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Curtas-metragens de Werner Herzog (1962-2001)

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Hércules (Herakles, 1962)

Primeiríssima experiência de Werner Herzog como diretor, esse curta de nove minutos é recomendado quase que exclusivamente aos admiradores mais incondicionais do cineasta. Realizado quando o alemão possuía vinte anos de idade, a impressão que o filme nos deixa é de que acima de tudo o jovem realizador queria mesmo era se exercitar com uma câmera, depois de ter roubado uma de uma escola em Munique e lido sobre técnica cinematográfica em um manual. Trata-se de uma sucessão de cenas sobre halterofilistas fazendo exercícios físicos em uma academia, intercalados com algumas (poucas) seqüências que mostram guerras e a população em manifestações civis. Críticos apontam no trabalho de Herzog com esse filminho uma reflexão sobre os mitos gregos (no caso, o do herói Hercules com todos os seus músculos e forças) dentro da sociedade mais contemporânea, e a inoperância do mito diante da realidade (conceito esse realçado pelos letreiros ao longo do filme, que não possui diálogos). Sob esse prisma, Herakles ganha um pouco mais de interesse (prova de que um diretor como Herzog sempre teve algo a dizer), ainda que como cinema permaneça como um trabalho bem incipiente. (Vlademir Lazo)

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A Defesa sem Precedentes do Forte Deutschkreuz (Die beispiellose Verteidigung der Festung Deutschkreuz, 1967)

Os primeiros curtas de Herzog, embora obras de um cineasta em formação, apresentam traços nítidos do que viria a ser seu cinema após Aguirre, a Cólera dos Deuses, quando sua carreira deslancharia no cinema – e, principalmente, um desejo de expressão latente acompanhado de um olhar sarcástico e bastante crítico, com a tradicional inclinação ao risco e ao trabalho radical da linguagem cinematográfica que veríamos nas obras posteriores. A Defesa Sem Precedentes do Forte Deutschkreuz, em seus 14 minutos de duração, opera uma transformação intrigante nos quatro personagens e no narrador presente na faixa extra-diegética. Nesta operação, vão contaminando uns aos outros e ao próprio filme conforme interagem com o cenário que ocupam/observam – mais especificamente, as intermediações de um castelo austríaco tomado pelos soviéticos durante a Segunda Guerra Mundial, agora transformado em ruínas, em vestígios do conflito cujas autoridades locais não sabem a que destinar. Quatro amigos decidem usá-lo como abrigo e descobrem antigos uniformes do exército, que vestem para passar o tempo enquanto encenam uma operação de guerra. Os poucos minutos que passamos com eles são suficientes para que se convençam e convençam ao próprio narrador do quanto a guerra é fundamental, mesmo que as forças inimigas tão aguardadas por eles, avistadas ao longe na paisagem, não sejam mais do que meros trabalhadores do campo — ou um dos próprios amigos, visto agora sob desconfiança. A Herzog, o militarismo enquanto instituição parece suficiente para doutrinar o olhar de quem veste uniformes e carrega em seu peito medalhas que ostentem patentes e conquistas, construindo preceitos de aliança e inimizade entre pessoas que, possivelmente, dividem as mesmas angústias e tarefas no mundo – mas, em muitos casos, não compreendem uns aos outros apenas por não falarem a mesma língua ou vestirem a mesma cor de uniforme. “Até ser derrotado é melhor do que nada”, diz o narrador na frase que encerra o curta, momentos após lembrar que “Atacar é bom, viver é melhor, mesmo quando se vive na pobreza. Aquele que está vivo pode possuir uma vaca”, numa reflexão tão contraditória quanto a própria essência da guerra. (Daniel Dalpizzolo)

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Últimas Palavras (Letzte Worte, 1968)

Um personagem que se recusa a falar — mas não a repetir continuamente que não falará mais nada — é o centro do quarto curta-metragem de Herzog, um falso documentário; e em contraste com ele, os outros entrevistados não param absolutamente de dizer coisas, numa ladainha repetitiva, incapazes de produzir novos sentidos, de construir o que quer que seja, contaminando até mesmo o misterioso protagonista, cuja recusa também toma a forma de uma repetição incessante de que acabou de dizer suas últimas palavras. Mas essa não é absoluta, dizendo respeito apenas à sua experiência sozinho numa ilha vazia e abandonada onde funcionava uma colônia de leprosos; em sobreposição aos depoimentos dos outros, ou em silêncio, essas ruínas (desde cedo tão caras a Herzog) nos são mostradas. O homem, porém, não se recusa a tocar lira no bar local; e é, inclusive, segundo alguns, o melhor tocador de lira de Creta — o que ele é incapaz de, ou se recusa a dizer com palavras encontra seu caminho unicamente através da música, embora para a incompreensão e transtorno geral da comunidade. Ainda em começo de carreira, Herzog já delineia um dos fundamentos de seu cinema, a ideia de um cansaço geral da narrativa, da imagem, da linguagem — se seu personagem se sente satisfeito com sua forma de manifestação nós nunca sabemos, mas o diretor, embora aqui apenas esboce as dificuldades e impossibilidades que encontrará pelo caminho, construirá toda a sua obra, múltipla e incansável, em busca de imagens e narrativas novas que possam de alguma forma expressar o que há de enigmático e inescrutável no homem e no mundo. (Robson Galluci)

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Precauções contra Fanáticos (Massnahmen gegen Fanatiker, 1969)

Primeiro trabalho colorido do diretor, um falso documentário com pretensões cômicas em cima de situações de puro absurdo. Não há como ter certeza do que é real ou inventado. Um grupo de pessoas que trabalham em corridas de cavalos relata diante da câmera como protegem os cavalos em relação à proximidade de fanáticos. Só que justamente esses encarregados de cuidarem dos animais é que mais parecem os doidos. Por mais que manifestem o tempo todo o carinho e a proteção com que tratam os cavalos, impossível de levá-los muito a sério. Alguns podem encarar como uma crítica inofensiva e engraçada aos manifestantes que lutam em defesa dos animais. Só que o curta é propositalmente ambíguo ao dar margem a dúvidas de que se essas figuras são mesmo funcionários do estabelecimento, ou se estão ali de intrometidos. Um velho fica o filme inteiro por perto tentando expulsar os supostos funcionários, alegando que ele seria o único a saber lidar com os animais. O que reforça ainda mais a comicidade de tudo, pois o senhor ali parece tão louco quanto aos que quer recriminar. E o que vemos é loucuras como um dos personagens quebrando lajota com um golpe de karatê, ou outro dopando cavalo com alho. O grande Mario Adolf, de tantos filmes (entre os quais trabalhos com Zurlini, Peckinpah, Corbucci, Argento, Fernando Di Léo, Billy Wilder, Fasbinder, etc.), integra o elenco do curta. (Vlademir Lazo)

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Ninguém Quer Brincar Comigo (Mit mir will keiner spielen, 1976)

Dos curtas que tive a oportunidade de ver do diretor alemão, este me parece o mais belo (sendo que, ao contrário dos seus primeiros trabalhos na categoria, foi realizado quando Herzog já era famoso e reconhecido como cineasta). Não há critica, teses ou humor feroz: um garotinho confinado num canto de uma sala de aula lamenta que ninguém quer brincar com ele. Os motivos seriam que ele vive em um lugar muito simples, não tem tantas opções do que comer, etc. Uma garotinha de sua sala aceita sair com ele, e ser levada a casa onde ele mora, conhecendo a realidade do tal menino. É um primor de inocência e delicadeza, com o moleque saltitando com a conquista de uma amiga. E o que pensar quando esta o define da seguinte maneira: “Esse idiota é meu amigo!”? Porque o que importa é a pureza com que os sentimentos são expressos, sejam eles quais foram, e isso é o que Herzog capta com grande singeleza. Mesmo saindo da escola em alguns momentos o foco do filme retorna a sala de aula, dirigindo um olhar sobre o contexto pedagógico,de ensino e convivência entre crianças se lançando para o mundo a partir de um primeiro contato externo representado pelo colégio. (Vlademir Lazo)

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La Soufrière (1977)

Em La Soufrière, Herzog situa-se entre a projeção da catástrofe que almeja registrar e a necessidade de seu próprio fracasso na perseguição deste registro — uma vez que o desastre prenunciado, caso concretizado, vitimizaria não apenas as construções no entorno do vulcão à beira da erupção que nomeia o filme, mas também ao próprio cineasta e sua equipe de cinegrafistas, que contrariam as leis de segurança para invadirem a paisagem bucólica de uma cidade evacuada e às vésperas de ser dizimada para capturá-la em sua mais visceral condição: vã, abandonada, com ruas desertas e edifícios aos quais não resta mais ninguém para abrigar. Semelhante ao que vemos em alguns dos grandes personagens de Herzog, sejam eles verídicos ou ficcionais, desafiar a natureza terrestre e a morte são motivações primárias do diretor para a realização de La Soufrière; motivações como as que Herzog sempre buscou compreender e, na insuficiência de respostas, transformou frequentemente em lirismo — neste caso, na poesia de uma arte que se constroi às custas do próprio fracasso, que faz do passo em falso matéria-prima imprescindível de sua existência. Semelhante a Fitzcarraldo, La Soufrière também se destaca como um autorregistro criativo, fazendo da sua própria produção um organismo ativo e indissolúvel da narrativa. Cada imagem guarda em si não apenas o resultado de um processo de filmagem, mas um registro vivo deste processo —condição que em termos gerais é chave para o cinema de Herzog, mas que nestes dois filmes, ao lado do recente A Caverna dos Sonhos Esquecidos, talvez encontre seu ponto de expressão mais tangível. Colocadas lado a lado, cenas como a de Herzog avançando em direção ao vulcão relatando o risco de morte sob o qual trabalhavam ele e seus cinegrafistas não estão muito distantes da de Klaus Klinski observando o barco que, com ajuda de dezenas de índios no interior da mata amazônica do Peru, tenta arrastar montanha acima em Fitzcarraldo — quando, à frente da câmera, Klinski representa a si tanto quanto representa a Herzog, para quem também pertencia o sonho de subir o barco pelo morro. São momentos capazes de transmitir a essência da expressividade de um homem que, como poucos, faz da arte um autêntico espelho de si mesmo, um veículo para conflitar e difundir filosofias e questionamentos pertencentes à sua visão particular sobre o homem e o mundo. No vazio das imagens finais de La Soufrière, ao vermos Herzog assumindo a impossibilidade de consumação do seu próprio desejo insano, nos defrontamos com uma operação que ao mesmo tempo detém uma indesejável força anti-clímax e a confirmação de que, se La Soufrière consegue ir tão longe, é justamente por não chegar a lugar algum. (Daniel Dalpizzolo)

