O Chalé é Uma Ilha Batida de Vento e Chuva (Letícia Simões, 2018)

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Por Kênia Freitas

O Chalé é Uma Ilha Batida de Vento e Chuva parte da premissa de transformar o universo literário do escritor paraense Dalcídio Jurandir em uma experiência cinematográfica. Para isso o filme utiliza como elemento de construção os registros de uma viagem a trabalho que Dalcídio fez à ilha de Marajó inspecionando escolas (cartas enviadas aos familiares, relatórios de trabalho e anotações em seu diário pessoal, etc.). Não se trata de usar o material para se fazer um documentário biográfico, ou de recorrer aos livros ficcionais do escritor para adaptar diretamente as suas histórias. O que o filme ambiciona, com a sua premissa simples, é operar uma tradução intersemiótica do universo de percepção e criação do autor paraense – não apenas as suas obras, não apenas a sua vida, mas a imbricação obra e vida como elemento de expressão artística particular.

Os registros escritos deixados por Dalcídio tornam-se então ao mesmo tempo portas de entrada geográficas e subjetivas do filme ao arquipélago de Marajó e elemento de ficcionalização da diretora, e também escritora, Letícia Simões – criando de sua escrita real retrabalhada o Dalcídio personagem do filme. O Dalcídio do filme existe apenas na dimensão da narração pelas cartas lidas em voz over. Este Dalcídio também inspeciona escolas em Marajó e escreve incessantemente a sua esposa Guiomarina sobre o seu cotidiano solitário, os problemas no trabalho, os encontros felizes com desconhecidos, a sua solidão e cansaço e as saudades que sente dela, de casa e do filho, Alfredo. O campo sonoro do filme é composto pelo trabalho de som do coletivo O Grivo e, em grande parte,  pela narração em off que mescla essas experiências reais ficcionalizadas, em um roteiro que organiza as impressões diversas da viagem até esta ser interrompida por uma tragédia familiar.

A dimensão imagética do filme é guiada também por essa fabulação dos registros escritos transformados em narração e opera um deslocamento temporal dos anos 1930 para o presente. Assim, a diretora percorre as ilhas de Marajó refazendo os percursos de barco e caminhada de Dalcídio, inspecionando escolas, hospedando-se em fazendas, percorrendo os caminhos descritos pelo autor. O filme deixa pistas nesse refazer de seu ato de criação narrativa livre: em algumas cenas é o texto que conforma as imagens; em outras, as imagens moldam o texto – em geral, não podemos saber e não importa.

Pelos registros de Dalcídio as imagens do filme começam a operar um percurso de fora para dentro, do distante para o próximo, do coletivo para o singular. Assim, aos poucos, a narrativa encontra e entrevista moradores de diversas ilhas, dando ao espectador um vislumbre cada vez mais concreto e demorado das subjetividades encontradas: os adolescentes que querem e/ou precisam ir estudar em Belém, dos professores e as suas pelejas para continuarem o trabalho, do pai que sonha com os filhos formados, etc. A vida é úmida e difícil, a vida de Dalcídio longe de casa também.

O tempo no filme apresenta uma duplicidade, ele é a marcação permanente do transcorrer cotidiano dos dias pela precisa datação das cartas e também a permanência do que pouco ou nada se altera dos anos 1930 até 2018. A sobreposição proposta pelo filme dos registros escritos de Dalcídio no passado e das gravações da diretora no presente é feita geranda muito mais sentidos de complementaridade do que de estranhamento por uma passagem temporal. A paisagem do rio tão presente marca esse lugar de uma permanência imponente, mas falsa: sem grandes agitações ou avisos o tempo transcorre sem cessar; sem avisos e na trivialidade da troca de cartas, as tragédias acontecem.

Seguindo o fluxo narrativo do filme de lenta mas constante aproximação ao universo literário de Dalcídio e as vidas em Marajó, quando essa tragédia é narrada já estamos dentro, próximos e na história singular. As palavras do escritor que nos guiaram e confortaram até o momento na vida árdua mas singela dão lugar a um necessário longo silêncio. Essa é uma bela demonstração do filme do seu entendimento da potência das palavras também quando ausentes, quando impossíveis de serem ditas. Enfim, uma demonstração da confiança na realização de sua premissa de que o espectador já está completamente dentro do universo expressivo de Dalcídio Jurandir proposto pela experiência fílmica, até quando faltam palavras.

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