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Protocolos (Os animais mais fofos e engraçados do mundo, Renato Sircilli, 2023)

por João Paulo Campos

O universo imaginativo de “Os animais mais fofos e engraçados do mundo” (Renato Sircilli, 2023) é o baixio das bestas. Estamos num motel barato, espaço em que o protagonista trabalha como camareiro. O mote do curta é interessante: um trabalhador, já idoso e malandro, tem um negócio paralelo que mescla empreendedorismo, loucura e fetiche. É um filme de protocolos rituais num campo limítrofe entre o prazer e o trabalho que, na história elaborada por Sircilli, se imiscuem.

O negócio clandestino é o seguinte: o empregado registra sons das transas que escuta pelos corredores e quartos desocupados do motel em que trabalha. Ele vende os áudios para um senhor, com um extra. Numa cena de sexo fetichista, o camareiro do motel descreve as cenas dos áudios enquanto masturba seu cliente. Em seguida: sexo. O problema é que existe outro protocolo envolvido em “Os animais…”, que diz respeito a padrões de comunicabilidade e agradabilidade que têm contaminado o campo do cinema contemporâneo. É um problema de atitude.

O que acabamos por estranhar nesta fita é sua falta de imaginação diante deste mundo tão maluco. O realizador não conseguiu expressar em termos espaço-temporais o barato que seu argumento nos prometeu. 

Em outras palavras, a mise en scène e a montagem linear planificam o que parecia ser um universo caótico e mais interessante do ponto de vista estilístico. É um filme que força a barra na estilização, mas lhe falta estilo. Esse sintoma atravessa as cenas do curta, desde a espacialização do motel até a cena de sexo entre os dois personagens.

Enxergamos o interior do motel, mas não o sentimos. Sua figuração se dá a partir de uma série de planos fixos em ângulos que clarificam de maneira frontal o espaço. A cena da ronda no corredor, por exemplo, nos mostra o protagonista andando com o carrinho de limpeza em direção à câmera. Apesar do movimento do personagem, a cena não se mexe – e isso tem a ver com as variações cromáticas da cena, em particular, e a fatura do curta, no fim das contas. Os ambientes são coloridos com o mesmo tom sépia que puxa uma frieza impessoal típica de certo cinema paulistano – que, obviamente, tem seus exemplos fortes. O controle dos gestos e expressões faz das presenças em cena algo protocolar e bem comportado que parece fora do lugar num espaço marcado por arroubos, segredos e farras.

Fetiche e mistério não encontram ferramentas cinematográficas capazes de os expressarem em “Os animais…”. Diante de um universo nebuloso, Sircilli optou pela clareza classicista. É como se o artista tivesse jogado as luzes de um holofote num nevoeiro. E na arte o que me pega é a névoa

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Rastros e Palavras: O Canto das Amapolas (2023, Paula Gaitán)

Por Ana Júlia Silvino

Presumindo as operações da memória como gestos de fabulação e considerando as imagens como regimes de visibilidade que constroem ficções na realidade, o filme O Canto das Amapolas (2023) dirigido por Paula Gaitán é uma espécie de ensaio sonoro e visual que trabalha as operações da memória como rearranjos de signos, imagens e sonoridades. O som de uma conversa em extracampo entre Paula e sua mãe, Dina Moscovici, é o fio condutor de uma narrativa que aposta nos ruídos semânticos – quando o falante e o ouvinte têm interpretações distintas do sentido de certas palavras – e nas vibrações como estratégias de visionamento. A dificuldade em identificar na conversa quem está falando ou a veracidade do que está sendo dito é um instrumento não para conservar uma memória, mas para criá-la a trancos e barrancos, incorporando opiniões contrárias e jogos de palavras que deslocam os temas históricos de seus lugares pré-estabelecidos.

Indo na direção contrária de uma tendência do cinema brasileiro contemporâneo em que a voz em extracampo é usada como um mapa em busca de memórias familiares, Paula não está preocupada com uma elucidação adequada pela fala ou de trabalhar uma poética através de uma voz doce e feminina que apenas comenta o que está sendo mostrado pelas imagens. Em O Canto das Amapolas, na ausência de imagens que localizem o que está sendo dito, algumas palavras acabam se lançando ao vento. A impossibilidade do diálogo torna-se, portanto, uma proposição que lança perguntas ao invés de respondê-las. As palavras ditas possuem uma profunda fluência, são ideias sem filtro. A montagem intuitiva das manifestações sonoras do diálogo entre Paula e sua mãe está mais preocupada em mostrar o que está sendo dito, do que em sugerir um deslocamento poético ao espectador.

Gaitán se desobriga do compromisso de reprodução do real e da busca pela verossimilhança e causalidade para lançar-se à experimentação como ferramenta para engendrar movimento em tempo e espaço e produzir vestígios que se desdobram para além dos limites da tela do cinema. Ao escolher narrar pelas ausências e lacunas que são intrínsecas à própria noção de memória, Gaitán se dedica ao trabalho artesanal de prolongar a vida de sua mãe através do cinema e de reinventar a si mesma enquanto cineasta (ou como a filha que faz filmes), evocando essas duas corporeidades femininas e as confrontando ao mesmo tempo. Paula se filma em um espelho com a câmera na mão, escolhe inserir-se, corpo e voz, naquele universo como personagem da ficção de sua mãe. As imagens e cenas construídas por Paula Gaitán e Rodrigo Levy parecem traçar rastros nessas lacunas. São como tremores oníricos que se deslocam pelo – e através – do inconsciente da artista.

A cena de um cômodo com as janelas abertas e o vento pairando entre as cortinas é um momento que me remete à janela em Ostinato (Paula Gaitán, 2021), em que no espaço onde Arrigo Barnabé cria suas composições há uma janela com um livro posicionado no parapeito. O vento movimenta as páginas do livro e captura o olhar da espectadora. Em ambos os filmes, as janelas são frequentemente revisitadas pela montagem e operam como uma espécie de véu. Em Ostinato, a janela, ao mesmo tempo em que conecta o músico com o mundo exterior, também o distancia. Delimita o território. No O Canto das Amapolas, a janela é usada tanto para estabelecer um limite entre o espaço público e privado, quanto para suscitar a imaginação. À medida que o vento promove movimento dentro daquele espaço, somos convidadas como espectadoras a imaginar o que existe para além daquela janela. Imaginar Berlim para, só assim, conseguir reimaginar Paula ou Dina. Dar lugar e endereço aos fantasmas da memória que circulam pelo ar.

As mulheres que manifestam-se no filme podem, à primeira vista, parecerem deslocadas do primeiro fio condutor narrativo (o campo de batalha que é o diálogo entre Paula e Dina), mas são uma tentativa de dar corpo ao imaginário, construir uma fantasmagoria que se sobressaia à palavra e se mostre na carne. Esses corpos perambulam pelos espaços e suas posições oscilam entre a identificação e o estranhamento. São fragmentos inconclusos, assim como os discursos entoados pela voz. Não indicam nenhuma direção, apenas nos convidam a observar. Pela experiência e pela fruição de visionamento fica a certeza de que o que vimos é uma ficção ativa e fragmentada, sem o compromisso de se fidelizar ao regime representativo. O filme joga com as concordâncias e discordâncias das imagens e sons disponíveis para fabular sobre uma memória que permanece viva, se desdobrando em cada imagem, música, ruído e silêncio escolhido pela realizadora.

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Só os lokos sabem: a noturna de Belo Horizonte (As linhas da minha mão, João Dumans, 2023)

Por João Campos

Comecei a caminhar no universo do cinema buscando formas de sentir o mundo para além da crise e da morte iminente – superar o inferno pela arte parecia meu desejo. No desespero de viver em ruínas, acabei vendo filmes demais e me tornei crítico de cinema desse jeito: emocionado, desesperado, apaixonado. Digo isso para contar que nessas trilhas jamais encontrei obra brasileira que encontre o sofrimento psíquico com tamanho cuidado e amor – talvez com exceção de Imagens do inconsciente (Leon Hirszman, 1988) – como As linhas da minha mão (2023), documentário de João Dumans vencedor da Mostra Aurora do Festival de Tiradentes deste ano. 

O filme de Dumans elabora um retrato de uma artista da performance de Belo Horizonte chamada Viviane de Cassia Ferreira, Vivi, ou Viva. Além de performer, roteirista e “estrela de cinema”, Viviane tem uma experiência no mundo marcada pelo sofrimento psíquico – algo que ainda é um tabu, apesar de fazer parte da vida de cada vez mais pessoas. Mulher cuja câmera de Dumans, que assina também a fotografia do doc, persiste em seguir em uma série de encontros. O filme é estruturado em sete sequências ou atos, cada qual aparentemente autônomo em relação ao outro.