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Portrait Werner Herzog (1986)

Portrait Werner Herzog resume-se exatamente naquilo que seu título antecipa: um pequeno retrato de Herzog realizado pelo próprio cineasta. O curta apresenta o diretor contando parte da sua vida, como a infância vivida na zona rural de uma pequena vila alemã — onde foi filmado o curta —, e alguns fatos de produção sobre seus principais filmes e projetos que, naquele momento, estavam fervilhando em sua cabeça — como a parceria com o montanhista Reinhold Messner, que acabaria resultando no memorável documentário The Dark Glow of the Moutains. É uma maneira interessante de conhecer detalhes que influenciaram a carreira do cineasta, como o gosto adquirido pela natureza através da relação que mantinha quando criança com a floresta e as montanhas existentes ao redor da sua residência, ou o desejo de desbravar o mundo, vindo de sua adoração por caminhadas — ação que, segundo Herzog, é um grande incentivo para exercitar seus pensamentos. Também retrata o relacionamento de Herzog com algumas pessoas especiais em sua vida, como a crítica de cinema Lotte Eisner, por quem Herzog realizou a insana caminhada de Munique a Paris como uma promessa de fé para tardar sua morte — aventura que gerou o diário de bordo Caminhando no Gelo. O curta é recomendado especialmente para quem tem interesse em um conhecimento mais biográfico sobre a vida do diretor — ou queira ouví-lo falar sobre seu envolvimento com o trabalho —, por mais que, como ele mesmo afirma, Herzog seja, acima de tudo, cada um dos filmes que realizou nestes mais de 50 anos de cinema. (Daniel Dalpizzolo)

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Pilgrimage (2001)

A frase que abre Pilgrimage, inventada por Herzog e falsamente atribuída a Tomás à Kempis, afirma que os peregrinos são os únicos que nunca se perdem durante sua jornada terrena; e os dezoito minutos de filme que se seguem são uma ilustração disso, imagem após imagem de peregrinos tomadas no México, sua persistência reforçada pela imutabilidade da música de John Tavener que serve de acompanhamento. Há mais que isso: permeia Pilgrimage um sentimento de admiração, até mesmo de reverência — sobretudo na forma como os objetos de culto não aparecem nunca no enquadramento, apenas os rostos, os olhares daqueles que os cultuam — por essas pessoas e sua postura de desafio à intempérie, à dor, aos limites físicos — em suma, e como não poderia deixar de ser em se tratando do diretor, à natureza no sentido mais amplo do termo. Se há tanta estima impressa em cada plano, é porque a mão que se ergue em desafio não é animada pelos desejos megalômanos de controle e poder total que levam à queda de muitos personagens de Herzog; pelo contrário, é um desafio que se desdobra sob, como diz o texto de abertura, preces, sofrimento, fervor e aflição — e acima de tudo que tem um fim, pois a chegada ao destino é tanto um alívio quanto uma rendição, um reconhecimento da impossibilidade de ir além indefinidamente: no momento mais significativo do filme, um corte brusco transporta um dos peregrinos da rua, de joelhos, no limiar de suas forças e perto de desfalecer, para o interior da basílica, já em pé, o olhar voltado para o alto e o alívio claríssimo em sua expressão, cercado por outros homens e mulheres anônimos que, Herzog parece nos dizer, em seu desafio limitado e sua indiferença aos sonhos de poder — afinal de contas, o que fazem é uma forma de adoração ou cumprimento de promessa —, possam talvez compensar pelos incontáveis Aguirres perdidos pelo caminho. (Robson Galluci)

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Ao Abismo – Um conto de vida e de morte (Werner Herzog, 2011)

Por Filipe Chamy

Claro que os heróis de Herzog já enfrentaram a morte de várias maneiras: ou se entregando a ela (O homem urso) ou procurando-a (in)voluntariamente (Fitzcarraldo, Aguirre, a Cólera dos Deuses) ou mesmo negando-a, vivendo numa espécie de limbo metafísico (o Drácula de Nosferatu). Mas neste dolorosíssimo Ao abismo – Um conto de vida e de morte a experiência é ainda mais dramática: Herzog vai ao mais profundo da ferida e, sem amenizar a jornada, despeja no espectador a dura realidade de que está tratando: o corredor da morte.

Ou, mais propriamente, tudo que o cerca: os crimes que levaram vidas humanas a esperarem seu fim numa sala triste e solitária, as pessoas envolvidas nos acontecimentos, a filosofia, a religião, a política, a incoerência. Não faltam personagens nessa tragédia da pena de morte legalizada e institucionalizada e exercida pelo Estado.

Desde o começo fica claro como Herzog é contra essa prática. O que não significa, ele deixa bem claro, que isso o obrigue a simpatizar com as pessoas que serão executadas. Mas, reforça, elas também são humanas, e nessa condição merecem respeito. É um posicionamento franco, honesto e corajoso. É não apontar o dedo e reconhecer-se com falhas, mas também disposto a compreender as coisas da vida, por mais erradas ou malignas que pareçam. É, por fim, entender que a humanidade se construiu e constrói com certos sobressaltos, desde sempre, e a “higienização” das execuções oficiais não apenas é moralmente estúpida como totalmente inadequada e ineficiente do ponto de vista prático: é como querer acabar com uma doença matando um homem que está infectado. Trata-se da quintessência da ignorância, aplaudida por muitos.

Herzog acompanha o caso de um jovem que será executado em poucos dias, seu “parceiro de crime” — que, graças ao apelo do pai (também criminoso gabaritado), teve a pena revertida para prisão perpétua —, uma mulher cuja família foi vítima dos dois rapazes, parentes desse pessoal, um carcereiro, um padre e várias outras figuras que se relacionam com o ocorrido. Relatos, depoimentos e momentos introspectivos, de singeleza e de arrependimento ou doçura, nada faltará ao filme, documentário exemplar por se posicionar com sobriedade sobre tema delicado e controverso, mesmo declaradamente expondo as idiossincrasias de seu realizador logo de início. Afinal de contas não é errado ter opinião: o problema é ser extremista, superficial, radical; e essa pecha não podem imputar a Herzog, que se revela acima de tudo um diretor com compromisso ético e uma grande humanidade.

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A Caverna dos Sonhos Esquecidos (Werner Herzog, 2011)

Por Daniel Dalpizzolo

Quando Herzog acessa o interior da caverna Chauvet, na França, acompanhando pesquisadores de diversas áreas científicas em uma expedição pelo mais antigo registro de pinturas pré-históricas de que se tem notícia, ele pede desculpas pela presença da equipe de produção à frente das câmeras – dando a si mesmo a liberdade para expôr em cena sombras e equipamentos de iluminação, utilizando na edição oficial planos que geralmente fariam parte de imagens de bastidores, e às vezes indo mais além, fazendo em tela uma aproximação entre as restrições existentes no percurso e as soluções encontradas para dribá-las. A quebra do limite cênico, apesar de também ser consequência da limitação espacial do terreno explorado e das regras que precisam seguir para registrar as imagens (andar em linha, não pisar fora da estreita plataforma de metal construída sobre a terra, etc), ajuda a identificar a importância que o processo, que a expedição de filmagem e o próprio fato de estarem registrando pela primeira vez o interior deste lugar histórico, possui para a experiência e para a discussão propostas — e o quanto o diretor utiliza isso conscientemente para o resultado de seu filme. Como dito no texto de La Soufrière, os documentários de Herzog  costumam transformar em elemento de cena a própria busca pelo registro – não apenas como efeito audiovisual, embora ele exista, mas como dispositivo de discurso; um discurso que, aqui, propõe uma reflexão sobre a necessidade de expressão do homem, o efeito do tempo e a importância da arte para a definição e a mínima compreensão dos períodos históricos da humanidade.

É bem verdade que questões como estas podem gerar discussões intermináveis, e certamente não conclusivas. Mas não é às respostas que miram as intenções de Herzog, que em Cave of Forgotten Dreams explora novamente alguns dos seus temas favoritos: a ambição, os sonhos e as idiossincrasias dos seres humanos em choque com a vastidão e os mistérios da fascinante e por vezes ameaçadora natureza terrestre. Ao conseguir liberação do Ministério da Cultura francês para registrar as pinturas encontradas na caverna Chauvet, protegidas como um tesouro por grossas portas de ferro, Herzog mira sua lente para o que é considerada a primeira evidência de arte de que se tem notícia – e, por isso, o princípio da existência do homem contemporâneo, capaz não apenas de encontrar meios de sobreviver em nosso mundo — e de explorá-lo, nào raramente de forma nociva a ele e à sua própria espécie  —, mas também de expressar sua interação com ele, seus sentimentos conflituosos e particulares perante ele, tornando as experiências vividas em um pedaço da história que permanece marcado como tatuagens nas rochas das cavernas – um processo que hoje, no artificialismo do mundo moderno, como insinuado pelo surreal epílogo filmado em uma Usina Nuclear existente próximo à caverna, ocorre geralmente de forma virtual, como faz Herzog com sua visita ao local para registrá-lo em um filme digital — o uso das câmeras digitais 3D, neste aspecto, é um achado impressionante.

