CINEMA ANIMAL

por Natália Reis

Pensar nas relações que podem ser traçadas entre o cinema e os animais é o tipo de empreitada que por si só parece compreender a essência cinematográfica nas suas acepções mais profundas. Historicamente, animais e animalidades despontam como vetores de atração dos desejos mais primitivos de registro da imagem em movimento, desde o javali de oito patas de Altamira e as cabeças de cavalo pareadas de Chauvet, passando pela “captura” do olho/câmera, que assume primordialmente a forma do pássaro dentro da gaiola do taumatrópio, do cavalo sequenciado de Muybridge até experimentadores radicais como Chris Marker e seus gatos, Brakhage e suas mariposas. Por meio das matrizes ontológicas do cinema buscamos no reino animal – ao passo em que nos excluímos do mesmo, pois são “nós” e “eles” – um ponto de contato com a natureza própria de uma linguagem que escapa à linguagem: é movimento, é voracidade, é habitar os mesmos mundos com outras criaturas e percebê-las nas suas complexidades e alteridades. 

Nessa mesma linha, uma infinidade de desdobramentos – narrativos, estéticos, formais – vão se firmar como possibilidade de concretização do que evocamos aqui como um cinema de bichos errantes, domesticados, ferais ou selvagens que ocupam o centro do quadro com olhos de cores intensas, pelagem densa, escamas e barbatanas, asas, bicos e garras. Seja tratando da problemática da relação humano-animal ou das dinâmicas de poder aí incluídas (A regra do jogo), da exploração dos aspectos mitológicos (Nope) ou cosmológicos (Cinzas e Neve), das metamorfoses ou animalidades (O fantasma) – que Bataille vai descrever como um gesto libertador da humanidade essencialmente burocrática – ou ainda, das relações com o arquivo e a imagem (Experiments in the revival of organisms, Eyes under water), da antropomorfização, da animização e da experimentação total, estamos falando de obras que se abrem num leque de temáticas abundantes e variáveis dentro de uma cinematografia animal. 

Partindo dessas ideias iniciais, a proposta dessa edição da Multiplot! é explorar os meios pelos quais o aparato cinematográfico se vale para produzir aproximações (ou distanciamentos) entre seres vivos de espécies distintas. E ainda, pensar a representação animal e os fatores que a atravessam num sentido crítico e filosófico, olhando com atenção para as mediações entre homem e natureza, no cinema e suas reverberações. 

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