Mas a montagem de Luiz Pretti constrói a argamassa que junta de forma orgânica os blocos de experiência produzidos pela máquina, fazendo do retrato algo mais próximo de uma colcha de retalhos. Tudo se passa como se Dumans, Viva e seus companheiros e companheiras de trabalho estivessem trabalhando num espaço limítrofe entre o plano e o descontrole – as intenções e o caos. 

E isso se dá nas escolhas formais da obra. Por exemplo: os planos no rosto da protagonista respeitam a duração não apenas dos seus relatos sobre arte, loucura, passado e sonhos, mas também parecem espreitar o improvável, a indeterminação de suas expressões faciais, as hesitações, as miradas que ela dá para o fora de campo – imagens prementes da fita de Dumans. O que ela olha?

Mas a câmera não registra apenas a face de Viva. O documentarista persegue o movimento do pensamento da performer através da escuta e da câmera próxima ao rosto, mas também procura registrar aspectos da cinética de seu corpo. Presenciamos contações de histórias em meio ao centro de Belo Horizonte, bastidores de performances, conversas com amigos como o Douglas, leituras de Nietzsche com seu primo Leo. A forma errática e libertária de Viva pensar encontra afinidades eletivas com seus gestos, movimentos, caminhadas e, por fim, sua performance que encerra a obra sob a luz negra de um quarto que, devido ao enquadramento oblíquo da cena, só podemos imaginar a completude pela força da especulação. Seu corpo cintila através de pinturas corporais fluorescentes na escuridão.

O filme se aproxima do corpo de Viva através de uma observação que utiliza movimentos de câmera para acompanhar as linhas de seu corpo – pele, cabelos, olhos, boca – mas também as linhas de movimento no espaço: os momentos de repouso ou prostração, mas também as situações de excitação. É um filme cuja mise en scène epidérmica nos lembra obras mineiras do passado recente como Sociedade dos amigos do crime (Dellani Lima, 2009) – longa experimental que Dumans participou como ator. 

Para acompanhar uma personagem que caminha no mundo entre a petrificação e a agitação, o documentarista utiliza diferentes operações. Primeiramente, é um filme que só foi possível por um encontro que produziu uma afetação entre as partes – afeto, confiança e, a partir daí, aventura juntos? Outras ferramentas nos levam ao cinema independente norte-americano de outrora em figuras como Jonas Mekas e Shirley Clarke, sobretudo em Portrait of Jason (197): o uso do plano-sequência, os reenquadramentos, zooms, ajustes de foco, isto é, formas de fazer a máquina acompanhar uma figura urbana incendiária – no melhor sentido do termo. A câmera hesita e também brinca, descontrola de leve, se deixa levar numa entrega total ao movimento da vida de sua interlocutora. É um cinema da amizade.

“Estou em movimento… aberrante”, nos diz Vivi. É o movimento de seu pensamento, sua invenção, sua perambulação que o documentarista procura (re)ensaiar em cada sequência. E a trilha sonora entra no jogo não para acompanhar as cenas, mas para criar novos arranjos de imagem e som, driblar um pouco nossos sentidos, produzir um pequeno caos em nossa barriga. É como se o filme se (des)estruturasse por um caos ordenado – um controle descontrolado? A trilha musical faz uma dança com as imagens – dança aberrante. Um equilíbrio instável entre imagem e som.

A montagem de Pretti interrompe nossa fruição dos blocos de encontros com Viva para instaurar um contra-ritmo que nos mostra algo de Viviane que não sabíamos por completo até então: seu ecossistema é urbano. Uma série de fotografias em preto e branco, realizadas pelo artista mineiro Desali em parceria com o próprio Dumans, cria trilhas escuras no meio do filme. Assistimos a uma amálgama de vistas urbanas do baixo centro de Belo Horizonte, zona da bagaceira boêmia da capital mineira. Viva deambula nas ruas, esquinas, bares: bebe e fuma e anda numa espécie de trotoar dissidente. Ela parece caminhar a ermo, notívaga errante, a noturna de Belo Horizonte? Quando o cinema filma bem a cidade, ele encontra sua parte maldita, diria Comolli. Ela veste uma camisa preta escrita: “Só os lokos sabem”.

Podemos dizer que As linhas da minha mão borda uma experiência de encontro entre o cinema e uma personagem urbana que nos mostra faces de sua vida entre a arte e a loucura. Isso acontece por uma observação radical do movimento de seu pensar, criar e caminhar no mundo. Seus relatos sobre os acolhimentos que vivenciou no SUS nos emocionam num tempo de renovação das políticas sociais de saúde e cultura de um país semi-arruinado pelo nazi-fascismo. O filme nos revelou uma presença inesquecível – força do desejo em meio à cidade noturna. Em tempos de reconstrução, é bom lembrar com quais palavras o júri do festival, sob a representação de Cristina Amaral, encerrou o texto de premiação. “Viva o SUS!”. Viva a vida. Viva a Viva.

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ESCOLHER A MORTE: A Última vez que ouvi Deus chorar (Marco Antonio Pereira, 2023)

Por Ana Julia Silvino

A última vez que ouvi Deus chorar (Marco Antonio Pereira, 2023), curta-metragem exibido na mostra Foco Minas da 26° Mostra de Cinema de Tiradentes, é uma alegoria sobre um futuro que não chega. Através da vivência de Maria, uma jovem que se descobre grávida e está em constante fabulação sobre o feto que carrega dentro de si, o filme constrói uma mitologia própria e experimental sobre um momento político onde o presente está abandonado e, por causa disso, as pessoas são roubadas de uma perspectiva de futuro. Em uma cena do projeto audiovisual, um cachorro é caçado e a montagem constrói um looping acerca dessa imagem. Um tiro. Outro tiro. Outro tiro. Mais um. E segue assim por alguns minutos, reproduzindo incessantemente a alegoria da morte como delimitação de um ritmo contínuo. Essa cena é uma das mais interessantes do filme, pois é aí que a narrativa abandona a trama comum de Maria para centrar-se no que mais importa: o fato em que algumas coisas acabam, são destruídas, mas a imagem e o cinema permanecem.

            A transversalidade do corpo social de Maria como uma mulher jovem do interior não é desenvolvida o suficiente para aprofundar a trama. Na realidade, Maria como personagem me parece ser um obstáculo para o próprio filme, por que sempre que a narrativa é lançada ao incerto, a história de Maria a puxa de volta a um lugar comum. Na cena do parto, quando descobrimos que a personagem dá luz a um natimorto, a preocupação com a plasticidade da imagem, quanto ao enquadramento e figurino dos personagens, tira a força do transtorno que é dar luz a uma nova morte e não a uma nova vida. Além disso, os diálogos reforçam uma preocupação excessiva em lançar-se à poesia. Os diálogos forçados e a crítica cristã – como se Maria tivesse gerado o próprio Deus e ressuscitado no terceiro dia assim como Jesus Cristo – dão à personagem uma importância que ela não tem – ou não deveria ter – e esquecem da proposição inicial que parece ser o ponto de partida para compreender as produções do cinema brasileiro contemporâneo, que precisa sempre reinventar-se a partir do caos, narrar pelos ruídos pela falta de recursos. Sobreviver apesar de tudo.

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NO MEIO DO MUNDO: EVOÉ (Cervejas no Escuro, 2023)

Por João Paulo Campos

Sabemos que um dos sintomas do cinema brasileiro vem da comédia. Na cena independente, o buraco é mais embaixo. São poucas as produções voltadas ao gênero, mas ainda temos o privilégio de lembrar dos filmes de, por exemplo, Tavinho Teixeira e Fábio Leal. Um amigo, cineasta que flerta com o riso em seus filmes, brinca comigo em sua produtora ao colocar para tocar a música Complexo de épico do Tom Zé. Ele remixava com sua voz: “todo ‘diretor’ brasileiro é um complexado”. Pois “Cervejas no escuro” (Tiago A. Neves, 2023), um dos destaques da Mostra Aurora deste ano, vai no osso desse problema. 

O filme começa no luto. Acompanhamos um plano-sequência que deambula em meio a um funeral. Pessoas conversam no ambiente escuro. Passeamos entre os corpos que se movem com vagar, até toparmos com um caixão. O preâmbulo pode parecer estranho para uma comédia, mas o desenrolar da aventura que “Cervejas…” nos propõe faz tudo fazer sentido. A obra é uma azaração que faz curtir e faz pensar – entre o riso e o “assombro glauberiano que está em todos nós”, como relatou Nivaldo Rodrigues no debate do longa no dia seguinte a sua exibição no Cine Tenda, Tiradentes. Poderia o riso driblar a morte e o terror?

A história mistura as estórias da protagonista com a história da Paraíba. Estamos em Princesa Isabel, pequena cidade nas bordas do estado – fronteira com Pernambuco. Uma mulher idosa, chamada Edna, tem o sonho de reviver suas memórias através da arte. Decide juntar um grupo de produção para fazer um filme baseado na sua vida. A equipe inexperiente é guiada pelo desejo arrebatador da diretora de tocar essa fita. Os coices, intrigas e mal entendidos do processo de filmagem e distribuição do filme são a principal fonte de comicidade do longa, que se desenvolve tal qual uma comédia de situações.