O choque de tempos e formas de expressão faz de A Caverna dos Sonhos Esquecidos um ponto fundamental na obra de Herzog. Depois de explorar alguns personagens básicos (e, como não poderia deixar de ser, bastante incomuns em suas observações) para a contextualização da caverna, dando a dimensão necessária à sua importância enquanto espaço natural e também histórico/cultural, Herzog propõe um experimento narrativo e estético para o qual abandona a câmera amadora com que filmava a expedição e, com um moderno equipamento de alta definição 3D, retorna ao local para propôr um passeio incidental e quase espiritual (como pontua meio grosseiramente um dos personagens da segunda parte) por entre vãos e paredes da caverna, aproximando-se tanto quanto possível daquelas imagens tão emblemáticas (dentre elas em especial a única figura humana retratada em meio aos demais animais, um misto de mulher com touro que até então, por estar localizada em um ponto inacessível para a pequena câmera digital, era mantida ao espectador como um mistério – momentos antes uma personagem afirma ser uma pena o cineasta não poder mostrar completamente essa pintura em seu filme por causa da distância que a câmera precisa manter dela, o que possibilita a ele mais uma vez fazer da apresentação de uma solução para o problema uma etapa do próprio filme) e reprojetando-as em uma nova dimensão.

O que chega à tela se torna mais do que um documentário sobre uma caverna que contém as mais primitivas pinturas conhecidas da arte humana, mesmo sem fugir muito disso. A diferença do que poderia ser um documentário tradicional sobre o tema para este A Caverna dos Sonhos Esquecidos é que, consciente de que o resultado da arte é precedido por um fundamental processo de vivência, Herzog nos permite a partir das imagens da caverna não apenas fazer um passeio pelo primitivismo da expressão artística, mas também nos consolidarmos como espectadores de um filme que registra mais do que descobertas, mas um homem entrando em contato com estas descobertas, refletindo suas dúvidas e suas convicções sobre a arte em um encontro vivo e autorreflexivo. O filme de Herzog, desta forma, não se distancia das representações misteriosas pintadas nos muros da caverna, embora aqui exista uma autoconsciência explícita que nos possibilita compreedê-lo mais claramente, algo que, até pelo distanciamento histórico e cultural que se tem com as pinturas da era paleolítica, o próprio Herzog obviamente não consegue em relação ao material que observa — e faz questão de nem tentar, por acreditar que, embora a arte permaneça, é impossível que ela registre em si todos os sonhos e angústias de homens que, há mais de 35 mil anos, pintaram as obras.

O que se mantém forte após a experiência é justamente a vivacidade deste cinema que se propõe a olhar para as peculiaridades do mundo e dos homens que o habitam sem precisar abnegar suas próprias origens, colocando autor e filme como parte integrante de uma experiência que transcende os fatos para propôr sensações e reflexões. Não há no filme grandes respostas sobre as origens da arte ou qualquer questão histórica — embora saibamos que estas questões existem, elas fazem parte do processo, não de um pressuposto resultado. O que realmente importa observar é que A Caverna dos Sonhos Esquecidos mantém-se como o até então único registro em vídeo daquelas pinturas e da exploração da caverna que as protege, da mesma forma que aquele santuário permanece para nosso tempo como o único registro de uma cultura primitiva à qual jamais teremos acesso, e da qual os sonhos, anseios e particularidades vislumbramos através do mistério de sua arte, que segue sendo uma das mais legítimas formas de compreendermos as diferenças existentes em cada cultura e período histórico da humanidade — e nos defrontarmos com reflexos de nossa própria existência, indelével e atemporal em seu conflito com o mundo que habitamos.

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Meu Filho, Olha o Que Fizeste! (Werner Herzog, 2009)

Por Fernando Mendonça

Não adiantou o nome de David Lynch na produção, não adiantou o rebuliço causado com a sessão surpresa em Veneza, Meu Filho, Olha o Que Fizeste! é filme sombreado por um tipo de maldição que acompanha desde as primeiras inspirações; mal que se apresenta, invariavelmente, nas grandes obras incompreendidas pelo tempo. Enorme tolice acusar um trabalho como este de restrito aos iniciados em Herzog, seu diretor, se na verdade é título que não exige mais do que sensibilidade, filme que pede a chance de identificar não apenas um evidente processo rumo a insanidade, mas de encontrar nos caminhos da loucura um reflexo de tormentos que assolam o homem desde tempos ancestrais.

Projetado na mente de Herzog em 1995, a partir de um crime verídico, o roteiro de Meu Filho… esperou mais de uma década para encontrar qualquer chance de concretização. É possível imaginar o temor de investidores diante de um simplório enredo policial, situado em terras americanas, que precisasse contar com cenas no coração do Peru, especificamente no Rio Urubamba. E por mais que reconheçamos ser esta necessidade uma espécie de fetiche para o autor de Aguirre (1972) e Fitzcarraldo (1982), filmes que contaram com a mesma locação, o estranhamento imposto pelo roteiro na relação dos espaços é pedra angular da dramaturgia aqui implicada.

É por causa do que nosso protagonista (Michael Shannon, numa interpretação que beira o expressionismo) experimenta na distinta região, do que ele vive tão profundamente a ponto de afirmar que naquele local conseguiu ouvir a voz de Deus[1], que toda a motivação de Meu Filho… será revelada e justificada. Há no contato de seu corpo com o ambiente natural — as pedras, as águas, o verde, a terra, elementos onipresentes em Herzog — uma espécie de invocação que não pode ser compartilhada ou filmada, mas que sombriamente habita toda a projeção do longa metragem. Vem deste embate das naturezas o desejo do crime, a inócua justificativa do personagem para o assassinato cometido contra a própria mãe, ato que também não nos é dado o ver. E é no matricídio que os anseios culminam, nesse instinto de eliminação que, de fato, acompanha a carreira do diretor desde seus primeiros gestos com as câmeras.

Muito adequada a explícita referência ao Orestes, interpretado pelo mesmo ator numa peça dentro do filme, jogo de espelhos, acentuação no caráter labiríntico da loucura, desta diluição/desintegração interior que o jovem filho atravessa. Mais do que um exercício de mise en scène, o que vemos nas belas sequências negras, literalmente mergulhadas em escuridão, do teatro, é um complexo desenvolvimento de mise en abyme, como raras vezes Herzog terá tão claramente explorado. Apropriar-se da tragédia grega, como ele aqui o faz, instaura um abismo que nos permite uma compreensão não só das angústias sofridas por suas personas — emoções e reações míticas, originadas num estado primitivo do humano e que para sempre serão universais —, mas que também ilumina um aspecto de seu trabalho enquanto filmografia, enquanto conjunto de filmes que orientam-se sob uma espécie de ‘política do trágico’.

É bem verdade que as preocupações de Herzog no cinema, especialmente estas que encontram no mundo físico um contraste para o realce do sublime, são constantemente motivadas dentro de um princípio muito próximo ao da tragédia: exploração subjetiva de indivíduos que agem no mundo e se transformam independente de sua vontade. Se Meu Filho… estampa direta e frontalmente tal especularidade, o faz não de maneira leviana, como para truncar gratuitamente a estrutura do enredo; pelo contrário, encontra aí uma iluminação de questões que até aqui (em sua carreira) poderiam estar carentes de embasamento. É porque Herzog assume o trágico que seus filmes permanecem cristalizados, enigmas que não se rompem ao mero desfecho ou clímax, e nesse sentido, Meu Filho… torna-se exemplo máximo de uma concepção muito particular dentro da narrativa contemporânea.

Do longo trem que divide a tela ao meio, logo nos créditos de abertura, aos efeitos de algumas cenas que mais parecem fotografias, dada a imobilidade e pose dos atores, Meu Filho… é filme que desarticula não só uma lógica de Hollywood — a exemplo do que bem faz seu irmão, Vício Frenético (2009) —,  mas reorienta todo um procedimento do olhar no cinema de gênero. Por mais que se fale dele ou se tente explicá-lo, eis um filme que sempre manterá o surpreendente das formas, equilibrado numa fina teia de significados, pois concentrado em seus efeitos. Filme que atesta Herzog como um alguém sempre disposto a se enfrentar, seja voltando às águas de um rio, seja colocando seu trabalho diante do espelho, afinal, assim como as águas nunca são as mesmas, também um espelho jamais reflete uma mesma imagem de si.

 


[1] A voz de Deus que também ouvimos já no título original do filme: My Son My Son, What Have Ye Done, como em resposta ao célebre questionamento de Cristo ao morrer: Eli Eli, Lama Sabactani (Deus meu, Por que me Desamparaste?). Título que resgata na sonoridade e rima a retórica bíblica, como se Herzog desse voz ao Deus que se calou e matou seu filho, espelhando-o agora num homem que rejeita o ventre, que aniquila a presença materna como única hipótese de sobrevivência e redenção.

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Vício Frenético (Werner Herzog, 2009)

Por Kênia Freitas

Nem uma sequência e nem um remake do filme homônimo de 1992 de Abel Ferrara, apenas uma obra com o mesmo título sobre um “tenente mal” (tradução literal do título original). Pelo menos, é assim que o diretor Werner Herzog explica a coincidência, garantindo que não havia assistido ao filme dos anos 1990 – o que tem tudo para ser apenas mais uma das fabulações do diretor em torno da sua carreira. De qualquer forma, fato verídico ou inventado, isso não vem ao caso, visto que os dois filme são de fato muito diferentes em suas propostas.

Para enterrarmos as comparações de uma vez, podemos dizer que onde Ferrara mergulha numa frieza melancólica, Herzog se contamina pela maldade pulsante. Onde um é a depressão (com uma interpretação magistral de Harvey Keitel), o outro é pura mania (explosão de adrenalina em que até a canastrice típica de Nicola Cage funciona bem). Se Ferrara conseguiu um filme mais honesto; o cinismo de Herzog é, por sua vez, libertador… Temos a pura potência de um homem mal, despojado de valores morais e, por isso, indiferente as pressões sociais. Enfim, o que poderíamos chamar de  um homem livre.

