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OBITUÁRIO: WILLIAM FRIEDKIN

Bêbado de azul e vermelho: William Friedkin está vivo

Por Rubens Fabricio Anzolin

     A função cinematográfica se mostra então eminentemente
favorável à obra inovadora do demônio.

(O cinema do diabo, de Jean Epstein)

O olho. A testemunha, a chave de acesso por onde entra o demônio, o portal que permite transformar-se em outro. Os olhos arregalados de Max Von Sydow em O exorcista, o desatino fulgurante de Al Pacino em Parceiros da noite, a fúria sombria de Benício del Toro em A caçada. O gesto de olhar: atingir algo, fitar um objeto, absorver e ser absorvido. Tudo começa no olho — depois do olho nada mais é igual. Tudo no cinema de William Friedkin é sobre o olhar.

O corpo. Corre desmedidamente. Sua, agita-se, dobra-se e retorce, tal qual uma massa de modelar. O corpo é uma plataforma, que zanza incessantemente por todos os lados, rápido e arteiro, mas também frágil e sensorial. É um sintoma do meio: o corpo adere àquilo que está ao seu redor, é o instrumento pelo qual instala-se a selvageria, o caos, o conflito. O corpo possui e é possuído. Tudo no cinema de William Friedkin é uma questão de possessão.[1]

As coisas. Deslizam. Às vezes ligeiras demais. Às vezes lentamente.  Chocam-se até se converterem em rastros pelo ar. As coisas pegam fogo, tornam-se pólvora, viram partículas de guerras interiores e exteriores. É difícil capturar as coisas, elas se alternam rapidamente, trocam de dono, de aparência, de usabilidade. As coisas são para o bem e as coisas são para o mal. Tudo no cinema de William Friedkin é sobre como filmar as coisas, como dar movimento à matéria do mundo de modo que até o mais estático dos enquadramentos adquira uma energia caótica.

A topografia. Localiza cada um dos personagens em um breu, radiografa seus sentimentos. Não se trata de uma mera questão de geografia, é sobretudo um estado de espírito: Comboio do Medo e Parceiros da Noite são filmes terrivelmente azuis; O exorcista é embalsamado, fosforescente e esfumaçado, composto de neblinas; Viver e Morrer em Los Angeles queima a pele, é indissociavelmente vermelho, como também o é Possuídos, mas dessa vez com um vermelho diferente, um vermelho cristal, refletido, quase branco. Caçado é gelo. Tudo no cinema de William Friedkin é sobre ficar embevecido de cores e estágios mutáveis de sensações, é sobre um estado de espírito dominante, avassalador, quase homogêneo.

Os homens. São braços do estado, da instituição, do status quo. São também a ponte para que cada um desses órgãos, da polícia ao FBI, da Igreja ao exército americano, sejam corrompidos pela indissociável, mágica e cruel realidade do mundo real. Os homens de William Friedkin — e seus filmes em boa parte são sobre isso, homens — são frágeis e indeléveis. Eventualmente podem ser cruéis, mas são sobretudo frágeis, carcaças quebradas de um mundo mecanizado que sucumbe aos seus próprios traumas e mistérios. Tudo no cinema de William Friedkin é sobre traumas e mistérios, sejam eles do corpo, da carne ou do sobrenatural. Nenhum de seus personagens passa ileso a eles.

A madrugada. Foi onde conheci os filmes de William Friedkin. Suas obras me educaram no calabouço das madrugadas quando não havia nada que poderia parecer mais aconchegante e desafiador do que uma imagem de dois carros se chocando vertiginosamente pelas ruas de Los Angeles ou Nova York. Não haveria nada de mais enigmático que o rosto celestial de um jovem Willem Dafoe sob o bálsamo de uma magnânima luz vermelha numa câmara de revelação de fotografias. Afinal de contas, colocar fogo em todas as coisas sempre foi uma opção das mais razoáveis, e ele fazia isso como poucos. Tudo no cinema de William Friedkin é sobre colocar fogo em todas as coisas, ativar aquilo que foi esquecido ou deixado de lado, dar à matéria outra significação que possa parecer a destruição total ou o acendimento de uma nova partícula de força sob a luz das chamas. 

Se William Friedkin está morto, coloquemos fogo em suas vestes, para que ela possa transformar-se então em outra coisa, para que o sujeito possa ser possuído pelo outro tal qual seus próprios personagens. Não poderá haver inércia, é tudo movimento.

William Friedkin está morto: ele está mais vivo do que nunca.


[1] Luiz Fernando Coutinho escreveu um texto exemplar sobre possessão no cinema de William Friedkin. Algumas de suas ideias estão neste parágrafo. https://limiterevista.com/2021/03/30/a-possessao-no-cinema-de-william-friedkin/

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CINEMA E SILÊNCIO

EDITORIAL – CINEMA E SILÊNCIO

Chico Torres

MAL TROPICAL: O RASTRO DO RASTRO

Luiz Soares Jr.

DO SILÊNCIO ÀS PALAVRAS DOS OLHOS: DISINTEGRATION LOOPS 1.1.