Trata-se de uma obra teatralizada feita com um grupo de atrizes e atores amadores da região, mas parar por aí seria perder a festa de Tiago A. Neves e sua equipe. A força do filme está justamente em sua mise en scène que mistura elementos do circo, teatro de variedades (Vaudeville da Paraíba) e teatro épico brechtiano (cabra da peste). 

É um caos ordenado pela direção e montagem de artistas que estão estreando no longa-metragem. A palavra tem poder: uma obra que faz um uso intensivo do verbo como ação ou ato de fala. Performance delirante do hablar? Sinto que as personagens não param de falar e, mesmo assim, não perdem a linha! E há sem dúvidas um uso plural do diálogo, pois eles falam entre si para nos arrancar gargalhadas, mas também dialogam conosco para nos ensinar um pouco da história da Revolta de Princesa.

Essa revolta popular ocorreu em 1930 e culminou na declaração de independência provisória do município de Princesa Isabel em 1930 em reação à eleição de João Pessoa para Presidente do Estado da Paraíba, político responsável por uma série de transformações político-administrativa que enfraqueceram o poder econômico e político de coronéis do sertão. Com a independência, o município passou a se chamar República de Princesa e criou um novo hino, bandeira e um jornal chamado O jornal de Princesa. Tudo terminou como em Canudos: carnificina, tortura, humilhação. Mas em nome da República, não podemos esquecer. E isso está expressado no filme.

Quando a equipe sai em busca de um importante casarão para filmar uma cena, a obra efetua um jogo de cena épico com uso de montagem dialética que vale a pena ser descrito e comentado. Primeiramente, o riso. “Esse é o casarão?!”, pergunta um dos personagens. O corte faz com que a montagem confronte a interrogação com a imagem irônica de uma ruína apodrecida pelo tempo. Muitos risos, mas então o tal “assombro glauberiano” que nos leva ao épico brechtiano. Dentro do casarão abandonado, eles investigam e nos ensinam. Um monólogo didático nos conta mais sobre a revolta, mas a montagem também interrompe a fruição para nos mostrar as marcas de bala em paredes vermelhas – rastros de ódio acompanhado por pipocos na banda sonora. Um choque de humores, o riso vira do avesso por um momento. 

Está claro que “Cervejas no escuro” é um grande cozinhado de operações estéticas num caos ordenado que nos faz chegar ao legado de Carlos Reichenbach e Rogério Sganzerla. Sob o signo do caos, a obra de Tiago A. Neves atualiza a comédia popular de Carlos Manga, Oscarito e Grande Otelo numa chave inventiva-cabra-da-peste que quer nos fazer rir e escovar a história criticamente – a contrapelo. 

Esta atualização estilística ocorre num contexto de novas tecnologias e, como escreveu Cleber Eduardo recentemente, uma outra cena de autoria cinematográfica no Brasil, que o crítico chamou de “novo cinema autoral brasileiro”. Uma das características centrais dessa renovação do campo cinematigráfico nacional é a entrada, na cena da autoria artística, de sujeitos periféricos: as bordas da metrópole, a aldeia, a negritude, a mulher feminista e toda uma nova geografia da invenção configurada por gente de cabo a rabo do país. Paraibano que vive e trabalha em Diadema, Neves usou a fricção e o dialogismo para transformar a ponta da Paraiba em palco de um teatro que nos lembra do cinema das origens: a estética das atrações, a brincadeira circense, o espectador (in)crédulo descrito por caras como o Tom Gunning. A obra nos convida a participar, brincar e pensar. E é divertido pra caralho. Evoé.

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FUNGOS: VERMELHO BRUTO (Amanda Devulsky, 2022)

Por João Paulo Campos

Ao mundo – olhos!

Dziga Viértov

Fungos possuem vários núcleos que se expandem no caos do solo. Vermelho Bruto (2022), filme de Amanda Devulsky, parece se organizar a partir de um gesto de montagem marcado por esta multiplicidade fúngica. Trança de imagens e sons numa experiência cuja origem lembra o crescimento de organismos multicelulares. Universos em expansão que também são sugeridos pelas aparições de imagens do espaço sideral e suas constelações, planetas e galáxias. Um amigo me disse que tomou cogumelos para assistir à sessão no Cine Tenda de Tiradentes. Uma forma acertada de se aventurar com esse filme.

A documentarista elaborou um jogo de filmagem entre quatro mulheres de diferentes trajetórias sociais que, no entanto, tornaram-se mães durante a adolescência, na década que sucedeu a redemocratização do Brasil. Em 2018, seus arquivos domésticos entram numa alquimia com registros de suas vidas atuais em Brasília.

O experimento de Devulsky efetua um choque de temporalidades ao articular cacos do passado de suas interlocutoras no presente – justamente no ano em que Jair Messias Bolsonaro foi eleito, acontecimento que marca o início de um período de ressurgimento do nazi-fascismo no Brasil que, sabemos, nunca foi de fato exterminado pelas forças progressistas. Algo notável na epopeia bordada pela montagem de Amanda Devulsky e Luisa Marques é que, ao realizarem uma entrega radical à concretude dos arquivos a partir de uma práxis de montagem caracterizada por conexões parciais e associações livres, nos mostram contaminações entre memórias pessoais com os caminhos da história social do país num ritmo para se curtir, viajar, pensar. Criar entre os arquivos uma movimentação sensual – de perto e de longe.

Clarice Lispector escreveu que Brasília não é bonita nem feia, pois é a imagem de sua insônia: seu espanto. Uma ficção científica, um delírio: a dupla Lúcio Costa e Oscar Niemeyer teriam erigido, em vez de beleza, seu espanto. E assim deixaram o espanto inexplicado. Vários dos registros colecionados e remixados no filme carregam a marca deste assombro originário da cidade modernista. Uma das protagonistas, empregada doméstica, caminha à noite entre as quadras do Plano Piloto. Ela filma sua perambulação e descreve o que observa. Nos diz que saiu do trabalho tarde e nota que as famílias ricas já estão com as luzes de seus apartamentos acesas. Estão no conforto do ambiente doméstico enquanto ela bate perna entre o trampo e sua casa na periferia do DF. Cada um na sua realidade, diz a mulher. Outra cena mostra, a partir de um movimento horizontal de câmera, uma série de ministérios iluminados por uma luz vermelha. A Esplanada dos Ministérios ganha um aspecto macabro. 

Este é um filme também de caminhos e descrições. As mulheres cujos movimentos no tempo e no espaço perseguimos adotam uma postura descritiva com seu entorno. As câmeras assumem uma função investigativa e experimental. A vida se torna, assim, uma interrogação. Observamos recorrentemente a presença do chão, dos caminhos e dos pés das protagonistas que perambulam, filmam, narram suas vidas e desenham pequenas janelas para olhar o Brasil desde sua capital, espaço emblemático por ter sido a suposta alvorada de uma nova nação moderna no passado recente, território tão complexo quanto desigual que o cinema contemporâneo do Distrito Federal, em figuras como Adirley Queirós, Dácia Ibiapina e a própria Devulsky, transformou em posto de observação crítica da República. 

Palimpsesto como operação figurativa. Um dos recursos expressivos que caracterizam a tessitura desta obra é a interposição de imagens. Registros caseiros são rasurados recorrentemente com outras imagens, sobretudo retratos das protagonistas que, no entanto, quase nada mostram de suas faces. São fotos de cantos, imagens abstratas.

Confluências e dissonâncias. Há uma relação de dissonância entre as experiências das mulheres que se filmam no que diz respeito, sobretudo, à classe social, território e raça. Mas as coisas encontram confluências na montagem. Os temas vão se amalgamando: maternidade, família, ideologias, militares, democracia, eleições. É um filme polifônico que coloca os fiapos de experiência em diálogo, mas também em tensão.

O vermelho aparece como fantasma. A cor se insinua em diferentes momentos, seja rasurando registros domésticos em borrões ou fades para o vermelho – que, no entanto, nunca se concluem! Outra característica dos fungos é a indeterminação. O vermelho no filme é errante e concreto, simultaneamente. É vermelhidão e nada mais: o chão do DF é vermelho.

Lisergia das imagens. Em vários momentos cogumelos se abrem em desenhos coloridos. Preenchem lacunas entre fragmentos de memórias. Intervalos bonitos que nos fazem deambular o olhar pelo quadro e viajar na escuta do testemunho das protagonistas.

O som faz o espaço. A articulação entre imagens e sons numa pegada atmosférica cria a sensação de um fluxo que nos convida a uma habitação provisória nesta espécie de lugar de memória virtual. O desenho de som traça conexões parciais entre o cinema e a instalação, o filme e o labirinto. 