No inicio do filme conhecemos Terrence McDonagh, aparentemente um policial exemplar –  afinal, ele estava trabalhando em pleno caos provocado pelo furacão Katrina em Nova Orleans, enquanto os outros haviam abandonado os seus postos. Nesse dia, tentando salvar um prisioneiro do afogamento, ele se machuca seriamente passando a sentir dores constantes no corpo e a depender de drogas (licitas ou não) para anestesiá-las. Mas o que está em questão não é apenas como um ambiente ruim irá transformá-lo em um policial corrupto e sem escrúpulos. Ou seja, como sua dependência é alimentada pelo próprio ambiente de trabalho. O que está de fato em jogo no filme de Herzog é a luta desse homem contra si, contra o próprio corpo dolorido e viciado, e contra a sua pulsão de auto-destruição.

Mais uma vez, temos a contaminação da loucura do personagem na câmera de Herzog – e, portanto, no filme. Em determinado momento, é como se estivéssemos presos naquela mente perturbada e em permanente martírio e não conseguíssemos sair. As iguanas cantam e os homens mortos dançam e, ainda assim, não podemos parar, não há descanso possível e, muito menos, corpo sem dor. Dos movimentos aberrantes às cenas de puro delírio, é preciso desestabilizar o local do espectador e do seu olhar.

Nesse sentido, a trama se conduz como um amontoado de cartas de baralho que vai caindo, mas que ainda assim se encaixa perfeitamente. Terrence McDonagh resolve cada um dos seus problemas enredando-os em outros ainda mais complicados e cada vez mais amarrados. E, quase inacreditavelmente, eles se solucionam: um pouco por sorte, um pouco por planejamento e, sobretudo, porque para quem nada pior pode acontecer não há outra alternativa. Assim, McDonagh precisa resolver uma investigação de assassinato, livrar-se dos capangas que chantageiam a namorada prostituta, apaziguar os problemas matrimoniais do pai em tratamento com a madrasta alcoólatra e conseguir pagar as dívidas acumuladas em jogos de azar: tudo ao mesmo tempo e urgente.

Temos, assim, uma espécie de fábula moral ao contrário. Em seu cinismo trágico, McDonagh é um homem terrivelmente preso a si – ainda que moralmente livre de todos. Na mesma medida em que tudo se resolve porque nada de ruim pode de fato afetar aquele homem, a recíproca é verdadeira para a felicidade. Não há final heróico que consiga evitar que ele continue a ter “alguns dias ruins”. Não há possibilidade de um ponto de vista fixo e definitivo. E, acima de tudo, não há fim.

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Encontros no Fim do Mundo (Werner Herzog, 2007)

Por Robson Galluci

Em certo momento de Encontros no Fim do Mundo, o mar sob a camada de gelo é comparado, pelos mergulhadores que lá se aventuram, a uma catedral — e as muitas belas e impressionantes imagens que vemos captadas debaixo da água certamente corroboram a ideia, sejam acompanhadas por música sacra ou pela música peculiar das focas, com seus sons totalmente inorgânicos, na expressão de uma das cientistas que as estudam, que chegam a lembrar Pink Floyd. Durante essas cenas, é impossível não lembrar da “Catedral Azul” de Além do Azul Selvagem, o local mais sagrado do planeta moribundo abandonado pelos alienígenas que tentam, sem sucesso, colonizar a Terra, que mais tarde é visitado por humanos, imbuídos de um espírito exploratório logo convertido em impulso predatório, como de costume; também há reverberações de O Diamante Branco e do posterior Caverna dos Sonhos Esquecidos, todos lidando de alguma forma com a natureza revestida dessa carga simbólica religiosa (ou ao menos cultual). Em Azul Selvagem, há a crítica do mero ato de se escalar uma montanha (o que lhe tiraria a dignidade), mas esse esforço é colocado aqui sob uma luz muito mais positiva quando comparado com a aventura humana degenerada em prática midiática sem sentido após todo o planeta ter sido desbravado, coisa muito pouco admirável no olhar de Herzog: uma vez cruzar o Saara foi considerado uma proeza quase sobre-humana, mas hoje o deserto é atravessado de carro em marcha à ré, em busca de um recorde ridículo.

Por mais que não seja mais possível sonhar com florestas perdidas e misteriosas nos pontos em branco do mapa, como Herzog comenta a certa altura, não se priva a natureza de seus enigmas de forma tão fácil; esse conhecimento que supostamente temos de todos os lugares do mundo é apenas superficial, como o diretor vem demonstrando durante toda a sua carreira, e como descobrem, de modo impactante, as pessoas que vão para a Antártida, palco do documentário. Dessas pessoas indo até o fim do mundo emerge outra imagem de fundo religioso, pois elas são como monges vivendo em isolamento e desenvolvendo uma rede de relações e cultura próprias, à parte do mundo lá fora; e muitos dos que são entrevistados pelo diretor parecem estar ali movidos menos por razões pragmáticas ou de trabalho, como a maior parte dos pesquisadores, do que por aspirações ou questionamentos mais difíceis de definir até para si mesmos. Resulta daí que as entrevistas mais marcantes acabam sendo as dos motoristas, encanadores, técnicos de computação e outros cuja passagem pelo continente gelado é menos focada, menos direcionada a um objetivo claro: muitos sequer explicam como foram parar ali, parecendo encarar o fato como um desenvolvimento perfeitamente natural da jornada de cada um — uma mais incrível que a outra, envolvendo trabalho voluntário na Guatemala, viagens de caminhão pela África ou fuga de um campo de prisioneiros da União Soviética. O homem que passou por essa última experiência, que sequer consegue verbalizar (e a empatia que ele desperta em Herzog é notável), passa sua vida sempre com uma mala pronta — de fato pronta, incluindo até mesmo um bote inflável e um remo montável — para viajar assim que a oportunidade surgir, numa ilustração certeira do tipo de espírito que interessa ao filme captar.

Outras ilustrações surgem, porém, nem todas tão claramente otimistas quanto essa, remetendo às indagações mais antigas e persistentes de Herzog. Um dos biólogos fala eloquentemente sobre os horrores da vida marinha microscópica, uma imagem que o diretor visivelmente considera relevante também para o mundo macro, mesmo que a conversa caminhe no sentido de a vida humana ser uma fuga desse inferno em miniatura. Outro biólogo, este estudioso dos pinguins, fala sobre como alguns deles simplesmente se desgarram do grupo principal sem motivo aparente, perdendo-se para sempre na imensidão do continente; e Herzog chega a captar um deles, já muito longe de onde deveria estar, rumando para o coração da Antártida e sem dúvida alguma para a morte por inanição. Como os humanos não são autorizados a interferir de forma alguma no comportamento dos pinguins, ninguém tenta impedi-lo, mas o biólogo esclarece que, mesmo que ele fosse apanhado e levado de volta ao seu grupo, mais cedo ou mais tarde o abandonaria novamente para seguir sua jornada inexplicável. Herzog se pergunta por quê, sem encontrar, é claro, resposta alguma, e nos deixa apenas com a imagem do pinguim se afastando em direção a montanhas longínquas por uma vasta planície — e com a identificação que isso pode ter com a jornada humana, que, apesar de muito mais movimentada e mais dada ao espetáculo, talvez seja tão inexplicável e obscura quanto a do animal, e talvez caminhe para o mesmíssimo destino.

Não é surpresa, portanto, que o tema da morte, não a morte como experiência íntima e individual, mas a morte como fato coletivo, extinção da humanidade, seja o tema que aflore aos poucos e passe a dominar completamente Encontros no Fim do Mundo, trazendo inclusive novos sentidos ao título do filme, sendo o fim do mundo não apenas um local geográfico, mas também uma demarcação temporal, os encontros improváveis que se dão na Antártida e durante o que já podem ser nossos momentos derradeiros como espécie habitante do planeta. Quem primeiro traz a questão à tona é um linguista, que fala sobre como a preocupação com a extinção não deveria se concentrar apenas em formas de vida, mas também em línguas, que desaparecem a todo momento — o diretor pensa consigo mesmo que talvez três ou quatro tenham sumido enquanto ambos conversavam — quando o último de seus falantes morre, levando culturas inteiras consigo; e logo Herzog já está colocando a extinção da humanidade no centro das preocupações do filme, fazendo questão de enfatizar, por exemplo, como nenhum dos cientistas presentes acredita na nossa permanência a longo prazo no planeta; a natureza, segundo eles, se livrará de nós mais cedo ou mais tarde (antes, pelo jeito, que desenvolvamos de forma plena a simbiose destrutiva entrevista em Lições das Trevas).

Encontros no Fim do Mundo possui muitas sequências que lidam, de uma forma ou de outra, com a consciência do fim, e duas se destacam: a representação do que seria uma expedição arqueológica alienígena e o que ela encontraria no planeta séculos depois do desaparecimento da humanidade (com ecos evidentes do destino dos astronautas em Além do Azul Selvagem), quem sabe até mesmo uma cápsula do tempo deliberadamente construída sob o gelo; a visita a uma base científica que estuda um vulcão, um emblema bastante adequado dos prenúncios apocalípticos que dominam os momentos finais do filme (embora menos gloriosamente apocalípticos que os que Herzog já vislumbrou; se em Lições das Trevas temos o colapso do universo como um espetáculo majestoso, em Encontros no Fim do Mundo encontramos uma antevisão do apocalipse num suspiro de que nos fala Eliot).

A imagística de ressonâncias religiosas volta com toda a força no final, quando um físico fala de forma quase devota sobre suas experiências com neutrinos e como eles são, de certa maneira, um desafio à compreensão imediata, como a descrição do que são soa como algo de teor místico ou espiritual. A seguir, um dos entrevistados do início retorna, citando um filósofo que diz que somos os instrumentos através dos quais o universo percebe a si mesmo e escuta sua harmonia cósmica, fazendo-nos testemunhas de sua magnificência; a música, a mesma que não somos capaz de ouvir em O Diamante Branco, volta como símbolo primordial de nossa condição, mas sob uma compreensão nova. Nas imagens belíssimas da vida submarina que encerram Encontros no Fim do Mundo, Herzog — cineasta notável por muitas coisas, mas sobretudo por não ter opiniões definitivas e imutáveis, por sua obra sempre em construção, sempre em busca de novas respostas para questionamentos antigos, sempre em busca inclusive de novas formulações desses questionamentos que talvez revelem inquietações até então ignoradas — parece se perguntar se no fim das contas o que nos define não é nossa incapacidade de escutar a música do mundo, mas de perceber que a estivemos escutando ininterruptamente.