Pedro Tavares

DÉPAYSEMENT: SILÊNCIO E RECUSA EM LA NOIRE DE

Ana Júlia Silvino

ANOTAÇÕES SOBRE QUEBRAR O SILÊNCIO: ASSISTINDO HOTEL MONTEREY E THREE LANDSCAPES

Gabriel Papaléo

É PRECISO QUE OS MORTOS FALEM

Chico Torres

PARA AQUILO QUE SOBREVIVE

Luiz Pretti

ISSO E NADA MAIS

Waleska Antunes

ENTREVISTA: LEWIS KLAHR

Pedro Tavares

QUATRO FILMES CURTOS

João Pedro Faro

À SOMBRA DA SAUDADE

Gabriel Moraes

DESCRIÇÃO SILÊNCIOSA: REASSEMBLAGE (Trinh T. Minh-Há)

Geo Abreu

RUÍDO E SILÊNCIO: NEAR DEATH (Frederick Wiseman)

Bernardo Moraes-Chacur

THE BROWN BUNNY OU AS FLORES NA ESTRADA

Gabriel Papaléo

A MELODIA MUDA DO DESTINO: O SILÊNCIO (Mohsen Makhmalbaf)

Felipe Leal

OBITUÁRIO: WILLIAM FRIEDKIN

Rubens Fabrício Anzolin

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Festival ECRÃ: Vermelho Bruto (Amanda Devulsky, 2022)

Outros caminhos

Por Chico Fireman (@filmesdochico)

Deve ter sido bem dolorido para Alessa, mãe de Raquel, 9 anos, tentar acalmar a filha, que “queria ter virado o voto do vovô”, quando a menina se deu conta da eleição de Jair Bolsonaro. É um dos momentos mais tocantes — e mais transformadores — de “Vermelho Bruto”, primeiro longa-metragem de Amanda Devulsky, tanto pela comoção de uma mãe que, com a voz embargada, tenta acreditar ao dizer que nem tudo estava perdido quanto pela potência que esta cena encontra dentro da escolha formal da diretora: num documentário que apresenta as histórias de quatro mulheres, raramente vemos os rostos destas personagens.

Com origens, classes sociais e estruturas familiares diferentes, Alessa, Eunice, Fabiana e Jô têm em comum o fato de terem sido mães ainda adolescentes, em Brasília, no período da redemocratização do país, entre 1985 e 1995. Projeto antigo da cineasta, o filme se apóia basicamente em duas matérias-primas: imagens de arquivo destas mulheres e registros feitos por elas mesmas ao longo de 2018, ano-chave para a captação do conteúdo. Justamente o momento em que a democracia brasileira entrou em crise. Um ponto de partida que parecia traçar um estudo sociológico, já que o filme aborda rejeição, machismo, responsabilidades antecipadas e dificuldades econômicas.

Mas as escolhas são bem diferentes. Quando decide, num documentário de personagens, que essas histórias serão contadas só por suas vozes, sem o ponto primordial de reconhecimento de alguém, o rosto, Devulsky assume o risco da falta de identificação e é mesmo difícil estabelecer quem é quem nos primeiros relatos do filme. Além disso, os trechos de voice over são intercalados por uma terceira gama de imagens, abstratas, poetizadas por filtros, zooms, recortes e sobreposições, retiradas dos arquivos ou dos registros que as personagens fazem do cotidiano. O efeito desta dinâmica pode ser frustrante para quem acredita que um documentário precisa ter um recorte efetivo, mas liberta o filme de um cárcere formal.

“Vermelho Bruto” pode ser associado a um cinema de fluxos que tem ganhado muitos e diferentes exemplares nos quatro cantos do mundo. Um cinema em que o não dito tem tanto ou mais importância que o dito e, inclusive, o completa, projeta e distorce. Por isso, é tão simbólico quando, num filme que parte de histórias individuais para representar um estado de espírito, um incômodo, uma condição, algo muito mais amplo e impalpável, se recorra repetidas vezes às imagens de fungos que, vistos de tão perto, parecem composições estelares. Se foge ao desenho mais íntimo de cada uma destas mulheres, Devulsky, numa escala dilatada de espaço e tempo – quase 3h30 de duração -, discute a existência, feminina ou não.

Um caminho curioso para a coautora das comédias dramáticas cheias de ironia de Marcus Curvelo. Mas, como responde Jô, num dos vários momentos em que o filme se abre para a intimidade de suas personagens, tudo é sobre por onde seguir:

Tá sumida!

Eu não, percorri outros caminhos.

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Festival ECRÃ: SINF0N14 (Raúl Perrone, 2022)

Amor pelas imagens

Por Chico Fireman (@filmesdochico)

Na sequência final de “SINFON14”, atração do Festival Ecrã, o veterano argentino Raúl Perrone parece tentar desconstruir seu filme. A trama, se é que alguma obra do cineasta pode abrigar esse conceito, já acabou e numa cena de bastidor, em preto-e-branco, ele conversa com seu protagonista, Edgardo Cozarinsky. Entre várias outras coisas, diz que as imagens mais belas que ele já captou são aquelas em que seus atores mal sabem que estão sendo filmados. Registros espontâneos de beleza pura. Pode até estar sendo fiel a seus sentimentos e ao que enfatiza (“imagens que captou”), mas se há um diretor atual que consegue fazer artesanato em seus filmes, este é Perrone. “SINFON14” é a prova disso.    

