DIANTE DOS MEUS OLHOS (André Felix, 2017)

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Por Kênia Freitas

Até que ponto é possível reconstituir memórias (coletivas e singulares) em imagens de cinema? Entendendo esse possível não apenas pelo caráter do realizável, mas também pela dimensão de uma potência (re)criadora da memória. É nesse universo de questionamento que nos lança o longa-metragem de estreia do diretor André Felix. O documentário aborda a trajetória da banda de rock capixaba Os Mamíferos, que existiu brevemente entre o final do anos 1960 e início dos anos 1970.

    A partir de entrevistas com os ex-integrantes do conjunto, Afonso Abreu, Marco Antonio Grijó e Mario Ruy, a rememoração de Diante dos meus olhos ancora-se no tempo presente. Seguimos os fragmentos de vida dos três personagens: a ida diária ao boteco de estimação, assistir à televisão em casa, dirigir o carro pela cidade. Baseando-se no encontro no filme com o cotidiano desses três homens de cerca de 60 anos com rotinas estabelecidas, criando situações encenadas em intensidade variadas para a câmera, a narrativa do documentário propõe uma reflexão nostálgica sobre os projetos geracionais perdidos, abandonados ou apenas passados. O passado em reconstituição não se apresenta como redentor do presente ou idealização de uma juventude que não retornará, mas já em si como um passado não realizado dos sonhos que acabaram enquanto ainda transcorriam. Esse encontro no filme constrói uma cumplicidade na forma de revisitar a trajetória da banda. Se a breve história da banda proto glam rock de contracultura que acabou em desentendimento cedo demais (antes mesmo de fazer registros da própria produção) é singular, a sensação de que “o sonho acabou” é coletiva de um retrato de geração.

    Essa proposta de memória coletiva se apresenta pela exploração espacial geográfica do filme: no presente, pela paisagem urbana da cidade de Vitória e, no passado, pela rememoração do Festival de Verão de Guarapari de 1971, o Guaparistock. Assim, a cidade atravessa a narrativa como o espaço unificador de uma juventude passada e do presente melancólico. Esse espaço urbano filmado concretiza um fluxo contínuo que não aguarda sonhos ou desavenças passadas para seguir sendo. Na ponta do passado, a briga da banda durante o Guaparistock torna-se o grande acontecimento rememorado pelos relatos distintos, ambíguos e complementares dos entrevistados. Sem reconstituir os eventos de uma forma linear ou didática, são as três perspectivas fabulantes dos personagens reais sobrepostas que interessam a narrativa do filme. E ao mesmo tempo, a própria história fracassada do festival de verão de Guarapari ressoa o destino final da banda.

    Em sua parte final, Diante do meus olhos alia ao seu percurso de (impossibilidade de) reconstituição de memória a um sentido de desintegração e dissolução das imagens na tela. Nesse momento, a paisagem da cidade dá lugar a um fundo verde de chroma key, a imagens do encontro com os personagens são substituídos por um arsenal de memes e imagens viralizadas na internet com interferências diversas de repetição, lentidão e aceleração da montagem. Tem-se ao mesmo tempo um processo de dissolução da imagem e de reconstrução da materialidade musical (a partir de uma sequência que mostra a fabricação de um disco de vinil). Nestas sequências, o documentário é invadido, contaminado, desestabilizado e ressignificado pelo campo experimental. A pergunta se desloca da possibilidade de se reconstituir memórias coletivas e singulares em imagem para a possibilidade e potencialidade do que em si é construir e sustentar uma imagem. Diante dos meus olhos desmonta e decodifica as suas imagens ressituando-as em um fluxo infinito de imagens manipuláveis e manipuladas do presente. Se, pelos dispositivos empregados no filme, memórias podem sim se reconstituir em imagens, o que o final do filme nos lembra é que a imagem em si e as construções fílmicas não nos asseguram de nada. Imagens como as memórias são fluxos que se estabilizam fugazmente para serem re-atualizadas na sequência.

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