A articulação final da obra é uma das sequências mais bonitas do cinema brasileiro recente. Uma mulher fala e se filma fumando um cigarro a partir de um enquadramento vertical que entorta sua imagem. Ela reenquadra a cena ao filmar o que é uma das características marcantes das paisagens das periferias de Brasília. O horizonte mostra um fiapo reto de luzes da cidade, tal qual um corte amarelo no breu da noite. Essa horizontalidade da paisagem urbana distante do DF é bagunçada pelo ângulo vertical do registro. A cidade se inverte imagéticamente. Ela diz que não quer mais namorar, pois quer ser livre para ir para onde quiser. Relata que uma amiga cobrou seu sumiço. Daí escutamos: “Tô sumida não. Só estou andando por outros caminhos”. Um lampejo de seu sorriso rasga o ecrã e o filme acaba. Tela vermelha, que logo se converte em preto.

Devulsky fez memórias dançarem. A matéria de Vermelho Bruto é, ao fim e ao cabo, a experiência: sangue e chão em movimento.

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Mente aberta com corpo fechado: CAIXA PRETA (Bernardo Oliveira, Saskia)

por João Paulo Campos

No início era tela preta. Pode o cinema produzir estados alterados de consciência e corporalidade? Caixa preta busca inventar efeitos no corpo de seu público – cérebro, barriga e pés pisando-pisantes. Tal qual um poderoso psicotrópico, a fita mexe conosco, provoca, brinca, faz dançar e faz pensar. Faz curtir e faz viajar. Abre a mente e fecha o corpo num mundo que cada vez mais se assemelha a uma sucessão de trincheiras. Pois o cinema, em suas melhores performances, nos chama pra dançar sentados no escuro. E é na tela preta que nós mergulhamos, tal qual uma aventura. Quem topou a alucinação tem história pra contar.

A obra de Bernardo Oliveira e Saskia é um filme do século XX: fita que deseja mostrar sem representar. Estética das atrações, choques e confluências. No preâmbulo do média-metragem que estremeceu o Cine Tenda no início da 26 Mostra de Cinema de Tiradentes, lemos uma cartela que nos joga no fluxo das origens. O começo é o caos e, diante dessa premissa, a arte parece buscar traçar planos ou trilhas nessa bagunça originária. Trata-se de uma obra compósita que nos desafia a uma tarefa difícil, mas cada vez mais sedutora: explodir a racionalidade cartesiana através dos rastros expressivos da diáspora africana num mundo pós-colonial. Tentar explicar este filme já configura, de antemão, um grande vacilo. Temos que navegar, dançar, sonhar. “Pode dormir. Quem não dorme não sonha”, disse Bernardo Oliveira ao apresentar a peça.

Já Saskia provocou o público que encheu a tenda de Tiradentes: “grita aí galera!”. Eu lancei um berro e é assim que começamos: Caixa Preta produz uma estética do grito e do remix. É a ação contra a representação. A mão que monta é a mão que narra. Este é, sem dúvidas, um filme de arquivos. Mas parar por aí seria, logo, outro vacilo. O que Saskia e Oliveira fazem com os arquivos é o que importa. Artistas versados no som, eles terminaram por montar um filme como se fosse uma mixtape. Se hoje tudo é arquivo, o que resta é samplear o passado no presente. 

O filme da dupla articula um volume pesado de registros em variados formatos numa brisa cheia de bugs e glitches, misturando numa alquimia imagens da internet, áudios de variadas origens, vozes dos outros e de um dos diretores que canta e declama, evoca, chama. Convida a habitar a tela preta: origem dos mundos?

O que encontramos é uma espécie de atlas mnemosyne da pretitude que canta e faz caminhos. Sempre no plural, fazendo da curva e da esquina dos arquivos a nossa morada provisória. É um filme para se curtir como se estivéssemos numa festa. Remix pra dormir, sonhar, beijar, transar, gritar, cozinhar, caminhar, estudar: postergar a morte e o sofrer. Se fôssemos destacar uma sensação que aparece na experiência de assistir Caixa Preta, eu diria: tesão. Mas um tesão pelo som, pela colagem de imagens e áudios, pelo passado e, quem sabe, pelo futuro. O som é físico e faz o corpo vibrar. O cérebro fica doido e o prazer das montagens de coisas aparentemente incongruentes nos mostra o poder da estética do remix, traço caligráfico, com variações estilísticas que não podem ser esquecidas, de certo cinema contemporâneo no Brasil. Uma bomba sensorial que ensaia um constante recomeço para aumentar a frequência do mundo. Caixa Preta faz da errância a forma de sobreviver no mundo da arte e da política. Como cantou Tantão: “volume é drama”.

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Regra 34 (Julia Murat, 2022)

Por João Lucas Pedrosa

Falar de sexo envolve tantas vezes falar desse lugar nebuloso que é o desejo de ser, ao mesmo tempo, Sujeito (o que produz os significados, o que deseja e que fode) e Objeto (sobre o qual os significados são projetados, o que é desejado e fodido). Se tudo dá certo, essas posições vão se intercambiando numa transa ou romance. Desejamos, sim, a libertação do corpo e da mente, mas também a prisão da idealização alheia. É uma contradição da qual o capitalismo tardio adora se aproveitar, projetando sobre corpos e pulsões a ilusão – muito bem sustentada pela indústria de massa – de satisfação pelo acúmulo de propriedades e amantes. E nos oferece uma solução que lhe é muito oportuna: quanto mais eu (me) vendo, mais eu consigo obter. É uma dinâmica de consumo (atenção à polissemia da palavra: “aquisição”, “gasto”, mas também “destruição”, “desaparecimento”) recíproco de corpos; quantidade sobre qualidade, status sobre intimidade, e por aí vai. O novo Regra 34, de Julia Murat, apesar de atravessado por esse embate, parece se interessar muito pouco por suas nuances.

Simone (Sol Miranda), nossa protagonista, é uma jovem estudante negra de Direito que acabou de passar no concurso de defensoria pública com o suporte financeiro de seu trabalho noturno como camgirl. Ela gosta do trabalho sexual – ponto que não devemos nunca ignorar -, e, após contato com um vídeo em específico, passa a incorporar a aplicação de dor e sofrimento à sua prática sexual. Se a premissa por si só já é forte, é porque trata do cabeludo cruzamento entre muitas coisas: sexo, política, privado, aparato público, significados históricos do corpo, a autoimagem pornográfica, performance, os extremos da carne, entre outras coisas ainda mais. A separação em tópicos me salvará de uma síncope:

