Festival ECRÃ: Vermelho Bruto (Amanda Devulsky, 2022)

Outros caminhos

Por Chico Fireman (@filmesdochico)

Deve ter sido bem dolorido para Alessa, mãe de Raquel, 9 anos, tentar acalmar a filha, que “queria ter virado o voto do vovô”, quando a menina se deu conta da eleição de Jair Bolsonaro. É um dos momentos mais tocantes — e mais transformadores — de “Vermelho Bruto”, primeiro longa-metragem de Amanda Devulsky, tanto pela comoção de uma mãe que, com a voz embargada, tenta acreditar ao dizer que nem tudo estava perdido quanto pela potência que esta cena encontra dentro da escolha formal da diretora: num documentário que apresenta as histórias de quatro mulheres, raramente vemos os rostos destas personagens.

Com origens, classes sociais e estruturas familiares diferentes, Alessa, Eunice, Fabiana e Jô têm em comum o fato de terem sido mães ainda adolescentes, em Brasília, no período da redemocratização do país, entre 1985 e 1995. Projeto antigo da cineasta, o filme se apóia basicamente em duas matérias-primas: imagens de arquivo destas mulheres e registros feitos por elas mesmas ao longo de 2018, ano-chave para a captação do conteúdo. Justamente o momento em que a democracia brasileira entrou em crise. Um ponto de partida que parecia traçar um estudo sociológico, já que o filme aborda rejeição, machismo, responsabilidades antecipadas e dificuldades econômicas.

Mas as escolhas são bem diferentes. Quando decide, num documentário de personagens, que essas histórias serão contadas só por suas vozes, sem o ponto primordial de reconhecimento de alguém, o rosto, Devulsky assume o risco da falta de identificação e é mesmo difícil estabelecer quem é quem nos primeiros relatos do filme. Além disso, os trechos de voice over são intercalados por uma terceira gama de imagens, abstratas, poetizadas por filtros, zooms, recortes e sobreposições, retiradas dos arquivos ou dos registros que as personagens fazem do cotidiano. O efeito desta dinâmica pode ser frustrante para quem acredita que um documentário precisa ter um recorte efetivo, mas liberta o filme de um cárcere formal.

“Vermelho Bruto” pode ser associado a um cinema de fluxos que tem ganhado muitos e diferentes exemplares nos quatro cantos do mundo. Um cinema em que o não dito tem tanto ou mais importância que o dito e, inclusive, o completa, projeta e distorce. Por isso, é tão simbólico quando, num filme que parte de histórias individuais para representar um estado de espírito, um incômodo, uma condição, algo muito mais amplo e impalpável, se recorra repetidas vezes às imagens de fungos que, vistos de tão perto, parecem composições estelares. Se foge ao desenho mais íntimo de cada uma destas mulheres, Devulsky, numa escala dilatada de espaço e tempo – quase 3h30 de duração -, discute a existência, feminina ou não.

Um caminho curioso para a coautora das comédias dramáticas cheias de ironia de Marcus Curvelo. Mas, como responde Jô, num dos vários momentos em que o filme se abre para a intimidade de suas personagens, tudo é sobre por onde seguir:

Tá sumida!

Eu não, percorri outros caminhos.

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