Entre o artifício e a performance: por um cinema de ação formalista (John Wick 4: Baba Yaga, Chad Stahelski, 2023)

Por Gabriel Moraes

O quarto filme da franquia John Wick é o projeto mais minimalista e formalista – quiçá até um tanto experimental – da franquia até então. Nenhum outro tinha secundarizado pretensões de drama e conflito tão radicalmente em relação à imensa sofisticação dos set pieces, das grandes cenas de ação quanto este – embora o terceiro fosse já uma guinada significativa no caminho dessa concepção estética. O protagonista fala pouco e todos os personagens à sua volta não fazem muito mais do que o necessário para avançar a narrativa de modo funcional e o esperado para manter em ordem a organização básica dos elementos de mitologia que foram construídos pelos filmes anteriores.

A impressão é de que o filme é um grande laboratório do cinema de ação, uma empreitada pensada para colocar à prova um acervo de especulações a respeito de como uma cena de ação-espetáculo pode ser coreografada, iluminada e decupada. Se o primeiro filme, por exemplo, tinha fortes interesses sobre questões de trama, sobre construção de mitologia e sobre as implicações políticas daquele universo de fabulação, aqui poderíamos dizer que, embora essa mitologia e essa política ainda estejam sem dúvida em jogo, elas são mais ou menos recicladas, não trazem novas ideias. As conclusões que se poderiam tirar sobre ambas neste filme poderiam perfeitamente se fazer a partir dos filmes anteriores.

O que há de particularmente instigante aqui, justamente por isso, talvez esteja na contramão dos instrumentos interpretativos de que se valem aqueles que hoje parecem fazer o coro e a interface da conversa sobre cinema que ocupa majoritariamente as redes. Dizer que John Wick 4: Baba Yaga (2023) é um filme superficial nos termos que se convencionou usar essa palavra no contexto de leitura dos filmes não é nenhum absurdo. A questão mesmo seria lidar com a noção de que ele não é menos brilhante por conta disso. Afinal, se os critérios de “superficialidade” e “densidade” são tão decisivos para um modelo de interpretação que se dá sempre exclusivamente pelo texto e pelas temáticas, o que significa supor a potência de uma obra pela chave do seu suposto negativo? Em primeiro lugar, neste caso, seria dizer que o problema é da ordem da forma, do estilo, da poética.

O filme tem uma lógica narrativa que habita algum lugar entre os jogos de videogame e uma atualização hipermoderna de um cinema de atrações. O protagonista está constantemente passando de fases e derrotando chefões, motivo pelo qual os materiais narrativos que fazem as ações se encadearem são tão mais abreviados do que as ações em si. É algo também evidenciado pelo fato de que o protagonista aparentemente não carrega seus ferimentos de uma sequência à outra, diferente dos filmes anteriores – como no primeiro, em que ele precisava de um refúgio para se recuperar do custo físico das batalhas. Aqui ele é uma máquina de combate imparável e, em cada set piece, está inteiramente renovado em relação ao anterior, ainda que tudo ocorra, supostamente, em um curto período de tempo.

Outro elemento que John Wick 4 incorpora dos jogos e se apropria para pensá-lo como um método para se fazer e encenar cinema é a maneira com que situa a ação dos personagens em relação aos espaços diegéticos. Algumas cenas são exemplos chave disso, como a da boate e a que ocorre nas ruas de Paris em pleno movimento, próximo ao Arco do Triunfo. Em ambos os casos, os ambientes estão em um plano de realidade distinto do da ação. Ao mesmo tempo que produzem interações reais com os personagens – o protagonista esbarra com as pessoas na boate, é atropelado por carros na rua – os ambientes são configurados para existir e funcionar de forma completamente impassível diante das ações que se desenrolam neles. São paisagens com elementos pontuais de interação: a violência na boate, com lutas e tiroteios, não gera quase nenhum alarde instantâneo nas pessoas ao redor, que continuam a dançar de maneira tão sincronizada que parecem mesmo personagens não jogáveis de um videogame – em contraste com o primeiro filme, cujas cenas de combate na boate geravam espanto imediato no espaço. Igualmente, os carros continuam passando na rua como se nada de extraordinário estivesse ocorrendo, ao invés de ter uma paralisação do trânsito, o que seria o resultado mais óbvio.

Quando as pessoas de fato saem da boate em bando – e John Wick tenta se misturar na multidão –, é uma resposta diegética tão atrasada e distante do calor da ação anterior, que é até desconexo, quase cômico, e percebe-se, por esses gestos, que o filme há muito já jogou quaisquer concepções de “realismo” ou “verossimilhança” pela janela. As pessoas saem naquele momento porque é o que é conveniente ao filme, porque a narrativa precisa prosseguir e porque não há muita parcimônia ou meias intenções na instrumentalização consistente dos pequenos artifícios com os quais se amarra uma trama. Se em outros filmes algo dessa ordem poderia ser um problema, um sinal de desleixo ou falta de cuidado com a construção da narrativa, aqui tudo faz parte de uma unidade estilística de ambições estéticas bem apuradas.

