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O Artista (Michel Hazanavicius, 2011)

Logo que O Artista começou a ganhar as páginas de jornal, celebrado pela audácia de ressuscitar o cinema mudo e o preto e branco, uma crítica paralela, nada elogiosa apareceu gerando polêmica. O motivo: a música que Bernard Herrmann compôs para Um Corpo que Cai, de Alfred Hitchcock, e que agora aparecia como parte da trilha do filme de Michel Hazanavicius. O que era para ser uma homenagem do diretor francês acabou por incomodar a atriz Kim Novak, protagonista do filme de Hitch. Novak, de quem nunca mais se tinha ouvido falar, veio a público declarar que o filme de Hazanavicius “poderia e deveria ter sido capaz de se apoiar sozinho” sem ter de depender da trilha composta por Herrmann para “adicionar mais drama”. O diretor limitou-se a responder que seu objetivo era criar uma “carta de amor ao cinema” e prestar um tributo à sua história. Depois de assistirmos aos 100 minutos de duração do filme antigo mais novo em cartaz, não há como negar essa intenção. Mas, se por um lado a reclamação de Novak soa como resmungo de uma mocinha esquecida pelas telas, por outro, o tributo de Hazanavicius recai na forma de um kitsch da História do cinema norte-americano.

O Artista conta a história de um astro do cinema mudo que se recusa a aceitar a passagem para o cinema falado. Enquanto a indústria evolui, ele tem de enfrentar decadência, falência e o esquecimento do público, que o levam a depressão. Porém, uma jovem talentosa o ajuda a se reerguer e retomar a carreira. É como termos os plots de Cantando na Chuva; Nasce uma estrela; Crepúsculo dos Deuses e Luzes da Ribalta todas juntas em um liquidificador. Seu protagonista, George Valentin (Jean Dujardin), é um típico personagem do cinema mudo (que não precisa de “fala”, por ter “cara”, como diria Norma Desmond). Ele sozinho já é uma carga de homenagens à história da velha Hollywood. O nome de Valentin vem do italiano Rodolfo Valentino. Um dos primeiros atores europeus importados por Hollywood, Valentino foi ícone do cinema dos anos 1920, e sua morte repentina, aos 31 anos, ficou marcada como a primeira demonstração em massa de histeria de fãs por um ator de cinema. O bigode e o sorriso canastrão são emprestados de Douglas Fairbanks. Também ícone do cinema mudo, e um dos sócios da United Artists, Fairbanks era famoso tanto por seus filmes como por sua vida pessoal, e acabou se aposentando forçadamente por não conseguir se encaixar no novo cinema. A referência a ele vai ainda além da composição física do “artista”. Em uma das cenas, quando Valentin falido assiste sozinho a um de seus filmes antigos, Hazanavicius usa imagens originais de um dos filmes de Zorro de Fairbanks, substituindo apenas as sequências em close up com Dujardin. Mas isso é só o começo da grande colagem de memorabília da “velha Hollywood” que desfila em O Artista.

A história começa com um filme dentro do filme. Nele, George Valentin é torturado em uma espécie de cadeira elétrica por um grupo de cientistas russos que querem fazê-lo falar a todo custo. Quanto mais ele se nega, mais descargas elétricas são aplicadas a seu corpo, em um efeito que remete a Metropolis, de Fritz Lang. Após o filme, Valentin vai ao tapete vermelho atender fãs desesperadas e jornalistas ávidos por fotos e declarações. No meio do público, está uma aspirante a atriz. Tentando ver melhor o ator, ela derruba sua bolsa no meio do tapete vermelho. Para recuperá-la, a garota se esgueira entre seguranças e mais fãs. Quando consegue pegá-la, sem perceber, está ao lado de George Valentin, sendo alvo dos flashes. Neste início já temos a sensação de déjà-vu, voltando às cenas iniciais de Cantando na Chuva. E ela não para por aí. No dia seguinte, a capa do jornal traz uma foto de Valentin e da garota da bolsa com a manchete: “Quem é a garota?”. Porém, ela não fica anônima por muito tempo. Os quinze minutos de fama ao lado de Valentin a ajudam a ganhar um papel de figurante. Assim, finalmente, Peppy Miller faz sua entrada no mundo dos estúdios de Hollywood. Logo em seu primeiro dia, ela reencontra Valentin. Assim como os personagens de Debbie Reynolds e Gene Kelly, os dois se reencontram em um pequeno número de dança usando como cenário um céu com nuvens pintadas. Apesar de parecerem apaixonados, os dois seguem caminhos diferentes. Valentin, dispensado pelos estúdios por não querer fazer cinema falado, se lança em uma produção independente. A falta de diálogo também coloca seu casamento em crise. Peppy, por sua vez, começa uma carreira de sucesso, mostrada através da ascensão de seu nome nos créditos — mesma técnica narrativa vista em Nasce uma estrela. Com a chegada dos filmes falados, ela se torna a “queridinha da América”. Valentin, no entanto, enfrenta o fracasso de seu último filme, a falência vinda com a crise de 1929, o fim de seu casamento e o esquecimento total. Suas únicas companhias são o cachorrinho Uggie e o motorista Clifton (James Cromwell). Quando Valentin o dispensa, por não ter como pagá-lo, mesmo contra a vontade do fiel funcionário, acaba sozinho. Sem saída, o ator encara seu fim duas vezes. Nas duas será salvo por Peppy, que nunca deixou de acompanhá-lo mesmo a distância, e que irá trazê-lo de volta ao seu lugar: as telas. O número final, a ligação entre o cinema velho e o novo, traz os dois em um número de jazz, em uma referência a Al Jonson e o filme que mudaria os rumos da sétima arte em 1929, mas também as produções de Freddie Astaire e Ginger Rogers. Enquanto todo o cinema falava, os dois só precisavam sapatear.

Com uma história carregada de drama e otimismo, o filme de Hazanavicius tem roteiro redondo, feito sob medida para agradar o público. Mesmo a opção pelo cinema mudo é apenas uma forma de narrativa, não uma escolha artística ousada.  Em alguns momentos, parece que iremos sair do déjà-vu e encontrar algo diferente. Como o que acontece com a sequência do sonho de Valentin. Depois de se reunir com os produtores do estúdio, de ter se deparado com um futuro no cinema onde não existirá lugar para quem não falar, o ator está sentado em seu camarim. Ele se olha no espelho e bebe um copo d’água. Ao colocá-lo novamente na mesa, o som do copo na madeira surge. Com ele, o mundo de Valentin, antes preenchido pela trilha sonora, ganha sons reais. O telefone toca. Seu cachorro late. Um grupo de showgirls passa rindo. Só Valentin não consegue emitir som nenhum neste mundo. Por mais que tente e se esforce é como se ele fosse destinado a ser mudo. Só quando uma pena cai no chão é que descobrimos ser apenas sonho do personagem. Porém, a promessa de uma virada no roteiro acaba por aqui e o diretor retoma outra vez o caminho do óbvio, tanto na estética quanto no roteiro. A queda de Valentin, por exemplo, que começa pelo fracasso de seu filme independente, é ilustrada na tela ao acompanharmos o personagem vivido por ele afundar e desaparecer em areia movediça, tentando alcançar a mão da mocinha. O duplo sentido nas conversas com a esposa que tenta convencê-lo a fazer filmes falados e a discutir a crise do casamento, tenta ser singelo em frases como: “temos que falar”, “precisamos falar”. O título do filme de Peppy que Valentin assiste em um cinema, pouco antes de ter seu primeiro acidente, entrega o papel dela: “Guardian angel” (Anjo da guarda). Tudo acaba recaindo para um roteiro previsível, que perde a chance de ser uma homenagem e se torna um pastiche de Wilder, Lang, Murnau, Chaplin e tantos outros que fizeram cinema antes de Hazanavicius. Sim, O Artista tem momentos emocionantes, bela trilha sonora e o cachorrinho Uggie para roubar a cena. Mas, no fim, ele acaba sendo apenas mais um dos filmes produzidos no ano que o cinema resolveu sentir saudade dele mesmo.

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A Invenção de Hugo Cabret (Martin Scorsese, 2011)

Por Daniel Dalpizzolo

A história de amor entre Martin Scorsese e o cinema não é mais uma novidade. Se a nouvelle vague francesa, de Godard e Truffaut, é considerada hoje o primeiro grupo de cineastas declaradamente cinéfilos, filmando obras assumidas em uma consciência que ao mesmo tempo reverenciava e refletia as preferências cinematográficas dos autores, Scorsese por sua vez é, entre os cineastas da geração anos 70 do cinema norte-americano, talvez o que mais abertamente tenha declarado sua devoção pela sétima arte – seja nos filmes realizados ou em entrevistas concedidas sobre o assunto.

Em A Invenção de Hugo Cabret, o diretor expõe abertamente estes sentimentos e traz o amor ao cinema e ao poder da imaginação como força motriz da trama e de sua bela encenação. Do primeiro ao último minuto, vivenciamos uma fábula que, com seu visual embasbacante e seus impressionantes efeitos 3D, somente poderia existir no cinema, numa fantasia que se constroi em um mundo à parte da nossa realidade. A Paris do filme, de tons alaranjados e crepusculares, é apresentada como cenário fantasioso e impossível. Cada plano da capital francesa é uma imagem da cidade que você nunca mais verá, a não ser em A Invenção de Hugo Cabret.

Neste cenário próprio da ficção, Scorsese nos situa pelo olhar do menino Hugo Cabret, um órfão miserável que vive em uma estação de trem. A primeira parte do filme surge como uma fábula dickenseniana passada toda dentro da enorme e minuciosa estação (lembra sem muito esforço a mais famosa obra de Dickens, o clássico da literatura infanto-juvenil Oliver Twist). É notável a habilidade do diretor ao construir este cenário e nos posicionar no centro dele junto do protagonista, complementando-o com um grande número de personagens secundários que auxiliam a compor uma ambientação abrangente e imersiva.

Cada detalhe da estação, dos corredores às enormes engrenagens dos relógios nos quais Hugo se abriga, é composto com esmero, tornando-nos íntimos do espaço em poucos minutos. A exemplo do filme anterior de Scorsese, Ilha do Medo, em que o diretor dedicava parte considerável da narrativa para que o personagem de Di Caprio simplesmente explorasse a ilha-sanatório em que estava preso, aqui Hugo percorre todos os cantos da enorme estação, e a câmera de Scorsese, com uma decupagem leve e fluída, persegue o garoto por sua realidade sofrida e pouco entusiasmante. Em seguida, rompe esta realidade com o surgimento de uma garota e da aventura em que se metem, levando-os ao centro dos interesses do filme: a ode à magia e ao encantamento do cinema.