Como em “Casanova e a Revolução”, os personagens, nobres aristocratas, dividem uma carruagem, mas ao contrário do longa de Ettore Scola, em que uma fotografia clássica ilumina rostos conhecidos, aqui o cenário é noturno e a viagem, profana e lisérgica, ganha tons e representações fantasmagóricas. Em praticamente todas as cenas, Perrone explora essa atmosfera sobrepondo imagens, distorcendo, dilatando e multiplicando rostos, criando pinturas em composições exuberantes ao longo de todo o filme. É um caminho curioso porque esses quadros que partem da deformação, como se simbolizassem a perversão sexual daquelas pessoas, encontram resultados que se não negam, complementam a busca do diretor. São registros construídos, mas de beleza pura.

Essa construção reforça uma obra que se move entre onírico e o herege, que não tem intenção de ser decifrada, que existe pela força das imagens que consegue produzir.

A busca por dar significados extras às imagens é o motor de outro filme presente na programação do Ecrã, o colombiano “Testemunhas Silenciosas”. Neste caso, as imagens dos filmes são “roubadas” de outras criações, obras da época do cinema silencioso que o também veterano Luis Ospina decidiu resgatar sob a ideia de criar uma narrativa completamente nova a partir delas. Com sua morte, Jerónimo Atehortúa Arteaga assumiu a tarefa, adicionando uma nova camada de resgate ao projeto. Enquanto Perrone cria imagens para estabelecer o ambiente de seu filme, Ospina e Arteaga reagem a imagens criadas por outros para transformá-las e, em algum nível, honrar sua própria memória. Em ambos os casos, são dois filmes que olham para a matéria-prima no cinema apaixonados pelo poder que ela tem.

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Festival ECRÃ: Mangostão (Tulapop Saenjaroen)

Por Chico Fireman

Um voice over didático e cadenciado sugere, ao lado de imagens funcionais filmadas em digital, que veremos um daqueles documentários de observação sobre o funcionamento de algum sistema industrial, gênero muito comum nos dias de hoje. Em detalhes, o narrador explica a mecânica de uma fábrica onde o bagaço de uma fruta típica do Sudeste Asiático é separado da polpa e reprocessado algumas vezes para que se extraia o suco. Mas “Mangostão”, média-metragem batizado com o nome deste fruto, tem outras ambições e uma delas é provocar estranhamento.

A mesma voz doce e professoral nos apresenta Earth, um homem que volta, depois de muitos anos, para sua cidade natal e reencontra a irmã, que administra a fábrica. Após introduzi-lo, o narrador passa a, deixando claro seu papel como condutor da história, interpretá-lo. É só o começo de uma série de “interferências” com que o diretor Tulapop Saenjaroen subverte a estrutura inicial. O registro documental vai se alternando com uma investigação psicológica de Earth. E mesmo esse registro se desdobra quando a narração, a princípio tão oficial, passa a elencar as falhas das máquinas da fábrica.

Earth, para o narrador, é como se fosse uma destas falha. Ele suspeita de que seu retorno não é apenas uma visita, contrapondo as visões diferentes que os irmãos têm de mundo. Os registros mudam, a mistura o documentário com a ficção se acentua, o protagonista de poucas palavras se opõe a um narrador com muitas ideias e tudo isso alimenta uma atmosfera de mistério que contrasta com o tom um bocado melódico da narrativa. O filme adota um caminho mais introspectivo e menos palpável quando Earth se refugia no hobby antigo de criar histórias com personagens violentos que insinuam os sentimentos que tem por sua família.

Tanto a presença de um narrador quanto a decisão do protagonista de virar escritor, que ainda reverbera em outra decisão parecida na trama, indicam que, mais que contar uma história, Tulapop Saenjaroen quer falar sobre contar histórias. E nesta pequena joia chamada “Mangostão”, ele faz isso reprocessando memórias, rancores e a própria lógica da estrutura que propõe para mergulhar e transformar os tecidos desta narrativa.

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Festival ECRÃ: Cinemas fantasmas

Cinemas fantasmas

Por Chico Fireman (@filmesdochico)

Seis filmes exibidos no primeiro dia do Festival Ecrã são, pelos caminhos mais diversos, sobre fantasmas. Curtas, médias e longas-metragens que procuram preencher ausências e lidar com os vestígios de alguém ou alguma coisa que sobrevive como espectro.