  • Como posto acima, Simone gosta do trabalho de camgirl. É importante, assim, saber separar o gosto pela performance sexual e o gosto pelo sexo. Obviamente, o estilo de seu trabalho não é o mesmo do da indústria pornográfica tradicional, uma vez que a autonomia envolvida reduz – ou anula – a chance de abuso hierárquico. Não há a chance de um diretor/produtor/ator pressioná-la ou obrigá-la a submeter-se a cenas violentas; no máximo, há a poda da plataforma. Tratar, entretanto, o gosto pela atividade no Chaturbate em equidade ao gosto por fazer sexo é como dizer que o gosto por atuar é o mesmo gosto por viver. O elemento definitivo entre os dois é esse distanciamento ambíguo que abraça algum artifício no objetivo de capturar o olho do outro e que, muitas vezes, cria um olhar externo de si enquanto se vive. Na performance, um corpo torna-se Objeto para que seja Sujeito uma dança, um canto, uma personagem, um texto (no caso da pornografia de Simone, o fetiche alheio). No início, acreditei ser um ar performático geral algo abordado pelo filme. Os diálogos não muito críveis, moldados numa rigidez que contamina a direção de atores, pareciam tratar esteticamente do peso do artificial projetado também sobre a rotina, do âmbito privado infectado pelas falas comuns roteirizadas, pelos vícios comportamentais (a citação por Lucia de uma frase que refere falsamente a Frida Kahlo; quando Lucia e Coyote dançam sozinhos, em planos individuais, antes de se beijarem e atraírem Simone para um ménage: corpos solitários e ensimesmados que “se apresentam” para se encontrar). Mas, à medida que avança o filme, percebemos recair o foco sobre questões de outra chave, e essas ambiguidades que pareciam estar sendo propostas são abandonadas.
  • O corpo da personagem principal é atravessado pelo antagonismo entre o peso da imaculável/descarnada burocracia legal (expressada, às vezes, pelo posicionamento das pessoas no extremo inferior dos enquadramentos, afogadas pela parede) e a desnuda, penetrável, mutilável pele da vida sexual[1]. O filme aproveita o choque entre esses dois polos pelos cortes bruscos entre as sequências em sala de aula/defensoria e as da intimidade em espaço privado. Mas a complexidade que o cruzamento dessas diferentes existências envolve não parece trazer grandes turbulências ao arco do filme: o mundo privado é um, o laboral/legal é outro. Os dois não se misturam, não se contagiam, não se complicam. Apenas entram em choque por justaposição, como estruturas imanentes de funcionamento. Não existe a chance de Simone abrir uma mensagem ou vídeo safado no trabalho, ou olhar para um colega com malícia no escritório; nem, por exemplo, criar alguma burocracia  involuntariamente nas suas práticas sexuais.[2] Coyote (Lucas Andrade), colega da faculdade de direito, é seu amigo colorido, mas, novamente, isso não afeta sua companhia ou presença em sala de aula. Por isso, Simone é quase barroca, com a diferença que sua dualidade libidinal não vira conflito, é apenas um traço “disruptivo” da personagem. As demais desconstruções estão todas em discussões com chefes de trabalho, professores de direito, colegas da universidade e a amiga Lucia (Lorena Comparato). Um filme sobre a proximidade entre o corpo carnal e o institucional, postos como imunes um ao outro e em cheque apenas verbalmente, nunca por ação ou circunstância de cena. Daí a rigidez dos diálogos, não há acaso abalando sua forma cartesiana de tratar os tantos movimentos da premissa. O funcionamento usual das conversas é o seguinte: Simone acha “x”; Lucia acha “y”; nenhuma dá o braço a torcer; uma das duas vai embora. Essa dinâmica se repete em outros casos de conversa, terminando geralmente em silêncio rancoroso. Mas, entre as amigas, a saída no meio da conversa acontece ao menos três vezes (quando Simone tenta atiçar a raiva de Lucia no beijo, quando discutem sobre a possibilidade de redenção de abusadores na varanda de Lucia, quando Lucia confronta Simone após vê-la deprimida e de corpo marcado). Os conflitos são todos verbais – e binários, à medida que nenhum parece ser suportável para as partes envolvidas a ponto de ser resolvido. Quando as coisas não terminam em saída ressentida, terminam em ebriedade e pegação. Ou seja: em abstenção. As questões sociopolíticas e psicossexuais são tratadas, a rigor, pela linearidade dos diálogos entre personagens sem qualquer maturidade emocional.
  • Eis que o filme escolhe pela irresponsabilidade da protagonista nas suas aventuras pelo BDSM. Entre os conhecedores da prática, é sabido ser o respeito à consensualidade a sua chave central. Ela é o único elemento que separa a aplicação de dor, sofrimento, humilhação e dominância do abuso; que faz com que seja a prática de uma fantasia e não de uma verdadeira violência. O controle precisa ser desejado por quem é controlado, e a confiança entre as duas partes permite esse afloramento. Apenas a firmeza do pacto entre as duas partes garante ao submisso a posição de Sujeito dentro da objetificação voluntária: o respeito ao seu “basta!” (geralmente a famosa “palavra de segurança”), muita conversa para compreensão dos limites, manifestações de carinho no meio ou após a sessão, etc. Se o tom lúdico da prática ficar sequer turvo, pode acontecer o que chamamos de “sub drop”: uma queda hormonal súbita que causa sintomas variados, de insônia e crise depressiva a espirros e tosse. Isso explica o choro copioso de Simone após uma descontrolada sessão de sexo violento com Coyote transmitida online. Existe uma amiga de Simone, Nat (Isabela Mariotto). Ela que lhe manda o vídeo de aplicação de dor, e quem constantemente avisa sobre o cuidado necessário na prática para a autopreservação. A protagonista voluntariamente recusa os conselhos e, por conta disso, entra por livre e espontânea vontade em ciclos de hostilidade sexual sem limite definido, com margem para ser abusiva e abusada. Não se trata do contraditório movimento de encontrar liberação na constrição, ternura no sofrimento, pulsões de vida na dor. O movimento do filme coopta o sexo e a pulsão de morte, estabelecendo uma gradual jornada suicida atravessada pelo consumo do corpo de Simone (virtualmente desde o começo, concretamente com o desfecho). Num filme que mostra ter feito suas pesquisas básicas sobre o BDSM (pois existe uma figura que alerta sobre a prática segura e responsável, e existe uma cena com o “sub drop”), por que – e a quem – interessa que a protagonista renuncie à própria segurança – e, em última instância, a seu lugar de Sujeito nessa jornada – e se ponha no lugar de completa objetificação?
  • Regra 34 é o primeiro vencedor brasileiro do Leopardo de Ouro em 55 anos, desde Terra em Transe, de Glauber Rocha. Numa mesa redonda da ArtRio do ano passado[5] (um evento de arte e mercado assim como Locarno ou Cannes), o historiador de arte Igor Simões pontuou a predominância massiva de obras figurativas de artistas pretos – todas, naturalmente, envolvendo pessoas e arquétipos pretos pintados. A observação não era uma crítica sobre es pintores, mas sobre a rejeição curatorial de uma arte preta abstrata. Aponta não só uma recusa dos seus potenciais de leitura do mundo, do pensamento e da arte como um todo, mas também a predileção para a exposição e venda do corpo negro (se não mais da sua carne, da sua figura pintada ou esculpida). Uma cutucada ao evento, e aos mecanismos da supremacia branca operantes, aqui, na forma de tendência de mercado. Regra 34 fez a fala de Simões ressoar em minha cabeça, à medida que não se aprofunda no ciclo de consumo que atravessa os corpos filmados, mas, mesmo assim, apresenta corpos que desesperadamente querem ser consumidos. Trata-se de um filme que aborda as contradições desse desejo, ou de um que só raspa a superfície disso como subterfúgio do consumo desses corpos?

[1] Curiosamente, por esse amálgama também é atravessada a figura da atriz, Sol Miranda, candidata a deputada federal pelo PSol em 2020 e pelo PSB em 2022.

[2] Impossível não lembrar de “Seguindo Todos Os Protocolos”, de Fábio Leal, um dos grandes refrescos do cinema brasileiro do ano passado. O conflito entre o movimento erótico e a moralidade política é ponto chave do longa e ele é posto com muito êxito num único corte: um jump cut faz a tela do laptop do protagonista Francisco sair do pornô para um informe de 200 mil mortos por COVID-19; a tragédia coletiva embarreirando o tesão no virtual (aponto, novamente, a polissemia de “virtual”: “do meio eletrônico”, mas também “do espaço mental”, “da potência não realizada”). Decerto, em algum momento, o erotismo ganha enfim lugar material no apartamento de Francisco, mas com as idiossincrasias obsessivas decorrentes de seu medo do contágio: tentar transar com um plástico entre ele e o outro cara, necessariamente usando máscara, etc. 

[3] Vale a pena mencionar o excelente texto de Geni Núñez acerca do erotismo no catolicismo, que tem chave na repressão, submissão e controle, e de suas semelhanças e diferenças com a prática BDSM. Disponível em: <instagram.com/p/CmmgVEPPkGF/>.

[4] [SPOILER] Simone, em troca de 20.000 tokens, oferece a um fã do Chaturbate (que afirmou em áudio querer muito vê-la sofrer) ir à sua casa e fazer o que quiser com ela: “A regra é que não tem regras!”. O filme termina num close up da protagonista prestes a abrir a porta sob batidas furiosas. O corte para os créditos se dá nela sorrindo, indicando que está tentada. Retomemos os sentidos de “consumo”: ela foi adquirida, e será potencialmente destruída. A conotação escravista do desfecho é evidente.

[5] Conversas ArtRio: Artista Negro, Galerista Branca. O debate parte de um quadro do pintor cuiabano Gervane de Paula, cujo título dá nome à mesa redonda. Conversa disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=k9ZlGXD2Buk>.

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Avatar: Franquia frustrada ou antifranquia?

Por Bernardo Moraes Chacur

Na superfície, Avatar (2009) não destoa muito dos blockbusters recentes, treze anos depois do seu lançamento original: seja pela onipresença da intervenção digital, pelo uso de 3D, ou pela duração de mais de duas horas. Sob outros aspectos, no entanto, é um objeto estranho no contexto do cinema de franquias.

Com relação à narrativa em torno do filme, temos de um lado a marca autoral de James Cameron, em oposição aos diretores (geralmente) intercambiáveis empregados pela Disney[1], por exemplo. Ao invés de um cronograma de quatro lançamentos anuais, um perfeccionismo que exigiu quatro anos para a produção do primeiro longa e mais de uma década para a entrega da continuação. Seria fácil exagerar e romantizar indevidamente esses contrastes, mas talvez a única sabotagem possível no capitalismo tardio seja justamente algum grau de ineficiência.