O grande trunfo de A Invenção de Hugo Cabret em sua segunda metade, que homenageia o precursor da ficção e dos efeitos especiais no cinema, o mágico e cineasta francês Georges Méliès, é equilibrar seu encantamento declarado pelo cinema de forma ao mesmo tempo emocionante e levemente didática, tornando possível que tanto os cinéfilos mais ardorosos quanto aqueles que mal conhecem a história da sétima arte possam se encantar com a homenagem de Scorsese. Ao resgatar às novas gerações a essência do trabalho de Méliès, o diretor naturalmente faz de seu filme uma viagem pelo que há de mais essencial nos mecanismos da fábula, que se vale da construção de novas realidades para fazer-nos esquecer a nossa por algumas horas – e, também por isso, é justamente ao fazer seus personagens sentarem numa sala de cinema para contemplar a restauração das principais obras de Méliès que o filme se encerra.

O momento final é tão simbólico que mesmo a falta de sutileza de algumas sequências anteriores torna-se um problema menor diante do expressivo significado deste ato – que propõe um olhar para o passado, para a gênese da magia artística, valendo-se da beleza proporcionada pelos recursos tecnológicos do cinema digital. O cinema, a arte que salvou Scorsese da violência do bairro em que cresceu, das drogas e da depressão, é também a arte que salva Hugo da solidão, Méliès do esquecimento e da decadência, e frequentemente a nós, espectadores, dos tantos problemas que nos acometem diariamente. É sobre este poder de resgate do cinema que fala A Invenção de Hugo Cabret, um filme dedicado inteiramente à magia dessa arte tão encantadora e envolvente, e filmado de forma tão apaixonada que se torna praticamente impossível não nos entregarmos a ele.


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Joey e o carrossel

É incrível que o senhor seja um adulto”. Assim é dito a Lawrence Woolsey (John Goodman), um falido produtor de cinema B de terror nos anos 60, post-mortem da velha e etérea Hollywood, logo ao final de Matinée – Uma Sessão Muito Louca. E é pouco considerando que Woolsey literalmente põe abaixo o cinema da première do seu filme apenas para que o público tenha a impressão, em plena crise nuclear cubana, de que uma bomba atômica foi lançada sobre a cidade. Tudo porque, justifica ele, “as pessoas já não se assustam como antigamente”.

Importante verificar que Woolsey não é um nostálgico, não perde seu tempo lamentando o olhar viciado do público que já não se inspira com os velhos truques; não pela aquisição de uma consciência de seu lugar e de seu tempo que poderiam justificar uma tentativa de adaptação ou um retirar-se solene do caminho já tantas vezes encenado no cinema (em O Leopardo, em O Homem do Oeste, em Pelo Amor e Pela Morte). Pelo contrário, o velho produtor jamais dá sinais de que compreende a urgência da sua posição nem sua transitoriedade fadária. Não há espaço para saudade (arabesco cafona, incabível em Joe Dante) porque Woosley parece ignorar que o cinema que ele ama deu lugar a outro na fila de preferência das plateias; parece desconhecer o estado crítico da sua arte, interpretando-o talvez como uma etapa a mais na evolução do gênero. Aninhado nessa ignorância, é lógico, tudo é alegria; toda celebração é uma ode à teatralidade. Fica claro, ao transformar os corredores do cinema em seu picadeiro particular, que Woolsey se diverte mais que qualquer um em seu próprio espetáculo, ignorando a verdade do perigo como um desenho animado ignora a gravidade. A farsa, blindada contra as leis mais impassíveis deste mundo, é sempre mais aprazível que qualquer realidade.

Apesar de ser um dos filmes mais fracos do diretor, Matineé diz muito sobre as leis que regem o universo particular de Joe Dante, não muito diferentes das que operam em um Papa-Léguas & Coiote. Como Lawrence Woolsey, Dante é uma criança imprudente que tem por grande pretensão o mais barato entretenimento e como veículo o cinema que tanto ama sem se dar conta de que talvez as audiências já não compactuem com o seu entendimento sobre o que, afinal, um “filme” deveria ser. A quem assiste, Dante parece mais um mímico que acredita piamente na existência do seu brinquedo invisível. Para que o público consiga compartilhar dessa loucura é preciso crença cega no absurdo da ideia, é preciso mergulhar no caracol de mecanismos simplistas que ornamentam seu cinema e se deixar invadir por um ímpeto que a mente adulta há muito suprimiu.

Joe Dante começou no horror e encontrou casa no cinema oitentista de aventura, mas apesar da superficial disparidade, a dinâmica que move um Piranha e um Looney Tunes – De Volta à Ação é exatamente a mesma. Na última cena de Piranha, dois personagens conversam sobre a possibilidade apocalíptica de as super piranhas modificadas pelo exército chegarem ao oceano. Barbara Steele, musa de Mario Bava e Anthonio Margheriti, rechaça a ideia para, em seguida, sorrir e olhar no olho do espectador, diretamente para a câmera, que corta para um plano do mar toscamente eclipsado por um filtro vermelho. Desde o início, Dante abraça suas referências e não as larga, mas ao contrário do que ocorre com um Quentin Tarantino, esse amor não se traduz em condutor para o processamento de uma grafia própria, nem reclama para si a necessidade de ser explicitado. Dante não se define por sua “bibliografia”, ainda que a carregue consigo o tempo inteiro. Seu cinema é quase sempre uma releitura escrachada de gêneros e seus saturados artifícios, mas que nunca usurpa de um Tubarão sua tessitura mais simples nem do matinê seu zeitgeist, passando ao largo de um mero decalque sôfrego que comete falsidade ideológica ao se fazer passar por quem não é ou assumindo pretensa homenagem para colar pretexto que acoberte sua anemia de estilo.

Quando ainda estudante, feito um moleque que completa um álbum de figurinhas, Dante compilou trailers, clips, comerciais de TV e até vídeos institucionais do Governo num monstro de 7 horas de duração chamado The Movie Orgy, produto que claramente deve mais à obsessão adolescente, prurido de um fãzóide que precisa externar o que já não cabe numa ideia de entretenimento para si mesmo (é preciso também entreter, é preciso causar impacto no mundo), do que ao próprio ócio puro e simples. Referências a Vampiros de Almas e a Guerra dos Mundos pipocam por toda sua filmografia, personagens da era Jones da Warner Bros. se multiplicam a todo o momento no canto de um quadro ou através de uma vitrine, isto fora minha certeza (da qual não tenho prova, só uma doida vontade de confissão) de que Dante usou seu Matinée apenas como pretexto para poder filmar Mant (há uma versão contínua que pode ser encontrada no Youtube), a horrível história de um homem transformado em formiga gigante que aterroriza Nova York. O marasmo de Matinée parece denunciar a má vontade com que Dante encara esse cinema mais “normal” diante da notável riqueza de detalhes e do ritmo fervilhante de Mant, seu mimado filme B.

A linguagem particular de Joe Dante se constitui através de um fanatismo que, de tão substancial, de tão homogêneo, não pode ser aplicado a um nome ou mesmo a todo um gênero, dissipando-se antes no verso do próprio ato de encenação. A Dante interessa antes o fascínio do cinema do que o cinema em si, antes o fascínio do horror do que o próprio horror. Tome o mecanismo de tensão em Piranha: basta um homem na água para Dante encenar a força que é suficiente ao filme, e basta que a água fique vermelha para que haja clímax. O gatilho do horror é tão somente um corpo em cena.

Em Grito de Horror é à ferramenta e não a seu propósito que a câmera se atém quando passeia os olhos sobre os detalhes da transformação do lobisomem, prendendo o público no deleite de cada garra e cada dente que viceja no bicho lentamente, porque o fascínio sobre o que aquelas armas podem causar não é algo a ser correspondido. A imagem implica o que não lhe interessa expor. É somente no circuito interno do momento, de vagar, antecipando um ataque que nem sabemos se vai acontecer (porque não importa), que se pode observar com toda calma e com todo medo possível (represado na paralisia da personagem, versão diegética para a fascinação do cineasta) os caninos do monstro, signos desse horror que o filme empenha, já que toda cena em que são acionados é rápida e turva como um golpe. Se a morte é rápida demais para ser apreendida, passa a interessar o seu ensaio.

A fruição do próprio fazer supera em muito o seu objetivo. É claro que todo cineasta enseja primeiro o prazer em filmar, mas há talvez um equilíbrio aí presente (em usar deste prazer como liga de construção, não como fim em si) que se corrompe. Dante é aquela criança que passa o dia montando e remontando um castelo de areia, ou uma ferrovia, ou uma cidade em miniatura, porque quando esta cidade ficar pronta, a diversão terminará. O propósito que se persegue, quando atingido, extingue o próprio motivo de sua existência. A diferença para todos os outros diretores de sua geração, seu maior defeito e sua maior virtude, é que Dante jamais se permitiu a esta descoberta. É até hoje o mais inconsequente e juvenil dos cineastas oitentistas americanos. Assistir a O Buraco 3D, seu último filme, é se deparar aqui com esta ambígua revelação: Dante não cresceu nada em um espaço de 30 anos. O deboche de um Gremlins é o mesmo que reverbera com força em Homecoming The Screwfly Solution, seus dois médias para a série Masters of Horror. Assim como em Piranha, em O Buraco 3D é o objeto antes de sua execução, é o cinema como pequeno parque de diversões, um brinquedo que só entretém enquanto imitar a simplicidade alegre de um pião, carente apenas de um primeiro impulso para embalar-se sobre si mesmo.

Tudo responde a essa recreação própria do olhar. Para Dante, fazer cinema é brincar de trenzinho, rodando num ciclo infinito que se regozija a cada volta. Como ocorre em Viagem ao Mundo dos Sonhos (de longe seu pior filme), onde três crianças montam uma nave espacial com sucata e rumam ao desconhecido em busca dos mistérios do universo. Quando chegam, descobrem que os alienígenas, supostos guardiões destes segredos, são também apenas crianças — crianças fanáticas por filmes e televisão. Dante entende que é mais divertido se o destino final dessa viagem for também seu ponto de partida, onde se encontra a mesma perspectiva infantil que se deixou para trás, porque então se pode começar tudo outra vez.

É assim que as animações de Chuck Jones e o cinema B de Roger Corman coexistem ao longo de toda a carreira de Dante, como iconografias que se amalgamam sob um ponto de ebulição em comum: o olhar infantil, que vê a tudo — de PernalongaFrankenstein — pelo mesmo prisma de entretenimento. O estranho cosmos que Dante habita parece mais uma combinação desses dois universos, de lápis de colorir e fumaça cenográfica. Há os extremos para um lado (Piranha e Grito de Horror), os extremos para outro (Looney TunesViagem Insólita), e as áreas de choque entre ambos. O humor de Gremlins e principalmente o de sua sequência (Gremlins 2 – A Nova Geração) é muito antes o humor do desenho animado que do terror, porque o horror do filme permanece sempre iluminado pela óptica do artifício, sem jamais incorrer na quebra de encanto de tentar atingir seu fim canônico.