Aquele que lida mais diretamente com o tema talvez seja “Gargaú”, de Bruno Ribeiro, em que o diretor coloca os amigos num carro e vai para a cidade onde foi criado no interior do Rio. Embora sua avó, Dona Graça, pareça ser a protagonista do filme, a personagem que amarra toda a trama nunca está em cena: a mãe de Bruno, que ele havia acabado de perder. Essa viagem de volta, que ele constrói a partir de uma mistura de documentário de memórias, comédia nonsense e filme de bastidores em que muito é encenado, também se transforma numa forma de se reconectar com sua origem. No média “Aposentadoria ou A Última Casa do Meu Pai”, Julie Pfleiderer inverte o jogo. Ela convida o pai, um arquiteto que terminou colocando a profissão a frente da família, para construir uma última vez. Enquanto os dois fazem uma maquete cheia de detalhes, ela questiona porque a presença dele em sua vida foi tão distante. Acertos de contas diferentes com o imaterial.

O “fantasma” de “Licantropia”, de Janaína Wagner, é um conceito. Alternando diversas técnicas e suportes visuais e sonoros, variando do mais narrativo para o impalpável, ela investiga como o lobisomem, a criatura mitológica que nos assombra serviu para tornar mais assimiláveis os crimes mais grotescos — dos homens. A própria diretora lembra que a concepção fantasiosa que virou doença diagnosticada se desenvolve numa lógica misógina: enquanto mulheres foram queimadas como bruxas, os criminosos do sexo masculino eram tratados como pacientes. Se o curta de Wagner tenta decifrar o fantasma, “Quem de Direito”, de Ana Galizia, quer afastá-lo. Com depoimentos, imagens de arquivo, gráficos que ganham a intervenção de seus personagens, ela remonta a luta de uma população que tenta impedir que uma barragem não transforme sua comunidade numa terra devastada.

Já em “8 de Março de 2020: Uma Memória”, o fantasma está no que (não) vemos. Fırat Yücel se volta para o cenário de uma manifestação que reuniu milhares de pessoas através dos olhos de câmeras de segurança. Um espaço que ficou completamente vazio durante a pandemia, mas que, mesmo fantasmagórico, não deixou de ser registrado, provocando um estranhamento incomum. Quando nossos olhos, treinados para enxergar, vêem nada, para onde olhar? É uma dinâmica completamente oposta da vista em “Espaço Liminar”, que Gabriel Papaléo dirigiu inspirado pelo cinema de ação de Albert Pyun, mas com táticas que criam uma experiência atmosférica que acrescenta diferentes camadas a essa homenagem.

Nesse longa-quimera em que atravessa o thriller sensorial, a ficção-científica B e o romance clássico, o fantasma é uma mulher que desaparece entre dimensões por causa de um fenômeno científico. Papaléo costura esses caminhos tão diversos através de uma combinação de escolhas – cores estouradas, jogo de luzes, trilha atmosférica, realidade virtual – que estabelecem um universo paralelo, um cinema-fantasma que foge à lógica da verossimilhança, mas que não cai no conto do absurdo pelo absurdo por conta da textura afetuosa que faz com que o projeto pulse de uma maneira muito particular.

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No Cemitério do Cinema (Thierno Souleymane Diallo, 2022)

Visto no Olhar de Cinema 2023

Por Geo Abreu

Cinemas decoloniais seguem morrendo

Foram dois filmes ou mais? Num festival de cinemas contemporâneos, alguns filmes feitos em países subalternos trazem figuras de morte ao falar de suas cinematografias e assim se somam. Carros fúnebres e fantasmas são usados como condutores das histórias escolhidas pela curadoria do Olhar de Cinema. Na simbologia do tarô, a carta da morte na verdade significa renascimento, algo novo que se aproxima. E no primeiro longa-metragem de Thierne Souleymane Diallo todo o discurso parece se organizar para enganar o sentido comum da morte.

Enquanto o diretor sai em busca de um filme-fantasma rodado em 1953 na Guiné e hoje desaparecido, a cada etapa importante vai até a mãe para pedir sua benção, seguindo a jornada sempre descalço. Quando confrontado a esse respeito, responde que aquilo é uma forma de protesto pelo fato de que sua pesquisa não seja propriamente apoiada financeiramente, e que, portanto, não lhe sobra dinheiro para comprar sapatos. Mas estar sem sapatos andando pelo mundo é também bastante simbólico, e entre tantas possibilidades pode tanto representar humildade, a lembrança dos africanos escravizados que não podiam usar calçados ou também o contato via aterramento com seus antepassados.

Pra mim significa a coragem de fazer do mundo a sua casa, o seu terreiro. Enfrentar o mundo descalço passa também a mensagem de que nada o impedirá de continuar caminhando. E homens mortos não caminham, tampouco carregam seu cinema por aí.

Souleymane está vivo, enquanto os arquivos que encontra pelo caminho não estão. Na antropologia contemporânea é comum a ideia do arquivo como uma prática colonialista. Na Guiné, com a força de sua tradição oral, arquivos físicos tem tanta importância quantos os sapatos de Diallo. “Tudo está arquivado na Cinemateca Francesa” diz um antigo cineasta e professor.

Antes de chegar à França, o diretor passa por diversas turmas de iniciação ao cinema, usando câmeras de papel e a oralidade como artifícios cinematográficos: Seus alunos devem voltar para sala de aula, depois de gravarem seus filmes na memória, e contar o que acontece neles para toda a turma. Lembra um pouco da magia de Rebobine, por favor! de Michel Gondry, que mostra uma comunidade reunida para refazer um filme perdido.