Enquanto o público contemporâneo foi gradualmente condicionado a esperar pelo retorno cíclico do já conhecido, de personagens, histórias e cenários familiares, Avatar entregava novas vistas: a topografia insólita, a fauna e flora cujas características se embaralham, uma multiplicidade de cores e fosforescências, a exploração do 3D. Se há uma cena que encapsula essa profusão, é o momento no qual o herói busca se conectar com uma das feras aladas: depois de transporem uma cachoeira, os Na’vi se concentram em um dos cantos do quadro enquanto um novo panorama se descortina do lado oposto. Há movimento e formas estranhas vindo de todas as direções, acompanhados por oscilações da “câmera”. São imagens que seguem inusitadas, talvez por não terem sido canibalizadas até o momento em continuações, prequelas ou spin-offs. Ou talvez por possuírem algo de único e fugidio e que dificulta que sejam engarrafadas em série.  Os detratores de Avatar costumam menosprezá-lo justamente por essa suposta falta de “pegada cultural”, como se o citacionismo nerd e decoração de festas de aniversário fossem métricas indiscutíveis de valor.

Outra crítica recorrente é apontar os clichês do roteiro escrito por Cameron, mas em 2022 vários desses elementos genéricos parecem menos usuais, à medida que Hollywood se afasta dos tipos de filmes que fabricou por décadas. Mesmo a postura anti-establishment do enredo, que poderia ser lida como tímida ou inconsistente, se revela mais certeira com alguma boa-vontade. 

Uma cratera na memória racial

Logo antes da última briga, o vilão pergunta ao herói:  qual a sensação de trair a própria raça? A palavra poderia estar se referindo tanto à espécie (à raça humana) quanto à sua condição de branco. Os dois sentidos cabem no contexto, aplicados a um protagonista que havia rejeitado tanto o antigo corpo quanto o ideário do Destino Manifesto.

Tudo isso está no primeiro plano do enredo, reiteradamente e sem subterfúgios. Vale lembrar, no entanto, que certo grau de anticolonialismo, pró-ambientalismo e simpatia/condescendência pelos povos originários já circulavam havia décadas pelo cinema de Hollywood. A carga polêmica desses temas já estava tão esvaziada a ponto de render tratamentos como o oscarizado Dança com Lobos (Kevin Costner, 1990) e a animação Pocahontas da Disney (Eric Goldberg e Mike Gabriel, 1995) – tantas vezes comparados a Avatar em tom de deboche. Nesse tipo de filme, os genocídios costumam ser retratados como uma História confortavelmente distante, sem comunicação ou comparabilidade com os dias atuais. A produção de Cameron, ambientada mais de cem anos no futuro, talvez pudesse ser lida assim, como simples alegoria do passado, um faroeste revisionista sob uma capa de ficção científica.

Mas há elementos extemporâneos que desafiam essa interpretação. Por exemplo, quando o vilão orienta as suas tropas a destruir a árvore que é o centro da vida material/espiritual dos Na’vi, se vangloriando de que assim criarão “uma cratera na memória racial” dos nativos. Se a retórica dos tempos coloniais e neocoloniais ainda cultivava a farsa da Missão Civilizatória, a fala do coronel reflete um raciocínio que não só reconhece a própria crueldade como a instrumentaliza em nome da eficiência, a exemplo da política de Choque e Pavor (Shock and Awe), em voga durante as duas invasões do Iraque e diretamente citada por outro personagem ao longo do filme.

Boa parte dos soldados que recebem essas ordens de extermínio é negra, detalhe tão tétrico quanto apropriado (uma vez que representam 12% da população dos Estados Unidos, mas 21% das forças armadas da ativa[2]) e evidenciado em mais de um contraplano. Tanto o discurso militar quanto a composição étnica desse exército privatizado ancoram Avatar no presente. Tendo como referentes simultâneos a conquista do Oeste e as guerras do século XXI, Cameron situa a invasão de Pandora em uma História contínua de depredação.

Uma vez reconhecida a carga política de Avatar, também é necessário admitir o óbvio e dizer que a maior bilheteria de todos os tempos possui limitações como discurso anticapitalista ou polêmica racial, narrando uma história de salvador branco que se revela mais índigena do que os próprios indígenas. Cameron também perpetua aqui o mito no qual o anticorpo necessário para enfrentar a brutalidade dos invasores brancos é um invasor branco com uma dose extra de valores progressistas.

Ainda assim, há imagens que articulam uma perturbação genuína, como as dos animais em chamas após o ataque à árvore-ancestral, semelhantes às do holocausto ambiental que se intensificaria a partir de 2020 na Amazônia. Sempre se falou sobre o potencial (e perigo) da ficção como doutrinadora ideológica, mas qual a extensão dessa influência, caso ela se exerça? Como as pessoas que viram e reviram Avatar conciliam a clara mensagem pró-ecológica e seus próprios posicionamentos políticos? Mesmo considerando as várias camadas de desinformação e negacionismo envolvidas, podemos imaginar que pelo menos parte desse enorme público foi capaz de processar as ideias propostas pelo filme e mesmo assim reagiu com indiferença, considerando-as impertinentes ou inaplicáveis à realidade.

(Reassisti Avatar em setembro de 2022, em um multiplex de Brasília, em sessão razoavelmente cheia. Poucos dias depois o candidato derrotado à reeleição para presidente receberia quase 52% dos votos no Distrito Federal. Em 2018, esse percentual havia sido de quase 70%.)

Não é raro que cinéfilos de esquerda consumam filmes com graus variados de conservadorismo, cativados pela narrativa, por interesse estético, histórico, pelas neuroses desse discurso, por masoquismo e, ocasionalmente, identificação – relações que também devem se verificar ao longo de todo o espectro político.

Nunca foram modernos

Em Pandora, os Na’vi estão conectados aos animais e vegetais que os cercam – mas isso acontece pela via de um rabo de cavalo que é simultaneamente penteado e cabo USB. Os seus antepassados seguem vivos na grande árvore, mas isso é aferível graças a impulsos elétricos mensurados pela equipe de cientistas. Avatar habita essa contradição: valida outras perspectivas, na contramão do racionalismo clássico, mas para isso, recorre ao lastro desse mesmo racionalismo. Há sobrenatural e saberes ancestrais, mas como territórios a serem conquistados pela ciência.

Há pelo menos duas formas, que não se excluem mutuamente, de interpretar essa postura. A primeira seria ressaltar a inconsistência, alojada sob a boa intenção. A segunda é avaliar o que acontece com essas descobertas científicas no contexto do enredo, desconsideradas e ridicularizadas assim que se tornam inconvenientes para os interesses econômicos em jogo. Há aqui, mais uma vez, um exemplo do saldo geral de Avatar: para cada elemento simplista, outro momento lúcido e onde cada lugar-comum pode ser tornar vívido graças à inspiração visual e narrativa.

Cena pós-créditos: impressões após assistir Avatar: O Caminho da Água (2022)

Vi o segundo filme pouco depois da conclusão do texto. Seguem minhas impressões sobre como ficaram os temas desenvolvidos acima, à luz do novo episódio:

Há um bom número de repetições em Avatar 2: da estrutura, de situações e personagens (do vilão, inclusive). Se parte disso pode ser atribuído a inércia própria das continuações, em pelo menos um caso enxergo mais uma reiteração pertinente do que falta de originalidade: ainda no prólogo, vemos novamente os animais e a mata incendiada, uma imagem cujo horror se renova a cada vez, dentro ou fora do universo ficcional — e que deve ter continuado a assombrar James Cameron.

Com relação à política, desde o primeiro momento não há qualquer ilusão de convivência pacífica: a invasão humana já começa brutal e encontra como resposta imediata atos de terrorismo. Posição bem mais direta do que o típico deixa-disso centrista predominante no cinema/discurso mainstream.

Na trama original, cada ideia “radical” parecia conviver com outra mais conservadora. Essa dinâmica se repete na nova história, mas o polo menos convencional tende a ser  favorecido. Os êxtases da filha adotiva do herói são diagnosticados pelos cientistas como epilepsia, explicação que é desautorizada mais à frente. Jake Sully prioriza a família nuclear em detrimento da tribo e do povo, mas tem algumas de suas convicções postas em cheque ao final da intriga.  

Avatar 2 conecta mais uma vez o capitalismo passado e contemporâneo. A caça aos tulkuns combina séculos de pesca às baleias (especialmente a extração de espermacete) em cenas que detalham um processo tão cruel quanto eficiente de chacinar animais pelo lucro. Não por acaso, a eventual desforra contra os soldados e baleeiros será mostrada de forma igualmente clara e cruenta, com certo prazer vingativo.

Há um peso incomum na ação e na violência em cena, especialmente em comparação com a falta de densidade prevalente nas últimas décadas de cinema de entretenimento. Costuma-se atribuir essa falta de gravidade ao uso de CGI, mas Cameron e equipe demonstram que é possível criar um mundo ficcional convincente com ferramentas digitais. Não me parece coincidência que um tal resultado seja obtido por um diretor capaz de articular, em suas imagens, reflexão e revolta genuínas sobre a realidade que nos cerca.


[1] Ironicamente, uma vez que a Disney absorveu a 20th Century Fox em 2019, Avatar também virou mais um ativo do estúdio.

[2] Dados de 2021 e 2019, respectivamente.