O ponto confluente de todo esse aparato referencial é sem dúvida Meus Vizinhos São um Terror, onde Dante escreve a fórmula-mestra do seu cinema: crianças em corpos de adultos que passam as tardes brincando de mansão mal-assombrada. O tempo inteiro é o fascínio do desconhecido, da expectativa infantil sempre capaz de enfeitiçar a realidade que toca, estabelecendo com sorte um motivo a mais para apertar a campainha e sair correndo. Já pouco importa se de fato os vizinhos possuem uma coleção de ossos no porão desde que esta suspeita baste para esquecer a modorra de uma rua sem saída, ajudando a vencer o tédio nem que seja preciso reinventar a rua inteira. É também o que basta a Joe Dante: insistir na brincadeira, na invenção de um horror que não exige se constituir em algum momento. Não se trata de sentir medo realmente, mas de encená-lo, ainda que sua origem seja por todos sabidamente fingida.

É esse medo o protagonista de O Buraco 3D. No filme, dois irmãos encontram no porão de casa um buraco assustador que parece libertar fantasmas e dar vida a objetos inanimados, oportunidade para Dante reviver os truques mais rasteiros do horror sobrenatural, de referenciar a si mesmo (em Grito de Horror), a Halloween – Noite de TerrorA Hora do Pesadelo e até Brinquedo Assassino. Mais tarde, descobrimos que as aparições no tal buraco eram manifestações do que cada um mais secretamente temia, porque é exatamente assim que o medo de um porão sombrio ou de uma velha mansão funciona, exigindo à imaginação que forje o cenário e engane olhos e ouvidos.

A escuridão é uma folha em branco. É nesse vazio entre o fascínio da ignorância e o fascínio da descoberta que se inscreve toda a mise-en-scène de Joe Dante, captada assim como um friozinho na espinha, uma história de acampamento. Dante não percorrerá jamais o caminho de Sam Raimi, de Steven Spielberg ou de Peter Jackson; está fadado a ser sempre o mesmo moleque que não vê os velhos carrinhos perderem a graça, despedindo-se aos poucos dos tapetes da sala para ocuparem o topo esquecido das estantes. É por isso que Joe está igual em Piranha, igual em Pequenos Guerreiros e igual em O Buraco 3D, porque assim como Woolsey, o produtor falido de Matinée, ele acredita tão cegamente em sua perenidade que seu cinema termina por contagiar-se com um sopro de eternidade que, se não verdadeira, cristaliza no anverso do filme uma holografia, uma marca de permanência, esta sim inexaurível combatente da teleologia a que os cineastas eventualmente se rendem, convertendo vício em círculo virtuoso.

Dante, como a criança que só sabe da morte por ouvir falar, sequer suspeita da estrutura linear do tempo, celebrando cada filme como uma nova volta no trilho ensimesmado que é seu cinema, vivendo-o sem a vaga ideia de que existe uma evolução possível e, portanto, um fim inevitável. Nesse cosmo próprio, âmbar reanimado com nova vida pela fé indiferente aos fatos do mundo, seu cinema flutuará, sem massa ou densidade, invulnerável à ação da gravidade ou à impiedade dos anos. Cada novo rodopio de Dante nesse brinquedo parece suspender-se no mesmo espaço imaterial de tempo: entre o arrepio do breu repentino e o alívio no acender da lâmpada.

*versão de artigo originalmente publicado no Cineplayers, jul/2011.

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J. Edgar (Clint Eastwood, 2011)

Um dos prazeres de acompanhar J. Edgar decorre da habitual elegância com que Clint Eastwood dirige e conduz os seus filmes. Dizer isso não é mais que chover no molhado. Há um bom tempo que ninguém no cinema americano filma tão bem quanto ele. O que sobra em seu novo trabalho é uma dramaturgia e estrutura narrativas um tanto perdidas e que custam a engrenar. Quem prestar atenção em sua filmografia vai reconhecer que o diretor nunca foi afeito a histórias cheias de idas e vindas no tempo, que transcorram por décadas. Ele sempre se sai bem melhor lidando com um drama restrito a um tempo e contexto específicos.

Pode ser quem alguns reclamem do filme ser muito longo nos seus 136 minutos de duração. Ao que parece, ele na verdade sofre por ser curto demais, com material suficiente para render sete ou oito filmes sobre passagens diferentes da vida do mitológico J. Edgar Hoover, mas como se nos chegasse às mãos cheio de cortes, como uma versão condensada de minissérie de TV (não em termos estéticos, mas de roteiro mesmo). J. Edgar poderia ser bem melhor com quinze horas de metragem, com tempo necessário para desenvolver os fragmentos mostrados da biografia de Hoover. Seria o Berlin Alexanderplatz de Clint Eastwood.

Ainda assim deve-se considerar um filme bem ou mal por o que ele resulta, não pelo que poderia ter sido. J. Edgar é um irregular muito bom filme de Eastwood. A opção do cineasta em passar ao largo da história pública americana na qual Hoover esteve presente por cerca de 50 anos faz com que ele pareça não saber como agir por um determinado momento (especialmente em seu primeiro ato), mas finalmente se ilumina quando revela a verdadeira natureza do seu trabalho: a decrepitude do personagem em seu ocaso. J. Edgar vai evoluindo assim intercalando os últimos anos do protagonista no período 1960/70 com sua juventude nos anos 1920/30.

O desafio é fazer emergir da estampa de Leonardo DiCaprio uma personalidade. Por um bom tempo enxergamos ali o ator, não o personagem. Como Angelina Jolie em A Troca, o intérprete está bem controlado, distante dos cacoetes que se encontram em suas atuações nos filmes de Scorsese, mas não é exatamente um ponto alto de J. Edgar, até que a sua maquiagem o destaque deixando-o mais à vontade em seu papel, calvo e obeso como um elemento natural, nunca forçado ou se ressentindo como um artifício na tela.

Tivesse optado por um viés mais policial, J. Edgar poderia quem sabe ser uma obra-prima (como Inimigos Público, de Michael Mann). Não era a intenção de Eastwood, que vem preferindo encontrar o humano não na ação ou nos tiros, mas circunscrito no drama. Focando-se num personagem que nunca se revelou por completo, que destruiu arquivos pessoais para que saísse vitorioso em vida e carregasse consigo o mistério de sua figura pública, deixando para a posteridade o que ele tratou de moldar em torno de si como um ícone, resultado da construção de uma imagem: a do chefão do FBI perseguidor de assaltantes de bancos ou comunistas e espiões, mas que escondia conflitos edipianos como a sua dependência em relação à própria mãe, ou sua homossexualidade enrustida, abordada com notável sutileza sem que o filme se preocupe em escondê-la ou enfatizá-la exageradamente. O que rende um belo momento fassbinderiano, no qual Hoover se traveste com roupas de mulher, por ocasião da morte de sua mãe. Não é de hoje que o cinema de Clint Eastwood parece habitado por monstros (no caso, o próprio Hoover) e fantasmas (aqui a figura materna, cuja presença ao longo do filme assombra e ao mesmo tempo dialoga com o protagonista).

Não tinha como o filme não ser, que nem o seu personagem, outra coisa se não uma esfinge que não se permite conhecer por inteiro. Quem espera uma cinebiografia que se pretenda completa (ou correta) e responda quem é J. Edgar Hoover estará perdendo o seu verdadeiro foco, caindo numa falsa impressão de incompletude, de insuficiência. Ainda que custe um pouco a entrar nos trilhos, J. Edgar acerta em mostrar o jovem e o velho que há em dois momentos distintos no homem, com o filme indo e voltando no tempo em torno do personagem decrépito e do jovem impetuoso de outra época. Um ciclo que se fecha, mas que leva consigo seus segredos, nos deixando defronte de um enigma, como é, afinal, a vida de todo homem.

Filmes citados

Berlin Alexanderplatz [idem; Alemanha/Itália, 1980], de Rainer Werner Fassbinder. 894 min.

Inimigos Públicos [Public Enemies; EUA, 2009], de Michael Mann. 140 min.

J. Edgar [idem; EUA, 2011], de Clint Eastwood. 137 min.

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O Outro Homem (Carol Reed, 1953)

Desde o final da Segunda Guerra, Carol Reed se especializou na elaboração de cuidadosos suspenses, muito próximos entre si por características centrais ao enredo e à investigação dos personagens como pela aposta num estilo próprio muito forte e facilmente identificável. O Outro Homem, dentro de sua carreira, destaca-se como uma obra em plena coerência com seu imaginário particular, mas também como um passo adiante, um novo olhar com perspectivas diversas dos feitos anteriores. Ao mesmo tempo em que enxergamos variáveis já presentes em O Condenado ou O Terceiro Homem, também percebemos que há um nível de desenvolvimento latente, contornando todo o trabalho visual e a psicologia das relações aí existentes.

Sem dúvida, o elemento que mais pode nos ajudar a entender essa nova postura reside na potência que se revela a personagem de Susanne (Claire Bloom), caráter ímpar em toda a filmografia do cineasta, não apenas pelo poder de sua feminilidade como pelo desdobramento que sua identidade tomará no decorrer da trama. Nunca Carol Reed tinha nos apresentado uma mulher tão singular. Seus filmes, geralmente conduzidos por homens incautos, atormentados por culpas e erros não resolvidos, culminam aqui, mesmo através de uma mulher (e talvez somente por isso), num dos casos mais viris e impetuosos de amadurecimento, de confrontação com a realidade e a aceitação de caminhos duvidosos, porém necessários. Ficamos mesmo sem palavras ao nos depararmos com tanta força diante de um ser que aceita as terríveis condições de sobrevivência, por um amor que não oferece segurança, e que muito mal se afirma como amor puro, ideal. Pois já não há lugar para inocência.

Nesse sentido, Susanne é muito próxima do pequeno Phillipe, protagonista de O Ídolo Caído, menino que amargamente descobre a diferença entre a verdade e a mentira, e que para alcançar o que é verdadeiro se verá obrigado a desfazer-se de sua inocência e fragilidade. Duas cenas de O Outro Homem interligam-se para testificar a transformação de Susanne. A primeira, quando numa fuga desesperada pela madrugada nas ruínas de Berlim, vê-se confundida com uma prostituta por devassos que lhe perseguem num carro; um pouco depois, também em desespero por um escape, aceitará ser tomada como uma ‘mulher fácil’ para confundir seus perseguidores. Numa mesma alma encurralada, um confronto de dois pólos. No fingimento de Susanne, uma chave para todo o cinema do próprio Reed.