Passando por turmas de adultos e crianças o diretor, enquanto professor, incentiva o uso de materiais e histórias que estão disponíveis no repertório de seus alunos, e nada mais próximo do método Paulo Freire do que a significação do cotidiano para incentivar a aprendizagem. Aliás, para quem já foi oficineira de audiovisual, esse filme é como um abraço. Assim, na esteira de toda a falta de estrutura e recursos que se apresenta sobre o cinema da Guiné nesse filme, posturas como a de Souleymane Diallo subvertem a ideia de falta (ou de morte) e apontam caminhos para a propagação da prática e do amor pelo fazer cinema.

No final das contas, a jornada empreendida atrás do filme citado por estudiosos do cinema africano como um dos primeiros a serem filmados após os processos de descolonização das colônias europeias na África serve apenas como pano de fundo para a caminhada do diretor. Na verdade, ninguém se importa com a materialidade do filme desaparecido: a partir de um texto e do reconto da lenda que dizem fazer parte dele, Souleymane refaz o filme, usando todas as técnicas de que dispõe – da oralidade a improvisação de materiais – para deixar gravada uma mensagem: a de que o cinema da Guiné está vivo.

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Anhell69 (Theo Montoya)

Visto no Olhar de Cinema, 2023

Por Geo Abreu

“Me encantei pelo cinema porque era o único lugar em que eu podia chorar”

Theo Montoya é o narrador de seu filme, que começa e termina em seu quarto na cidade de Medellín, Colômbia. O amor que vai descobrindo pelo cinema o leva a registrar os momentos que divide com os amigos, muitos deles criativos: se transvestem, se maquiam ou simplesmente curtem roupas e acessórios.

Montoya então pensa num filme: num universo em que humanos e fantasmas se comunicam, ele e seus amigos produzirão festas e encontros espectrofílicos, a partir de um app de paquera específico. Logo que um humano transa pela primeira vez com um fantasma, a prática se transforma em febre entre os jovens, que passam a ser perseguidos e presos por isso.

Durante o casting proposto para este filme somos apresentados aos personagens: todos homens, jovens e gays. Entrevistados, conhecemos um pouco de suas histórias e desejos. Temas perturbadores surgem destas conversas: suicídio, vício, abandono e a prática de pequenos delitos ajudam a compor um retrato daquela juventude.

O diretor finalmente acha seu protagonista: Cami, figura que usa o nome de anhell69 nas redes sociais. Dias depois da entrevista, Cami está morto e uma espécie de maldição se abate sobre o filme espectrofílico: vários dos participantes do casting desaparecerem. Daí em diante a ideia do filme se transforma e Montoya passa a investigar o desparecimento violento de tantos rapazes da sua idade em Medellín.

A ideia dos fantasmas se mantém. As imagens aéreas da cidade à noite ajudam a criar o efeito de distopia, com figuras de olhos vermelhos e vestidas de preto que guardam a cidade de cima, como esperando o sinal de suas próximas vítimas. O diretor passa a percorrer a cidade num carro fúnebre dirigido por um de seus ídolos, o diretor Victor Galvíria. O cinema colombiano então é um rabecão. Dentro dele, num caixão, está o futuro. No guidon, seu passado.

Tão profundo quanto plasticamente belo, Anhell69 transforma garotos em anjos perdidos numa cidade amaldiçoada, com fantasmas sempre à espreita. Uma juventude que é pintada meio morta em vida, partilhando sonhos simples e impossíveis. Ao mesmo tempo, sinaliza o terror cotidiano de tantas cidades latino-americanas entregues a falsas guerras anti-drogas, cujas engrenagens parecem servir a um genocídio em massa.

Transformar a dor em algo tão bonito quanto esse filme deve ser também uma maldição terrível.

Um abraço, Montoya.

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Notas do Eremoceno (Viera Čákanyová)

Visto no Olhar de Cinema 2023

Por Geo Abreu

Um álbum de imagens perdido no sotão

Dizer que este filme é mais um a trabalhar com a ressignificação de imagens de arquivos públicos e privados e também com a ideia de ficção distópica é fazer uma leitura rasa dele. Acredito que essa profusão de filmes que pensam o mundo pós humanidade ajudam também a refinar o argumento, e é assim que Notas do Eremoceno se apresenta.

Viera Čákanyová cria um universo em que o humano e o analógico estão desaparecendo, enquanto a imortalidade via memórias digitais se configura como num jogo de multientradas. Nesse processo, a protagonista, um ser bastante curioso, percorre seus arquivos pessoais em busca de rastros da língua eslava e sobre a civilização botomori, aquela que deu lugar a humanidade. 

