O arquivo animal

Por Natália Reis

O Internet Archive é hoje provavelmente a coisa mais próxima da utopia ingenuamente profetizada no surgimento da internet. Pilhas infinitas de documentos, livros, filmes e imagens convertidas em terabytes de livre circulação compõem um tipo de bioma utópico, provido por um fluxo crescente de coleções de bibliotecas públicas, cinematecas, arquivos nacionais e toda a sorte de memorabilia. Fundado por Rick Prelinger, o Prelinger Archives vai despontar desse meio como uma subpartição dedicada aos “ephemeral films” – “filmes realizados para fins específicos em momentos específicos, como publicidade, filmes educativos, institucionais e amadores” – derivados de uma compilação extensa que já ultrapassa o número de 60.000 itens reunidos por Prelinger no decorrer de mais de 30 anos de pesquisa e coleta. São cerca de 8.500 filmes atravessando décadas de imagens caseiras, propagandas de TV, conteúdo erótico, filmes educacionais sobre o perigo das drogas e do sexo na adolescência, informativos, documentários científicos e mais uma infinidade de temas e abordagens que podem ser, por sua vez, agrupados a partir de filtros e palavras-chave como: “1920s”, “animação”, “guerra fria”, “saúde e higiene”, “vida rural”, “trabalho”, “famílias”, “astronomia” e assim por diante.

A ideia de “filmes efêmeros” parece ganhar uma força contraditória quando estas imagens de existência limitada sobrevivem na condição de arquivo.  Se o arquivo pressupõe um desejo (ou necessidade) de conservação e revisitação, ocupando uma “topologia” privilegiada, na qual “a lei e a singularidade se cruzam no privilégio” segundo nos diz Derrida, o acervo de Rick Prelinger implode esse contexto acatando imagens enjeitadas – “vulgares”, “menores” –  que ao serem abrigadas num repositório aberto excedem o valor memorialístico e se fazem disponíveis para reprodução e reutilização: alcançam uma sobrevida. Ouso afirmar que as imagens de arquivo também se enquadram num tipo de espectralidade. No caso dos ephemeral films, o retorno do passado é a negação de seu propósito inicial (a efemeridade) e a garantia de uma forma de continuidade enquanto presença vaporosa, distorcida pela ação do tempo. Pessoas e animais se tornam aparições organizadas por período, ordem alfabética e número de visualizações. Em meio a esses ecos é possível observar uma fauna espectral se manifestar: bichos usados para experimentos ou observados à distância na natureza adquirem uma existência volátil, que percorre tanto o limiar do ressurgimento enquanto imagem quanto o risco de desaparecimento enquanto espécie. São os animais imateriais que habitam os arquivos de Prelinger, prontos para serem reanimados a qualquer momento. A seguir, dois exemplos distintos desta proposição:

Experiments in the Revival of Organisms

Uma das imagens mais assombradas com a qual pude ter contato quando a internet era em parte definida pelo acesso irrestrito a fotos de acidentes de aviões e de fantasmas em lugares abandonados foi o vídeo da cabeça decapitada de cachorro mantida viva por meio de aparelhos. A imagem estourada e a baixa resolução encobriam tudo com uma camada de horror e veracidade que para mim era inquestionável: uma cabeça canina se movia vagarosamente, abria e fechava os olhos e a boca, levava a língua ao focinho, tudo isso ligada a um tipo de máquina diastólica que simulava um coração bombeando sangue diretamente para a caixa craniana. Para além da imagem perturbadora, o que mais me assustava ali residia no fato da figura do animal morto-vivo se passar tão bem por uma criatura vivente, que na minha concepção fora destituída de sua alma –  sua “anima” – e mantida nesta condição por pura crueldade. Somos condicionados pela natureza animista do movimento a associar mobilidade e vivacidade. Marionetes, desenhos, ou mesmo as folhas de uma árvore chacoalhando na brisa leve podem se tornar portadores sobrenaturais de força vital se assim acreditarmos, mas aqui o movimento resguarda uma contradição perversa: é a predição da morte inevitável cristalizada na sua própria duração. 

