DESESPERO LOLLIPOP: Desmistificando a imagem em Like Me

Por Pedro Tavares

Sonhei que estava assistindo a um filme e ele me envelhecia. O próprio filme me infectava, me adoecia, que era a essência desta velhice. Então a tela virava um espelho e eu me via envelhecer. Eu acordei aterrorizado. É disso que eu falo, é mais forte que qualquer vírus. – David Cronenberg em “Cronenberg on Cronenberg”, 1992.

Um filme sobre efeitos. Essa é a essência de Like Me, debut diretorial de Robert Mockler e projeto de longos anos até o mesmo sair do papel. Usar os dispositivos modernos como chancela do horror é uma saída que poucos filmes usam, como Unfriended de Levan Gabriadze, horror todo passado no Skype, e o thriller Proxy Reverso de Roberto Wrinter, que se passa todo no desktop de um técnico de informática. O que difere Like Me de filmes como esses citados é a ruptura entre o meio e a imagem. Há a nítida preocupação de manter-se como narrativa e inflá-la com aspectos visuais que hoje fazem parte da rotina de quem está preso a celulares, tablets e afins. São proto-interlúdios dentro de uma violenta saga através de egos inflamados à procura de aprovação na internet. Glitches, vídeo-arte, efeitos de VHS e tutoriais do YouTube: um mundo sobre o valor da imagem ironicamente feito com deleite visual. O contraponto necessário para este mundo puído das redes sociais.

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O mundo colorido mezzo-infantil e mezzo-aterrorizante mantém a fé na corrida das barras de rolagem e cliques. Os vídeos de Kiya, que sempre está atrás da câmera de seu celular, fazem da escória as grandes estrelas. Nesse processo, a violência é o que permeia essa suposta grandiosidade e generosidade da protagonista. Uma bastarda ainda maior que as vítimas que encontra pelo caminho, pronta para confeccionar suas arenas de luta com cores, luzes e adereços. O mundo colorido de Kiya é pura alienação – o espelho citado por Cronenberg na abertura desse texto cabe aqui.

Like Me é, substancialmente, um filme sobre como as imagens distorcem nossas personalidades. Como a ilusão de curtidas e compartilhamentos eleva, aliena e adormece a alma de YouTubers, Instagrammers e afins. Um Videodrome dos tempos atuais. É preciso dizer que Mockler não está interessado em pistas, tampouco num discurso sobre como a internet é nociva ao homem ou algo do tipo. Este discurso está moldado e impregnado em qualquer lugar que se olhe neste filme, ainda que nunca esteja em primeiro plano. Uma farsa bem funcional e interessante sobre como a imagem exige concessões ante a palavra.

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À priori, Like Me é um slasher de aura lisérgica, uma brincadeira sobre a infantilidade nas atitudes de sua protagonista, mas toma perspectivas diversas conforme esses “assassinatos” acontecem. Esse diálogo entre cores e trama remete ao fetichismo de momentos da carreira de Dario Argento (Suspiria a destacar) e David Cronenberg. Ainda que tudo em Like Me esteja em função da modernidade, Mockler usa a mesma frontalidade visual que diretores da década de 70 e 80 fizeram e distante de retrocessos; é a forma mais pungente de usar referências como síntese de todo filme. Fora o que o próprio Cronenberg chama de “critério da realidade”, referindo-se ao corpo humano, sua efemeridade e caminho de compreensão do real (e assim criando elos entre Naked Lunch, Videodrome e Gêmeos: Mórbida Semelhança), que Mockler deposita em Kiya como reação aos mesmos estímulos.

O que Jean Epstein chamava de “estética de sucessão”, como um atropelo de detalhes em um filme, Like Me arrisca como atualização da fusão imagem-palavra, onde existe a necessidade da imagem se sobrepor à narrativa. Na confiança de que ela será suficiente para que o filme tenha suas justificativas suficientes. E tem. É, mesmo, um filme de sucessões imediatas. Que corre contra o tempo, tão urgente quanto seus personagens que não querem perder uma informação vinda de seus aparelhos; que elimina maiores detalhes para se aproximar de um choque estritamente estético (vide still acima) e que extrai um bom resultado nesta sugestão.

A possibilidade de a câmera descortinar a perspectiva dos sonhos fantásticos citado por Hugo Münsterberg não afeta somente a Cronenberg; ao filme de Mockler, ele é puro elemento. Um bloco racional sobre quão onírico Like Me é. Ou melhor, um pesadelo vestido de sonho, mais um exemplar de fluxo de consciência amplificado por cortes, fusões e glitches; como se a tal world wide web fosse um trem desgovernado e que a melhor forma de conversar com os passageiros é pela mistificação, ou seja, pela imagem.

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Se Like Me também é um filme sobre maneiras de expressão, vide o uso de câmeras VHS, o próprio dispositivo a filmar (uma câmera HD) e o celular – a câmera da protagonista – o lado inverossímil ganha forças. É o encontro de épocas a favor do gênero, não só pelas referências a Argento, Cronenberg, Terry Gilliam, etc. Nossos superegos possuem censuras e elas tomam forma de vilania, como se até em tempos de desmoralização houvesse a pausa do niilismo para saber onde se pisa. Portanto, é um filme que te leva ao extremo e te joga para que sinta a pausa depois de tanta velocidade como um recuo necessário. Talvez seja esse o único senão do filme de Mockler. Como Mark Neveldine e Brian Taylor, Robert Mockler usou do artifício e da possibilidade de compreensão pelo caos, porém escolhe o respiro como momento de recognição entre personagens e público.

Deixa de ser um filme cronometrado para fazer algumas considerações que a essa altura já não importam mais. Se confundir com o cinema e a modernidade é o bastante para Like Me e nisso é um filme muito forte; recorrer a respiros e ao drama, superficialmente, é colocar em cheque todo o resto.

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Como êxito, logo Like Me desemboca num desfecho cínico e violento; de perturbação bem próxima a de Funny Games de Michael Haneke. Encaixa-se então o hiper-realismo de um mundo cruel com todo artifício do filme que invariavelmente questiona a suspensão da vida regida por aparatos tecnológicos. Mockler dirige à função representacional a cada instante e o embalando a diversos motivos, destacando a pura e simples necessidade de ilusão. E se hoje vivemos entre o delírio e a utopia, eis um filme necessário, incluindo sua transparência para quem e sobre quem é o filme, com proporções que resvalam em toda sociedade, que passa por mutação silenciosa, enquanto nos condicionamos a ter extensões artificiais, apêndices com funções que oscilam, sendo evolucionistas e apocalípticas. Basta sabermos para qual lado seguir.

Leia mais: entrevista com Robert Mockler, diretor de Like Me

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