Considerando um tanto piegas que Eremoceno seja traduzido como a civilização da solidão, podemos passar por cima disso enquanto observamos a forma como algumas imagens de paisagens e animais são ampliadas e reconfiguradas dimensionalmente, explorando uma realidade desconhecida e suas possibilidades de preenchimento de um espaço tridimensional na realidade bidimensionalizada dos dados, nos pondo no lugar daquela protagonista que já não possui conhecimento sobre a existência de um corpo, do mar ou de um sapo. Tudo são apenas imagens que podem ser tratadas plasticamente e a partir de vários artifícios sem com isso conseguir materializar a experiência de um banho de mar ou do naufrágio de um barco. 

A ideia da comunicação via bastões de cristal nos lembra os universos comunicacionais de Ursulla K Le Guin e a ampliação do estatuto de humanidade a outros seres mais que humanos. Essa humanidade ampliada pela ideia da imortalidade virtual ao mesmo tempo em que o humano perde a soberania sobre o mundo é uma das possibilidade aventadas por esse pequeno filme, que joga com apenas alguns fatores possíveis de um futuro cada vez mais automatizado e nossa terceirização das memórias. No fim podemos pedir que a assistente virtual toque nossa música predileta enquanto nos perdemos mais uma vez no universo de dados que chamaremos um dia de eu.

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Revisitando “Caixa Preta” (Bernardo Oliveira e Saskia, 2022)

Visto no Olhar de Cinema 2023

Por Georgiane Abreu

“Aprendi a entrar pelos fundos quando se convencem de que eu não volto mais”

Alguns minutos de tela preta, música ao fundo. Um descanso ativo para mentes cansadas de desentendimento, de sequestros de protagonismos e falsos apaziguamentos. As vozes de Bernardo Oliveira e Negro Léo se alternando em embalar imagens em diferentes qualidades, sem vontade alguma em ser didáticos, seja com relação a raça, religião ou montagem. 

Saskia por sua vez entrega uma narrativa onde o som é a linha que devemos seguir para aproveitar a experiência de estarmos “como cachorros dentro d’água no escuro do cinema”: perdidos, incomodados e sem farol. O melhor é se deixar flutuar;  fechar os olhos e ouvir as histórias como nos tempos em que não se escrevia nem se filmava.

Caixa Preta opera com os arquivos de forma muito semelhante ao que produz Arthur Jaffa em seus filmes e videoclipes, forma que se tornou também elemento constante em alguns episódios de Atlanta: usar a torrente de imagens com a qual estamos aprendendo a lidar e conviver numa sobreposição maníaca, que flui e devolve violência,  opacidade e desentendimento. 

Difícil de classificar pelo excesso de sentidos possíveis, dos gatilhos disparados e dos traumas (você escolhe fugir ou encarar?). No final, é melhor mesmo nem entender o que canta aquela pastora. Aceite o transe e deixe o corpo responder.

Link para o texto original sobre “Caixa Preta” por Georgeane Abreu.

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Desvío de Noche. (Paul Chotel e Ariane Falardeau St-Amour)

Visto no Festival Olhar de Cinema 2023

Por Georgiane Abreu

O encontro dos diretores com a vila mexicana de Zipolite promove a abertura de uma espécie de portal para a cosmologia daquele povo e suas histórias, muitas vezes particulares e noutras vezes a repetição de contos sobre o amor, a saudade e o surgimento do universo. 

Entre o nascimento e o desaparecimento de pessoas e estrelas cadentes, Zipolite e seus moradores – entre eles a patinadora Violeta Martinez –  surgem a partir de suas histórias como ponto de partida para as investigações dos diretores sobre luz e escuridão, superexposição e camuflagem, assim como o eclipse que dizem ser o mito fundador daquela vila, formada a partir do ajuntamento de pessoas que foram até ali para apreciar o fenômeno natural, a caracterizado pela gradativa escuridão.

Inicialmente utilizando procedimentos documentais, o filme parece partir de uma etnografia que, por falta de subsídios baseados na escala do real, segue naturalmente o detour da ficção, avolumando-se nesse sentido, criando camadas e mais camadas de histórias, que vão a cada vez retornando ao ponto inicial, como a serpente do tempo cíclico. Experimentando imagens de caráter pictórico,  aproximando o céu do eclipse e das estrelas com o chão da vila e suas pedras iluminadas pela luz da lua, o segundo momento do filme, que desvia para a noite, como sugere o título, é o que guarda suas melhores performances .

Momentos em que o descontrole é a medida e a ficção toma conta de tudo ao ponto de estarmos diante de uma narrativa sobre o surgimento do universo e suas primeiras personagens, ainda perdidas num tempo sem antes e nem depois. Assim como a personagem de Tilda Swinton em Memória, de Apichatpong Weerasethakul, parece ser uma caçadora de histórias cuja sensibilidade a faz mergulhar de cabeça no universo das personagens que encontra até o ponto de borrar os limites da temporalidade, os diretores de Desvío de Noche se deixam levar pelas possibilidades que encontram nas histórias que lhes são contadas, extraindo delas as rupturas, jogando assim com a matéria tempo como só o cinema é capaz.