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Festival de Brasília: A Invenção do Outro

Por Geo Abreu

Longa-documentário, vencedor da Competitiva do 55º Festival de Brasília, acompanha expedição da Funai e o reencontro entre parentes Korubo separados por disputas com etnia vizinha.

O filme começa com informações em cartelas, salientando a presença no comando da expedição, realizada em 2019, do indigenista Bruno Pereira, especialista em populações indígenas que vivem em isolamento, na época ainda técnico ligado à FUNAI. Em junho de 2022 Bruno acompanhava o jornalista norte-americano Dom Phillips numa viagem pelo Vale do Javari quando ambos foram assassinados.

Apesar desse fundo trágico, na qual a morte de Bruno se confunde com a própria política indigenista brasileira, em eterno conflito com os interesses do agronegócio, o documentário se ocupa da existência dos personagens Korubo em relação com a equipe com a qual dividem a jornada registrada pelo filme.

Estabelecendo logo de início a escolha por planos fechados em detrimento de planos abertos, geralmente usados quando se filma na Amazônia, Bruno Jorge aposta numa fotografia de detalhe, bem aproximada. Assim estabelece diferenças entre corpos brancos/corpos indígenas e também salienta costumes: cortes de cabelo, adereços, pinturas.

Já no momento do encontro com a equipe a língua se impõe como outro marcador de diferença. Um dos técnicos da Funai é responsável por traduzir o que dizem os Kurubo, o que acompanhamos via legendas. Em meio a brincadeiras muito masculinas, de zombaria sobre a troca de irmãs ou de bravatas sobre disputas mano a mano, a embarcação segue levando a equipe em busca dos parentes arredios de Xuxu e Takvan.

Interessante notar que a equipe da Funai não seja formada apenas por homens brancos, mas também por indígenas de diferentes etnias e pelos quais o documentário pouco se interessa. Sem eles seria quase impossível transitar pelos rios ou estabelecer acampamentos com a agilidade empregada pelo grupo. E eles seguem ali, o filme inteiro em segundo plano, enquanto a câmera se ocupa, quase sem pudor, dos Kurubo, estabelecendo uma relação de proximidade que não vemos ser negociada em momento algum, talvez porque eles sim representem a diferença ou, ao contrário, a semelhança de uma imagem idealizada de indígenas selvagens e ingênuos.

Entre encenações de batalhas, da apresentação de usos e também da arte das bordunas carregadas pelos Korubo – conhecidos vulgarmente como “índios caceteiros” por suas habilidades na fabricação e manejo de bordunas – o filme preenche o tempo de espera pelo reencontro entre parentes com imagens de caça e trato de animais selvagens, como macacos e preguiças, com o objetivo de alimentar o grupo. Cru e cozido e relações de predação como ontologia vem à mente quando estes mesmos animais reaparecem na história, agora em relações amistosas, quase amorosas, fazendo parte das famílias.

O privilégio de observar estilos de vida tão diversos e organizar racionalmente a coexistência desses modos de relação com o mundo é o que nos ganha emocionalmente na relação com o filme dirigido por Bruno Jorge. As sequências do reencontro entre as famílias e seus irmãos perdidos são tão afetuosas, barulhentas e humanas quanto a presença avassaladora de mosquitos, insetos, aves e demais existências que compõem a floresta amazônica. É instintivo apalpar o corpo para espantar as carapanãs ou cair num misto de choro e sorriso dentro da sala de cinema.

Essa imersão sensorial no filme também se deve ao trabalho de edição de som realizado por Bruno Palazzo. Conseguir dar um corpo audível aos diálogos captados em trajetos de lancha em rios caudalosos ou no meio da mata fechada e extremamente povoada de vida (e barulhos) deu ao filme e ao técnico o prêmio de melhor edição de som do Festival. A quem se interesse por som de cinema documental, sugiro ouvir Palazzo falando a respeito do trabalho com esse material.

A escolha por filtrar alguns trechos com o uso do slow motion – com a intenção de estender o tempo de algumas sequências, segundo o próprio diretor – parece alcançar o oposto, estabelecendo uma quebra no fluxo quase hipnótico de estar no mato experimentando relações com seres mais que humanos, sendo tragados pela grandiosidade de tudo ao redor, sentimento que talvez se perca no filme também, já que são poucos os planos abertos, dados ao respiro diante de tanta intensidade.

Ainda no quesito sensorial, há muito apelo ao que se come, ao que se diz com naturalidade sobre sexualidade, genitálias e demais traços materiais das relações com os outros e com o mundo ao redor, dando a impressão de uma intimidade tão conquistada quanto dada por certa, que quase nos esquecemos do exercício de imaginar o que pensariam os Korubos se estivessem em nossa companhia na sala de cinema, vendo a si mesmos e nos assistindo reagir ao que é exibido na tela. Que experiência seria? Compartilharíamos pupunhas cozidas e discordaríamos a plenos pulmões, estendendo a sessão por muito mais que duas horas e meia? Quero acreditar que sim.

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Festival de Brasília: Mandado (João Paulo Reys e Brenda Melo)

Por Geo Abreu

Voltar ao Complexo da Maré ocupado pelo Exército. Brasil, 2015.

Em 2014, por conta dos Jogos Olímpicos que foram realizados na cidade do Rio de Janeiro, o Governo Dilma Roussef autorizou a ocupação militar do Complexo de Favelas da Maré, devido ao fato de que as principais vias expressas da cidade cruzem esse território, além da proximidade com o Aeroporto Internacional do Galeão, porta de entrada da maioria dos turistas que tomariam conta da cidade naquele período.

Neste processo, um mandado coletivo foi expedido para que qualquer residência em pelo menos duas das 17 favelas que compõem o Complexo pudessem ser alvo de buscas e invasões executadas pelos militares, sem maiores justificativas. Há excepcionalidade nessa medida? É disso que trata Mandado, longa exibido na noite de 17/11, na Mostra Competitiva do Festival de Brasília.

O filme escolhe perseguir a legalidade desse mandado coletivo, entrevistando juristas e especialistas em direito, além daqueles que atuaram junto às ONGS e demais órgãos de luta e direitos humanos durante esse episódio, intercalando esses depoimentos “especializados” com os de alguns moradores, entre eles, Cadu Barcellos, cineasta e roteirista morto num assalto enquanto voltava para casa em 2020, e Marielle Franco, a vereadora mareense assassinada junto com o motorista Anderson Gomes, que a conduzia quando o carro em que estavam foi alvejado por arma de calibre de uso restrito às Forças Armadas, em 14 de março de 2018.

Esse é o ritmo que se impõe como normalidade da perda violenta de parentes, amigos, irmãos e que envolve o documentário num clima pesado, reforçado ainda mais pela trilha sonora original que reforça a dramaticidade do assunto e algumas vezes antecipa o tom com o qual o expectador deve receber a próxima informação.

Muitas dúvidas surgiram sobre o timing do filme e seu lançamento, tantos anos depois dos depoimentos tomados e da ocupação militar que durou 14 meses, com a presença de um policial para cada 55 moradores. Enquanto escrevo esse texto, manhã de 26 de novembro de 2022, a Maré amanhece mais uma vez devastada pelas mortes ocorridas no contexto de uma operação policial que durou quase 24 horas, descumprindo os dispositivos jurídicos que estabelecem horários de início e finalização de operações em favelas, entre outras ilegalidades.

Observando as coisas por esse prisma, o da circularidade desse tipo de ação político-militar, amparada por excepcionalidades que só se aplicam a comunidade periféricas, e que tem o Rio de Janeiro como espécie de laboratório de práticas eugenistas em pleno ano de 2022, o assunto abordado por Mandado nos parece em processo e urgente.

A aposta da curadoria do Festival na escolha desse filme merece destaque, pois se alinha à proposta de apresentar “narrativas atravessadas por escombros, nas quais não há garantias.” Lembrar que nossa democracia representativa, essa mesma pela qual lutamos voto a voto no último pleito para presidência, é também aquela que, mesmo quando ocupada por representantes da “esquerda” trata a periferia como algo descartável. E aqui estamos nós, espectadores do mundo Brasil, de volta ao movimento violento da garantia de mais um dia de vida. Só mais um dia comum.

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Festival de Brasília: Sessão de curtas

Por Geo Abreu

Nossos Passos Seguirão Os Seus…, Ulton Oliveira (RJ)

Não é a Primeira Vez que Lutamos Por Nosso Amor, Luis Carlos De Alencar (RJ)

Calunga Maior, Thiago Costa (PB)

Rumo, Bruno Victor E Marcus Azevedo (DF)

A criação de memórias tem aparecido como tema em muitos dos filmes exibidos aqui em Brasília nesses dias de festival. A necessidade de pôr em marcha uma série de materiais, entre fotos e vídeos,  sobre histórias que “vieram antes de nós” acabam trazendo para a discussão ideias como preservação e acesso a arquivos públicos (Nossos Passos Seguirão os Seus), a importância de arquivos pessoais para composição de histórias publicas (Não é a Primeira Vez que Lutamos por Nosso Amor) e a necessidade de registrar encontros e performances políticas, na preemência da  criação de grupos de ativistas (Rumo) para que assim as “novas gerações” saibam quanta luta foi necessária para que alguns direitos básicos fossem garantidos.