Há muito Reed também já tinha aprendido seus truques. Revestir narrativas com mirabolantes reviravoltas, impressionantes cenas de ação física e humor inusitado, é coisa típica no cinema em jogo. E é muito bom constatar mais uma vez que a própria condição narrativa do cinema de Reed constitui-se como uma exuberante roupagem para a elaboração meticulosa de sua linguagem. Em O Outro Homem, assim como nos filmes anteriores, também encontraremos a tortuosidade dos ângulos, a simbiose entre personagens e espaços, mas teremos mais. Talvez porque o próprio poder simbólico da cidade em ruínas, comparável somente aos esgotos de O Terceiro Homem, vem representar não só a inquietação de um suposto amor ou a desintegração de uma alma perdida (Ivo Kern/James Mason), mas desafiar a própria razão de ser do cinema. Sob essa perspectiva, Carol Reed dá um passo adiante não apenas em sua carreira, mas através dela auxilia o próprio cinema a mover-se de lugar, de sua segurança clássica, da certeza de uma imagem. O novo lugar do cinema, movediço e incerto, também já não encontrará espaço para inocências e esperanças vãs, pois talvez a única esperança seja fingir. Não fingir para fugir. Mas para enfim viver.

Filmes Citados

O Condenado [Odd Man Out; Reino Unido, 1947], de Carol Reed. 116 min.

O Ídolo Caído [The Fallen Idol; Reino Unido, 1948], de Carol Reed. 95 min.

O Outro Homem [The Man Between; Reino Unido, 1953], de Carol Reed. 100 min.

O Terceiro Homem [The Third Man; Reino Unido, 1949], de Carol Reed. 104 min.

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Sobre o abismo e outros vértices

Foi Christian Metz quem chamou a atenção para uma consciência da imagem de si mesma e uma autoconsciência do espectador, inscrevendo aí uma dinâmica de interdependência entre ambos. Pegando emprestadas algumas noções da Análise do Discurso francesa, Metz ponderou que “a enunciação é o ato semiológico pelo qual certas partes de um texto nos falam desse texto como se fosse um ato”. O olhar para a câmera em Um Corpo Que Cai, de Alfred Hithcock, é o exemplar definitivo desse ato e dessa enunciação no cinema.

Atormentado pela morte de Madeleine, John vê na rua uma mulher de semelhança extraordinária à de sua amada. Decide segui-la, descobre que ela mora no mesmo apartamento onde Madeleine morava. Bate à porta, começa a conversar; seu nome é Judy. As roupas estão diferentes, o cabelo está de outra cor, mas há sem dúvida algo além da mera similaridade que John não consegue ignorar. Marcam um encontro para dali a meia hora. Já passam dos 90 minutos de filme, e a câmera, que seguira John para cima e para baixo de San Francisco até então, subitamente não o acompanha. Fica no quarto, com Judy, que faz dela sua refém e elege-se para todos os efeitos figura central do filme de Hitchcock — e este é um momento de choque em Um Corpo Que Cai: a câmera, pajem vagueante de um frágil Jimmy Stewart, é assim de repente amputada de seu protagonista.

Eis a quebra da prescrição do cinema clássico quanto ao disfarce dos próprios mecanismos e a proteção à eficiência de sua narrativa. Sabe-se que ainda incipiente, pelo menos até o início dos anos 20, o cinema tinha no teatro não apenas uma base, mas uma referência quase mimética. Faltava-lhe um aparato de expressão, um modus operandi que lhe fosse próprio. Foi somente a partir dos contributos de Griffith, Eisenstein e Dziga Vertov que se foi revelando a silhueta do que constituiria mais claramente a linguagem cinematográfica, desligando o cinema das artes às quais era por assim dizer subordinado, como o teatro e a literatura. Para tanto, este jovem cinema desenvolveu-se sob a norma do apagamento de si mesmo, evoluindo na utopia de um veículo de narração absoluto ao empregar o truque da história que se narra sozinha. Tal noção remete à narratologia e principalmente aos estudos de enunciação do linguista francês Émile Benveniste. Segundo Benveniste, há uma oposição entre história e discurso: a “história” é a narração objetiva, fáctica, sem a intervenção de quem narra; no “discurso”, por outro lado, há a influência ou no mínimo uma intenção de controle do narrador, e portanto a livre exponenciação da subjetividade. Ora, nada se conta por si mesmo, logo, a ideia de história não deve ser interpretada literalmente, mas como uma estratégia narrativa. Muita coisa, sim, aparenta contar-se sozinha, e é a esse princípio que está ligada a “eficácia do cinema clássico americano” de que fala Marc Vernet.

A câmera primitiva, aquela imóvel que simplesmente registrava a ação semovente diante de si, caía na contradição de marcar indelevelmente sua própria presença física. A lente estanque joga ênfase sobre sua existência, sobre a existência de uma aparelhagem que a precede e, por conseguinte, para a existência do próprio espectador. A escritura de uma linguagem própria ao cinema pressupunha então, por necessidade, o apagamento da câmera para que o espectador pudesse tomar o lugar que lhe cabe. Se há um olho que capta a cena, este olho não pode ser alheio, não pode haver intermediação aparente. O espectador quando encarnado nessas lentes e conduzido pela atmosfera fílmica como um ente alado e invisível, observador ubíquo da fantasia, perde necessariamente a consciência de si mesmo. Por isso o público ideal do cinema clássico é aquele que não toma nota de si, que não se percebe, condição esta para que se mantenha intacta a delicada ilusão da caixa escura. A câmera então é um paradoxo, um espectro que opera exaustivamente para desfazer os próprios rastros. Vernet, lembrando a dicotomia de Benveniste, diz que “o filme de ficção clássico é um discurso […] que se disfarça de história”. Repare que é Judy quem entrega o twist da trama (não a própria narrativa, autônoma e invisível), como quem, antecipando-se à descoberta inevitável da verdade, decide contar ao amante (não John, mas o público) a natureza de sua traição. Judy rasga esse disfarce. A história que se conta sozinha é tomada de assalto pela personagem e redefinida a partir dela.

É por um desesperado grito de piedade que descobrimos a verdade em Um Corpo Que Cai. Judy, voltando o olhar para dentro da câmera como quem olha o centro de um redemoinho, encontra nesse gesto o olhar sonâmbulo do espectador, absorto até ali no encanto do teatro de sombra. Notando a proeminência da lente, desfolhando teia e névoa, Judy enxuga este olhar com o seu, afirmando-se personagem e conduzindo o espectador à tomada de consciência de si mesmo. Não fosse essa direção do olhar mecanismo suficiente, Judy emprega um flashback, trucagem fílmica por excelência, que se sobrepõem — como que por expiação, dada a astúcia deste jogo de cena — ao rosto de Kim Novak.

De todos os possíveis traços de subjetividade presentes em um filme — a trilha, a montagem, o narrador-personagem, efeitos de computação gráfica, um ângulo errático que não se avisa — o olhar para a câmera é o mais simples e o mais radical, é a marca de enunciação por excelência porque instaura, explícita e inexoravelmente, a dêixis na narrativa. A “história” não admite dêixis, não adere a marcas de enunciação, razão pela qual o olhar direto, impressão explícita do EU no discurso, estilhaça de imediato a trucagem  que ela tenta plantar. Este olhar é em si mesmo um enunciado. A partir dele o personagem salta a malha diegética e toma conhecimento de sua existência. Ao olhar para a câmera, ele não apenas diz — ele diz que diz. Como efeito colateral, o espectador também toma consciência de si. É por este motivo que alguém da produção joga uma torta na cara de um dos bandidos em Bang Bang, de Andrea Tonacci, assim que ele decide explicar a história ao espectador. A partir do posicionamento do personagem enquanto personagem, o espectador é chamado a se posicionar enquanto espectador, e a ilusão da subjetividade é desfeita.

Judy é talvez a femme fatale mais perigosa do cinema por empregar esse arroubo de realidade e lançar a dissimulação que define seu arquétipo na direção reta do público, como o monstro de uma pintura que salta da tela para agarrar seu observador. Repare no cálculo dos movimentos quando John deixa o apartamento. Como seu pescoço vira de vagar e seus olhos sobem pesando a resistência do ar até encontrar o olho de vidro da objetiva. Com o cuidado de quem não quer afugentar um bicho, Judy olha o público e pede que o público a olhe de volta, convidando-o a ver dentro dela a grande revelação de Um Corpo Que Cai. Ardilosa, tenta comprar seu perdão com a antecipação da verdade. Na sequência, Judy escreve uma carta endereçada a John, dizendo o quanto o ama e o quanto se arrepende por seu crime. A carta soa mais como a defesa de um argumento, despojada da febre de que se imbui inadvertidamente um relato apaixonado. Quando Judy rasga a carta, forjando arrependimento, tudo fica claro: a confissão é endereçada ao espectador e a ninguém mais. É extraordinária a destreza do truque: agora Judy e o público têm um segredo juntos, condição que ninguém, nem mesmo John, poderá revogar. Dois confidentes sozinhos contra a roda tresloucada do mundo.

A partir deste momento, John é derrubado de sua posição de protagonista e usado como mero joguete do enunciado que Judy luta para validar. Sua submissão no terço final de Um Corpo Que Cai é estratégica. Judy clama por piedade ao olhar para a câmera e procura colocar-se nesta posição cedendo a cada vontade de John, um homem movido pelo desejo de fender a ordem do tempo e pregar uma peça à própria memória enquanto ela se vitimiza com diabólica habilidade. Judy, personagem consciente de sua posição na diegese, sente voltar-se contra ela o curso da trama e decide que uma intervenção é necessária. Tal intervenção paga o preço: ela acaba se declarando, inevitavelmente, locutora do enunciado que procura defender. O discurso então disfarçado de história pela mão do narrador-cineasta é sequestrado e desvelado novamente em discurso por um narrador-personagem. Nem tanto porque assim se transcrevera a ordem das coisas, mas porque lhe era conveniente. Judy revela a máquina fílmica e toma o enunciado em suas mãos simplesmente porque não havia outra saída.