Como, por exemplo, racionalizar, através dos aparatos de interpretação que operam tão fixamente sobre a coerência do texto, a cena em que John Wick cai da janela de um prédio em cima de um carro – ao ponto de aparentemente destruir o carro –, levanta e continua andando sem grandes dificuldades? Ou, ainda, a cena em que ele rola por centenas de degraus de uma escadaria e se levanta para subi-los todos de novo deixando mais alguns corpos pelo caminho? Qualquer coluna teria sido arrebentada bem antes do fim da queda. À certa altura, é preciso assumir que o filme não só é inteiramente consciente do tipo de leitura que está suscitando, mas que está ativamente jogando – diria até zombando com elegância – com as expectativas que se produzem a partir dela. Que o impacto do corpo sobre o carro seja tão plasticamente tátil ou que a cena se delongue tanto no protagonista rolando lance após lance de escada por longos segundos mostra um pouco do sistema de prioridades no qual o filme se apoia: por mais que o contexto narrativo ao redor da ação tenha pouco “realismo”, coerência ou verossimilhança, a ação é sempre muito sentida, sempre acontece para existir nos limites do seu impacto possível.

Basta pensar em uma cena filmada em plano zenital – com a câmera paralela ao chão, olhando diretamente para baixo –, na qual o protagonista elimina diversos oponentes com uma arma de efeito explosivo e que é axiomática dos pontos de partida e dos protocolos do filme. Se, por um lado, poderíamos dizer que é uma cena concebida a partir de uma estética específica dos jogos – e que, por esse motivo, manifesta tão limpidamente a ferocidade com que o protagonista enfrenta obstáculos e vai do ponto A ao ponto B –, por outro é também a enunciação do jogo performático: a ação, vista por cima, através de falsas paredes, de um teto falso, com os dispositivos ilusionistas à mostra sem pudor, não poderia ter mais cara de estúdio, de artificialidade. Quando o filme corta entre esse plano e a decupagem mais convencional ou “realista” no interior da mesma sequência e forma unidade a partir disso, os dois – a imersão e o artifício – passam a ser complementares e não opostos. Colocar o maquinário ilusionista a céu aberto não subtrai a experiência ou barra as potenciais relações de engajamento com a ação, mas sugere especialmente o contrário: que o prazer com os set pieces, com essa ação cheia de fisicalidade e valor de produção típica do cinema de ação é, acima de tudo, estético.

O vilão Killa, interpretado por Scott Adkins, é bastante representativo desse lugar de tensão que o filme tenta ocupar entre o que se presume que ele deveria ser e o que ele é. O arquétipo que o personagem de Adkins é, a princípio, desenhado para corresponder, é o do vilão frágil que se faz poderoso pelos seus recursos. A cena que o introduz não sugere tanto uma ameaça física significativa quanto uma personalidade sagaz. Por isso, o que se segue, quando os personagens sentados na mesa de pôquer se rebelam, é que o vilão tenta fugir a todo custo justamente porque seus recursos – no caso, os capangas – estão em crise. Quando ele não só enfrenta John Wick como o derrota em um primeiro momento, é chocante pelo mesmo motivo que não se esperaria ver o Pinguim trocando socos com o Batman.

Em seguida, uma outra camada de surpresa surge através do seu estilo de luta, que não corresponde ao arquétipo com o qual ele estaria se associando a partir do início da luta contra o protagonista – o do vilão que usa o perfil de fisionomia como o seu para estabelecer poder, dominância e hierarquia. Uma comparação óbvia é uma figura como o Rei do Crime, vilão dos quadrinhos do herói Demolidor, cujo porte físico se assemelha ao de Killa. Não é difícil perceber como o estilo de luta de Killa difere daquele de um Rei do Crime, notoriamente mais bruto do que técnico, que investe menos na desenvoltura dos golpes do que na potência e na precisão. Killa, por outro lado, usa chutes elegantes com rotações em 360 graus e luta de maneira técnica – não é por acaso que o personagem é interpretado por Adkins, um mestre das artes marciais.

Tudo isso sinaliza o quanto o filme é atento à natureza das expectativas que se dão em torno das referências estéticas e dos códigos de gênero com os quais trabalha. Assim, se o filme faz diversas sequências de ação das mais variadas formas, cada uma com sua identidade estética – uma quase toda em plano zenital, outra quase toda em plongées e contra-plongées, na cena da escadaria, e por aí vai –, é porque opera de maneira ao mesmo tempo laboratorial e muito performática, avaliando e investindo nesse campo das possibilidades estéticas de representação e encenação do cinema de ação, do espetáculo.

O que faz de John Wick 4: Baba Yaga um grande filme não é da ordem do discurso, da interpretação, da mensagem. De fato, não é uma obra de ideias grandiosas sobre o mundo, sobre a vida, sobre a arte ou sobre os tópicos políticos que fervem o zeitgeist. Ora, para que serve? Para nada. É um filme que não se resume ao debate depois da sessão, mas que pulsa vigorosamente no corpo a corpo com as imagens e com os sons, que convida à atenção na receptividade da experiência estética. E se, como bem sabemos, apesar disso é uma obra bem passível de cair nas valas das leituras de superficialidade, falta de trama e ausência de problemas políticos, é porque os seus problemas são, afinal, uma questão de estética – e, por isso mesmo, incondicionalmente políticos.

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