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O Sobrevivente (Werner Herzog, 2006)

Por Filipe Chamy

Não é segredo para ninguém que Werner Herzog, assim como alguns ilustres colegas seus (Agnès Varda, por exemplo), divide sua filmografia de maneira mais ou menos rígida entre suas ambições “ficcionais” e suas ambições “documentais”. Ora, O sobrevivente não é um documentário, mas é baseado em um acontecimento real — que Herzog havia relatado em um documentário poucos anos antes! —, então como classificá-lo?

Não há a menor necessidade de se proceder à rotulação deste filme. O filme passeia muito bem por essa “indefinição”, inclusive. Christian Bale, o protagonista, sofre uma mutação física impressionante, chegando a quase um extremo cadavérico; ora, se o filme é totalmente ficção, como há esse realismo no físico transformado do ator vivendo a personagem? Não se trata da reles imitação, o mimetismo que é no mais das vezes condenável: é o physique du rôle que obriga o ator a se metamorfosear diante da tela. E ao contrário: as cenas com o ator em avançado estado de aparente desnutrição foram filmadas antes, e o começo do filme, com o rapaz vigoroso e em forma, é na verdade o final da jornada. Parece que brincando com esses tempos trocados, Herzog insiste na inutilidade de se pensar seu filme necessariamente como uma coisa (ficção) ou como outra (documentário). Qual é a ordem das coisas na vida?

O que fica claro é que o filme se posiciona de maneira bastante segura contra certa visão de mundo. E se engana quem acha que é um libelo pró-EUA, a favor do intervencionismo no Vietnã ou uma louvação ao espírito intrépido e desbravador dos heróis de guerra americanos. Nada mais longe da verdade. Fica evidente a exposição do horror da guerra, e O sobrevivente não faz nenhuma concessão à franca depreciação dos símbolos (como atesta o final, também entendido erradamente por muita gente), da conduta dita de bravura, da “necessidade e pertinência” da guerra. Não: a guerra é estúpida, atroz, suja, podre. Herzog filma os conflitos de maneira visceral, de modo a não deixar dúvidas de que aquilo é horrível. Não são apenas os vietcongues que são animais brutalizados pelos conflitos, mas também os corajosos ianques que, do alto de seus helicópteros, metralhavam crianças, velhos e mulheres em suas aldeias humildes. Não são apenas os homens brutos e violentos da aldeia que merecem punição pelos crimes de guerra, tanto mais que é sabido que o animal ameaçado tem força duplicada — e aí como não considerar toda a miséria, toda a opressão, toda a falta de perspectiva, apoio, ajuda e consideração humanas que negaram sempre àquela gente, e que a guerra potencializou até virar o quadro em um mar de descontrole e tensões?

Então é crasso erro considerar que há um alívio de clímax quando ocorre certo evento que parece extinguir o perigo, em determinado momento da narrativa. Tanto o é que Herzog ainda faz um último aviso, tirando de cena uma figura importante da aventura, como a nos lembrar de como é tolo achar que tudo é resolvido assim de maneira superficial.

O que se tira de uma experiência assim é uma dor na pele, física mesmo, pois Herzog leva o espectador a matas fechadas, sem qualquer traço de “civilização”, “higiene” ou qualquer outro conceito mais próximo a nós; vemos o horror daquela prisão, a extrema imbecilidade de um conflito como esse e a desesperadora ausência de sentido, que dá uma incômoda incoerência àquelas vidas. E não se pode negar a vitória de um filme que joga uma problemática como a estupidez das guerras numa história onde qualquer cineasta menos lúcido que Herzog veria uma desculpa para fazer apologia a um vil patriotismo.

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Além do Azul Selvagem (Werner Herzog, 2005)

Por Robson Galluci

Perto do final de Além do Azul Selvagem, um dos entrevistados fala — e, em se tratando de Werner Herzog, é difícil saber se é uma manifestação voluntária de uma opinião ou se o monólogo foi ditado pelo próprio diretor — sobre um futuro em que a Terra se transforma em uma espécie de parque ecológico protegido e os humanos moram em outros planetas ou em estações espaciais; logo se descobre que a ideia não é exatamente de um parque ecológico, mas sim um destino turístico aonde você iria durante suas férias, se, é claro — como o entrevistado/personagem enfatiza —,tiver dinheiro suficiente. A princípio, pode parecer uma crítica que Herzog coloca (mesmo quando se resolve preservar o meio ambiente, é com intenções mercadológicas), mas sabemos que nada é tão simples assim: não há como imaginar uma Terra que seja preservada como santuário, enquanto os homens partem para viver em outro lugar, no mesmo universo cinematográfico em que vivem Aguirre e Fitzcarraldo. O homem é inelutavelmente parte da natureza, não podendo escapar disso nunca, e a relação violenta que com ela mantém é decisiva naquilo que ele é e faz.

Essa relação tensa, porém inevitável, recebe em Além do Azul Selvagem um retrato abrangente como nunca antes na obra do diretor, porque dessa vez o objetivo não é encontrar Eldorado ou construir um teatro de ópera na selva, mas colonizar outro planeta, e despertar um sentimento de domínio sobre o universo ao se vencer as distâncias quase inimagináveis que separam as estrelas e galáxias. É um passo natural na filmografia de Herzog, em que a natureza incontrolável e intraduzível começa sendo meramente uma ilha abandonada para se tornar mais totalizante a cada obra. E, se já tivemos os arroubos de loucura ou heroísmo, ou híbridos de ambos, de personagens singulares, agora é tudo um empreendimento institucional, ou humano, limpo e impessoal (nos termos que o alienígena interpretado por Brad Dourif usa para descrever o estudo que se faz durante a narrativa dos destroços recuperados em Roswell). O resultado, porém, não é muito diferente: logo o espaço mostra sua face hostil, que os astronautas desconheciam, causando toda sorte de problemas na missão; e, mais tarde, quando chegam ao Azul Selvagem, a tensão volta com toda a força, na maneira como exploram o lugar e interagem com as criaturas que lá vivem.

Que são, é claro, criaturas do nosso próprio planeta: a viagem espacial e a exploração do Azul Selvagem usam imagens captadas, respectivamente, pela NASA e por mergulhadores, imagens nas quais são injetados novos significados. Filmar o familiar — o que consideramos familiar — como se fosse irremediavelmente estranho e desconhecido é um método que Herzog usa há muito tempo, tendo sua realização mais radical em filmes como Fata Morgana e Lições das Trevas, mas há mais em jogo dessa vez: trabalhando dentro de um gênero (a ficção científica) em que a criação de paisagens alienígenas é comum, usar imagens a priori tão banais e corriqueiras (embora mesmo nelas possa se achar poesia, como se destaca nos créditos finais) é um gesto, não propriamente de resistência, mas de demonstração de que aqui há ainda matéria de estranhamento, por mais que se diagnostique um entorpecimento geral motivado pela exaustão das imagens, como o diretor caracteriza, e de que o maior exemplo seriam as “fotos tediosas do Grand Canyon”. Personagens sem conta na obra herzoguiana nunca perdem de vista esse potencial obscuro do mundo que os rodeia (tanto que muitos de seus esforços são no sentido de sufocá-lo), mas os astronautas e até mesmo os alienígenas de Além do Azul Selvagem precisam passar por esse despertar, e com eles, o espectador. Até mesmo a longa cena em que um físico descreve os fenômenos que tornariam possíveis as viagens intergalácticas está lá essencialmente para reforçar como a natureza, aqui englobando todo o universo, é muito mais estranha do que pode parecer à primeira vista (e o título italiano do filme, L’ignoto spazio profondo, é especialmente feliz nesse sentido).

Oito séculos depois, é uma Terra desabitada e de volta à sua glória pré-civilização que os astronautas encontram ao retornar, mas não há indicação alguma se o que vemos é a concretização do futuro predito cenas antes — porque, após a experiência primordial de hostilidade, tensão, reconhecimento e estranheza do universo lá fora o homem expande o que é a natureza onde habita e com a qual se digladia para definir o próprio ser — ou um mundo que renasce depois da extinção da humanidade. A falta de respostas claras é proposital, porque importa menos o que aconteceu, do ponto de vista narrativo, do que o que acaba sendo, significativamente, o fim da jornada: seja na Terra ou no Azul Selvagem ou no espaço profundo, a mesma natureza esmagadora e terrível (e, exatamente por isso, bela) com que se defrontam os homens, e acima de tudo os homens que interessam a Herzog, desde sempre e para sempre.

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O Homem Urso (Werner Herzog, 2005)

Por Filipe Chamy

Em parte expressiva de sua filmografia, Werner Herzog persegue personagens que empenham o corpo e a alma na procura, na busca ou na execução de uma tarefa maior que suas forças, ou mesmo impossível. O homem urso não é exatamente exemplar nesse sentido, mas sem hesitação pode ser colocado no rol dos heróis herzoguianos — trata-se de um sujeito que dedicou mais de uma década de sua vida a viver em comunidade com ferozes e reclusos ursos pardos selvagens.

Suas intenções são nobres: proteger os animais e despertar a atenção das autoridades para problemas ecológicos de tal monta, além de conscientizar as crianças e fazê-las entender quem são os ursos e por que sua preservação é tão importante ao mundo.

Mas ele também padece de uma obsessão que margeia a loucura, a exemplo de um Fitzcarraldo. Então quando se isola e vai de fato estudar e conviver com os ursos, parece simplesmente uma missão suicida, um projeto de tolo, empresa fadada não só ao fracasso mas ao ridículo.