Há os que sempre verão em Judy a dissimulação própria das fêmeas hollywoodianas, mas há aqueles que, mesmo conscientes de sua natureza oblíqua, não fugirão ao encanto de seus gestos acusando por que não a carruagem incendiada do tempo, índice macabro que cavalga Um Corpo Que Cai de um extremo a outro. É o tempo, demônio de andar revolto, de recônditos sinuosos, de arames circunscritos no despetalar dos sonhos, que enlouquece John e que mata duas vezes a única mulher que amou. É a trilha fugidia do tempo, desencontrando-se num lugar para amarrar-se em outro, que funde Judy e Madeleine numa única criatura, escombro ou fantasma que condena John à repetição. É inevitável reparar que o destino de Judy, moldado ao de Madeleine, não se altera apesar de todos os seus esforços, e que por estranha ironia ela termina vítima em Um Corpo Que Cai.

Porque este é o filme dos que marcham em direção à queda. Que se inocente Judy pelo desespero e John pela obsessão; que se inocente a câmera e o enunciado; que se absolva Gavin, pseudo-antagonista perdido em duas ou três cenas. E quanto aos olhos, dois pingentes rateantes sucumbindo à gravidade, que se conceda então o benefício da dúvida, rendidos quem sabe ao balanço desse pêndulo, logrados na densa inclinação do abismo.

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As Aventuras de Tintim (Steven Spielberg, 2011)

Uma adaptação de Tintim (ou Tintin, no original) feita por Steven Spielberg era algo que eu temia.

Já sabemos há muitos anos de sua paixão pela criação de Hergé — da qual comprou certos direitos já nos anos 1980 —, e também conhecemos de cor e salteado sua louvável peregrinação pelos meandros da infância, bem como seu fascínio por aventuras que só recentemente foram respaldadas pela intelectualidade crítica, a exemplo das assinadas por gente como Carl Barks e James Barrie.

Ainda assim, era com pé atrás que eu via os boatos sobre um novo filme de Tintim (que já teve alguns longas décadas atrás, inclusive dois live action) pouco a pouco ganhando peso, até se confirmarem há alguns anos e finalmente, poucos meses atrás, tomarem forma em trailers, fotos de divulgação, propagandas de todo o tipo. E o filme então ficou pronto e foi lançado.

Mas se Spielberg é tão próximo a esse universo e tão apaixonado pelo personagem, por que o inescapável e firme receio?

O caso é que Spielberg sempre me pareceu inadequado nesse tipo de terreno: a aventura “fantasiosa”. Muita empolgação pela pirotecnia, pelo teatral, pelo malabarismo visual, o que afeta a narrativa de uma maneira geralmente bastante incômoda para mim. Nem da série de Indiana Jones eu sou apreciador: para mim, muito barulho por nada. As músicas-tema onipresentes de John Williams, os diálogos de efeito, a estrutura esquemática da ação, seus intervalos e clímaces, tudo sempre soou a mim como um pálido arremedo do que ele sempre admirou nesses campos.

Mas com Tintim Spielberg acerta a mão; e se falei de “arremedo”, essa é uma das chaves do sucesso do filme: sua honestidade. Spielberg não tenta copiar Hergé e se valer disso como blindagem. Pelo contrário: ele mexe nos álbuns mesclando histórias, suprimindo ou introduzindo personagens, alterando fatos, situações, ocorrências. E qual o problema disso?

Devo fazer um aparte aqui: sou enorme admirador de Tintim, tendo lido e assistido a todas as suas aventuras durante anos e anos de minha vida. Então — com certa pena em reconhecer isso — acrescento a meus temores descritos acima a adaptação “fracassada” de tão magníficas obras. Nunca creditarei a uma adaptação livre a qualidade insatisfatória de um filme, mas involuntariamente pensava com desgosto na supressão do professor Girassol (ou Tournesol, ou Calculus), por exemplo: ora, se a base dessa aventura é em grande parte devido à aparição e impulso desse personagem, como um declarado fã dos quadrinhos cogita filmar a história sem sequer mencioná-lo?

A maneira como Spielberg contorna essas “alterações” é exemplar. Não se escora na fama dos personagens (o filme é muito bem recomendado a qualquer neófito no assunto) nem resvala na preguiçosa indulgência covarde dos realizadores acostumados com mimos e flores. A engenhosidade do filme se deve em parte a essa decisão de Spielberg: não copiar Hergé, mas deixar claro a todo instante como respeita seu legado e como cada sugestão dos álbuns é aproveitada por sua força, intensidade e beleza. Desde os créditos iniciais, o amor de Spielberg por Hergé e Tintim é explicitado de mil formas, com várias citações e referências, que não parecem ocas ou exibitórias, mas carinhosas demonstrações de apego e estima. O que ele muda, muda com a consciência de servir a um propósito: o de funcionar no filme. E o filme funciona muito bem, obrigado.

Muito se discutiu sobre a técnica de filmagem, com atores reais sendo depois “digitalizados” (via motion capture) para a forma de animação tal como a vemos, mas essa é mais uma coisa louvável: alguma dúvida da artificialidade dos efeitos especiais caso Spielberg decidisse filmar As Aventuras de Tintim da maneira comum? Seria mais um simples blockbuster de ação, repleto de uma maquinaria tola desesperada para alcançar o realismo, mas que em verdade seria convencionalmente impostora. Ao passo que do jeito como veio à luz, As Aventuras de Tintim beneficia-se de seu caráter particular: não parece desenho animado (fugindo assim também da brilhante adaptação televisiva feita pela Nelvana nos anos 1990) e tampouco perde crédito assemelhando-se a um filme de movimentos “forçados”, indo na contramão da eficiência ao demonstrar a mentira dos perigos, a fragilidade das ações. Com todo o dinheiro envolvido na produção do filme, Spielberg nunca filmaria um filme artesanalmente hergeniano, como Phillipe de Broca fez em algumas fitas estreladas por Jean-Paul Belmondo.

É portanto com alegria que se constata que o filme é  um resultado bastante satisfatório de uma experiência algo ousada, restando a nós apenas a torcida para que os próximos filmes da franquia (infelizmente, um dos males agregados ao projeto) sejam tão felizes quanto esta primeira parte.

Filmes citados

As Aventuras de Tintim [The Adventures of Tintin; EUA/Nova Zelândia, 2011], de Steven Spielberg. 107 min.

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Crimes de Paixão (Ken Russell, 1984)

Cult-movie perdido da década de oitenta, Crimes de Paixão foi um dos filmes mais polêmicos (e censurados) produzidos em Hollywood naquele período. Ken Russell era um diretor de obras que prezavam pelos excessos, só que depois do seu auge na Inglaterra muito cedo veio um período de baixa em sua carreira, quando se contentava em fazer filmes malucos sem que fosse muito além dessa condição. Os filmes beiravam o nonsense, mas também o kitsch, e suas estruturas anárquicas mal disfarçavam o que elas tinham de mal-pensadas e desleixadas. Nesse sentido, a ida do diretor para o cinema americano nos anos oitenta representou um ganho, pois ainda que não tenha sido o suficiente para salvar a sua carreira (ou sequer realizar alguma obra memorável), o obrigou a aplicar o seu estilo adaptando-o a uma linha um pouco mais tradicional, com seus habituais delírios nos personagens e histórias (e nas imagens), porém dentro de uma narrativa mais fácil de acompanhar, contando uma história de maneira direta, privilegiando o trabalho dos atores, o desenrolar da trama e os diálogos.

Crimes de Paixão foi o melhor fruto de Russell em sua passagem na América, ainda que não seja um filme que convença algum detrator do diretor inglês. Uma versão hardcore de A Bela da Tarde com uma bela desenhista de modas (Kathleen Turner) que durante as noites se traveste como uma prostituta de nome China Blue, usando uma exótica peruca loira e saindo às ruas para caçar homens e trabalho. Dona de uma vida dupla, durante o dia é Joanna Crane, que leva uma rotina normal em seu emprego, e à noite se transformaem China Blue. Nessa jornada, conhece Bobby (John Laughlin), contratado pelo patrão de Joanna para segui-la e descobrir o que ela vem aparentando de estranho, e também um reverendo louco (Anthony Perkins) que quer convertê-la, com os três personagens formando um triângulo não amoroso, mas de relações, dos mais bizarros.

É uma história relativamente simples contada com alguns dos elementos inusitados típicos de Ken Russell, por vezes de modo bastante exagerado, bem nos seus moldes. Não deixa de ser um amargo retrato da insatisfação de pessoas que peregrinam pelo submundo noturno das grandes cidades. Os viciados, prostitutas, travestis, frequentadores de cinema pornôs ou cabines eróticas. A imundice e escória das ruas estão fortemente representadas na tela, como que numa viagem a uma boate suja dos anos oitenta, fazendo com que outros filmes que também carregam nas tintas nesse sentido pareçam pouco mais que um passeio no parque. Outro dos elementos deflagradores em Crimes de Paixão é o casamento como uma instituição falida, em torno de casais com relações sexualmente frustradas. É a lembrança de um matrimônio infeliz que levou Joanna a se transformarem China Blue, e as dificuldades com a esposa frígida que fazem com que Bobby se apaixone pela prostituta. Outros clientes de China Blue carregam consigo a impossibilidade de uma realização plena com suas esposas.

O filme conta com um trabalho de iluminação primoroso, e sua atmosfera é trágica e engraçada (o que é realçado pela trilha de Rick Wakeman), com Kathleen Turner num ótimo desempenho, atuando em cenas ousadas (ainda que mal apareça nua), muitas vezes beirando o escandaloso (como na sequência em que ela realiza a vontade de um policial que quer ser sodomizado com um cacetete), cenas que dificilmente outras atrizes famosas fariam (e Kathleen era uma das mais badaladas da época). Sua criação de uma prostituta de esquina é absolutamente inesquecível. Outro destaque é Anthony Perkins, que desde muito cedo em sua carreira, após o sucesso de Psicose, nunca se libertou dos tipos desequilibrados, ficando marcado pelos papéis de psicopata. Aqui ele está assustador e patético como o pregador fanático e moralista que frequenta clubes noturnos com shows de garotas nuas, carregando uma bolsa cheia de apetrechos eróticos (incluindo um vibrador). Ele se apaixona por China Blue, e em razão disso pretende destruí-la para salvá-la. Um dos momentos mais bizarros é quando o padre veste a peruca de China Blue e começa a gargalhar, citação direta que Russell parece fazer do próprio Psicose, com uma personagem (o reverendo) incorporando a outra (o da prostituta) para devorá-la de vez e fazer com que não exista a não ser dentro de si próprio.

Certas bobagens do cineasta ainda estão lá, como algumas brincadeiras infames de Bobby, o personagem de John Laughlin, com a esposa num churrasco com outro casal. A maioria das cenas de Laughlin em família destoa completamente do filme, tornando-o mais flácido, além de se tratar de um intérprete bem razoável. Por outro lado, as cenas familiares servem de contraste de todas as vezes que se adentra o universo noturno de China Blue, como numa versão às avessas de O Mágico de Oz. Sete anos depois, Russell faria um outro filme mais bem-comportado que também girava em torno de uma prostituta, Whore, no qual Theresa Russell (que não tem nenhum parentesco com o diretor) dirige-se diretamente ao público para traçar um retrato de sua profissão.