Mais tarde eu descobriria numa visita aos Prelinger Archives que o vídeo na verdade se trata de um trecho de Experiments in the Revival of Organisms, um curta-metragem de 19 minutos realizado em 1940 pela Agência Cinematográfica Soviética, e que, segundo nos informa as cartelas de abertura, era “exibido pelo Conselho Nacional de Amizade Americano-Soviética e distribuído pela Sociedade Médica Americano-Soviética em Nova York”. O filme nada mais é do que um registro dos avanços tecnológicos e experimentos empreendidos no campo do transplante e ressuscitação de órgãos feito pelo Instituto de Fisiologia Experimental e Terapia, e por Sergei Brukhonenko (cujas experiências com cachorros incluem não só a supracitada decapitação como também quimeras de duas cabeças), desenvolvedor do “Auto Jetkor” (um tipo de máquina coração-pulmão), e ainda é um momento raro de cooperação entre duas potências antagônicas –  propaganda soviética com o aval estadunidense. Se a guerra fria também representou uma disputa imagética que trouxe consigo um fluxo incalculável de imagens hostis de ambos os lados, com vilões de sotaque russo e capitalistas de sorriso diabólico, a visão dos créditos hoje nos arrebata com uma imagem impossível, um arquivo de proporções quase mitológicas. 

Para além do teor histórico, há algo essencialmente sinistro no didatismo de Experiments in the Revival of Organisms e talvez por isso seja tão difícil classificá-lo. Imagens monocromáticas de um coração canino pulsam em variações contrastantes de cinzas metálicos e de um preto profundo e viscoso, pulmões que parecem balões de papel inflados se expandem e contraem sobre uma bandeja enquanto são entrecortados por planos do maquinário que garante seu funcionamento fora do corpo. Tubos, engrenagens, sangue, vidro e metal observados de perto ao lado de tecido orgânico fazem as vezes de um sistema frio e eficaz. Tudo isso numa proximidade impiedosa que será reafirmada pela imagem da cabeça zumbificada de um cão branco e peludo, provavelmente um “Laika”, nome genérico dado a um tipo popular de cães do norte da Rússia e da Sibéria e também à cadela enviada ao espaço morta pelo superaquecimento da Sputnik – ambos unidos pela ética questionável anunciada em tom monótono pelo Professor J.B.S Haldane no início do filme: “Como vocês podem imaginar, técnica é tudo!”. 

Ainda que se trate de uma farsa –  questionada inúmeras vezes por usuários comprometidos na sessão de comentários –  o filme soviético manifesta uma aura que só pode ser descrita pelo pavor que acompanha o interdito com o qual muitas vezes já nos deparamos online. É um filme de terror no sentido em que nos confronta com práticas científicas que beiram o sadismo, quer sejam reais, quer sejam construídas pela ação da montagem e de outros mecanismos cinematográficos. Em determinado momento vemos uma sangria ser realizada em outro cachorro, dessa vez de pelagem escura. A narração explica que para se confirmar a eficácia do experimento é preciso dessangrá-lo completamente, o som de batimentos cardíacos é transposto sobre um registro dos sinais vitais até parar completamente; o cão é dado como morto logo em seguida. Vemos as últimas gotas de seu sangue caírem num vasilhame como num gesto sacrificial, seus últimos suspiros, e o olho, estático, aberto, ser espetado. A narração explica que após decorridos dez minutos o sangue é bombeado de volta e o cachorro é ressuscitado. A morte lenta e auxiliada é um obstáculo sem maiores impactos a ser superado com a ajuda de uma elipse. Na cena seguinte vemos três cães diferentes brincando com um cientista, o narrador revela seus nomes e o tempo que cada um teria estado morto antes do processo de reanimação. 

Revisitando essas imagens e principalmente aquela que mais me causava repulsa, percebo que o tom geral do filme não escapa à noção de fabricação das circunstâncias ali apresentadas. É difícil não duvidar. Mas a sensação que perdura é a de que estamos diante de um objeto atroz, cuja trajetória sempre vai desembocar numa demonstração do triunfo da técnica e da perseverança do homem contra sua própria finitude sobre a vulnerabilidade das espécies que não podem se pronunciar. Ainda que tenham nomes, a violência com que morte e vida são banalizadas por meio de uma decapitação ou pela retirada de todo o sangue de um corpo saudável, faz com que esses cães se tornem meros props, objetos de cena exploráveis com tempo de vida programável – criaturas autômatas. A existência e a persistência de suas imagens nos arquivos é um portal que se abre para o mundo material e outras ressonâncias no tempo. Visualizados, incorporados a novos discursos e outras percepções, tais animais passam por um processo contínuo de regeneração, adquirem um corpo anacrônico para além daquele cuja circulação se limitava à propaganda e à mortificação. Perduram.

