NOTAS SOBRE QUEBRAR O SILÊNCIO – Assistindo Hotel Monterey e Three Landscapes

Por Gabriel Papaléo

Nunca houve ‘cinema mudo’, aliás, apenas um cinema surdo ao tumulto que se produzia no interior do espectador, no seu próprio corpo, quando este se tornava a câmera de ecoar as imagens; as do vento, por exemplo.

(Serge Daney, Cinemetereologia, 1982).

Um elevador à espera, seus passageiros entram e saem e preenchem e esvaziam o quadro, num fluxo cotidiano retesado, uma espécie de abandono construído através de uma imagem supostamente banal. Num dos planos mais marcantes de Hotel Monterey, o primeiro longa-metragem de Chantal Akerman, observamos a passividade do comportamento daqueles habitantes temporários do hotel do título, transitórios por natureza, solitários por contexto imagético, fantasmas pela circunstância. A disposição da diretora belga em mapear espacial e sensorialmente aquele hotel qualquer em Nova York parte de uma essência quase de exercício estruturalista para então alcançar uma cidade em transformação, vista por janelas e terraços, intuída, mas não necessariamente vista.

Na solidão dos corredores, a vocação retratista do imenso trabalho de Akerman já aparece viva, mas diferente do som ambiente da cidade em Notícias de Casa, sua obra-prima realizada três anos depois na mesma (não exatamente a mesma) Nova York, aqui não existe som algum; o filme é intencionalmente construído com ausência de banda sonora. Nos travellings austeros do corredor vazio mirando a janela, esse silêncio cria uma tensão claustrofóbica, como se aquele movimento fosse revelar algo que não está de fato lá; encenação criada através de ar rarefeito. Já no plano estático do elevado, a falta de som revela um mundo alienígena, sem contato com a realidade e estilizado justamente pela ausência dos diálogos e ruídos da cidade – não ouvimos o que se espera, o movimento sem contraparte, esgarçando ainda mais o tempo, um passo em falso. Mesmo a libertação espacial do final, ao acessarmos o terraço, soa sob retenção, uma visão descontínua de uma cidade que mesmo das alturas ainda soaria barulhenta.

Se em Hotel Monterey a ausência de som é angustiante pela falta da tapeçaria sonora rica da cidade e dos habitantes que entram e saem do saguão, dos quartos, dos corredores do hotel, em Three Landscapes, de Peter Hutton, o vazio é outro: estamos diante de paisagens majestosas da natureza, com poucos traços humanos, e que estão igualmente sem som.

Por mais que ambos tenham uma tenacidade especial em conjurar drama através do que é concreto e bruto, seja uma paisagem enigmática de um rio ou de Skagafjordur ou o rosto humano calejado de Delphine Seyrig ou Stenislas Merhar, a arquitetura da obra do diretor americano é bastante distinta de Akerman em um ponto específico, uma vez que suas operações foram através da ausência de banda sonora por toda a sua carreira; o silêncio total é sua contraparte visual por definição.

Three Landscapes tem no grão do 16mm dos maiores responsáveis por esse procedimento de tornar o espaço palpável, bitola essa usada por Akerman e Babette Mangolte em Hotel Monterey também; a difusão da luz e a textura da película dando um caráter documental aos dois supostos documentários. No entanto, no que Akerman é crua e concreta em registro de espaço, Hutton é místico e etéreo. Ambos lacunares, ambos misteriosos, mas uma através da aproximação sangrada do que entendemos por realidade, o outro através das distâncias secretas entre mundos – em a ausência de som em Three Landscapes realça também essa distância, porque por paisagens entendemos um som, intuímos ruídos distante, sons se propagando ao infinito, mas ainda presentes, um murmurar dos tempos.

O que acontece quando se propõe um som a essas duas obras tão aterradas no silêncio? Vamos às breves profanações: assisti novamente ambos os filmes ouvindo dois dos meus álbuns favoritos: comentando Hotel Monterey, ouvi Ravedeath, 1972, de Tim Hecker; comentando Three Landscapes, ouvi F#A#Infinity, do Godspeed You! Black Emperor.

O álbum de Hecker, gravado em 21 de julho de 2010 numa igreja na Islândia e lançado em 2011, parte de melodias esparsas tocadas no piano se proliferando pelo espaço, como reminiscências que se esgarçam até esbarrar no noise e no drone, um conjunto ambient melancólico sobre a decadência e destruição de um lugar desconhecido. Combinado com os corredores vazios de Akerman, a sensação de abandono ganha uma ressonância diferente, como se o algo à espreita sugerido pela diretora ganhasse uma ameaça, sem sublinhar suas articulações.

Na longa sequência do elevador, o plano fixo da câmera estacionada no fundo observa o saguão, depois a porta fechada, depois os corredores pouco iluminados, volta para o saguão, volta para os corredores, e todo esse trânsito constante de pessoas e lugares coincide com o segundo movimento de In the Fog, cujos ruídos em loop sujando a melodia do piano abafado tornam a repetição dos padrões da viagem ainda mais soturnos, a duração inquieta dos planos de Akerman tornando-se quase ansiosa. James Benning contou em alguma entrevista que fazia seus filmes de paisagem, extremamente pacientes e com ações comedidas, como contraponto e antídoto justamente de sua ansiedade natural; na guitarra que rasga os loops ambient do álbum de Hecker parece que acessamos uma ansiedade de Akerman, mais sublinhada e pontuada, menos sutil, tão agressiva quanto.

Já na combinação entre Hutton e GY!BE, o abandono social articulado pacientemente pelas imagens do filme ganham contornos de puro horror. O senso de estranheza espacial da paisagem é provocado tanto por imagem quanto som, e a banda canadense transforma a calma insidiosa do diretor em suspense contínuo, tensão em combustão crescente. Num dos planos mais impressionantes, três trabalhadores realizam alguma atividade em cordas suspensas, numa altura absurda e perigosa; a visão mais próxima com as lentes teleobjetivas se concentram no caminho da ação, nos homens a trabalhar; a visão mais distante com as lentes abertas ressaltam o perigo do trabalho e a vastidão majestosa do céu que os engole, ocupando o quadro e trazendo uma dimensão ainda maior para aquele trabalho aparentemente trivial.

F#A#Infinity é pontuado por gravações de vozes como se em transmissões piratas de uma rádio no pós-apocalipse, com depoimentos sobre destruição e sobre o fim do mundo. E enquanto se tem essa imagem dos homens, a voz no álbum fala: “this is the perfect place to get jumped”. O tipo de diálogo de sombras involuntário, como uma batida de portas na sessão de cinema na qual assisti ao filme acordar um dos rostos que dormia na tela no Sua Face de Tsai Ming-liang, que enriquece tanto a experiência de assistir algo que não era para ter conexão tão imediata.

Ambos os exercícios são reimaginações e interpretações livres dos filmes; não evoco a ideia de uma pureza de obra na forma que foi concebida pelos diretores, até porque assistir a esses filmes 16mm em 720p não deixa de ser também uma profanação enorme. No entanto, ressalto que são filmes afônicos por essência, e é fundamental que sejam apreciados também como tais. Filmes em um silêncio específico, com o espírito aberto da descoberta e da ventura que Chantal Akerman e Peter Hutton tanto encorajaram com seus filmes; o som de uma sala de cinema viva respirando, ou de um quarto aonde assistimos filmes, na nossa casa, com a cidade insistindo em entrar pelas frestas e comentar involuntária, e crucialmente, essas duas obras do silêncio nunca total.

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