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Missão Impossível: Protocolo Fantasma (Brad Bird, 2011)

Cúmulo da ironia, é nas mãos do diretor menos preocupado com questões autorais em toda franquia Missão Impossível que nos deparamos com um filme em pleno diálogo com ampla tradição cinéfila, repleto de referências e citações que fazem de Protocolo Fantasma um prato cheio não apenas para os admiradores do gênero, mas para todos que curtem um cinema de relação, onde a reviravolta não fica limitada à superfície do que “se roteiriza”, mas alcança tudo o que “se materializa” no corpo da imagem.

Muito mais do que demonstrar competência na organização técnica de uma superprodução e boa dose de rigor no manejo das sequências centralizadas na ação física, Brad Bird oferece com este episódio um leque de conexões que poderia se aproximar, em tese, da proposta original de Brian De Palma ao ressuscitar o personagem de Ethan Hunt — o que aquele próprio não fez, pois apesar de ser ele um diretor da intertextualidade fílmica, seu Missão Impossível não bebe de outras fontes senão do seriado homônimo e alguns títulos de espionagem. Protocolo Fantasma, a começar do belo título encontrado, vem mesmo para jogar com todo um caráter de cinema que se reconhece herdeiro, potencializando não só a condição intrínseca e inerente ao que toca o projeto de um filme sequência (sempre assombrado pelos fantasmas de seus antecessores), mas também inserindo-se numa filiação de certo cinema americano que tem renovado a maneira de colocar uma imagem em diálogo.

Nesse sentido, vem logo à mente a significativa escolha da atriz Léa Seydoux para um importante papel de vilã reservado pelo enredo. Esta mulher que, eternizada como A Bela Junie, vem se tornando presença obrigatória de um cinema autorreferente dos EUA (de Tarantino a Woody Allen), ocupa em Protocolo Fantasma um sentido nuclear daquilo que percebemos enquanto jogo de encenação, de restituição do corpo humano dentro de um gênero que tende a ignorá-lo. Léa não é somente Junie, ou talvez porque continue a sê-lo e para sempre será, ela é todo um imaginário francês, como o provam suas breves e definitivas aparições em Bastardos Inglórios e Meia-noite em Paris, filmes que agora encontram no filme de Bird um irmão mais novo.

Ora, não há motivo para considerar o papel de Léa, ou melhor, esta interpretação de uma leitura cinéfila como objetivo de Protocolo Fantasma, uma resposta do acaso. Inocente é acreditar que um filme como este, que faz equipamentos tecnológicos voarem pendurados num Balão Vermelho — toda a sequência do balão trabalha uma virtuose que enfatiza intencionalmente este recorte do imaginário francês —, venha se valer da atriz apenas para preencher o elenco. Se Léa entra e sai de cena (que se ressalte a saída de efeito…) sem aviso prévio é porque toda a constituição de sua personagem baseia-se numa expectativa em que a ameaça está única e simplesmente em sua própria existência enquanto matéria a ser filmada. Léa é o rosto mal visto por Ethan (Tom Cruise) no início de Protocolo Fantasma, é o corpo que não se afirma, ou melhor, que só se deixa exibir depois de aterrorizar por sua ausência; ela é exatamente aquilo em que Ethan se transformará ao final de sua jornada, o que pesa a semelhança da maneira como se filmam a primeira aparição de Léa e a última de Tom: seres cabisbaixos, quase disformes, fantasmáticos.

E se existe uma cena que tenha a força de representar toda a problemática da imagem levantada por Protocolo Fantasma — problema de materialidade, de visibilidade — é aquela assombrosa sequência da tempestade de areia em Dubai que praticamente rompe o filme ao meio. Além da óbvia tensão advinda do caos natural, a situação climática emoldura a melhor perseguição do filme; melhor, justamente porque nela a convicção do olhar é questionada até o limite. Ethan Hunt não enxerga um palmo à frente dos olhos, e se o vemos é porque a câmera praticamente cola em seu corpo. Dissolvem-se as certezas, os alvos, e ficamos todos à mercê do que não se pode ver, mas que continua lá, em permanente ameaça. Pelo menos desde Vento e Areia, filme agonizante de todo um estatuto do olhar, sabemos que, no cinema, a confiança não pode se estabelecer apenas pelo que se vê, ainda que a visão seja o único recurso para enfrentar o mundo. Protocolo Fantasma reafirma, ao seu modo, que todo movimento parte de um princípio ativo básico (ação, uma condição dramática) para assim gerar o prazer de ver. Porque simplesmente enxergar é clímax.

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O Espião Que Sabia Demais (Tomas Alfredson, 2011)

O Espião Que Sabia Demais é um thriller de espionagem da mesma forma e na mesma medida em que Deixe Ela Entrar era um filme de terror: os códigos de gênero são usados para erguer um universo que vai erodir sob o peso das relações e aspirações pessoais que não se ajustam às suas necessidades. A cena dos créditos já dá o tom: Control e Smiley saem do Circus para nunca mais voltar, descendo escadas e atravessando corredores sob o olhar aturdido dos colegas e funcionários, em silêncio, sem trilha incidental, sem gesto em direção ao espetáculo. O filme já começa cansado, exausto, um sistema de espionagem e informações que parece a essa altura se mover apenas por inércia, monótono e, ao que tudo indica, longe da relevância que pode ter tido durante a guerra e no período imediatamente após. Smiley está oficialmente “fora da família” e é justamente essa a razão que leva um membro da alta hierarquia do governo a chamá-lo para realizar uma investigação quando a história sobre o agente duplo transpira. Mas não se abandona a família nunca, Smiley não demora muito a descobrir, e quaisquer que sejam os problemas correntes, é preciso buscar a resposta no que aconteceu antes, de modo que a investigação se concentra primordialmente no passado, e muitíssimo menos nos esquemas de espionagem do passado do que nas tensões e relações conforme se delinearam antes e deram origem ao que se vê no presente.

De forma que o que se esperaria ser o conflito central de O Espião Que Sabia Demais é de um pragmatismo desencantado — é preciso descobrir quem é o espião infiltrado simplesmente porque, afinal, é um espião infiltrado e assim as coisas são feitas, e não por ser um ato torpe ou desprezível (coisa que o filme não tenta sugerir por nenhuma vez — como diz o próprio agente depois de ser desmascarado, “Era preciso escolher um lado e foi o que eu fiz”), ou pela natureza ou relevância das informações que ele passa a Moscou (que nunca sabemos com clareza — nenhuma conspiração maquiavélica, nenhuma ameaça iminente de guerra nuclear a ser encontrada aqui). Não que as informações sejam banais ou o a traição ao Circus seja aceitável; a questão é que nada disso importa realmente ao diretor, o que faz com que a trama central seja inusitadamente desvalorizada e receba pouquíssima ênfase, inclusive formal. Exemplo claro é como as reviravoltas propriamente ditas não recebem tratamento especial algum, enquanto cenas em que o que está em jogo são os vínculos entre os personagens — Smiley e seu estratagema para conseguir o endereço da casa em Londres, a execução no final — são aquelas que Alfredson mobiliza montagem e trilha para enfatizar, carregar de tensão e significado.

A cena-chave de O Espião Que Sabia Demais é uma festa, mostrada aos poucos ao longo de toda a projeção, em que com pouquíssimas palavras Alfredson nos transmite muito do que precisamos saber e, mais que isso, nos coloca no mesmo estado emocional dos personagens, ao ver como as coisas eram e compará-las a como elas são no presente do filme. Nesse sentido, temos o oposto de Deixe Ela Entrar: lá, dois marginalizados que se encontram e se aceitam; aqui, toda uma comunidade à sua maneira excluída do convívio social normal (mesmo os relacionamentos amorosos são parcialmente vividos dentro do grupo, e as exceções — como o próprio Smiley ou Peter Guillam — acabam por se mostrar pontos fracos) que se desintegra diante de nossos olhos. Enquanto a identidade do espião não é descoberta, esse grupo pode se manter, mesmo que só na aparência, pode oferecer um conforto; mas após a revelação não restará mais nada, nem mesmo as ilusões, e o próprio processo de investigação envolve o esfacelamento voluntário dos vínculos que ainda resistem: até mesmo Smiley precisa cometer uma traição (“Nós temos muito em comum”, frase que ele dirige a Karla, seu duplo soviético e idealizador da operação do agente duplo, quando os dois se encontram, sendo muito mais verdadeira do que pode parecer a princípio), fazendo uma promessa cujo cumprimento ele sabe ser impossível para obter a colaboração de Ricki Tarr na armadilha que montam no clímax. O clima de paranoia aos poucos cede espaço a um clima de resignação, à medida que o fim se aproxima inexoravelmente e as máscaras caem, colocando um ponto final a uma identidade comum partilhada por todos. Não por acaso, o último flashback do filme, reservado a Jim Prideaux, apenas confirma qual foi a maior das traições, já implícita anteriormente. E a montagem que encerra O Espião Que Sabia Demais não poderia ser mais certeira, um desfile dos últimos filhos daquele grupo, agora órfãos de todo — e mesmo que Smiley aparentemente se reconcilie com a esposa, é preciso notar que, no último plano do filme, ele está sozinho na sala em que antes se reuniam vários.

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Aterrorizada (John Carpenter, 2011)

Carpenter tem o sangue da geração romântica do horror, aquela que viu A Noite dos Mortos-Vivos num drive-in perto da faculdade e que pela primeira vez acreditou ser possível fazer um cinema de massa longe das asas de um grande estúdio. O final dos anos 60 trazia na crescente do horror na Europa e no sucesso absurdo do filme de Romero o grande abrir de comportas para a violência explícita que o cinema, até então uma arte limpa, aguardava desde que Murnau brincou de luz e sombra para assustar o público. Carpenter, Cronenberg, De Palma e Wes Craven, filhos do lado B da old Hollywood, nasceram na hora certa para fundar as bases do terror moderno, como quem pega uma câmera 3 segundos antes de um acidente. Cada filme lançado ali redefiniu algum conceito, cada sequência trazia algo de inédito, por isso pode soar estranho que Aterrorizada se pareça tanto com os terrores genéricos lançados nos últimos 15 anos. Contra a virtuose, contra a assinatura, o público e o próprio cinema (onde se encontra e para onde vai), Carpenter faz de Aterrorizada, um filme nu e ordinário, um straight-to-video (no Brasil, literalmente), o argumento definitivo de quem só quer fazer filmes apesar do que é e do que representa. Aterrorizada é uma peça arcaica, uma obra que nasce datada e inofensiva às audiências de hoje porque Carpenter parece reclamar para si o direito de filmar sem desdobramentos ulteriores. Um pedido de licença, ridículo e impossível, para ser assistido como se assiste a um filme de terror pela primeira vez.