Eyes under water

Em seu texto sobre O mundo do silêncio (1956), documentário oceânico fruto da parceria de Louis Malle e Jacques Cousteau, André Bazin vai começar afirmando que qualquer crítica do filme de certa forma seria um gesto irrelevante, uma vez que suas belezas “são antes de tudo as da natureza e criticá-lo seria o mesmo, portanto, que criticar Deus”. Bazin prossegue dizendo que obras como essa “são a única novidade radical no documentário desde os grandes filmes de viagem dos anos 20 e 30. Mais precisamente uma das duas novidades; a segunda sendo constituída pela concepção moderna dos filmes sobre a arte; porém, tal novidade se deve à forma, enquanto a dos filmes submarinos pertence (…) ao fundo. Um fundo que nos é próximo”. Nesses dois momentos distintos o crítico vai evocar tanto o aspecto místico do universo marinho quanto a qualidade de se relacionar intimamente à natureza humana mais profunda, retratando o mundo submerso como um elo sobrenatural entre o mundano e o espiritual. 

Eyes under water é um curta de 1949 sobre a vida marinha feito para TV, e integrou o programa John Kieran’s Kaleidoscope, que consistia numa série de pequenos filmes educativos dos mais variados assuntos narrados e apresentados pelo jornalista e naturalista entusiasta John Kieran. O episódio acompanha um escafandrista com uma câmera no fundo do mar para fotografar peixes, crustáceos, esponjas, corais, cavalos marinhos e “múltiplas formas de vida estranha”, como nos informa a descrição do vídeo na página do Prelinger Archives.  Conforme o mergulhador se desloca com a câmera e o tripé de ferro pesado fornecido por outros mergulhadores, acompanhamos na penumbra cardumes agitados e outros mais morosos nadando na imensidão negra como se nadassem no vazio, florestas reduzidas de corais, moluscos que se camuflam nas texturas e matizes aquáticas, mexilhões gigantes e caranguejos minúsculos parecendo pequenas aranhinhas pálidas. 

O fato de que o filme tenha sido produzido pelo casal Paul F. Moss e Thelma Schnee (Thelma Moss) acrescenta ainda mais uma camada fantástica: Thelma, atriz e produtora, mais tarde ficaria conhecida por seu envolvimento com parapsicologia e fotografia Kirlian (ou Kirliangrafia), técnica na qual uma placa fotográfica conectada a uma corrente elétrica revela um “halo luminoso” ao redor de um objeto fotografado, tido por alguns – inclusive Thelma –  como a representação da “aura” de um corpo ou de outros atributos espirituais do orgânico e inorgânico. Pode-se dizer que o aspecto geral de Eyes under water segue nessa mesma direção: é um filme de propriedades fantasmáticas. As imagens são tomadas por uma estranheza característica da opacidade de domínios insólitos, a luminosidade do sol raleada pelo peso da água turva que cria nuances de brilho e escuridão total, os animais que parecem criaturas projetadas numa câmara escura. São etéreos ao mesmo tempo que, na superfície porosa da película e do mosaico de pixels do arquivo, afirmam com aspereza sua presença. 

Havia um tempo em que uma TV pouco se diferenciava de um aquário, ou que fantasmas poderiam ser avistados e contactados através das telas grossas que ocultavam um tubo de raio catódico em seu interior. Jeffrey Sconce em Haunted Media vai afirmar que “a introdução da visão eletrônica trouxe consigo novas intrigantes ambiguidades de espaço, tempo e substância: o paradoxo de mundos visíveis, aparentemente materiais, presos em uma caixa na sala de estar e ainda assim conjurados a partir de nada mais do que eletricidade e ar.”. O telégrafo, o rádio, a TV, são mídias que na sua trajetória foram usadas na comunicação com o supranatural, mensagens, vozes, rostos, vestígios do contato entre mundos materializados através de estímulos elétricos e ondas magnéticas hoje dispersos por tecnologias mais avançadas: telefones, monitores, câmeras digitais, realidade virtual. Se tratando da virtualidade dos arquivos é possível levantar a questão: em que medida a reprodução (e apropriação) dessas imagens pode ser relacionada à materialização de visões diretamente do éter?  
O que Eyes under water e os outros registros representam com suas particularidades e aproximações é a possibilidade de transmutação dos propósitos e meios com que foram concebidos. O tempo erode, mas também transforma e reinterpreta esses objetos. Documentos históricos podem ecoar como obras experimentais e vice-versa, invocados por meio de uma interface amigável e procedimentos quase ritualísticos que incluem acessar, clicar, filtrar e selecionar a qualidade da reprodução. Desse modo, fazemos contato com imagens de vidas passadas e, nesse caso, com criaturas passadas que ora exercem sua corporeidade enquanto sacrifício (cachorros russos e métodos de ressuscitação) ora se tornam sombras aquáticas num universo espectral. Um processo arquivístico de conjuração.

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