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Entre o artifício e a performance: por um cinema de ação formalista (John Wick 4: Baba Yaga, Chad Stahelski, 2023)

Por Gabriel Moraes

O quarto filme da franquia John Wick é o projeto mais minimalista e formalista – quiçá até um tanto experimental – da franquia até então. Nenhum outro tinha secundarizado pretensões de drama e conflito tão radicalmente em relação à imensa sofisticação dos set pieces, das grandes cenas de ação quanto este – embora o terceiro fosse já uma guinada significativa no caminho dessa concepção estética. O protagonista fala pouco e todos os personagens à sua volta não fazem muito mais do que o necessário para avançar a narrativa de modo funcional e o esperado para manter em ordem a organização básica dos elementos de mitologia que foram construídos pelos filmes anteriores.

A impressão é de que o filme é um grande laboratório do cinema de ação, uma empreitada pensada para colocar à prova um acervo de especulações a respeito de como uma cena de ação-espetáculo pode ser coreografada, iluminada e decupada. Se o primeiro filme, por exemplo, tinha fortes interesses sobre questões de trama, sobre construção de mitologia e sobre as implicações políticas daquele universo de fabulação, aqui poderíamos dizer que, embora essa mitologia e essa política ainda estejam sem dúvida em jogo, elas são mais ou menos recicladas, não trazem novas ideias. As conclusões que se poderiam tirar sobre ambas neste filme poderiam perfeitamente se fazer a partir dos filmes anteriores.

O que há de particularmente instigante aqui, justamente por isso, talvez esteja na contramão dos instrumentos interpretativos de que se valem aqueles que hoje parecem fazer o coro e a interface da conversa sobre cinema que ocupa majoritariamente as redes. Dizer que John Wick 4: Baba Yaga (2023) é um filme superficial nos termos que se convencionou usar essa palavra no contexto de leitura dos filmes não é nenhum absurdo. A questão mesmo seria lidar com a noção de que ele não é menos brilhante por conta disso. Afinal, se os critérios de “superficialidade” e “densidade” são tão decisivos para um modelo de interpretação que se dá sempre exclusivamente pelo texto e pelas temáticas, o que significa supor a potência de uma obra pela chave do seu suposto negativo? Em primeiro lugar, neste caso, seria dizer que o problema é da ordem da forma, do estilo, da poética.

O filme tem uma lógica narrativa que habita algum lugar entre os jogos de videogame e uma atualização hipermoderna de um cinema de atrações. O protagonista está constantemente passando de fases e derrotando chefões, motivo pelo qual os materiais narrativos que fazem as ações se encadearem são tão mais abreviados do que as ações em si. É algo também evidenciado pelo fato de que o protagonista aparentemente não carrega seus ferimentos de uma sequência à outra, diferente dos filmes anteriores – como no primeiro, em que ele precisava de um refúgio para se recuperar do custo físico das batalhas. Aqui ele é uma máquina de combate imparável e, em cada set piece, está inteiramente renovado em relação ao anterior, ainda que tudo ocorra, supostamente, em um curto período de tempo.

Outro elemento que John Wick 4 incorpora dos jogos e se apropria para pensá-lo como um método para se fazer e encenar cinema é a maneira com que situa a ação dos personagens em relação aos espaços diegéticos. Algumas cenas são exemplos chave disso, como a da boate e a que ocorre nas ruas de Paris em pleno movimento, próximo ao Arco do Triunfo. Em ambos os casos, os ambientes estão em um plano de realidade distinto do da ação. Ao mesmo tempo que produzem interações reais com os personagens – o protagonista esbarra com as pessoas na boate, é atropelado por carros na rua – os ambientes são configurados para existir e funcionar de forma completamente impassível diante das ações que se desenrolam neles. São paisagens com elementos pontuais de interação: a violência na boate, com lutas e tiroteios, não gera quase nenhum alarde instantâneo nas pessoas ao redor, que continuam a dançar de maneira tão sincronizada que parecem mesmo personagens não jogáveis de um videogame – em contraste com o primeiro filme, cujas cenas de combate na boate geravam espanto imediato no espaço. Igualmente, os carros continuam passando na rua como se nada de extraordinário estivesse ocorrendo, ao invés de ter uma paralisação do trânsito, o que seria o resultado mais óbvio.

Quando as pessoas de fato saem da boate em bando – e John Wick tenta se misturar na multidão –, é uma resposta diegética tão atrasada e distante do calor da ação anterior, que é até desconexo, quase cômico, e percebe-se, por esses gestos, que o filme há muito já jogou quaisquer concepções de “realismo” ou “verossimilhança” pela janela. As pessoas saem naquele momento porque é o que é conveniente ao filme, porque a narrativa precisa prosseguir e porque não há muita parcimônia ou meias intenções na instrumentalização consistente dos pequenos artifícios com os quais se amarra uma trama. Se em outros filmes algo dessa ordem poderia ser um problema, um sinal de desleixo ou falta de cuidado com a construção da narrativa, aqui tudo faz parte de uma unidade estilística de ambições estéticas bem apuradas.