Não sendo uma criação ficcional, o homem é totalmente responsável por suas ações. Aliás, mais: são deles os registros que Herzog reúne para dar uma ideia do trabalho efetuado, dos anos decorridos e das pessoas envolvidas na história. E Herzog o respeita plenamente — apesar de evidentemente (e às vezes de modo verbalizado, explícito) discordar de muitas de suas atitudes, nunca zomba de seus credos, diminuindo seus esforços. Compreende-o, ou procura fazê-lo.

Herzog sai afetado pessoalmente dessa pesquisa. Em um momento tocante, chega a se emocionar de maneira flagrante (mesmo estando de costas para a câmera isso é facilmente observado) ao ouvir um arquivo de áudio de um momento particularmente doloroso na biografia do seu retratado. Mais que curiosidade, há um interesse humano. Uma vida desregrada, mas com um propósito. E registrar esse propósito e seus êxitos e eventuais fracassos é o que interessa ao diretor-documentarista. Portanto, ele vai atrás de fontes, de ocorrências, e chega a visitar locais envolvidos no caso todo. Alguém duvidava que ele não teria essa iniciativa? A obra de Herzog é um viajar pelo mundo, desbravar áreas inóspitas e conhecer culturas e gentes independentemente de barreiras de língua, geografia, etnia. Então ele vai atrás, segue as “pegadas” do homem urso (também um amante de raposas) e não se resume à burocracia do retrato: empreende uma verdadeira reconstituição de um momento de rebeldia inserido em certa contracultura, um grito por uma mudança de estado e de consciência. Chega a ser sintomático perceber que de fato há um desejo de simbiose, de metamorfose: o homem urso quer virar urso. Como em lendas indígenas, ele decide ser mais nobre se aliar ao indomável, e pouco a pouco se afasta do que temos por “civilização”. Temos com isso um filme de “vida real” em que o real é na verdade um avatar de uma fantasia praticada em nome de um ideal.

Herzog entende que a matéria-prima para a obra funcionar é uma visceral sinceridade, o que explica sua opção de pouco mexer no material bruto a que tem acesso. É como se exprimisse este óbvio: julgamentos são inúteis, mas é de todo modo improvável permanecer indiferente a essa vida um pouco “abençoada” por uma inconsciência algo poética.

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O Diamante Branco (Werner Herzog, 2004)

Por Robson Galluci

Toda a obra de Herzog é permeada pela tensão entre as aspirações humanas e a natureza indomável, um conflito que não raro termina em loucura e destruição diante de um universo impassível. No entanto, depois do réquiem irreversível que é Lições das Trevas e a simbiose apocalíptica que ele encerra, os bombeiros que não podem mais conceber a existência sem o fogo e que por esse motivo reacendem as chamas, dando continuidade ao “colapso do universo em esplendor” como forma de justificar a si próprios, Herzog vem tentando encontrar encarnações mais saudáveis, menos caóticas e descontroladas desse choque primordial. Novos Aguirres e Fitzcarraldos, depois da palavra final de Lições das Trevas, tornaram-se desnecessários e agora dão lugar aos peregrinos e seu díptico de enfrentamento e submissão, aos assombrosos sobreviventes Dieter Dengler e Juliane Koepcke, os cientistas de Encontros no Fim do Mundo e O Diamante Branco. Mas Herzog não pode deixar de ser o que é, de modo que é também o tempo de Timothy Treadwell e do alerta de que a violência indiferente do mundo é inegavelmente real e presente; de que qualquer agenda humana que ignore esse fato está tão fadada à ruína quanto os projetos de seus personagens dos anos 70 e 80.

É claro que sugerir um corte brusco e categoricamente delimitado numa obra tão inquieta e viva quanto a herzoguiana é um exercício infrutífero — ao longo das décadas, há temas que submergem e são aparentemente esquecidos, apenas para voltarem à tona com toda a força quando não se espera; como os homens que decoraram as paredes da caverna de Chauvet, desde então perseguidos pela hostilidade inexplicável da natureza, em nada diminuída por milênios de evolução científica e técnica, e sua incapturabilidade essencial a fazer naufragar qualquer tentativa séria de representação. Essas linhas de força que retornam parecem em O Diamante Branco vir de O Grande Êxtase do Escultor Steiner, de quem Graham Dorrington bem poderia ser um herdeiro. O sonho de Dorrington é, desde a infância, voar, e a isso ele dedica sua vida, transformando-se em engenheiro e pesquisador, projetando dirigíveis pensados para o uso em expedições científicas. O foco principal do filme — o que se anuncia como tal — é o teste de um novo projeto de Dorrington na floresta tropical da Guiana, e os fantasmas do passado que o assombram durante os dias que passam na selva. Porque, por mais que seu sonho seja retratado de forma quase infantil por Herzog, no sentido de que começa e termina em si mesmo e não está tão contaminado pelo desejo de conquista, ele também deixou sua parcela de traumas e escombros ao longo do caminho, e especialmente o corpo de Dieter Dengler, morto num acidente envolvendo um dos dirigíveis de Dorrington dez anos antes das filmagens de O Diamante Branco. O cientista tenta não se culpar pelo que aconteceu, e racionalmente sabe que de fato não é diretamente responsável, mas se questiona se a mera existência de seu desejo de voar não está por trás das engrenagens que culminam na morte de Dieter. A cena em que Dorrington relembra o dia do acidente é dos momentos mais poderosos de todo o filme, a luta entre o sentimento de culpa e as demandas dos sonhos que transparece em seu olhar, a lenta consciência de que só o sucesso do “diamante branco” (como os habitantes locais passam a se referir ao dirigível) pode proporcionar o alívio buscado.

Mas nem mesmo as dúvidas e a luta interna de Dorrington são suficientes para Herzog, que logo começa a expandir e transitar entre diversos focos de interesse, todos tendo vida e ímpeto próprios, sonhos e aspirações que no entanto ainda orbitam em torno do esforço conjunto de colocar o dirigível no ar com sucesso, para os quais o diamante branco passa a ter um significado simbólico. Até mesmo para Herzog, que discute com Dorrington para que este o autorize a participar do primeiro voo de teste, sabendo que pode ficar sem um filme caso algo dê errado. Através de Mark Anthony Yhap, um dos carregadores contratados pela equipe, que não vê há muitos anos a família, emigrada para a Espanha, e brinca com a ideia de atravessar o Atlântico com o dirigível e pousar no telhado da casa, fazendo uma visita surpresa, a rede de relações movimentadas e agitadas pelo sonho de um único homem se estende para além do que está materialmente impresso no filme. Yhap é outro achado em O Diamante Branco, ainda que a espontaneidade de muitas de suas declarações seja questionável: é o completo oposto do homem herzoguiano — coloca-se diante da natureza com assombro respeitoso, sabe retirar dela aquilo de que precisa sem procurar impor um domínio, parece viver em relativa paz de espírito —, mas a ele também encanta a ideia de voar, de pairar no dirigível em meio à neblina, como descreve Dorrington, de vivenciar o naturalmente impossível.

Em outro dos desvios do filme, um dos membros da equipe desce pelas cataratas de Kaieteur, levando consigo uma câmera, para ver e registrar imagens da caverna inacessível que fica por trás da cachoeira, onde as aves fazem seus ninhos. Mais tarde, mais um sonho se junta à rede construída ao longo da projeção quando o líder de um dos grupos indígenas da região confessa que, se tivesse asas, a primeira coisa que faria seria justamente ir para a caverna e descobrir o que há ali. Contraditoriamente, porém, ele resolve não ver as imagens e pede a Herzog para não divulgá-las, pois toda a essência de sua cultura está na inacessibilidade do local, na ignorância do que ele encerra. O diretor atende à requisição, talvez percebendo que o que existe no coração da atitude do outro é ainda outra maneira de vínculo com o imponderável na natureza que busca uma forma de reconciliação: a cultura se funda na aceitação de que a caverna deve permanecer desconhecida. O homem que desceu e a viu, no entanto, não é condenado ou repreendido, mas aconselhado a guardar o que viu para si, porque é, em sentidos talvez inalcançáveis para nós, espectadores, dele — provavelmente da mesma forma que Dorrington e Yhap, após os voos bem-sucedidos do diamante branco, sentem-se ainda voando, ainda cercados pela neblina.

Evidentemente, porém, não há como Herzog terminar O Diamante Branco com tal ideia de reconciliação possível sem trair a si mesmo e suas convicções, sua crença erigida filme a filme de que a contenda com essa imponderabilidade, a insurgência contra a profunda indiferença do universo é uma característica fundamental do homem e determina sua busca incessante por um sentido último: nos instantes finais Dorrington conta a Yhap como os nativos da Nova Zelândia não puderam enxergar os navios que estavam à frente deles por estarem tão distante de seu mundo de ideias; e depois dá-se conta de como isso se repete com todos nós: comenta com espanto como os pássaros movem-se todos juntos, mudam de direção de organizadamente, como se uma música os controlasse. Uma música com tamanho poder, mas parecemos incapazes de ouvi-la — e segundo Herzog a luta para superar essa incapacidade, para até mesmo acreditar que essa música exista, é o que faz de nós o que somos.

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Wheel of Time (Werner Herzog, 2003)

Wheel of Time, documentário das cerimônias de iniciação budista em Bodh Gaya, na Índia, revela muito das vontades e motivações de Herzog diante de um projeto, ou o que o faz perseguir a realização de um. O ritual consiste basicamente em milhões de pessoas em peregrinação (algumas de joelhos, algumas se arrastando) para ver a “Roda do Tempo”, uma mandala feita de areia colorida por monges tibetanos. Não há, é claro, sentido na busca que não o de acalmar a velha inquietação humana diante ao que não conhece ou compreende, pois quanto falta o conhecimento e a compreensão, resta a fé, que é tudo e nada ao mesmo tempo. Herzog poderia muito bem fazer ficção do quintal de casa, mas a noção de câmera traz, para ele, uma ideia intrínseca de artefato desbravador, de compor iluminuras nos rodapés do mundo. O plano final, remontando a Fata Morgana, é senha do transtorno que mantém este arqueólogo na estrada, porque há mais mágica escondida no universo do que somos capazes de registrar. A fé em sua câmera, seu cajado, o leva de um ponto a outro da Terra na esperança de encontrar também lá uma nova roda do tempo. Algum evento breve e excepcional (Lições das Trevas, La Soufrière, O Diamante Branco) que deva ser colhido na palma da mão e guardado em um relicário.

