ISSO E NADA MAIS: SO IS THIS (Michael Snow)

Por Waleska Antunes

Letter to Jane (…) presents a critical analysis of a still single image, subjecting the photograph to an intensive ideological interrogation, completes a historical cycle. In so doing, it once again frame the question: when is a film a movie? Or: what is cinema?

(Annette Michelson, The Art of Moving Shadows)

A unidade primordial do cinema é, de toda forma, a noção de movimento, seja este da ordem do diegético, como um bebê a almoçar em primeiro plano, ou da ordem do mimético, com o vento farfalhando as folhas ao fundo. Porém, narrativo ou não, silencioso ou não, todas as histórias dentro do cinema possuem uma característica peculiar: em algum momento, a palavra se fará presente. É impossível que um filme não passe por qualquer vocábulo incólume, desde a sua concepção até à sua exibição. O ato de editar ou montar um filme exige um léxico imagético. Façam as coisas sentido ou não, ordenar, classificar e estruturar é uma espécie de sistematização do pensamento. Ou seja: por bem dizer, nenhum filme é, de fato, silencioso, no sentido amplo da coisa: mesmo quando não há som ou ruído, algo está sendo dito, na ordem do discurso.

Porém, mesmo que por via de regra a junção de imagens como um todo componham um filme e nós damos a ela sentido enquanto espectadores, unindo as narrativas cinematográficas e, através do princípio da montagem, criamos associações. Parece simples. Hollis Frampton defende que o filme é uma máquina de imagens, e nisso ele não está de todo errado.  Mas aqui falamos da junção de palavras. Palavras em grupos podem formar imagens e grupos de imagens podem formar palavras.

Mas o que se pode fazer com a palavra em si, enquanto elemento isolado?

As palavras, em teoria, não se movimentam. São seres estáticos e nós tentamos dar a elas movimento e ritmo com representações visuais (com as artes, plásticas ou não, e na literatura, como os poetas concretos faziam) ou com discurso. Mas a palavra em si não se move.

Logo, um filme composto de palavras é um filme?

É uma representação de discurso?

Afinal de contas a palavra não se move. Quem move ela somos nós.

Retornemos ao questionamento de Annette Michelson sobre Letter to Jane (1982), de Jean-Luc Godard, um filme sobre uma única imagem: Pode um objeto estático isoladamente em um plano cinematográfico ser um filme? Isso é cinema?

Que é possível se fazer um cinema sem som já se sabe. Mas e o oposto? É possível se fazer um cinema somente composto de palavras isoladamente e criar uma voz?

A good thing about reading words and not hearing voices is that you can’t accuse it of being male or female. Also, it’s pleasant not to having a voice yakking (about a film they’re going to make, for example). 

(Michael Snow, So Is This)

O pensamento de Michael Snow em termos de linguagem está no cerne de sua obra. Sejam em filmes como Wavelength (com a narração de quatro eventos no decorrer de um dia em uma sala e um glissando de uma onda sonora ao ponto de se confundir com a representação da onda do mar), Back and Forth (com a ida e a volta de uma câmera, e adição e subtração de elementos) ou no ápice da verbivocovisualidade (se é que tal palavra existe), com Rameau’s Nephew by Diderot (Thanx to Dennis Young By Wilma Schoen) onde as palavras se confundem com as imagens e suas enunciações, sendo um experimento mallarmaico pautado no acaso, uma espécie de lance de dados. Porém é em So Is This (1982) em que o elemento fílmico é reduzido a um só: um filme de uma palavra por vez em tela. 

So Is This é um filme estrutural e estruturado de maneira simples: cada palavra é exibida em um período de tempo, criando uma narrativa ao seu fim. Não temos ali um filme que conte uma grande história, mas sim um filme que questiona sua própria materialidade: faz-se um filme para falar que a palavra é a unidade individual da escrita e o frame é a menor parte constituinte de um filme. O que Snow propõe não é nada novo; ele mesmo o diz convocando nomes como Su Friedrich, Richard Serra e Drew Morey. Porém, é possível ir até a gênese da questão – afinal de contas, Sergei Eisenstein propôs isso trazendo à baila o princípio ideogramático para a construção de sentido na montagem, onde duas palavras formam uma terceira, e o mesmo se aplica ao ato de montar o filme – porém, ele o faz de maneira muito mais astuta: em um filme composto de uma palavra por vez, ele propõe exercícios discursivos de ritmo, voz, silêncio para além da simples narratividade. A palavra é a unidade significante, e é o que faz com que o filme se mova com esse objeto estático. 

Parece complexo, mas Michael Snow nos diz: esse é um filme que “não vai falar sobre si mesmo” (o que é mentira e torna Michael Snow um ‘narrador não-confiável’, um conceito muito caro à prosa como um todo), esse filme já foi feito por outras pessoas, este filme não é para crianças (representando palavras ‘proibidas’ rapidamente), pode ser censurado (ele o descreve como uma violência sexual e verbal, uma orgia de palavras!), esse filme pode ser recontado a quem está chegando (e mais de uma vez e em mais de uma forma), este filme é a junção de todas as cores em luz em uma tela negra, este filme pode ser odiado por quem não entende uma palavra de inglês ou por quem detesta quem lê sobre os ombros: afinal de contas, há uma voz que lê uma palavra por vez em vários ritmos e tonalidades. Você não vê essa voz. Ela é quem te vê. 

Em um filme onde cada palavra se expressa unicamente na tela, há a expressão do silêncio, da pausa e da risada por elas mesmas – a palavra Silence, Pause e até mesmo a representação do riso por um ‘Ha Ha Ha Ha’ – conseguem dar o tom em algo tão material quanto a palavra por si só. Snow conta piadas, uma palavra por vez, assobia insistentemente e propõe que se cante internamente, sem mover os lábios, a canção Somewhere Over The Rainbow, bate palmas, ri de maneira funesta e, sem dizer um “A” (com o perdão do trocadilho), ainda por cima questiona os limites da linguagem cinematográfica e da linguagem e sua representação, citando a proposição de Magritte em La Trahison des Images, de Magritte: ceci n’est pas une pipe.

Isso não é um cachimbo. 

Mas o que é isso? Isso é um filme? 

Isso é a representação de um filme? Isso é um espectro de Michael Snow falando por entre os ombros? Essas palavras se movem e falam conosco? O que é o Isso (ou o this ou o ceci), no fim das contas? O Isso plurivocal pelas tipografias e ritmos de montagem mas, ao mesmo tempo, silente e material da palavra em Michael Snow, constituem um universo de possibilidades discursivas e imagéticas por meio de algo estático e concreto, sendo anterior ao próprio cinema: na mais antiga das histórias se diz que, no princípio, há o verbo.

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