Como, por exemplo, racionalizar, através dos aparatos de interpretação que operam tão fixamente sobre a coerência do texto, a cena em que John Wick cai da janela de um prédio em cima de um carro – ao ponto de aparentemente destruir o carro –, levanta e continua andando sem grandes dificuldades? Ou, ainda, a cena em que ele rola por centenas de degraus de uma escadaria e se levanta para subi-los todos de novo deixando mais alguns corpos pelo caminho? Qualquer coluna teria sido arrebentada bem antes do fim da queda. À certa altura, é preciso assumir que o filme não só é inteiramente consciente do tipo de leitura que está suscitando, mas que está ativamente jogando – diria até zombando com elegância – com as expectativas que se produzem a partir dela. Que o impacto do corpo sobre o carro seja tão plasticamente tátil ou que a cena se delongue tanto no protagonista rolando lance após lance de escada por longos segundos mostra um pouco do sistema de prioridades no qual o filme se apoia: por mais que o contexto narrativo ao redor da ação tenha pouco “realismo”, coerência ou verossimilhança, a ação é sempre muito sentida, sempre acontece para existir nos limites do seu impacto possível.

Basta pensar em uma cena filmada em plano zenital – com a câmera paralela ao chão, olhando diretamente para baixo –, na qual o protagonista elimina diversos oponentes com uma arma de efeito explosivo e que é axiomática dos pontos de partida e dos protocolos do filme. Se, por um lado, poderíamos dizer que é uma cena concebida a partir de uma estética específica dos jogos – e que, por esse motivo, manifesta tão limpidamente a ferocidade com que o protagonista enfrenta obstáculos e vai do ponto A ao ponto B –, por outro é também a enunciação do jogo performático: a ação, vista por cima, através de falsas paredes, de um teto falso, com os dispositivos ilusionistas à mostra sem pudor, não poderia ter mais cara de estúdio, de artificialidade. Quando o filme corta entre esse plano e a decupagem mais convencional ou “realista” no interior da mesma sequência e forma unidade a partir disso, os dois – a imersão e o artifício – passam a ser complementares e não opostos. Colocar o maquinário ilusionista a céu aberto não subtrai a experiência ou barra as potenciais relações de engajamento com a ação, mas sugere especialmente o contrário: que o prazer com os set pieces, com essa ação cheia de fisicalidade e valor de produção típica do cinema de ação é, acima de tudo, estético.

O vilão Killa, interpretado por Scott Adkins, é bastante representativo desse lugar de tensão que o filme tenta ocupar entre o que se presume que ele deveria ser e o que ele é. O arquétipo que o personagem de Adkins é, a princípio, desenhado para corresponder, é o do vilão frágil que se faz poderoso pelos seus recursos. A cena que o introduz não sugere tanto uma ameaça física significativa quanto uma personalidade sagaz. Por isso, o que se segue, quando os personagens sentados na mesa de pôquer se rebelam, é que o vilão tenta fugir a todo custo justamente porque seus recursos – no caso, os capangas – estão em crise. Quando ele não só enfrenta John Wick como o derrota em um primeiro momento, é chocante pelo mesmo motivo que não se esperaria ver o Pinguim trocando socos com o Batman.

Em seguida, uma outra camada de surpresa surge através do seu estilo de luta, que não corresponde ao arquétipo com o qual ele estaria se associando a partir do início da luta contra o protagonista – o do vilão que usa o perfil de fisionomia como o seu para estabelecer poder, dominância e hierarquia. Uma comparação óbvia é uma figura como o Rei do Crime, vilão dos quadrinhos do herói Demolidor, cujo porte físico se assemelha ao de Killa. Não é difícil perceber como o estilo de luta de Killa difere daquele de um Rei do Crime, notoriamente mais bruto do que técnico, que investe menos na desenvoltura dos golpes do que na potência e na precisão. Killa, por outro lado, usa chutes elegantes com rotações em 360 graus e luta de maneira técnica – não é por acaso que o personagem é interpretado por Adkins, um mestre das artes marciais.

Tudo isso sinaliza o quanto o filme é atento à natureza das expectativas que se dão em torno das referências estéticas e dos códigos de gênero com os quais trabalha. Assim, se o filme faz diversas sequências de ação das mais variadas formas, cada uma com sua identidade estética – uma quase toda em plano zenital, outra quase toda em plongées e contra-plongées, na cena da escadaria, e por aí vai –, é porque opera de maneira ao mesmo tempo laboratorial e muito performática, avaliando e investindo nesse campo das possibilidades estéticas de representação e encenação do cinema de ação, do espetáculo.

O que faz de John Wick 4: Baba Yaga um grande filme não é da ordem do discurso, da interpretação, da mensagem. De fato, não é uma obra de ideias grandiosas sobre o mundo, sobre a vida, sobre a arte ou sobre os tópicos políticos que fervem o zeitgeist. Ora, para que serve? Para nada. É um filme que não se resume ao debate depois da sessão, mas que pulsa vigorosamente no corpo a corpo com as imagens e com os sons, que convida à atenção na receptividade da experiência estética. E se, como bem sabemos, apesar disso é uma obra bem passível de cair nas valas das leituras de superficialidade, falta de trama e ausência de problemas políticos, é porque os seus problemas são, afinal, uma questão de estética – e, por isso mesmo, incondicionalmente políticos.

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