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Invencível (Werner Herzog, 2001)

Por Luis Henrique Boaventura

Há um certo eco de Stroszek e Kaspar Hauser (Bruno S.) em Zishe Breitbart (Jouko Ahola), protagonista de Invencível. Os dois partilham da mesma inaptidão em relação ao meio e do mesmo olhar pasmado, de quem lê hieróglifos incompreensíveis, para com o mundo a sua volta. Talvez se poderia evocar também Woyzeck, mas prefiro que sua compleição explosiva (muito diferente da natureza de bicho acuado de Stroszek, Kaspar e Zishe) excluam-no do diagrama.

Bruno S. (23 anos internado em instituições para doentes mentais antes de virar artista de rua) e Jouko Ahola (finlandês ex-detentor do World’s Strongest Man) não eram atores de formação. Foram pinçados do mundo real por Herzog por serem, cada um à sua maneira, excepcionais. O estranhamento de ambos para com a câmera é propriedade imanente também de seus personagens e reflete, como quis Herzog, um constrangimento em relação ao próprio contexto, o diegético e o externo (da produção do filme), que transmite ao primeiro seus efeitos em processo recorrente no cinema de Herzog (ver texto sobre Fitzcarraldo).

Stroszeck/Kaspar e Zishe entram em conflito e fragmentam tudo com o que têm contato na nova sociedade, mais friável do que julgavam seus fundadores, para qual partem nos primeiros minutos de cada filme. A ignorância clarividente de Kaspar Hauser é um pouco como a força física de Zishe: um superpoder (um desvio), outorgando a seu portador a capacidade para feitos extraordinários. A primeira reação a o que é extraordinário, como se sabe, é a curiosidade, passando ao esgotamento do dom e à sua eventual transmutação para qualquer anormalidade de natureza circense, a partir do momento em que aquele interesse primeiro é perdido ou substituído pela necessidade de destruição do que está interferindo na padronização do meio. O percurso clássico dos heróis, dos gênios, dos déspotas e dos loucos messiânicos.

Mas Zishe, de Siegfried a Sansão, termina mesmo como Aquiles, o semideus morto pela flecha no calcanhar; todo-poderoso, coabitante do plano dos homens, divide com eles a vulnerabilidade diante de algo estupidamente mundano como uma infecção causada por metal enferrujado, porque assim é Herzog: a compostura fabulosa de seus mundos de repente soçobrada por um golpe de realidade.

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Wings of Hope (Werner Herzog, 2000)

Por Fernanda Canofre

Era dia da véspera de Natal de 1971. No aeroporto de Lima, capital do Peru, centenas de pessoas disputavam um lugar no avião que passaria por Cuzco, rumo às montanhas, para passar a noite com a família. Alguns chegavam a jogar notas de 20 dólares no balcão, na esperança de subornar os funcionários e entrar na lista de passageiros. Dos dois voos previstos para aquela noite, apenas um pode decolar. O outro teve de ser cancelado na última hora devido a problemas mecânicos que não puderam ser solucionados. Com mais de três horas de atraso, o voo da Lansa enfim partiu, levando a bordo 92 pessoas. Entre os que conseguiram embarcar estava, Juliane Koepcke, garota de 17 anos, criada no Peru, filha de pais alemães. Ela e a mãe deveriam encontrar o pai em Pucallpa, um biólogo que escolheu a selva como o trabalho de sua vida. Entre os que ficaram para trás, estava o cineasta Werner Herzog, alemão, também filho de um casal de biólogos. No Peru, filmando Aguirre – A Cólera dos deuses, Herzog deveria estar no voo de volta a selva para encontrar sua equipe de filmagem. Anos depois, no saguão do aeroporto, ele lembra que quem ficou, invejava quem pode embarcar. Meia hora depois da decolagem, uma tempestade começou a se formar. Do lado de fora, tudo estava negro. Apenas os raios que riscavam o céu lembravam com seus flashes de luz que o avião sobrevoava a floresta. Poucos minutos depois, a tripulação começou a atravessar a pior turbulência que Julianne experimentaria na vida. Enquanto ela olhava pela janela, só teve tempo de ouvir a mãe gritando: “É o fim!”. Um dos motores da aeronave havia sido fatalmente atingido por um raio. Julianne só voltaria a abrir os olhos mais de 24 horas depois para se descobrir, com o corpo coberto de lama e um corte profundo na perna, como a única sobrevivente do acidente.

Mais de vinte e cinco anos depois, Julianne volta a selva para repetir “todas as estações de sua odisseia” diante das câmeras de Herzog em Wings of hope. O filme começa com a pesquisadora alemã, com mais de quarenta anos, caminhando pelas ruas de Lima, vendo manequins macabros, com a cabeça partida, expostos em lojas, e recordando um passado que a assombraria para sempre. No aeroporto de onde o trágico voo decolou, o diretor conta para sua personagem a experiência dele na mesma noite e confessa: “Esse é um filme que pensei em fazer durante anos porque eu mesmo quase fui parte da catástrofe”. Assim, Herzog assina um atestado de que o que veremos pela próxima hora, não é apenas um conto de sobrevivência, mas também um lembrete pessoal do quanto estamos nas mãos do acaso. Contar a história de Julianne, e seus doze dias sozinha na selva, é também uma maneira de ele encarar a possibilidade da própria morte, que, por acaso, naquele dia não o escolheu. Algumas das vítimas do acidente eram membros da equipe de Herzog. Em uma das cenas, no meio da selva, temos Julianne e Herzog no plano. Ele tenta falar sobre o que se passou pela sua cabeça quando soube do destino do avião que ele não conseguiu pegar. Conta que descobriu mais tarde que os pilotos não tinha licença própria, os mecânicos que trabalhavam com a Lansa só haviam consertado motocicletas antes, o que acabou resultando em dois acidentes antes do de Juliane. Herzog tenta imaginar o que ela deve ter sentido diante de um acidente anunciado, que poderia ter sido evitado, mas Juliane lhe diz: “Você deveria agradecer que nada aconteceu com você”. Herzog, com a cabeça baixa, olhando para a água corrente, responde: “Sim, eu sou grato a isso”.

Julianne, como entrevistada, é sempre objetiva e pragmática. Dentro do avião, sentada na mesma fileira e na mesma poltrona que ocupava no dia do acidente, ela parece alguém que já foi tão assombrada por fragmentos de memória, que aprendeu a dominá-los o suficiente para conviver em paz com eles. Seu relato tem o poder das “contações” de história. Herzog não precisa ilustrar para que imaginemos o que se passou dentro do avião naquele dia 24 de dezembro ou na jornada que Julianne enfrentou sozinha pela selva. Podemos ver tudo através das palavras dela. Um dos raros momentos que ele o faz é quando, na hora em que Julianne fala sobre a queda, sua câmera nos mergulha no mar de floresta verde, dando a sensação de estarmos no ar sem rede de segurança. A estrutura narrativa do filme é construída intercalando entrevistas de Julianne com a narração em off do próprio diretor, uma das marcas registradas do universo documental herzoguiano. Outros personagens, como o policial encarregado pelas buscas ou um dos homens que a encontrou, quase não ocupam espaço aqui. O filme é um caminho intimista e solitário, como o foram os dias de Julianne perdida na selva e como são os confrontos que travamos contra nós mesmos. A luta pela sobrevivência é representada no documentário, não de forma heróica (Juliane inclusive debocha do filme de ficção baseado em sua história, que colocava a protagonista encarando perigos constantes), mas como uma das leis básicas da natureza e o que nos integra ao mundo. Herzog fecha um close nas mãos de Juliane durante uma de suas entrevistas: enquanto ela fala tranquilamente, dezenas de moscas caminham pelas suas mãos sem parecer incomodá-la. Quase como se as moscas fizessem parte dela em uma relação não parasitária, mas de simbiose. O mesmo transparece quando, junto a um dos guias, Juliane vasculha a região onde o avião caiu. No meio da mata, eles descobrem uma porta de saída de emergência, pedaços de carpete, um salto de sapato, um rolo de cabelo, a estrutura metálica do que um dia foi uma mala. Algumas peças estão presas ao chão pelas raízes que cresceram por cima delas. O painel da cabine tem cor de ferrugem e formigas caminhando sobre ele. É como se o acidente e seus destroços tivessem sido incorporados pela selva e agora fossem uma parte da vida contida nela. Julianne relata que assim que acordou, olhou para cima e não enxergava galhos quebrados ou qualquer coisa que pudesse indicar a trajetória do avião em queda, como se a floresta simplesmente o tivesse engolido. Assim, depois de vinte sete anos, os destroços que ali ficaram parecem ter sido também digeridos pela densa mata.

