seres sobrenaturais? Como isso pode ser quebrado e deturpado pelo convívio com os homens? O espaço que habitam com seus novos corpos ajuda a deixar ainda mais tênue o limite entre o humano e o não-humano, ocorrendo uma quebra do comum em ambas as partes.

A noção de que qualquer gesto pode ir contra o sagrado ajuda a integrar a fantasia de Green Snake em um exercício de limitações mesmo dentro de uma obra tão formalmente livre. As cenas de sexo onde a câmera voa e transita entre as locações, como se num estado de elevação, ainda vão gerar consequências demolidoras, onde essas mesmas locações serão colocadas abaixo e esses personagens passarão do erotismo para guerra. As mais serenas sensações carregam o peso consequente das mais intensas tragédias.

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Dom divino e maldição

Green Snake é de uma potência tão única que consegue trazer para si em toda sua conjuntura uma das questões mais primordiais que existem: como separar a sensibilidade com o sobrenatural entre maldição e dom divino? Esse fantástico que se espalha em todos os enquadramentos, que está em qualquer imposição formal e narrativa, traz aos seus personagens a sofisticação espiritual ou a danação pelos pecados? Hark se interessa, a todo momento, por essas perguntas (como trazido anteriormente, as perguntas são sempre mais importantes para a fantasia do que as respostas). O questionamento conflitante entre os protagonistas envolvidos numa grande corrupção de seus arquétipos é centrado nessa separação entre o místico “puro” e o que de alguma forma está envolto pelo mal (“Você diz que há amor nos humanos. Não poderia haver amor no mal também? Estamos juntas há 500 anos, deve haver amor entre nós também”, aponta uma irmã feiticeira para a outra). E na complexidade de tantas abstrações, Hark oferece aos seus personagens apenas o que está concretizado desses questionamentos (“Vamos ascender aos céus, para que os Deuses sejam nossos juízes”). No plano terreno, a presença fantástica jamais poderá ser julgada.

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No confronto final, a fé já se tornou integralmente um caminho para a batalha. Dentre sacrifícios, Green e o monge são os únicos sobreviventes dentre os quatro personagens centrais. Nesse momento, retoma-se aos poucos o ideal de harmonia: os dois inimigos se reconhecem um no outro, pela tragédia e pelo pecado em comum. Mais uma vez, a ideia religiosa maniqueísta dá lugar à ambiguidade das sensações, das motivações e do espírito. A fé agora passa a guiar Green e o monge para os questionamentos. Sobre as ruínas de um templo budista absolutamente destruído (existe concretização imagética mais poderosa?), ambos percebem a grandiosidade do irresoluto e do fantástico. Na despedida entre os personagens, permanece uma efemeridade que Hark evoca nos conjuntos mais primorosos desde o princípio da obra. Para um filme que abre com uma marreta esculpindo uma pedra e se encerra com uma gota de água caindo, é seguro dizer que em seu desenvolvimento o bruto e o sensível encontraram um plano relacionável.

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