Qual a relação entre produzir um documentário sobre um personagem fundamental de greves acontecidas no começo do século XX, outro sobre a formação de grupos de discussão e ação política no terreno das lutas travestis/lésbicas/gays dos anos 70/80/90 e a história de um grupo ativista negro, fundamental para que a UnB fosse a primeira universidade brasileira a implantar o sistema de cotas no Brasil? Os arquivos – públicos e particulares -, em sua complexidade de conservação, acesso e reelaboração.

Na vontade de produzir um filme como registro da existência de Domingos Passos, importante figura do movimento operário do começo do século XX no Rio de Janeiro, Uilton Oliveira encara a ausência de imagens de seu personagem a partir da produção de episódios ficcionais com os quais intercala o discursivo do filme. Entre páginas de jornais e publicações operárias vai montado uma memória possível de Passos e apresenta um procedimento que que tem se tornado comum nos documentários contemporâneos: buscando na ficção a composição das lacunas que o material de arquivo traz.

Em Não é a Primeira Vez que Lutamos por Nosso Amor, Luis Carlos de Alencar se baseia numa robusta pesquisa sobre a história dos movimentos e associações travestis, lésbicas e gays brasileiras, suas histórias, os núcleos regionais na Bahia, em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, além de trazer em paralelo também alguma história de associações de caráter semelhante surgidas nos Estados Unidos e as discussões que pautaram as reivindicações destes movimentos entre as décadas de 70 e 90.

Contradições internas, as tentativas de aproximação com o movimento operário – aquele mesmo, do ABC Paulista, que nos rendeu um ex-operário presidente – e medidas necropolíticas aplicadas principalmente sobre corpos travestigêneres no Brasil, muito antes que o termo virasse moda, são alguns dos assuntos abordados pelo longa documentário que cumpre papel importante na organização da memória dos movimentos políticos de contestação da binarismo heterossexual. Vale frisar a importância do acesso à arquivos particulares dos entrevistados, ressaltados pelo diretor durante debate pós-sessão.

Nesse sentido também, não fosse uma escolha dos próprios membros do coletivo EnegreSer por uma autoprodução da memória e a salvaguarda desse material em arquivos particulares, um filme tão potente quanto Rumo – dirigido por Bruno Victor e Marcus Azevedo -, talvez não fosse possível. A história do grupo de estudantes negras que se reuniu para reivindicar não apenas as cotas quanto a própria respeitabilidade das existências pretas nos cursos da UNB, acabou por se auto afirmar, na medida em que muitos da grande equipe envolvida na produção do documentário é fruto desse processo contínuo de luta.

“Produzir-se à frente, como uma memória do futuro”, frase do filme Calunga Maior, de Thiago Costa, arremata a ideia de que, para além da pesquisa em arquivos já existentes, é a própria produção de material que se impõe hoje, conscientes de que, independente de quantas gestões antidemocráticas passem por nós, a luta por direitos entre as comunidades negra, indígena, travesti, LGBTQIA+ é uma constante. Pensar seriamente sobre arquivos particulares como alternativa para a não preservação de arquivos públicos demanda experiência no auto registro, na produção de memórias escritas dos encontros, além do cuidado com a integridade desse material.

Em Rumo há também a escolha por uma auto ficção que parece ocupar o lugar de ligação entre os blocos documentais. A solução de sair de um momento ficcional, em que a câmera acompanha um personagem que com a simples quebra da quarta parede, passa da ficção ao documentário, se apresentando e revelando sua ligação com a UNB e o movimento negro contemporâneo que vive a universidade pública em Brasília hoje é um dos maiores acertos do filme.

Sugere uma transição sutil entre tempos sobrepostos, como a própria ideia de escrever o passado enquanto atira uma pedra hoje. As várias possibilidades de uso e também de confronto com o arquivo que estes filmes apresentam sugerem ainda uma abertura para que, numa ecologia em que tantas imagens são produzidas o tempo todo, filmes possam cada vez mais se apropriar desse acervo quase infinito, reelaborando passado e presente na intenção de produzir imagens de futuro para o cinema brasileiro

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Festival de Brasília: Mato Seco em Chamas

Por Geo Abreu

“A única coisa que nos interessa são as nossas lendas, as lendas da Ceilândia.”

Em questão de meia hora, Mato Seco em Chamas resume sua história num prólogo: Chitara se transforma numa das gasolineiras mais respeitadas da Ceilândia e, a partir de seu lote no bairro do Sol Nascente, passa a extrair petróleo e produzir gasolina, abastecendo os motoboys da região. Enquanto aguarda o retorno de sua irmã Léa à liberdade, Chitara constrói sua reputação, atraindo inimigos que tentam tomar sua plataforma à força. Ao se impor à realidade, a heroína se firma como lenda viva daquela comunidade.

Com esse mote de odisseia – uma das personagens segue criando mundos enquanto espera o retorno da outra, que voltará para contar tudo o que viu do outro lado dos muros de uma penitenciária -, o filme acomoda essas interrupções e o desaparecimento de Léa, com cenas sobre o cotidiano do Sol Nascente – essa Ítaca sulamericana -, com a história de Andreia e sua campanha política voltada às mulheres encarceradas, e, claro, com a vida da plataforma de petróleo comanda por Chitara.

A etnografia da ficção, conceito desenvolvido por Adirley Queirós e Joana Pimenta para esse movimento que questiona as estruturas do documentário e as relações do cinema com a realidade encontra em Mato Seco seu melhor desenvolvimento. A extrapolação das histórias de vida das atrizes soma-se ao que seriam possíveis soluções para seus problemas reais executados no campo da ficção, sendo moldadas também pelo fluxo de uma história pública que acompanhamos via noticiário, e que segundo os diretores, molda o filme no seu corte final.

Num movimento pendular de ida e vinda, alguns episódios retornam, como uma história contada repetidas vezes na esquina do bairro. Esse procedimento de repetição é que garante que as trajetórias de Chitara e Léa sejam lembradas por anos, ou enquanto durem as pessoas de sua geração remanescentes do Sol Nascente.

Enquanto procedimento narrativo também, Adirley e Joana trabalham com performances públicas que ajudam a produzir uma memória do filme na comunidade: a constância do trabalho no lote, com o barulho das máquinas em atividade; a produção de todo um aparato ancorado na realidade de uma campanha política para a candidatura fictícia de Andreia (criação de comitê, realização de reuniões, panfletagem e carreata com carro som); as várias rondas noturnas do caveirão Brutus pelas ruas do bairro. A produção dessa memória do filme ajuda a criar a ideia entre os moradores do Sol Nascente de que aquele filme já foi visto.

Esse compromisso com a contra-narrativa, essa que cria memórias e se inscreve no cotidiano das pessoas, marca o trabalho dos diretores, aqui fazendo cinema para a cidade-satélite da Ceilândia que, sem uma sala de cinema sequer, tem como espelhos de si mesma os muros, as ruas e a memória de seus moradores.

É radical propor um cinema que é projetado enquanto se realiza como produto, já que essa é a única possibilidade de exibir um filme na Ceilândia: fazê-lo. Buscando suporte em outras modalidades artísticas, como a performance – da motociata, do caveirão – e a instalação – a plataforma de petróleo no quintal do vizinho– os diretores executam também uma longa observação de personagens reais pinçados da própria comunidade.

Essa observação participante dedica longos planos a um culto evangélico: onde uma criança de colo que acompanha sua mãe já começa a cantar aquelas canções, enquanto fora do templo o mundo parece escoar junto com a chuva que cai na rua sem esgoto. O baile no ônibus libera a energia daquelas mulheres de todas as cores e tipos de corpos, que se esfregam e se beijam porque o desejo das trabalhadoras precarizadas é do final de semana, é da boca das amigas, é ritmado pelo funk. Já quase no fim do filme, vemos os documentos do processo que levou à prisão de Léa acompanhados da sua leitura em voz over e é impressionante como nenhuma informação espanta porque já conhecemos muito da personagem, a partir de sua performance como narradora das próprias histórias, aquelas que não passaram pelo processualismo judicial mas, formam a figura, o arquétipo da guerreira urbana, o mito, a lenda do Sol Nascente.

Operando entre ficção e inscrição em processos reais, Adirley Queirós e Joana Pimenta levam Mato Seco em Chamas a tomar uma materialidade expandida que radicaliza não só a forma, mas a essência do cinema, a vida mesmo como obra de arte, já nem tão burguesa assim (e ainda bem).

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