Porém, as lembranças não são assim tão fáceis de serem transformadas em passado. Se parte do documentário de Herzog nos apresenta uma Juliane objetiva, que passa inclusive um pequeno manual de sobrevivência na selva (onde encontrar água, como reagir se encontrar crocodilos, etc), vemos também uma mulher que não conseguiu deixar a selva para trás mesmo depois de anos morando na Alemanha. A família Koepcke mudou-se para o Peru quando Juliane ainda era uma criança. O pai, o biólogo alemão Hans-Wilhelm sempre tivera o sonho de desenvolver um trabalho de pesquisa na selva amazônica. Alguns anos depois do fim da guerra, sem dinheiro e sem passaporte, acabou arrumando emprego como estivador em um navio que iria rumo a América do Sul, de onde não tinha planos de voltar. Clandestino, atravessou todo o continente a pé até chegar ao Peru, onde instalou a estação ecológica que seria o lar de sua família, na cidade de Pucallpa. Ali, Juliane cresceu tendo tucanos de estimação e correndo para brincar em canoas todos os dias depois da escola. Por isso, mesmo com o trauma sofrido dentro da selva, ela mostra o quanto ainda faz parte dela. Herzog explora em diversas cenas a integração da pesquisadora com os animais, mostrando-a ao entrar em uma árvore oca onde vive um grupo de morcegos, em uma varanda infestada de grilos ou com uma cobra verde não venenosa nas mãos. Mas é também nos animais que ele encontra a linguagem visual para trazer a tona os pesadelos que assombraram Juliane durante toda a vida. Caminhando em um armazém cheio de animais empalhados (um depósito de fazer inveja aos cenários de Hitchcock), ela começa a contar sobre um de seus sonhos. Herzog insere uma trilha de suspense com constantes crescendos para ambientar o relato, e temos então pura poesia onírica em forma de cinema.  Em seus sonhos, Juliane busca se proteger dos aviões vendo-os como borboletas que ela pode guardar em gavetas e prateleiras e se vê em um mundo onde não há mais seres vivos, apenas carcaças de animais servindo como troféu à venda. Em uma entrevista, fora do documentário de Herzog, a pesquisadora confessou que sempre se perguntou por que ela fora a única sobrevivente. Depois que foi encontrada, Juliane teve de aprender a viver como “a garota que caiu dos céus”, viu sua vida transformada em espetáculo, os piores dias de sua vida romanceados como uma grande aventura na selva. Uma fama da qual ela sempre quis fugir.

Carlos Páez, sobrevivente de outro acidente aéreo, o avião caído nos Andes em 1972, disse certa vez em uma entrevista que: “durante o acidente tudo acontece tão rápido que você não consegue se dar conta. Pior ainda quando você sobrevive”. Apesar de sua calma, Juliane passa nos olhos o peso de quem teve de conviver por mais da metade de sua vida com o fato de ter sobrevivido. Depois de andar doze dias seguindo um rio até descobrir habitações humanas, ela foi encontrada por três moradores de um vilarejo ribeirinho. Os homens a levaram até a vila mais próxima onde pudesse ser atendida por um médico. Vinte e sete anos depois, o único dos três homens que ainda vive, conta que os moradores locais não queriam deixar que ela entrasse na cidade. Para eles, os olhos sujos e feridos de Juliane faziam dela um demônio da floresta. Como a única que pessoa a se salvar de um grande acidente, ela parece manter um pouco desta mística. Afinal, o que faz dois alemães desconhecidos estarem no mesmo aeroporto a milhares de quilômetros de casa, em uma véspera de Natal, a espera de um mesmo avião? O que determina qual deles vai embarcar e qual deles terá de conviver para sempre com a dúvida do “e se fosse comigo”? Qual partícula do universo (ainda não descoberta pelos cientistas) será a responsável por determinar quem deve viver e quem deve morrer? Wings of hope usa a história de uma mulher que saiu com vida de um dos maiores acidentes de aviação do Peru para nos defrontar com o destino nosso de cada dia. Em meio ao caos e a escuridão da vida, temática recorrente no cinema de Herzog, só nos resta isso, tentar sobreviver.

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Meu Melhor Inimigo (Werner Herzog, 1999)

Por Vlademir Lazo

Mais que uma cinebiografia, o relato de um caso de amor e ódio entre Werner Herzog e Klaus Kinski, diretor e intérprete. Criador e criatura. Muitas parceiras foram estabelecidas no cinema, mas nenhuma tão turbulenta quanto à desses dois. Meu Melhor Inimigo vai na contracorrente de filmes sobre artistas em que a tendência é elogiá-los e prestar as maiores lembranças à figura em questão. Herzog, entretanto, com seu documentário não pretende enterrar a memória de Kinski, mas reverenciá-lo da maneira que ele merece, num filme-homenagem sem uma postura hipócrita ou enganadora, mas relembrando o louco que o ator fora em vida. E isso só um amigo de verdade é capaz de fazer.

Costuma-se dizer que é preciso saber escolher seus inimigos. Pois então Herzog o soube muito bem. A própria vida de Kinski já parece parte de um filme de Herzog. Na abertura, vemos o ator numa apresentação em um palco como um Jesus do mal ofendendo uma platéia (o que repetiu com frequência durante um ano inteiro). O diretor, por sua vez, prefere se concentrar nos episódios relacionados a eles os dois, voltando-se para o futuro para recuar no passado, visitando ele próprio a moderna casa que servia de pensão em que moraram Herzog, ainda adolescente, e Kinski, antes da fama. Diante dos donos do local, Herzog desfia as lembranças do seu amigo-inimigo naquele período em especifico, os acessos de raiva (quando, por exemplo, trancou-se num banheiro por 48 horas despedaçando tudo), a megalomania, etc. Em dado momento, os proprietários, curiosos, conduzem algumas perguntas ao diretor, já definitivamente personagem e narrador do documentário.

Depois Herzog retorna às locações de três dos cinco filmes que fez com Kinski num espaço de quinze anos. As discussões tempestuosas em meio às tensões na natureza hostil das selvas sul-americanas durante as filmagens de Aguirre, a Cólera dos Deuses (1972) e Fitzcarraldo (1982) ocupam a maior parte da narrativa, especialmente o conhecido episódio em que Kinski ameaçou abandonar as filmagens em pleno andamento, voltando atrás na decisão quando Herzog lhe respondeu que, se fosse embora, o mataria com um tiro de espingarda quando ele estivesse cruzando a curva do rio na lancha que o levaria. Era sabido que Kinski desistira de vários projetos na metade das produções (arruinando muitas turnês teatrais, inclusive), e Herzog garante: “E eu teria mesmo atirado”.

Os entreveros de Kinski não se restringem aos travados com o cineasta. O ator vociferava contra membros da equipe técnica, fazia escândalos quando irrompiam problemas nos quais ele não era o centro das atenções, e se indispunha com os índios da América, que se ofereceram a Herzog para matá-lo. Só não o fizeram porque o cineasta advertiu-os de que precisava do ator para terminar o filme. Ao reencontrar o nativo que serviu como guia da equipe de Aguirre (que Herzog não via há mais de duas décadas), e que fora um dos figurantes na produção, o nativo já um senhor de idade recorda de quando Kinski durante uma filmagem o golpeou com grande força na cabeça com a espada que empunhava, não o ferindo mortalmente por causa do capacete usado pelos personagens, mas deixando uma cicatriz para sempre visível que no documentário o pobre homem compartilha à visão do espectador.

Meu Melhor Inimigo é tanto sobre Kinski quanto sobre o próprio Herzog. É possível apreender um bocado do Herzog-cineasta no documentário. Ele relembra que, durante as filmagens de Aguirre, Kinski insistira para que filmassem algumas cenas aproveitando no plano toda a grandiosidade das paisagens peruanas como decoração, que nem num espetáculo hollywoodiano. Como um cartão-postal, completa Herzog, que preferia os travellings circulares e planos-sequências em volta dos personagens, do rio e objetos em cena. Herzog também se detém sobre a técnica de Kinski, e no documentário agradece ao ator pelo magnífico final de Aguirre.

Há também os momentos de descontração, em que Kinski encontra-se calmo e afável, sem a violência agressiva quase folclorizada no decorrer de tantos anos. É possível vê-lo num festival de cinema junto com Herzog, quando ambos riem juntos, e o ator declara que se davam bem e trabalhavam juntos por que eram loucos. Quando entrevistada, Eva Mattes (sua parceira em Woyzeck) o relembra como capaz de grandes cortesias, o que é reiterado por Claudia Cardinale, que esteve presente em Fitzcarraldo. Pena ser tão pouco mencionado o remake de Murnau Nosferatu: O Vampiro da Noite (talvez a obra-prima de ficção do diretor), que surge em cena no documentário somente através de alguns de seus fragmentos. Perto do final, uma rápida descrição em torno das filmagens de Cobra Verde, um relativo fracasso que praticamente encerrou a carreira do ator e fez com que Herzog interrompesse os seus trabalhos de ficção. O cineasta conta que naquele momento já não sentia mais vontade de trabalhar com Kinski, que morreria quatro anos depois. Herzog prefere mesmo é recordar do velho amigo-inimigo por momentos como o da borboleta brincando ao seu redor, um dos tantos captados com talento e sensibilidade em Meu Melhor Inimigo. Não poderia haver título mais apropriado a esse ótimo documentário.

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2000 Jahre Christentum: Christ and Demons in New Spain (Werner Herzog, 1999)

Por Luis Henrique Boaventura

Assistir a um documentário de Herzog narrado por outra pessoa (no caso, Donald Arthur) faz sentir uma falta imensa do próprio Herzog colocando-se em cena, ainda que sua visão esteja por demais evidente em mais de uma passagem. Mas Christ and Demons in New Spain não passa exatamente para a metade de cima da filmografia relevante do diretor. Trata-se de um episódio produzido para uma série de TV alemã referente aos dois mil anos do cristianismo, em que Herzog viaja à Guatemala para investigar o confronto entre as crenças astecas e a nova corrente imposta pelos conquistadores espanhóis. A configuração fragmentária do povo, sem muita identidade cultural apesar da rica cultura e sem convicção de espírito, está impressa nos rostos durante as paradas que Herzog presencia. Na passagem de uma imagem de Cristo, em especial. É um Cristo fantasma, convergente de um vazio que não se pode compensar, de um passado exangue e parricida, que Herzog vai até Antigua para descobrir. Não se sabe ao certo o quão profunda é a relação do povo com o cristianismo porque a presença de Cristo reverte-se imediatamente em ausência, em falta de memória de todo um povo deixado órfão da noite para o dia, e é numa pergunta aparentemente primária, “O que é Jesus para estas pessoas?”, prenhe de uma segunda questão ainda mais fundamental (“Quem somos?”), que Christ and Demons in New Spain encerra seu grande achado. Nada atenua a carência da própria história.

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