É fundamental lembrar que Carpenter passou uma década longe do cinema, mas não sem filmar. Há de fato uma atmosfera muito similar entre Aterrorizada e seus dois episódios para a série Masters of Horror (Pro-Life e Cigarette Burns, este último entre seus melhores trabalhos): a imperturbável leveza de quem não dá a mínima, sempre muito distinta em um artista e estranhamente agradável a quem o assiste. E é especial testemunhar esta atitude em quem volta cercado de uma expectativa capaz de efeitos tateáveis no cinéfilo, um sujeito que raramente resiste ao impulso de ou condenar o diretor à decadência ou elevar um trabalho comum à condição de obra-prima. Mais interessante, contudo, é a consciência do cineasta a respeito e a influência disto em seu trabalho. Vêm imediatamente à memória dois filmes lançados nos últimos anos, também dois retornos de seus diretores ao gênero que os definiu: Giallo, de Dario Argento, e Arraste-me Para o Inferno, de Sam Raimi.

A posição de Sam Raimi em Arraste-me Para o Inferno é confortabilíssima. Mesmo a despeito de seu sucesso comercial, o horror de Raimi sempre veio edulcorado de certo histrionismo, um passe que lhe concede trânsito intato dentre os que sempre apreciaram seu cinema. The Evil Dead não se leva a sério como um Halloween ou O Exorcista. O retorno de Raimi a seu gênero de origem ocorre em estreito conluio tanto com seus fãs pré-Spider como com as novas audiências adolescentes: produzir um terror fácil e repleto de maquinismos rasteiros com uma veia inaudita para certa autoconsciência do ridículo. Raimi não deseja dizer nada, não deseja contestar ou mesmo validar nada, mas ainda quer para si o sólido retorno desse público misto que o abraçará de uma forma ou de outra. É admirável a trama que Raimi aparafusa em Arraste-me Para o Inferno: cineasta ou entertainer (como fossem coisas diferentes), Raimi não corre risco nenhum.

É por isto que um par mais apropriado a Aterrorizada seria mesmo Giallo. Assim como Carpenter, Argento abriu caminho entre uma geração talentosa e um mercado efervescente de filmes de horror baratos. Angariou fãs, chamou a atenção dos estúdios, foi convidado a fazer um filme todo seu contando com atenção e com dinheiro, e terminou ferido — não pela crítica ou pela indústria, mas por uma incompreensão absoluta advinda mesmo e principalmente de quem até hoje grassa em favor de Prelúdio Para Matar. Terror na Ópera é o Aventureiros do Bairro Proibido de Argento, filmes que deflagraram uma curva criativa riquíssima de seus autores já em conflito com fãs que não entendem a evolução a ser observada quando se olha para a carreira de cineastas com mais de 30 anos de trabalho, quando qualquer mudança é interpretada como um desvio do modelo ideal que o público estipulou para si (em geral correspondente a um filme específico, talvez dois). Giallo, como Aterrorizada, é uma sabotagem nessa expectativa. A diferença talvez fique pelo tour de force de Argento; Giallo é único, diferente de tudo no gênero. Já Aterrorizada é quase só mais um filme B vagabundo.

“The thought of working with a female ensemble cast was fun” (Carpenter para a Collider, jul/2011). A escolha tão precisa dos elementos mais rasteiros do cinema de gênero e da estrutura step-by-step reage com uma certeza inicial em Aterrorizada: o mundo que o olho captura não é confiável. A antecipação que evolui na cabeça do espectador leva à inevitável dissolução do “mistério” que a trama oblitera: o de que nada ali é o que parece ser, seja por resultado de ilusão, loucura, pesadelo, qual seja o gatilho usado no twist. Carpenter, consciente da expectativa do público e do seu olhar treinado (em muito, por ele mesmo) para todos os truques possíveis em um filme de horror, distribui clichês como quem espalha armadilhas pelo chão. Decifrar Aterrorizada nos primeiros 10 minutos é essencial para o choque da confiança do público nas bases mais primitivas do gênero contra essa substancial desconfiança na apreensão do olhar, um belo paradoxo narrativo e uma sofisticada nota metalinguística. Carpenter chama a atenção para a fragilidade das instâncias da ficção e sentencia que a pulsão do horror repousa muito antes na superfície do cristalino do que no lobo frontal, o que fica claro na última cena. O espectador sabe o que está por vir, conhece os truques, antecipa perfeitamente o turn da cena, e nada disso interessa: ele se assusta como se fosse 1976 e Carrie estivesse em todos os cinemas.

Anódino, prosaico, invisível na prateleira do fundo, Aterrorizada exige apenas a mais esguia das motivações para se assistir a um filme; celebração do mais antigo contrato entre o espectador e o artista.

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Pina (Wim Wenders, 2011)

Filme saudade, o novo documentário de Wim Wenders é coisa pra se tocar com reverência. Mais do que um lamento de homenagem ou o registro póstumo de uma grande figura da arte contemporânea, Pina concretiza o movimento de um cinema íntimo, de algo que parecia guardado pelo diretor há algumas décadas — o que importa ser realmente um projeto nutrido no decorrer de pelo menos vinte anos —, ultrapassando a já compreensível expectativa que possa ter se formado ao redor dele. O filme, antes de ser um retrato da mulher que o nomeia ou da equipe que, metodicamente, se presta a (re)construir todo um imaginário estético de sua líder, é retrato primeiro da elementar condição dos gestos físicos, de uma harmonização do tempo e do espaço como somente o cinema é capaz de possibilitar. Daí ser incabível tratá-lo como cinema-dança, cinema-teatro ou a partir de qualquer outra conjugação. Pina é filme que se sustenta só, estabelecido nesta rígida composição que a imagem em movimento nutre desde os mais primitivos experimentos que associaram o cinematógrafo a corpos que dançam no espaço. Composição de luz e sombra.

Se necessário fosse aproximar este filme de qualquer um legado por seu diretor, vão seria procurar referência num dos muitos documentários que ele assinou a respeito de nomes das artes (o leque de títulos é grande); pelo contrário, se há um filme de Wenders que serve de reflexo a Pina, este não pode ser outro senão O Estado das Coisas. Pois era ali que Wenders se descobria encurralado com os rumos da criação, era naquele ponto de uma carreira com altos e baixos que ele olhava para todos os lados e não encontrava o ponto pacífico da continuidade, por mais que esta se fizesse urgente. Ele lidava com a morte. E por mais que Pina exale uma tranqüilidade e coerência cabais, sobra ao fim de cada cena, de cada coreografia, uma incômoda interrogação sobre o ‘como continuar’, sobre o que esperar do tempo vindouro, especificamente dentro do que se aguarda de uma superfície fílmica.

Enfrentar a morte de Pina Bausch foi o impulso definitivo, o motivo final. Talvez por isso tenha sido preciso abandonar o palco, ou melhor, prossegui-lo numa variação de espaços públicos e naturais que também concordam com esta carência de vida. Argumentos da fragilidade. Ao fazer com que os dançarinos invadissem a cidade de Wuppertal, Wenders restituiu toda uma trajetória biográfica, abandonando o didatismo que parecia inevitável e apostando numa retórica de autonomia superior, pois quase nula. Há de se destacar uma delicada repetição que se ergue aqui: durante todo o filme, inúmeras vezes, Wenders efetua uma nada discreta suspensão do tempo para colocar em cena os quarenta dançarinos em fila, repetindo uma mesma dança, conscientes da câmera; disso se constitui a abertura e um primeiro encerramento do longa, momentos clímax, inicialmente num palco, finalmente numa planície. Do derradeiro gesto aí repetido, um decalque que nos lembra as sombras de O Sétimo Selo, na família que caminhava para a morte, e também a evocação do desfecho em Oito e Meio, pela agonia de se viver uma última dança não como alternativa, mas na dor de uma condenação. À semelhança de Fellini — e do que foi todo o cinema de Wenders nos idos dos anos 80 —, o desfecho de Pina encerra uma espécie de ofertório, de implacável sacrifício.

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No Mundo da Lua (Robert Mulligan, 1991)

Adolescência e infância são duas fases tão singulares na vida de uma pessoa que é difícil alguém chegar à vida adulta lembrando-se de como elas foram. Porque essa é talvez a única razão que explique o descompasso que marca a maioria das obras que retratam esses períodos da existência. A infância é uma idílica peça publicitária em que mini adultos se refestelam num mundo sem máculas (e portanto sem textura), e a adolescência é aquele tempo das bobeiras inconsequentes e constrangedoras.

Essas visões são estigmas que dificilmente são contestados. Mas aos poucos surgem os Robert Mulligans e mudam isso; e se O Sol É para Todos é um incrível (e tremendamente crível) relato sobre a infância de uma menina (Scout), não será uma Scout crescida que protagoniza este No Mundo da Lua, perfeito retrato de uma adolescente em sua jornada de descobertas?

Encarnada por uma jovem Reese Witherspoon, em sua estreia cinematográfica, nossa Scout mocinha se chama Dani e também vive numa comunidade interiorana, que Mulligan descreve com hábil precisão em seu bucolismo, suas regras específicas, seu desenvolvimento “engarrafado” (isto é, dentro de sua própria redoma); parece uma verdadeira viagem quando Dani segue de camioneta para a “cidade”, o que aumenta o fascínio inocente de uma garota que se aventura em sentimentos que nunca se lhe afiguraram possíveis. Parafraseando José Mauro de Vasconcelos em seu pungente Meu pé de laranja lima, esta também é a história de uma menina que um dia conheceu a dor…

A dor de Dani é uma dor espontânea e sincera, misto de medo do ignorado e de curiosidade. O amor com que a moça deparar-se-á é o primeiro e mais doloroso contato com a vida adulta, aquele que lhe desperta a paixão e lhe fere os sentidos, destrói suas prevenções e toma conta de seus pensamentos. O fascínio da jovem moça não é aqui alvo de zombaria ou de um enternecimento em verdade cruel, de quem diz “já fui tolo assim”; não, em absoluto — Dani é como mil outras em sua situação e no entanto suas emoções são únicas.

Há muitos outros méritos no filme: chama a atenção, por exemplo, como Mulligan constrói o núcleo familiar (como de resto já experimentara em fitas como O Preço do Prazer e o próprio O Sol É para Todos), com os membros de uma família funcionando como estabilizadores de uma certa unidade de conflito mas ao mesmo tempo sendo catalisadores de confrontos íntimos que impulsionam certas ações das personagens protagonistas. Não é Dani levada também pelo desejo de fugir um pouco do convencionalismo da mãe que vive a parir e do pai simplório e de moral arcaica? São situações de “falsa estabilidade”, portanto, pois mantêm uma aparência de ordem que configurará a estrutura mutável dessa própria ordem, a necessidade de mudança, o fator de reação.

Disso tudo advém um desejo tão forte de liberdade que o filme se contamina por esse espírito de fuga pelos matos, o cheiro do capim, as águas de um laguinho, tudo isso é forte para ilustrar um pedaço daquele sonho ainda um pouco infantil, porém já feminino e maduro. E o drama poderoso se insinua nesses momentos de descontração, de olhares que escapam, de atrações incontroláveis e selvagens, de euforia, de deslumbramento. A adolescência não é um quadro de imbecilidades, mas um terreno de vivências em que à alegria sucede o desconforto e o terror se mistura com uma inquietante excitação.

Dani, a pequena heroína desta saga cotidiana, aprenderá com o sofrimento a se fazer forte para enfrentar seus receios. A juventude concebida em No Mundo da Lua é de uma intensidade estonteante e de uma honestidade sem rodeios, e nisso está a grande beleza do filme.

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Tudo Pelo Poder (George Clooney, 2011)

Se observarmos a atual conjuntura política norte-americana, não há nenhuma surpresa no teor da trama de Tudo Pelo Poder. A campanha idealista que lançou à vitória o primeiro presidente negro da história dos Estados Unidos, Barack Obama, e a posterior decepção com seu governo, até então carregado de ideias megalomaníacas e poucas ações efetivas, dão sustentação a um olhar desiludido para as engrenagens do poder. Na expectativa pela renovação dos mecanismos de um país que enfrenta grandes dilemas (econômicos, políticos e em suas relações internacionais), a vitória do candidato democrata parecia uma solução apropriada para dedetizar a Casa Branca e levar à frente do país uma nova perspectiva de trabalho, mas não foi isso que aconteceu.

Se o marketing da corrida eleitoral de Obama se revela hoje mais preciso que sua atuação política, nada mais natural que este novo filme de George Clooney atacar justamente na construção da imagem de um candidato democrata à corrida eleitoral, e que esta imagem de campanha, pautada por discursos fortes e convicções ideológicas que logo se revelam falsas ao espectador, seja construída na superfície de um jogo de mau-caratismo. E é uma pena que, ao final desta trama de intrigas mesquinhas, por vezes alheias aos complexos jogos políticos geralmente filmados pelo cinema, Clooney se acovarde detrás de uma postura arredia e insipiente — ou, como se diz no palavreado popular, não fazendo mais que “jogar tudo pro alto”.

Tudo Pelo Poder não vai muito além de um exercício rasteiro de cinismo, e se satisfaz trabalhando sua visão da política de maneira infantil, num discurso que afina com o ponto de vista popularesco sobre o meio político, segundo o qual todas as pessoas ali envolvidas parecem presas ao esvaziamento ideológico, à corrupção moral, à desconsideração da ética etc., o que não permite ao próprio filme se desvincular de discursos falaciosos no estilo “independente de quem estiver no poder, eles vão nos foder” — o que não passa de preconceito trabalhado de um jeito totalmente preguiçoso. Por construir esta treva irreparável de maneira tão superficial, o filme acaba se mostrando politicamente irrelevante, sem fazer muito a não ser reafirmar ideias vazias e grosseiras.

Mas, se por um lado Tudo Pelo Poder decepciona por tratar o espectador de forma tão leviana quanto qualquer falsa ideia de marketing, também é difícil negar que a dramaturgia de Clooney vem se aprimorando (é um filme muito eficiente em sua estrutura) e que existe uma força interessante quando estas questões são deixadas em segundo plano para serem focadas as relações de convivência e de poder entre seu ótimo protagonista, Stephen Myers (Ryan Gosling), assessor de imprensa do candidato Mike Morris (interpretado pelo próprio Clooney),  e as pessoas com quem precisa lidar diretamente em seu trabalho, no qual percorrerá uma linha céu/inferno/céu que, ao invés de derrubá-lo, o fortalecerá assim que aprender a jogar o jogo de intrigas dos bastidores da campanha (em suas nuances, aliás, essa visão de backstages fala muito melhor sobre o comportamento humano do que sobre qualquer aspecto do meio político que procura retratar).

É interessante observar também que Myers não se encaixa no padrão “homem idealista que descobre a realidade suja que o cerca”; desde o início já demonstra ter inclinação ao egoísmo, à mentira, à manipulação e aos desvios éticos, enfim, aos valores condenados pelo filme — afinal, nas primeiras sequências marca um encontro com o assessor do candidato de oposição, come a estagiária, etc. —, o que dá muito bem o tom da vingança planejada por ele no terceiro ato, mas torna inaceitável a forma encontrada pra fechar todas as ideias do filme, depois daquele twist cataclísmico. A cena final, na qual, detendo agora o controle da situação, Myers repete a ação da sequência de abertura, analisando o local em que Morris irá se pronunciar para o público, com as falas que serão ditas reproduzidas em voice off, se resume em apelar mais uma vez para a denegrição barata do meio político, sem chegar a lugar algum (o plano final é especialmente repulsivo). Clooney mira no alvo mais fácil de ser atingido, enquanto seu próprio filme parece uma boa representação do quanto esta é uma visão insuficiente — nem seu protagonista, nem qualquer outro personagem contrapõem as denúncias feitas, ou seja, não parece haver possibilidade de solução para o universo em que ele se instala, e assim o filme termina por dar as costas à sua própria denúncia, mostrando ainda que a verdadeira força da história poderia estar justamente na capacidade de transgredir essa denúncia sistêmica para se fixar nas questões humanas que suscitam dela, que poderiam ser uma chave interessante para se discutir de forma mais abrangente as questões gerais da obra.

O que me faz recordar dos grandes filmes políticos já feitos em Hollywood (impossível não mencionar o John Carpenter de Eles Vivem e Fuga de Los Angeles, duas obras essencialmente políticas — mas que não se tratam de filmes tão sérios quanto Tudo Pelo Poder, não é?), e do quanto eles fazem falta nestes dias em que o afronte vazio se tornou sinônimo de opinião e de posição ideológica, em que a condescendência geral com o moralismo de boutique transmite cada vez mais uma ideia de revolta coletiva que não sabe de onde parte nem para onde vai — um barulho pelo barulho, que assume um tom ainda mais cacofônico ao diluir-se por mensagens e correntes compartilhadas mecanicamente nas hoje tão populares redes sociais da internet. Tudo Pelo Poder, à exceção de ser um filme envolvente quando focado nos conflitos particulares de seus personagens, acaba, no geral, se mostrando não mais do que um reflexo de nossa cínica realidade.

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O Mundo Vivente (Eugène Green, 2003)

“[…] eu sei que para mim, para quem as flores fazem parte do desejo, há lágrimas à espera nas pétalas de uma rosa. Sempre me aconteceu a mesma coisa, desde a infância. Não há uma única cor escondida no cálice de uma flor, ou na curva de uma concha, à qual, por alguma sutil simpatia com a alma das coisas, a minha natureza não responda. Como Gautier, sempre fui um daqueles pour qui le monde visible existe.”

Para quem o mundo visível existe.

Recordar as palavras que Oscar Wilde dedicou ao amante enquanto estava preso e impossibilitado tanto de manter contato com sua família, sua arte e o mundo, é aproximar-se do espírito que Eugène Green captura em seu mundo particular e nos apresenta neste, um dos filmes mais fantásticos já feitos, onde o registro do fantástico, verdadeiramente extraordinário, adquire significados que ultrapassam o tom da fábula em privilégio primeiramente ao mecanismo cinematográfico, naturalmente dotado e voltado para a capacidade de instaurar a fantasia. Mecanismo que, aqui, revela-se em suas possibilidades mais profundas, ao mesmo tempo distintas e indiscerníveis ao mundo; obriga-se a um rigor na representação que altera o que há de natural nos códigos visuais e na noção de expectativa narrativa; liberta-se das amarras físicas impostas pela natureza da imagem em direção a um estado e um direito de ser próprios. Mecanismo para quem o mundo existe.

Poucas vezes o cinema terá alçado alturas que beirem o inconcebível, fazendo da fantasia não somente um chavão de gênero, mas um lugar e, definitivamente O Lugar, que é devido a si. Pois se a fantasia aflora no mundo de Green como condição primeira do entendimento/sentimento, o faz incidindo ao mesmo tempo no objeto narrado como no objeto que narra, ou seja, desenvolvendo conjuntamente a simplicidade do enredo e a reflexão do que movimenta a imagem fílmica, daquilo que subsiste como vetor da fantasia e por ela sobrevive. Uma imagem, em Green, é mais do que um elo da corrente — seja ela de um corpo, de parte dele, de uma matéria orgânica ou mineral —, cada uma é como um mundo próprio, dotado de um existir e de uma visibilidade tão particulares que quase independentes entre si, o que de fato seriam caso o corte também não significasse todo um novo mundo. É de cortes que a fantasia de Green se alimenta, nutrindo não somente o rico arcabouço visual por ele conseguido, mas sensibilizando em nós, na mente espectadora, um mundo outro; mundo que é quase indiferente ao filme, pois maior no pormenor e mais próximo do mundo primeiro que a câmera conheceu.

Numa determinada cena, a bela dama aprisionada como esposa do temível ogro revela que está unida a ele por palavras e que somente palavras de maior peso poderão libertá-la do jugo. Green demonstra crer nisso tão piamente que imprime um peso único a tudo que filma, somente assim alcançando a libertação de amarras já sedimentadas pelo cinema em sua forma de narrar e figurar uma situação dramática. O cinema, aqui, não é mais aquele interessado unicamente em instigar a imaginação de um público — apesar de atuar diretamente nela —, agora é ele próprio quem se permite imaginar, ir além, pelo que mostra e pelo que oculta, pelo que une e o que separa, pelo vigor de uma continuidade que não se contenta com o prosseguimento do que é visto, mas com um convencimento do que é vivo, e que vive, além do filme.

É mais uma vez em Wilde, homem que também libertou-se pelo peso das palavras, que entendemos o domínio do imaginário:

“O passado, o presente e o futuro mais não são que um momento, aos olhos de Deus, sob cujo olhar devemos tentar viver. O tempo e o espaço, a sucessão e a extensão, não são mais do que condições acidentais do Pensamento. A imaginação pode transcendê-las, e passar para uma esfera livre, de existências ideais.”

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